o caso da cobra com asas - pdf...

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Aurélio, Rodrigo e Inês estavam no café a beber coca-colas. Com eles encontrava-se Sherlock Tangas, um impressionante cão boxer que não se dava bem com bebidas gasosas e preferia roer um biscoi-to canino e beber uma água lavada. Todos eles formavam a Brigada Azul, uma equipa sempre disposta a virar do avesso qualquer caso de investigação que lhe surgisse pela frente, até que as coisas se es-clarecessem de vez — o que não era fácil e nem sempre conduzia a resultados apreciáveis. Mas como dizia Aurélio, que tinha a mania das frases devastadoras e dos provérbios: Quem procura, sempre al-cança, máxima que funcionava como divisa do grupo e assentava neles que nem uma luva.

Nesse fim-de-semana, em Vilalva, estava tudo calmo. Um maras-mo completo. Ou pelo menos assim parecia. Também não tinham nenhum caso pendente. Pendente mesmo só os trabalhos de mate-mática do Rodrigo, mas ainda tinha tempo para acabá-los. Segunda-

-feira era feriado, o que dava espaço de manobra. E depois a escola fechava no resto da semana para desinfestação. Talvez por não te-rem nada com que se ocupar, demonstrassem algum aborrecimento. Não estavam habituados à inactividade.

— Isto está uma seca! — comentou Aurélio.— É do calor — argumentou Inês. — O calor amolece as ideias.— As ideias e o chocolate que trazia aqui no bolso! — disse Ro-

drigo, levando subitamente as mãos ao local onde uma pasta amole-cida fazia lembrar tudo menos um chocolate.

Sherlock Tangas sentado nos quartos traseiros, esperava paciente-mente que lhe dessem mais qualquer coisa para comer. Também não gostava nada de estar sem... mastigar. Sentia-se inútil...

— E se fôssemos até à Casa Azul? — propôs Inês.— Fazer o quê? — quis saber Aurélio, sem vontade de se levantar

dali.— Podemos jogar consola. Ou continuarmos a actualizar os nos-

sos ficheiros... — sugeriu Inês, com o seu espírito de organizadora.— Bah! — fez Rodrigo. — Preferia ir ver o jogo de futebol na

televisão.— Concordo com a Inês. Temos de aproveitar os momentos livres

para actualizar os ficheiros da Brigada. Pelo menos até estarem re-gularizados — disse Aurélio, bebendo o resto da coca-cola.

Sherlock Tangas continuava sentado sobre as patas traseiras, fo-cinho no ar, narinas frementes. Às vezes parecia agitar-se, mas logo voltava à posição inicial. Vivia em permanente estado de alerta. E como que a demonstrá-lo, de repente latiu, mostrando-se agitado.

— O que é que se passa? — perguntou Inês, olhando-o nos olhos.O cão voltou a latir. Alterou a posição do corpo, erguendo-se e

esticando o pescoço e a cabeça.— Vê se te calas! — admoestou-o. — Senta-te!Sherlock Tangas não conseguia estar quieto, embora se manti-

vesse no lugar. Era como se um batalhão de pulgas o atacasse de forma implacável. Então decidiu chamar a atenção dos elementos da Brigada com mais veemência. Deixou-se de rosnadelas e ladrou.

Ladrou fortemente. Era preciso convocar as boas vontades. Era pre-ciso libertá-lo daquela posição estática. Esperava uma ordem. «Não vêem o que eu estou a ver? São cegos ou quê? Com a breca!», devia ter pensado... se pensasse. Inês olhou. Uma criança tinha deixado cair no chão um resto de bolo. Estava ali no passeio, a meia dúzia de passos. A pôr o guloso do Tangas em transe!

— Vai lá, anda! — condescendeu Inês.Sherlock Tangas não precisou de ouvir duas vezes. Atirou um salto

ao resto de bolo e abocanhou-o de uma vez. Com o salto derrubou uma cadeira da esplanada, porque ele não olhava a meios para atin-gir os fins, quando se tratava de comida. «Desperdício é que não!» devia ser o seu lema.

— Não devias deixar o cão comer doces. Só lhe faz mal — insur-giu-se Aurélio.

Nesse instante, o telemóvel de Inês tocou dentro da mochila, poi-sada em cima da cadeira ao seu lado. Quem seria? Abriu a bolsa exterior da mochila e retirou o telemóvel.

— Sim? ... Sou eu. O que se passa? Uma quê? ... Estás doido! Doidinho varrido! Mas... Está bem, vamos para lá. Se achas que é importante... OK — desligou.

— Quem era, Inês? — perguntou Rodrigo, enquanto abria uma caixa de pastilhas elásticas e metia uma na boca. — Alguém quer uma pastilha?

— Era o Tiago Bolacha com uma história qualquer relacionada com o desaparecimento de uma cobra com asas. Vejam lá vocês se é possível! Este Tiago Bolacha está cada vez mais parvo. Onde é que ele foi descobrir uma cobra com asas? Diz que desapareceu do circo estacionado no Terreiro da Feira.

— Afinal, o que é que ele quer? — perguntou Aurélio.— Que va-mos apanhar uma cobra com asas com a ajuda de uma rede para caçar borboletas?

Desataram todos a rir. Sherlock Tangas abanou o coto do rabo, comungando da risada geral.

— Pediu que fôssemos para a Casa Azul. Quer falar connosco.

Está lá dentro de dez minutos — informou Inês.— Vamos sair daqui para ouvir mais uma das incríveis histórias

do Tiago Bolacha? — questionou Aurélio, desconsolado.— Talvez seja melhor — aconselhou Rodrigo, puxando pelo bom-

-senso. — Vocês sabem que o Tiago muitas vezes acerta nas pistas que sugere. É pena ser destravado da mioleira e meter os pés pelas mãos quando menos se espera. Mas lá no fundo ele sabe o que faz. E, de qualquer modo, já tínhamos pensado ir para a Casa Azul.

— Bom, mas essa da cobra com asas não lembra a ninguém! — tornou Aurélio.

— Vamos à vida — disse Inês, levantando-se. — Já se vai desven-dar o mistério.

Aurélio chamou o empregado para pagar a despesa. Era a sua vez de abrir os cordões à bolsa. A seguir meteram-se a caminho da Casa Azul, sede da Brigada, em cuja cave funcionava a Sala de Operações, equipada com computador, fax, um conjunto completo de som, com rádio, leitor de CD e DVD, uma TV e uma mesa com cadeiras, além de uma estante com livros e diverso material útil às suas tarefas de investigação. Era também aí que estudavam em conjunto, quando as matérias escolares apertavam e era preciso trocar ideias. Ao canto da sala havia um velho sofá de couro, que Sherlock Tangas invaria-velmente ocupava para as suas sonecas retemperadoras, depois das inevitáveis canseiras que o deslindar dos casos originava... depois disso e da sua ração matinal, que o deixava com uma sonolência a que só o velho sofá de couro dava resposta condigna.

Ainda não tinham chegado à Casa Azul havia cinco minutos quando Tiago Bolacha apareceu, esbaforido, a pedalar na sua BIT. Vinha tão vermelho, que um tomate maduro ao pé dele não tinha cor. Não era fácil ser gordo e pedalar uma bicicleta com todo o fre-nesim possível, sem que o rosto mostrasse a verdadeira cor desse esforço.

— Então, o que se passa? — avançou Aurélio, antes de Tiago po-der respirar.

— Bom... penso que temos... um caso entre mãos... muito com-

plicado... — foi explicando enquanto estabilizava a respiração, ten-tando, como sempre fazia, ser tomado por elemento do quadro da Brigada.

— Temos, não! Cada macaco no seu galho! — cortou Aurélio com mais um provérbio. — Nós não temos nada. Estamos aqui descan-sadinhos. Tu é que telefonaste a dizer que se passava qualquer coisa. A Brigada Azul está aqui disposta a escutar o que tens para dizer. Só isso.

Inês fez um gesto discreto para que Aurélio não começasse logo a implicar com Tiago Bolacha. Quando os dois se juntavam era certo e sabido que faiscava, embora fossem bons amigos, como já por mais de uma vez se tinha provado... Mas isso era outra história.

— Conta lá o que sabes, Tiago — solicitou Rodrigo.— Conforme disse à Inês, pelo telefone, desapareceu do Circo Bi-

cholândia uma cobra com asas. É um animal raríssimo, segundo me disseram. Estão preocupadíssimos!

— E também desapareceu um tapete voador, um jacaré vermelho, um tambor com pernas e um macaco gago? — inquiriu Aurélio, na chacota.

— Não brinques, que o assunto é sério! — retrucou Tiago.— Escuta cá... — avançou Inês. — Tu não achas que isso de de-

saparecer uma cobra com asas é uma peta do tamanho do mundo? Onde é que há cobras com asas? Só se for nos contos de fada ou no cinema. Contaram-te uma história, e tu nem te deste ao trabalho de parar para pensar. Com franqueza, Tiago!

Sherlock Tangas olhava para todos com um ar que devia ser o mais divertido possível, embora seja difícil adivinhar as emoções de um cão por detrás de um focinho de pugilista. Mas pelo seu ar, só se podia estar a divertir com tanta asneira. Por seu lado, Tiago Bolacha pareceu cair em si e reconsiderou:

— Bom, talvez o tratador me tivesse dado essa resposta para que eu o deixasse em paz. O homem estava muito enervado e preocupa-díssimo. O pessoal do circo andava a espiolhar todos os recantos à procura de alguma coisa. E quando eu lhe perguntei o que procura-

vam, respondeu-me: «Andamos à procura de uma cobra com asas!»— Ah! Começamos a entender-nos — retrucou Rodrigo. — A

questão essencial é que desapareceu algo do circo. Algo importante. A frase «uma cobra com asas» foi só para te afastar, não é assim?

— Se calhar... Mas que ocorreu alguma coisa grave, ocorreu. Po-dem estar certos. Senão, como é que se justifica toda a azáfama entre os elementos do circo?

— Sim, pode ser que tenhas razão — concluiu Inês. — Mas o fac-to é que ninguém pediu a nossa ajuda. Não nos devemos meter onde não somos chamados, não é?

— Vão ficar aqui parados sem fazer nada? A Brigada devia actu-ar — insurgiu-se Tiago Bolacha, insatisfeito por não darem muito crédito às suas palavras.

— O que a Brigada deve ou não deve fazer é só com ela. Quem não pertence à Brigada não atira palpites — tornou Aurélio, sempre pronto a esgrimir contra Tiago.

Inês foi de imediato em auxílio de Tiago. Não gostava nada da-quelas brigas e escaramuças verbais. Não levavam a nada. Era como lutar sem causas nem princípios. Era rebeldia que não elevava nin-guém.

— Fizeste muito bem em vir falar com a Brigada. Amigos e cola-boradores sempre atentos, como tu, é de que nós precisamos. Mas como deves compreender, não é muito razoável aparecer no circo para investigar o que quer que seja sem ninguém nos ter pedido nada. Podíamos ser postos na rua, e com razão.

— Lá isso é verdade — concordou Tiago. — Bom, sendo assim, vou andando. Quero acabar de ler um livro que me está a entusias-mar bastante.

— Qual é o tema? — perguntou Inês.— É uma história de tesouros perdidos na selva amazónica. É

emocionantíssimo! — respondeu, superlativo.Tiago Bolacha abandonou a Casa Azul montado na sua BTT.

Sherlock Tangas tinha-o seguido até à porta, esperançado em que houvesse alguma guloseima que o recompensasse dessa boa condu-

ta que era acompanhar um amigo à porta. Mas desta vez teve de contentar-se com a boa acção. Não havia nada para mastigar.

Na sala de operações da Brigada, Inês fazia sentir a Aurélio quan-to ele era irritante por estar sempre a provocar Tiago Bolacha. E muitas vezes sem razão alguma. Que raio de feitio...!

— Se fosse a Bia Flores que tivesse cá vindo, derretias-te todo, não era?

— Ora, a Bia Flores é a Bia Flores! Não diz asneiras.— Bem te percebo.Sentaram-se os três companheiros à mesa. Sherlock Tangas reco-

lheu ao seu sofá de estimação. Uma onda de silêncio invadiu a cave da Casa Azul. O clima estava a tornar-se pesado entre os elementos da Brigada. Era da falta de actividade. Entretanto, Rodrigo propôs que ligassem o computador e jogassem qualquer coisa.

— Não me apetece jogar — resmungou Aurélio.— Nem eu. Falei por falar — reconheceu Rodrigo, pegando um

bloco de papel cavalinho que guardava numa gaveta, preparando-se para desenhar.

— Então ligo eu o computador para continuar a actualização dos ficheiros — disse Inês.

— Ainda bem que há pessoas de boa vontade! — atirou Rodrigo, a sorrir, enquanto iniciava mais um retrato do Sherlock Tangas em pose diferente.

A verdade é que uma das suas ocupações preferidas era desenhar o cão da Brigada nas mais variadas atitudes. Gostava especialmente de apanhá-lo a dormir. A ressonar, com as badanas do focinho a agitar-se com a tempestade da respiração. Mas nesse instante, Sher-lock Tangas abriu os olhos, rosnou e de imediato pulou do sofá para o chão correndo para a porta. Começou a ladrar.

— Pronto! — exclamou Rodrigo. — Lá se pirou o modelo. Já um artista não pode trabalhar em paz!

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A razão para Sherlock Tangas ter ladrado desabridamente foi a passagem de um carro na rua da Casa Azul. A casa ficava um pouco retirada, e era raro circularem por ali veículos que o cão não tivesse catalogado na sua memória de cheiros e sons. Aquele, pelos vistos, era novidade; daí a sua resposta imediata. Aurélio foi até à porta e abriu-a, tendo Sherlock Tangas galgado em correria os degraus que conduziam da cave até ao piso térreo, ao rés da estrada. Parara de ladrar, pois a razão por que o fizera deixara de existir. Aurélio cor-reu atrás dele, e, quando chegou à estrada, reparou nuns panfletos que voavam em várias direcções. Sherlock Tangas, à cautela, já tinha posto uma pata em cima de um.

— O que é isso? Temos novidade?O cão ladrou, como quem diz: «claro, não estás a ver que sim!»

Aurélio agarrou então no papel e começou a ler:

Logo a seguir ao texto podia ver-se uma imagem do cão; por sinal, um animal esbelto. Parecia um galgo, e se calhar era mesmo, pensou Aurélio. Desceu as escadas para a cave exibindo o papel na mão, seguido por Sherlock Tangas.

— Olhem! Aqui está a história da «cobra com asas» — acrescen-tou a rir.

— O que é que estás para aí a dizer? — perguntou Inês, sem tirar os olhos do computador.

Rodrigo ainda estava com o bloco de desenho nas mãos, talvez à espera do regresso do seu modelo canino. Mas a entrada, em atitude triunfal, de Aurélio, captou-lhe a atenção.

— Lá vens tu com as tuas charadas. Do que é que se trata?— Aquele Tiago Bolacha é mesmo um tanso. Acredita em tudo

o que lhe dizem, como os polícias. Falaram-lhe numa «cobra com asas», e ele nem digeriu a questão.

— Explica-te, pá! E deixa o Tiago em paz — cortou Rodrigo.— Está aqui tudo. Leiam — disse Aurélio, entregando-lhes o pa-

pel.Os outros dois companheiros apressaram-se a ler o folheto. Estava

ali tudo explicado. Afinal, desaparecera um cão do circo. Um cão de raça apurada, pelos vistos. E os responsáveis pelo circo pediam aju-da. Assim, as coisas compunham-se. Havia um motivo para a Briga-da Azul entrar em acção. Não podiam perder nem mais um minuto. Era só acertar as agulhas entre eles de modo a não desperdiçarem esforços. Um bom plano de actuação era inevitável.