o caráter anti-imperialista da revolução cubana (1898-1961) · embora o imperialismo, sob o qual...

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[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ NUESTRA AMÉRICA] Ano 2, n° 2 | 2012, verão ISSN [2236-4846] 28 O Caráter Anti-Imperialista da Revolução Cubana (1898-1961) * Vitor Bemvindo ** Em 16 de abril de 1961, Fidel Castro declarou o caráter socialista da Revolução Cubana. No entanto, entre janeiro de 1959 e esta data havia uma grande indefinição sobre qual era o verdadeiro caráter ideológico do movimento revolucionário cubano. Essa indefinição era evidente inclusive em algumas declarações do seu principal líder que, por algumas vezes, afirmara em discursos que a revolução em curso nas Caraíbas não era nem de esquerda, nem de direita. A falta de um posicionamento ideológico concreto por parte do governo revolucionário levou muitos autores que se dedicaram ao estudo da Revolução Cubana a interpretarem o movimento como vazio ideologicamente. Carlos Alberto Barão (2005) ressalta que esse tipo de análise é característico da historiografia sobre o tema produzida na América do Norte e na Europa e está carregada de uma visão etnocêntrica sobre o processo histórico em questão. Segundo Barão, essas análises só consideram como correntes ideologicamente reconhecidas as amplamente difundidas no contexto de Guerra Fria. Para ele, os autores que adotam esse tipo de interpretação ignoram totalmente as construções ideológicas locais, dando as mesmas pouca ou nenhuma importância. A crítica a esse tipo de interpretação no trabalho de Barão é direcionada especialmente a dois autores: a Charles Wright-Mills e a K. S. Karol. Na verdade, a crítica se concentra em Wright-Mills, já que Karol utiliza este autor como referência da sua análise. (BARÃO, 2005, p. 15). É importante expor o pensamento de Wright-Mills, citado por Karol, para que se possa identificar os pontos de crítica: [Wright-]Mills sabía, en efecto, que el instinto de autodefensa arrojaría inevitablemente a los cubanos en brazos del bloque soviético y que éste se aprovecharía de ello para llenar el semivacío ideológico del castrismo * Artigo recebido em outubro de 2011 e aprovado para publicação em fevereiro de 2012. ** Professor do Instituto Politécnico da Universidade Federal do Rio de Janeiro em Cabo Frio. Mestre em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ NUESTRA AMÉRICA] Ano 2, n° 2 | 2012, verão

ISSN [2236-4846]

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O Caráter Anti-Imperialista da Revolução Cubana (1898-1961)*

Vitor Bemvindo**

Em 16 de abril de 1961, Fidel Castro declarou o caráter socialista da Revolução

Cubana. No entanto, entre janeiro de 1959 e esta data havia uma grande indefinição sobre qual

era o verdadeiro caráter ideológico do movimento revolucionário cubano. Essa indefinição era

evidente inclusive em algumas declarações do seu principal líder que, por algumas vezes,

afirmara em discursos que a revolução em curso nas Caraíbas não era nem de esquerda, nem

de direita.

A falta de um posicionamento ideológico concreto por parte do governo revolucionário

levou muitos autores que se dedicaram ao estudo da Revolução Cubana a interpretarem o

movimento como vazio ideologicamente. Carlos Alberto Barão (2005) ressalta que esse tipo

de análise é característico da historiografia sobre o tema produzida na América do Norte e na

Europa e está carregada de uma visão etnocêntrica sobre o processo histórico em questão.

Segundo Barão, essas análises só consideram como correntes ideologicamente reconhecidas as

amplamente difundidas no contexto de Guerra Fria. Para ele, os autores que adotam esse tipo

de interpretação ignoram totalmente as construções ideológicas locais, dando as mesmas

pouca ou nenhuma importância.

A crítica a esse tipo de interpretação no trabalho de Barão é direcionada especialmente

a dois autores: a Charles Wright-Mills e a K. S. Karol. Na verdade, a crítica se concentra em

Wright-Mills, já que Karol utiliza este autor como referência da sua análise. (BARÃO, 2005,

p. 15).

É importante expor o pensamento de Wright-Mills, citado por Karol, para que se possa

identificar os pontos de crítica:

[Wright-]Mills sabía, en efecto, que el instinto de autodefensa arrojaría inevitablemente a los cubanos en brazos del bloque soviético y que éste se aprovecharía de ello para llenar el semivacío ideológico del castrismo

* Artigo recebido em outubro de 2011 e aprovado para publicação em fevereiro de 2012. ** Professor do Instituto Politécnico da Universidade Federal do Rio de Janeiro em Cabo Frio. Mestre em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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imponiéndole sus métodos ideológicos, su modelo del socialismo. (KAROL, 1972, p. 30).

Wright-Mills incorre num equívoco ao tratar o desenvolvimento das conjunturas

internas cubanas como meros desdobramentos do panorama político internacional do

momento. Esse tipo de determinismo é comum em obras gerais sobre a Revolução Cubana

como a do já citado Karol e de Thomas C. Wright, por exemplo.

O que se pretende aqui é fazer o caminho inverso: analisar as conjunturas políticas

internas de Cuba e procurar entender a sua influência nas tomadas de posições do governo

revolucionário diante do panorama internacional da época. Não será admitido o sugerido

semivazio ideológico proposto por Wright-Mills. Ao contrário, tentaremos fazer um

retrospecto das ideias que influenciaram o movimento revolucionário liderado por Castro,

com o objetivo de demonstrar que o mesmo foi ideologicamente sustentado por correntes de

pensamento amplamente difundidas não só em Cuba, mas em boa parte da América Latina.

O aspecto ideológico primordial para a análise aqui proposta é o anti-imperialismo

cubano que, ao contrário do que é defendido por muitos, não é um elemento exportado de

pensamentos estrangeiros (marxista). O anti-imperialismo cubano é um genuíno efeito da

cultura política cubana que com o passar dos anos se reformulou com o apoio de outras bases

teóricas. A análise aqui contida foi originalmente utilizada em minha dissertação de mestrado

(BEMVINDO, 2009, p. 42-136), que tinha como objetivo identificar os impactos da

Revolução Cubana na política externa brasileira entre 1958 e 1961.

As Origens do Anti-Imperialismo Cubano

A Revolução Cubana foi um marco de mudanças nas relações interamericanas.

Primeiramente por colocar na pauta de discussões questões sociais nunca antes debatidas, tais

quais a reforma agrária, direitos dos trabalhadores, entre outras. Em segundo lugar, a

Revolução introduziu nas relações entre os países americanos um fator antes visto somente

regionalmente: o anti-imperialismo.

Não cabe a esse trabalho fazer uma extensa discussão teórica sobre o conceito de

imperialismo e suas consequentes implicações reativas que caracterizam o anti-imperialismo.

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Porém, é importante caracterizar o conceito para que se possa entender um pouco da base

teórica que fundamentou os preceitos revolucionários cubanos para, mais tarde, analisar com

mais clareza os rumos tomados pelo movimento após 1959.

Apesar de ter sido absorvido por diversas correntes do pensamento social, o conceito

de imperialismo é de base marxista. Para os principais teóricos do conceito, entre eles Lênin e

Kautsky, “o imperialismo refere-se ao processo de acumulação capitalista em escala mundial.”

(BOTTOMORE, 1998, p. 187). Existem especificidades entre as teorias de Lenin e Kautsky: o

primeiro dá destaque à “exportação de capitais” e enfatiza a concorrência capitalista como

geradora de conflitos intercapitalistas. Assim ele caracterizou a Primeira Guerra Mundial e,

mais tarde, seus seguidores caracterizariam a Segunda. Para Lênin, o imperialismo assinala

um novo momento do capitalismo, chamado por ele de Capitalismo Monopolista. Já Kautsky

dá maior ênfase às relações entre os países capitalistas em estágio avançado de

desenvolvimento e os países subdesenvolvidos. Essa caracterização se aproxima mais da

forma imperialista surgida após a Segunda Guerra e influenciou claramente a Teoria da

Dependência, amplamente difundida na América Latina após meados da década de 1960.

Embora o imperialismo, sob o qual Cuba esteve sendo subjugada no momento da

Revolução, estar muito mais próximo do caracterizado por Kautsky, são as teorias de Lênin

que vão acabar por influenciar, em maior escala, os líderes revolucionários cubanos. Isso se

deve à origem dessa dominação imperialista em Cuba, que nos remete ao início do século XX.

Nesse período, quando essa relação se impõe, a principal potência capitalista americana – e

porque não se dizer, a única –, os Estados Unidos, começa a se posicionar em direção a um

modelo de acumulação capitalista monopolista.

Portanto, o anti-imperialismo cubano pode ser caracterizado como essencialmente

antiamericanista. Porém, isso não quer dizer que a luta do povo cubano contra a “opressão

estrangeira” deu-se somente com o embate com o seu vizinho do Norte. Essa luta vem desde o

século XIX, quando os habitantes da ilha caribenha lutavam por sua independência frente à

Espanha. Porém, não se pode caracterizar o sentimento cubano em relação aos espanhóis

como anti-imperialista, já que a Espanha estava muito longe de ser uma potência capitalista

desenvolvida, tal qual seus vizinhos europeus, e, além disso, as relações entre Cuba e Espanha

se davam de forma essencialmente colonialista.

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Portanto, o anti-imperialismo cubano nascera de sua relação com os Estados Unidos

que, por ironia, fora seu principal aliado na luta anticolonialista contra a Espanha, que

proporcionou a concretização do Estado cubano autônomo.

Para entender a origem do antiamericanismo é preciso entender o cerne da relação

entre a Grande Potência do Norte e a Pequena Ilha do Caribe. Segundo Wright (2001, p. 2), os

interesses estadunidenses em Cuba surgiram no século XIX, quando a ilha ainda era colônia

espanhola. Os norte-americanos do sul, escravistas por essência, viam em Cuba a

possibilidade de continuidade de suas atividades agrícolas na ilha utilizando mão-de-obra

escrava cubana.

Apesar do escravismo cubano não ter sido deveras desenvolvido durante os três

primeiros séculos de história da ocupação espanhola na ilha, durante o século XIX, a entrada

de escravos em Cuba se intensificou, devido, principalmente, ao declínio econômico das

colônias francesas no Caribe – Haiti e Santo Domingo – graças às guerras e rebeliões de

escravos. Com isso, Cuba tornou-se uma alternativa para o desenvolvimento da produção

açucareira e, consequentemente, o número de escravos africanos na ilha aumentou

consideravelmente. (WOLF, 1970, p. 306).

Assim sendo, os primeiros estadunidenses começaram a migrar com seus negócios

para Cuba, utilizando-se da mão-de-obra escrava já não mais utilizada em seu país de origem.

Nasce, nesse momento, a primeira relação de opressão dos norte-americanos sobre os

cubanos. Certamente houve uma composição entre a elite local e os fazendeiros estrangeiros

para a exploração desse modo compulsório de exploração do trabalho que, até então, não tinha

maiores associações com o sentimento nacional cubano. O escravo, por via de regra, era

considerado tão estrangeiro quanto o norte-americano que explorava a sua força de trabalho.

Todavia, em Cuba existiam aspectos distintos no escravismo em relação ao realizado

em outras partes da América. Wolf (1970, p. 306) faz essa distinção com muita clareza:

Há três aspectos que devem ser mencionados com relação ao papel desempenhado pelos negros na Cuba do século dezenove. Primeiro, a intensificação do trabalho escravo – após um período de relativa brandura – reforçou também o sentimento de oposição a essa instituição. Segundo, havia na ilha um grupo considerável de negros livres que supriam as rebeliões de escravos de 1810, 1812 e 1844 de líderes importantes. Terceiro, a relativa autonomia dos grupos escravos nos séculos anteriores e mais a novidade das

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importações maciças, combinaram-se para preservar os padrões culturais africanos significativos, em solo cubano.

Esses aspectos específicos da escravidão cubana acabaram por formar uma consciência

negra cubana. A identidade entre os escravos já enraizados na ilha e os recém-chegados

acabou por homogeneizar um sentimento de aversão à exploração compulsória do trabalhador

afro-cubano. Essa consciência negra será fundamental para o combate à escravidão e à

opressão colonial espanhola.

Ainda em princípios do século XIX, o império colonial espanhol já dava mostras de

esgotamento. Neste momento, a Espanha começava a perder o controle de suas colônias mais

importantes na América. A necessidade de intensificar o combate aos movimentos de

libertação nacional, principalmente na América do Sul, faz a Espanha diminuir seus interesses

por colônias caribenhas que, teoricamente, estavam sem o seu domínio posto em risco. Assim

sendo, os espanhóis viram-se obrigados a quebrar o “exclusivo colonial” em certas colônias,

como em Cuba. Em 1818, é outorgada a liberdade colonial à ilha e, segundo Barsotti e Ferrari

(1999, p. 134), consolida-se a “dupla dominação” já vigente em Cuba, desde anos anteriores.

Cuba agora ficara, oficialmente, submetida: “economicamente aos Estados Unidos e

politicamente ao decadente império colonial”.

Em meados do mesmo século, a Europa se vê diante da primeira grande crise do

capitalismo, entre 1857 e 1866. Esta crise afetaria fortemente a economia espanhola que,

consequentemente, recorreria às suas colônias restantes para tentar se estabilizar. Destarte, a

Espanha empreende uma grande campanha de aumento de taxas e impostos relacionados à

produção das colônias. Essas medidas têm, em Cuba, efeitos imediatos: a produção agrícola

estagna-se, deixando insatisfeitos não só os estadunidenses que investiam na ilha, como

também as oligarquias locais, beneficiárias da produção açucareira cubana.

Surge, então, na parte oriental da ilha, uma insurreição liderada pelo terrateniente

Carlos Manuel de Céspedes que, para enfrentar as tropas espanholas, liberta seus escravos

formando um exército que se caracterizaria pelo primeiro enfrentamento anticolonial cubano.

Durante dez anos (1868-1878), o conflito estendeu-se sem conseguir atingir seu objetivo

primordial: a emancipação nacional cubana. Porém, a Guerra dos Dez Anos deixaria alguns

pontos de reflexão aos movimentos futuros: (1) seria necessária a incorporação dos escravos

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nas tropas para vencer o exército espanhol e, para cooptá-los, seria necessário ter entre as

reivindicações do movimento a principal das demandas dos afro-cubanos, a abolição da

escravatura; (2) a fragilidade das oligarquias locais cubanas deveria ser compensada com

algum apoio externo, possivelmente estadunidense; e (3) a luta de libertação nacional cubana

carecia de uma liderança política e de uma base ideológica melhor definida.

Os princípios ideológicos que orientariam a luta pela emancipação nacional de Cuba

só seriam postulados mais de duas décadas após o fim do primeiro movimento. José Martí foi

o primeiro cubano a defender o processo de libertação nacional conduzido pelos próprios

populares da ilha. Os ideais de Martí seriam pioneiros também em apresentarem-se contrários

à expansão imperialista empreendida pelos Estados Unidos.

Barsotti e Ferrari caracterizam o pensamento de Martí destacando a influência sofrida

por ele dos movimentos de libertação nacional latino-americanos. Além disso, os autores

enfatizam que Martí “aponta para o caráter internacional que o processo de libertação

nacional continha: o de ser uma barreira às pretensões do jovem imperialismo norte-

americano de estender-se primeiro sobre as Antilhas e na sequência por todas as terras latino-

americanas”. (BARSOTTI; FERRARI, 1999, p. 136-137).

A partir desses pressupostos inicia-se um novo movimento pela independência cubana

que aglutinava lideranças populares da Guerra dos Dez Anos tais quais Antonio Maceo e

Máximo Gomes, aliados à figura de José Martí – líder do proletariado urbano –; setores da

pequena burguesia e escravos libertos. Esse grupo formou o Partido Cubano Revolucionário

que atribuiu “à luta independentista um caráter popular de massas que pela primeira vez na

América expressará sua natureza anti-imperialista-internacionalista”. (BARSOTTI;

FERRARI, 1999, p. 137).

É importante ressaltar, ainda, que ao mesmo tempo em que florescia o anti-

imperialismo cubano, os Estados Unidos continuavam a pôr em prática a política externa do

Big Stick e propagando as palavras de ordem, agora de maneira mais “enfática”, da Doutrina

Monroe. Nesse espírito, os Estados Unidos intervêm a favor da causa cubana contra a

Espanha, gerando a guerra hispano-americana (1898) que, para Lênin, seria a primeira guerra

imperialista estadunidense.

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Acontecera, assim, a ocupação norte-americana em Cuba, que duraria cerca de quatros

anos e reprimiria os movimentos nacionais e populares e deixaria a cargo das elites criollas a

administração do país recém-fundado e a proteção dos interesses norte-americanos na ilha.

Com essas medidas, os estadunidenses contiveram a expansão dos movimentos inspirados por

Martí e submeteram Cuba a uma dependência que superaria a opressão imposta pelos

espanhóis.

Anunciava-se assim uma era de neocolonialismo, como previra José Martí. Porém, os

ideais enunciados por ele não se perderiam diante a repressão estadunidense. Ao contrário

disso, essas ideias ganham propagação por toda América Latina, e mesmo em Cuba, serão

retomadas mais tardes pelos líderes da Revolução de 1959.

Sader (1992, p. 20-22) sublinha a importância de Martí na história cubana:

A Martí cabe o mérito pioneiro de enquadrar a luta anticolonial de Cuba dentro de uma concepção anti-imperialista como uma das determinações explicativas da passagem interrompida de uma revolução democrática e nacional para o processo anticapitalista e socialista, vinculando diretamente a independência nacional à libertação social e política do país.

O Neocolonialismo e a Reação Marxista

Como destacam Barsotti e Ferrari, Cuba entra em uma nova era após 1902, conhecida

como República Intervenida. A intervenção anunciava-se um ano antes com a aprovação no

Congresso estadunidense da Emenda Platt, que estabelecia o protetorado norte-americano na

ilha, dando o direito aos EUA de intervirem – se preciso militarmente – caso algum dos seus

interesses fosse posto em risco.

Neste contexto o anti-imperialismo cubano reforça-se, dando origem a manifestações

contra os governos apoiados pelos norte-americanos. Ainda neste período, com inspiração de

movimentos sociais estrangeiros – México (1910) e Rússia (1917) – começam a surgir

organizações de mobilização anti-imperialista tais quais, a Confederação Nacional dos

Trabalhadores de Cuba, o Partido Comunista e a Federação de Estudantes Universitários,

comandada por Julio Antonio Mella.

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O papel desempenhado por Mella na Cuba da década de 1920 é digno de destaque na

obra de Michael Löwy (2000). O autor o utiliza como exemplo das lideranças revolucionárias

clássicas latino-americanas destacando suas características: “o estudante ou jovem intelectual

revolucionário, o espírito anticapitalista romântico, que encontra no marxismo uma resposta

para a paixão pela justiça social.” (LÖWY, 2000, p. 15)1. A trajetória política de Mella é

descrita por Löwy em um parágrafo, o que caracteriza sua passagem relâmpago, mas

marcante, na história cubana:

Um dos fundadores da Liga Anticlerical de Cuba (1922), da Federação dos Estudantes Universitários (1923) e da seção cubana da Liga Antiimperialista das Américas (1925), Julio Antonio Mella participou da criação do Partido Comunista Cubano (1925) e foi eleito membro do seu Comitê Central. Em virtude de suas atividades contra o ditador Machado2 (“O asno com garras”, na famosa expressão do poeta comunista Rubén Martínez Villena), foi preso e obrigado a exilar-se no México. Juntou-se ao PC mexicano, mas, em 1928, desenvolveu divergências com a sua liderança que o acusou de tendências “trotskistas”. Mella organizou emigrados cubanos no México e preparou um desembarque armado na ilha, mas foi assassinado por agentes de Machado em 10 de janeiro de 1929, com 26 anos. (LÖWY, 2000, p. 15-16).

Mella, segundo Löwy, será mais tarde inspiração aos líderes do movimento de 1959 e

a semelhança com a trajetória de Fidel Castro chamará a atenção dos estudiosos sobre o tema.

A figura de Mella surge num momento bastante conturbado da política interna cubana.

Os governos da ilha, durante toda a década de 1920 sofriam influência direta de Washington.

Ligado a isso surge uma crise econômica. Daí brota uma proposta da burguesia nacional, que

para conter os movimentos sociais anti-imperialistas e amenizar os efeitos da crise, lança o

nome de Gerardo Machado para presidência de Cuba.

Machado chega ao poder com uma proposta de desenvolver o capitalismo no país e

consolidar uma democracia-burguesa. Porém, a forte dependência aos Estados Unidos

demonstra que o projeto de Machado tornar-se-ia inviável e, a partir de 1927, ele estabelece

um regime ditatorial, fazendo uma reforma constitucional que estende o seu mandato até

1933, caracterizando, assim, um golpe de Estado.

1 A nota referente ao trecho citado diz: “O arquétipo aqui é o personagem lendário ‘O estudante’ em: CARPENTIER, Alejo O recurso do método. São Paulo: Marco Zero, 1985, do grande escritor cubano”. 2 Gerardo Machado, presidente cubano entre 1927 e 1933.

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Após a Grande Depressão de 1929, as tensões políticas em Cuba se exacerbam, e os

movimentos populares constituídos nos anos 20 intensificam os enfrentamentos com o

governo que, por sua vez, aumenta cada vez mais a repressão. A crise aumenta e, em 1931,

surge um novo movimento revolucionário contra o governo de Machado, encabeçado por

líderes de oposição. Este movimento foi fortemente reprimido e a partir daí inicia-se um

período chamado de “época do terror” na histórica cubana. Somente em 1933, após uma greve

geral promovida pelo Partido Comunista, cai o governo de Machado. Nesse período, o

governo perdeu o apoio do exército oficial, e, além disso, existiu uma forte pressão do recém-

eleito governo estadunidense de Franklin Delano Roosevelt que, preocupado com a

exacerbação das tensões, pressiona Machado a se exilar.

As tensões do período servem para demonstrar o crescimento dos movimentos anti-

imperialistas. O papel do Partido Comunista foi fundamental para a queda de Machado, e a

greve geral de 1933 se tornaria um marco para os movimentos sociais latino-americanos.

Após a queda de Machado, chega à presidência Carlos Manuel de Céspedes, que pouco

permanece no poder. Pouco mais de um mês depois, um movimento militar liderado pelo

sargento Fulgencio Batista colocou no poder o governo de Ramón Grau San Martín. O

governo de San Martín revestia-se de uma imagem progressista, e em certa medida até anti-

imperialista. A presença de figuras como Antonio Guileras, um dos principais líderes

populares e anti-imperialistas cubanos; a luta para o fim da Emenda Platt – abolida ainda em

1934 –; uma ampla reforma das leis trabalhistas; e a implementação de um sistema

democrático mais claro são provas das intenções de renovação da política cubana.

Porém, as políticas praticadas por San Martín não agradam ao governo de Washington,

principalmente a tentativa de nacionalização de algumas empresas estrangeiras. Assim, cresce

a importância da figura de Batista, que passa a ter apoio dos Estados Unidos para combater as

tentativas de quebra dos monopólios estadunidenses em vários setores produtivos cubanos.

Com o apoio ianque, Batista se torna uma das figuras políticas cubanas mais fortes, sendo

fundamental na destituição das medidas de San Martín e na sustentação de governos apoiados

pelos Estados Unidos, chegando, finalmente, a presidência da República em inícios da década

de 1940.

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Após quatros anos de governo, Batista não consegue eleger seu sucessor. Ramón Grau

San Martin, volta à presidência decretando uma grande derrota política do ex-sargento.

Durante os oito anos seguintes, Batista teria que se conformar em estar em segundo plano na

vida política cubana. Porém, os governos eleitos nessa década não deram conta de solucionar

os problemas sociais de Cuba e a população cubana passa a ter a ideia de que esses governos

só tinham uma função: “a de administradora e guardiã dos negócios norte-americanos.”

(BARSOTTI; FERRARI, 1999, p. 138).

Os Antecedentes da Revolução Cubana

A volta de Batista ao poder, em 1952, através de um golpe de estado contra o governo

de Prío Socarrás, deu fim a um período de fragilidade política em Cuba. Porém, a solução para

essa fragilidade foi adotar um regime duro, uma ditadura, que acabou sendo caracterizada pela

rigidez e violência contra os seus opositores. É comum encontrar na historiografia sobre o

período a designação de “Estado-bucaneiro” para designar o período da ditadura batistiana.

Esse período (1952-1958) é marcado por tensões das mais diversas. Internamente, a

oposição ao governo ganha força através de vários movimentos. Externamente, a Guerra Fria

tomava contornos tensos e a política norte-americana de combate ao comunismo internacional

– conhecida como Machartismo – é sentida também em Cuba.

Antes mesmo do golpe de Batista, a repressão aos movimentos sociais que tinham

como bandeira o anti-imperialismo e os demais ideais propostos por Martí era bastante

evidente. Um exemplo disso foi o movimento liderado por Eduardo Chibás – cuja luta se dava

contra a corrupção no governo Socarrás e a expansão imperialista em Cuba – que foi

fortemente reprimido e levou ao suicídio de seu líder durante um programa de rádio, como

forma, desesperada, de chamar atenção para as questões que ele reivindicava.

As ações de Chibás tiverem repercussão, fortalecendo a candidatura de Roberto

Agramonte, que possuía um programa de governo bastante progressista. Mas o golpe de 10 de

março de 1952 frustrou a possibilidade de que a política cubana tomasse novos rumos. O

golpe, segundo Barsotti e Ferrari, teve claro apoio estadunidense e, durante todo o governo

Batista, Washington terá papel fundamental nas políticas de repressão a movimentos sociais.

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Batista chega ao poder com uma plataforma bastante clara: trazer a estabilidade

política e econômica para Cuba. Para atingir os dois objetivos, o papel dos EUA era

fundamental. A estabilidade política só seria alcançada com a repressão violenta das forças

oposicionistas e, economicamente, a estabilidade perpassava a implementação de um modelo

desenvolvimentista – como indicado pela Comissão Econômica para a América Latina (Cepal)

da ONU, e já aplicado, com relativo sucesso, em alguns países latino-americanos.

Porém, os dois principais objetivos do governo Batista não conseguem ser atingidos.

Apesar da forte repressão, as forças oposicionistas pareciam se multiplicar. O Partido

Comunista, mesmo colocado na ilegalidade e intensamente reprimido, consegue liderar

manifestações, principalmente nas áreas urbanas. Os movimentos estudantil e sindical –

também coibidos por Batista – conseguem se manter na luta contra a ditadura.

Uma outra frente de oposição era o Partido Ortodoxo, de onde emergiu uma das

principais figuras do movimento revolucionário cubano: Fidel Castro. A origem de Castro era

burguesa, seu pai era um rico fazendeiro, e ele teve a oportunidade de estudar em boas escolas

e ingressar no curso de direito da Universidade de Havana. Durante sua vida universitária

Fidel Castro começa a se envolver com movimentos sociais e políticos participando,

inicialmente, de um grupo que queria lutar contra a ditadura de Rafael Trujilo, na República

Dominicana. Esse movimento fracassou, antes mesmo de pisar em solos dominicanos, e

Castro passou a se envolver com maior intensidade no movimento estudantil. Após se formar

advogado, ele tentou ingressar na política, lançando sua candidatura a deputado, pelo Partido

Ortodoxo, para as eleições de 1952. Porém, o golpe de 10 de março, frustra seus planos. Fidel

Castro não se daria por vencido, e voltaria à cena, mais uma vez, dessa vez com um inimigo

mais claro: o seu opressor, Fulgencio Batista.

Fidel articula, então, um dos movimentos que passaria a ser conhecido como o marco

inicial do processo revolucionário cubano. Apesar da diversidade das forças de oposição ao

governo Batista, será o “Movimento 26 de Julho” que aglutinará as principais demandas dos

setores populares cubanos contra a opressão do regime batistiano. Esse movimento teve

origem na tentativa de insurreição, liderada por Castro, que se iniciaria com os assaltos aos

quartéis de Moncada e de Bayamo. Embora o assalto a Moncada tenha sido um total fracasso,

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com a prisão ou execução de todos os envolvidos, ali nascia o movimento que culminaria na

queda de Batista na virada do ano de 1958 para 1959.

O “Movimiento Revolucionario 26 de Julio” – data do assalto a Moncada, em 1953 –

(MR26-7), nasce em meados de 1955, liderado por Fidel Castro e seus companheiros que

haviam sido presos em Moncada. Os ideais do grupo se delinearam durante o período de

prisão e foram explicitados na autodefesa feita por Castro durante seu julgamento. Este

discurso traria consigo as principais ideias revolucionárias do movimento, inclusive o ideal

anti-imperialista. Quando Fidel disse: “Preferimos que Cuba desapareça no mar, a consentir

que nosso povo seja escravo de alguém”, (CASTRO, 2001, p. 95) definiu, em poucas palavras

o seu sentimento contrário à intervenção norte-americana na ilha.

Apesar de uma fragilidade teórica inicial, durante o período de exílio dos seus líderes,

no México, o MR26-7 tem a oportunidade de enriquecer seus preceitos revolucionários,

graças ao contato com outros movimentos sociais. Aliado a isso, a incorporação de novos

membros ao grupo como Camilo Cienfuegos e Ernesto “Che” Guevara, proporcionou um

avanço nos ideais anti-imperialistas do movimento. Nesse período conceitos marxistas-

leninistas são incorporados à luta, o principal deles seria o de imperialismo. Fidel Castro e

seus companheiros estavam convictos de que o seu inimigo não era somente Batista, mas

também o imperialismo estadunidense, que ajudava a sustentá-lo no poder.

Além das constantes tensões políticas internas, o governo Batista via-se diante de uma

enorme crise econômica que evidenciava a debilidade do modelo desenvolvimentista aplicado

em Cuba. Um número assombroso de desempregados nas áreas rurais se juntava aos

movimentos de oposição. A crise era evidente também na cidade, onde o descontentamento

com baixos salários e manifestações contra empresas norte-americanas eram cada vez mais

comuns.

Para o grupo de exilados políticos no México, as condições para a volta e o triunfo

revolucionário estavam postas. Batista e o imperialismo eram os alvos da luta que deveria se

alastrar pelo país baseado em estratégias previamente delineadas.

O Anti-Imperialismo como Causa Revolucionária

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A chegada do Granma – barco que trouxe Fidel Castro e seus companheiros de volta a

Cuba – não representou apenas a volta de um grupo de exilados que deseja o fim da tirania

batistiana. O grupo que desembarcou em Santiago de Cuba, em 2 de dezembro de 1956 estava

muito mais maduro e embasado do que o que havia tentado os assaltos aos quartéis em 1953.

A entrada de Guevara e Cienfuegos, além da adesão de milhares de pessoas que ficaram em

Cuba lutando contra Batista, vislumbrava o triunfo de um movimento revolucionário de ampla

participação popular. Essa análise pode parecer uma tanto teleológica, já que as condições

empíricas para uma revolução em Cuba não eram tão evidentes. Ao contrário, o inimigo

contra quem se lutava parecia mais forte do que quem o combatia. O governo Batista, apesar

de toda a pressão e da crise, tinha o apoio incondicional de Washington e de uma elite

aristocrática privilegiada há mais de um século. Porém, a crise passa a prejudicar os negócios

dessa elite que, pouco a pouco, passa a demonstrar insatisfação com o regime.

Já em 1956, quando da chegada do Granma, o regime batistiano já enfrentava a forte

oposição do Partido Comunista, do Partido Ortodoxo, do MR26-7, do movimento estudantil,

sindical e de parte do proletariado rural cubano.

Apesar de terem sofrido uma repressão violenta em sua chegada, os sobreviventes do

desembarque em Santiago conseguiram se refugiar em Sierra Maestra e, dali, iniciaram uma

insurreição popular que tomaria grandes proporções. Utilizando-se de táticas de guerrilha, o

grupo liderado por Fidel Castro, Che Guevara, Camilo Cienfuegos e Raúl Castro foi

avançando rumo à parte ocidental da ilha, acumulando vitórias contra as tropas do exército

oficial. A seu favor o grupo revolucionário tinha a simpatia dos campesinos que se juntavam

ao movimento como uma forma de protesto contra suas condições de vida precárias,

agravadas pela crise econômica instaurada no país.

Mas o que poderia aparentar ser apenas um movimento armado, tinha seu caráter

ideológico incrementado à medida que tomava maiores proporções. Com o avanço, os

revolucionários começam a tomar algumas estações de rádio e, através delas, propagar as

ideias anti-Batista e antiamericanista (anti-imperialista). A inspiração mais direta dos

discursos veiculados era José Martí que, como já foi dito, foi um dos pioneiros do sentimento

antiamericano em Cuba. A esses ideais somavam-se a formação marxista-leninista de Raúl

Quadros, as experiências vividas no México e nos próprios Estados Unidos por Cienfuegos, e

[O CARÁTER ANTI-IMPERIALISTA DA REVOLUÇÃO CUBANA (1898-1961) * VITOR BEMVINDO]

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a vivência de Che Guevara na Guatemala, aliada a seus preceitos marxistas adquiridos durante

suas viagens pela América Latina – especialmente na sua convivência com Hilda Gadea

Acosta3. Foi através da disseminação dessas ideias que o movimento passou a tomar maiores

proporções e, pelo rádio, a população cubana recebia as informações sobre o andamento das

lutas.

Embora o movimento tenha mostrado, durante sua evolução, um amadurecimento

ideológico, este não foi suficiente para que conseguissem ter apoio do Partido Socialista

(PSP), que acusava o castrismo de desleixo teórico e de ineficiência de ação revolucionária.

Somente em 1958, as forças de oposição a Batista conseguem uma unidade. O marco inicial

dessa unidade é bem caracterizado por Ayerbe (2004, p. 36):

Em 20 de julho, as forças de oposição representadas pelo Diretório Revolucionário, pela Federação dos Estudantes, pelo Grupo Montecristi, pelo Movimento 26 de Julho, pela Organização Autêntica, pelo Partido Democrata, pelo Partido Revolucionário Cubano (Ortodoxo), pelo Partido Revolucionário Cubano (Autêntico), pela Resistência Cívica e pela Unidade Operária, assinam, na capital venezuelana, o Pacto de Caracas, que condensa em três pontos as prioridades do momento em relação à conquista do poder: “Primeiro: Estratégia comum de luta para derrocar a tirania mediante a insurreição armada. Segundo: Conduzir o país, após a queda do tirano, por um governo provisório, à normalidade, encaminhando-o pelo procedimento constitucional e democrático. Terceiro: Programa mínimo de governo que garanta o castigo dos culpados, os direitos dos trabalhadores, a ordem, a paz, a liberdade, o cumprimento dos compromissos internacionais e o progresso econômico, social e institucional do povo cubano” (CASTRO, 1976, p. 124).

Ayerbe (2004, p. 37) destaca, ainda, que “o mesmo documento solicita aos Estados

Unidos que suspendam todo tipo de ajuda ao governo Batista, especialmente no campo

militar”. Essa posição evidencia o repúdio do movimento social cubano a intervenção norte-

americana no país, mostrando a importância do antiamericanismo como causa revolucionária.

A partir desse posicionamento e da incorporação de outros movimentos à guerrilha, iniciada

3 Segundo Luiz Bernardo Pericás (2004), foi através da convivência com Hilda Gadea Acosta, que viria a ser sua esposa, que Ernesto “Che” Guevara consolidara seus ideais e preceitos teóricos. Acosta era economista de formação e recomendou grande parte da leitura marxista feita por Che. Apesar disso, esse não foi o seu primeiro contato com as ideias de Marx e dos marxistas, mas foi, sem dúvida, nesse período, que essas teorias se consolidaram na sua formação.

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em Sierra Maestra, a única força oposicionista que ainda não havia aderido ao “pacto”, o PSP,

adere à coalizão anti-Batista. Depois disso, a queda do regime batistiano foi questão de tempo.

De agosto a dezembro, a guerrilha avança do centro da ilha em direção à Havana a

passos largos. A mobilização popular, articulada pelo DR, PSP e outros movimentos urbanos,

instaurou uma grande greve geral e, no último dia de 1958, Batista se retira do país, não

vislumbrando outra saída.

A vitória da Revolução não significou somente a queda de Fulgencio Batista. A partir

de 1° de janeiro de 1959, Cuba tomara um rumo definitivo em direção a sua emancipação

completa, evocada por José Martí, no final do século anterior. O estabelecimento de uma nova

ordem política perpassava por uma independência política e econômica, cortando, de uma vez

por todas, os laços de dominação atados pelos Estados Unidos. O novo governo deveria

contemplar o sentimento antiamericano nascido em Cuba quase que simultaneamente ao

estabelecimento da Doutrina Monroe.

Assim sendo, desde os primeiros dias do estabelecimento do governo revolucionário

inicia-se uma tensão entre Cuba e os EUA. Durante 1959, segundo Domínguez (1992, p. 184),

as intervenções econômicas estadunidenses continuam a acontecer. Porém, aos poucos, o

governo cubano vai mudando sua atitude frente aos investimentos estrangeiros e começa a

impor barreiras ao intervencionismo de seu vizinho do norte. Ao mesmo tempo, os EUA não

eram simpáticos à Revolução e eram publicamente contrários ao estatismo pregado pelos

representantes do governo cubano, o que aumentava ainda mais a tensão entre os dois países.

Neste momento, o anti-imperialismo transcende a ideologia revolucionária e passa ser prática

política do governo estabelecido.

1959: “El Año de la Liberación”

A ata de constituição do governo revolucionário cubano, datada de 3 de janeiro de

1959, foi constituída por seis resoluções de natureza burocrática, entre elas a enunciação

daquele ano como o “Ano da Liberação” (BELL; LÓPEZ; CARAN, 2006, p. 18). Esta

medida, aparentemente inexpressiva, na verdade continha o caráter do que seria o governo que

se instaurava. A dita liberação seria o objetivo central das medidas da nova administração.

[O CARÁTER ANTI-IMPERIALISTA DA REVOLUÇÃO CUBANA (1898-1961) * VITOR BEMVINDO]

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Nesta medida estão implícitos os ideais martinianos, que põem por terra a ideia de vazio

ideológico, proposta por autores como Karol (1972, p. 30) que aludimos anteriormente.

Esse vazio ideológico é, muitas vezes, justificado pelas primeiras medidas de governo

tomadas pelos guerrilheiros e alguma declarações dos líderes revolucionários que não

demonstravam com clareza a direção que Cuba tomaria. Mesmo com a retórica de liberação,

Cuba continuou sofrendo intervenções do capital estadunidense e dependia da venda de sua

produção de açúcar para o seu grande vizinho do norte.

O período inicial do governo revolucionário é caracterizado por uma relação um tanto

melindrosa com os Estados Unidos. E essa relação era levada pelos estadunidenses também

em compasso de espera. Ayerbe (2004, p. 59-60) descreve o período da seguinte maneira:

A dependência da exportação de um produto, o açúcar, em relação a um único mercado, limitava enormemente as opções do novo governo, preocupado em viabilizar uma política independente, sem comprometer o estado de “simpatia benevolente” característico das reações iniciais dentro dos Estados Unidos ante a revolução. [...] Na verdade, o que se esperava (ou se desejava) nos EUA era um pequeno intervalo de moralização da imagem de Cuba [...]. Feito isso, e sem demora, deveriam convocar-se eleições.

Ayerbe destaca ainda que as manifestações contrárias ao governo revolucionário

limitaram-se a notas na imprensa demonstrando a preocupação com a perseguição contra os

partidários de Batista e o desagravo pela demora na convocação de eleições. Entretanto, o

governo norte-americano não chegou a se pronunciar oficialmente sobre os temas.

As preocupações imediatas do novo governo cubano estavam ligadas às questões

internas de reestruturação do Estado e de julgamento e punição dos atos políticos de Batista e

seus correligionários. Fora essas medidas, as primeiras preocupações do governo

revolucionário foram com a diversificação econômica (incentivos às indústrias) e a melhoria

das condições de vida da população (redução dos aluguéis, aumento de salários, etc).

Fidel Castro tornou-se uma espécie de embaixador da Revolução e durante os

primeiros seis meses viajou por diversos países tentando angariar simpatia ao novo governo.

Na maioria de seus pronunciamentos, Castro demonstrava a preocupação em não delinear

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ideologicamente o movimento revolucionário, afirmando que a Revolução “não era de

esquerda nem de direita”4.

As declarações de Fidel Castro, entretanto, pretendiam minimizar as primeiras

intervenções estatais cubanas em empresas multinacionais. Ainda em março de 1959, o

governo assumira o controle da Cuban Telephone Company, subsidiária da International

Telephone and Telegraph Corporation (ITT), além de intervir em duas refinarias e uma

empresa petrolífera.

Apesar dessas primeiras ações, somente em 17 de maio daquele ano, o governo

revolucionário tomara uma medida de impacto profundo tanto na estrutura social cubana,

quanto no que se refere à política e economia do país. Naquela data fora promulgada a lei de

reforma agrária, cujo objetivo principal seria a eliminação dos latifúndios cubanos.

A lei de reforma agrária cubana ressalta a invalidade do argumento do vazio ideológico

do governo revolucionário, já que se tratava de um dos objetivos traçados a raiz do

movimento, no Programa de Moncada, de 1953: “La segunda ley5 revolucionaria concedia la

propriedad inembargable e intransferible de la tierra a todos los colonos, subcolonos,

arrendatarios, aparceros y precaristas que ocupasen parcelas de cinco o menos cabellerías de

tierras.” (CASTRO, 1983, p. 31).

A reforma agrária, prevista na lei, seria ainda mais ampla do que a proclamada no

Programa de Moncada, demonstrando assim a intenção de reparar uma injustiça histórica

registrada também nos trabalhos de José Martí.

Muito além de atender às necessidades emergenciais da sociedade cubana, a reforma

agrária pretendia reestruturar a base de economia do país, extinguindo os latifúndios,

acabando com a monocultura e incentivando o desenvolvimento industrial diversificado.

A repercussão da nova lei foi sentida de imediato, não só internamente, mas também

externamente. Os Estados Unidos não tardam a se manifestar declarando repúdio às medidas,

taxadas como estatistas e atentatórias ao direito de propriedade privada. Em seguida, o

4 Discurso de Fidel Castro publicado no jornal Revolución de Havana em 23 de março de 1959. Recorte de jornal anexado ao ofício enviado pelo embaixador do Brasil na capital cubana para o Ministério das Relações Exteriores do Brasil, na mesma data. 5 A primeira lei revolucionária, segundo o Programa de Moncada, trataria da devolução da soberania ao povo cubano, com clara inspiração nos princípios anti-imperialistas martinianos.

[O CARÁTER ANTI-IMPERIALISTA DA REVOLUÇÃO CUBANA (1898-1961) * VITOR BEMVINDO]

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governo norte-americano defende os direitos dos seus compatriotas proprietários de terras em

Cuba, alegando irregularidades no processo de indenização de terras expropriadas.

Apesar disso, os impactos da lei de reforma agrária seriam sentidos com maior

intensidade somente em 1960. Essas reações iniciais eram apenas o prelúdio da radicalização

do regime revolucionário cubano e das tensões entre cubanos e estadunidenses.

A radicalização das medidas do governo passa a causar baixas no governo e, as

denúncias de influência comunista no regime cubano passam a ser mais comuns entre os

dissidentes da Revolução. Os que deixavam o governo passam a liderar algumas tentativas de

rebeliões contrarrevolucionárias, como os levantes em Havana e Camagüey. Esses conflitos

tiveram repercussões tanto em Cuba, como nos Estados Unidos. O governo revolucionário

iniciou um processo de militarização preventiva da população e abriu ataques contra os

estadunidenses, acusando-os de incentivar movimentos sediciosos. Por outro lado, a

administração Eisenhower nega envolvimento nos conflitos e afirma que “os Estados Unidos

da América usarão de todos os meios disponíveis para evitar a realização de voos ilegais por

aviões que deixem território norte-americano com destino a Cuba”. Ao mesmo tempo, o

governo norte-americano toma medidas para embargar a venda de produtos e veículos

militares para a ilha comandada por Castro.

Com isso, as tensões entre Cuba e os Estados Unidos alcançam níveis nunca antes

percebidos. As hostilidades se intensificam e o próprio governo norte-americano passa a fazer

alertas abertos sobre a possibilidade de infiltração comunista no regime cubano.

1960: A Intensificação da Radicalização do Regime Revolucionário

O reatamento das relações diplomáticas com a URSS e o reconhecimento da República Popular da China, a fim de viabilizar acordos de longo alcance com o Bloco Socialista, constituíram as principais medidas de Cuba no curso de 1960, conforme a CIA e os demais serviços de inteligência do governo norte-americano previam, em dezembro de 1959 [...]. (BANDEIRA, 1998, p. 208).

Longe de serem proféticas, as previsões do governo estadunidense foram baseadas em

fatos. A evidente exacerbação das tensões entre Washington e Havana, além de conduzir o

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regime revolucionário a uma radicalização praticamente inevitável, faria com que os cubanos

buscassem novos parceiros políticos e comerciais. Com o Ocidente limitado aos interesses

norte-americanos, a procura por apoio no Leste era bastante previsível.

Essa ligação com o bloco socialista iniciou-se, ainda em 1959, com viagem de Raúl

Castro à Tchecoslováquia e a visita de um agente da KGB6 a Cuba. Mas foi em 1960 que essa

relação entre Cuba e a URSS se afirmou, com o estabelecimento de acordos e parcerias

comerciais.

Entretanto, o ano de 1960 começou não com a aproximação imediata de Cuba com o

bloco socialista, mas com a intensificação das tensões com os Estados Unidos. Logo em

janeiro daquele ano, o governo norte-americano protesta contra o tratamento dado pelos

revolucionários às empresas e propriedades estrangeiras em Cuba e, em seguida, o

embaixador estadunidense em Havana, Philip Bonsal, é chamado a Washington para

consultas. No mês de fevereiro, o governo cubano tenta uma reaproximação com os Estados

Unidos, pela via diplomática. Os estadunidenses saúdam a iniciativa, porém a relação entre os

dois países já estava amplamente desgastada, principalmente após a aproximação de Cuba

com a União Soviética, que havia se iniciado dias antes.

A visita do vice-primeiro-ministro soviético Anastas Mikoyan à Havana foi uma prova

de que Cuba já demonstrava anseio em buscar um novo parceiro. Entre 4 e 13 de fevereiro de

1960, soviéticos e cubanos estabeleciam suas primeiras parcerias comerciais.

O mês que se seguiu – março – foi marcado por uma grave tensão entre cubanos e

estadunidenses, fruto da explosão, no porto de Havana, de um cargueiro francês, “Le Coubre”,

que trazia munição e explosivos para equipar o exército revolucionário. Fidel Castro acusa os

Estados Unidos de terem alvejado a embarcação, através de uma missão de sabotagem

articulada pela CIA. O Departamento de Estado norte-americano protesta contra as

declarações do primeiro-ministro cubano e duas semanas depois volta a chamar o embaixador

Bonsal a Washington. As tensões chegaram ao pico no fim desse mesmo mês, quando Castro

voltou a atacar os EUA, acusando-os de empreender uma guerra econômica contra Cuba.

A radicalização do regime se expressou, ainda em março, quando governo cubano

lançou um projeto de planificação da economia, claramente inspirado no modelo soviético,

6 Comitê de Segurança do Estado, agência de inteligência e segurança da União Soviética.

[O CARÁTER ANTI-IMPERIALISTA DA REVOLUÇÃO CUBANA (1898-1961) * VITOR BEMVINDO]

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com o pretexto de se defender dos ataques econômicos do seu vizinho do norte. Ao lançar a

JUCEPLAN7, o governo cubano fazia sua opção por um modelo de desenvolvimento

econômico muito distinto aos implementados no continente. Ao adotar a planificação

econômica, Cuba fortaleceu o papel de intervenção do Estado na economia, centralizando nos

órgãos públicos todos os poderes de planejamento e a execução das políticas econômicas.

Esse modelo limitava a atuação do mercado e da livre concorrência na economia cubana, o

que se opunha totalmente aos modelos econômicos defendidos pelos Estados Unidos. Além

disso, a planificação se distinguia do modelo de desenvolvimento proposto pela CEPAL para

os países subdesenvolvidos das Américas, que previa a complementaridade de atuações do

Estado e do mercado visando o crescimento econômico e dos índices sociais.

A adoção da planificação da economia, pelo governo cubano, representou a introdução

de um novo sistema econômico no continente. Porém, apesar da lei de planificação ter sido

promulgada em março de 1960, os seus efeitos demoraram a ser sentidos na prática. (BARÃO,

2005, p. 126). Essas iniciativas só viriam a ter efeito prático no ano seguinte, principalmente

após a declaração do caráter socialista da Revolução Cubana, quando o governo pôde aplicar

os preceitos econômicos de influência soviética sem se preocupar em parecer paradoxal.

Entre março e abril, Cuba e EUA continuam enfrentando crises de relacionamento

regradas por notas norte-americanas de desagravo a ações da administração de Cubaw

revolucionária, e a radicalização das iniciativas de expropriação de propriedades e empresas

estrangeiras.

Em 8 de maio de 1960, Cuba e União Soviética formalizam seu relacionamento com o

restabelecimento das relações diplomáticas entre os dois países. Tal medida foi repercutida em

Cuba, mas também foi representada em ações e declarações de dirigentes soviéticos, como

salienta Karol (1972, p. 213):

A partir del mes de marzo todos los discursos soviéticos incluyeron obligatoriamente una elogiosa mención a la revolución cubana y los periódicos de Moscú le dedicaron, en un lugar destacado, entusiastas artículos. El 9 de julio de 1960, Nikita Krushchov dio un nuevo paso hacia adelante en la escalada procubana: enarbolando la amenaza de los cohetes intercontinentales invitó firmemente a los Estados Unidos a dejar en paz esa

7 Junta Central de Planificação, instituída pela lei n. 757 de 16 de março de 1960.

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isla amiga. Anteriormente nunca había utilizado tal lenguaje con los norteamericanos y reaccionado con tanto vigor para defender a un país que no estaba directamente sometido a una amenaza militar.

Como retaliação à aproximação de Cuba com a URSS, em 5 de julho de 1960, os

Estados Unidos se negam a comprar a cota de produção açucareira daquele ano gerando o

primeiro desconforto entre EUA e URSS por conta do governo revolucionário cubano, como

aponta Bandeira (1998, p. 233):

[...] em virtude da importância geopolítica de Cuba, o conflito entre Castro e os EUA convertera-a em carta estrategicamente valiosa com que a URSS poderia jogar na Guerra Fria. E Khrushchov, superando as hesitações iniciais, recolheu-a e tratou de utilizá-la. Seis dias após Eisenhower haver suspendido a importação das 700 mil toneladas restantes da sua cota de açúcar, atribuída a Cuba, ele não só anunciou que a URSS as compraria, como respaldou o governo revolucionário de Castro com todo o peso de seu poderio nuclear, contra qualquer intervenção armada dos EUA. Os EUA – advertiu – não deveriam esquecer que já não estavam tão longe, como antes, a uma distância inacessível da URSS, cuja artilharia, ‘figurativamente falando’, poderia com mísseis balísticos apoiar o povo de Cuba, se necessário, caso as ‘forças agressivas’ do Pentágono ousassem empreender qualquer ação militar contra aquele país.

Com o apoio soviético explícito, Cuba viu-se diante de uma nova questão: até que

ponto a aproximação com a URSS poderia comprometer a independência das ações do

governo revolucionário? Ernesto Che Guevara era um dos mais cautelosos no que se tratava

do comprometimento com a potência socialista. Mesmo assim, a princípio a ajuda vinda do

leste era bem-vinda, já que os principais aportes de capitais, vindos dos Estados Unidos, eram

cada vez mais escassos. A aproximação com o bloco socialista se intensificou com o início

das relações sino-cubanas, restabelecidas a partir de um acordo comercial firmado em julho de

1960.

A chegada das tensões da Guerra Fria ao continente americano se fez sentir nos fóruns

internacionais. As divergências entre EUA e Cuba fizeram com que o governo revolucionário

enviasse seu chanceler, Raúl Roa, a Nova Iorque, com o intuito de fazer uma representação

junto ao Conselho de Segurança das Nações Unidas. A ONU, no entanto, resolve transferir a

questão para a Organização dos Estados Americanos (OEA). E foi na Reunião de Consulta

[O CARÁTER ANTI-IMPERIALISTA DA REVOLUÇÃO CUBANA (1898-1961) * VITOR BEMVINDO]

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dos chanceleres americanos que as questões envolvendo cubanos e estadunidense se

exacerbaram, indicando um inevitável rompimento entre os dois países.

1961: A Revolução Socialista Cubana

Nem as medidas de coerção econômica nem as pressões políticas e diplomáticas conseguiram vergar Fidel Castro e forçá-lo a reverter o curso da Revolução. Ao contrário, eles contribuíram decisivamente para aumentar seu poder pessoal e robustecer-lhe a determinação de desafiar o poder econômico e a autoridade política e diplomática dos EUA [...], criando para Eisenhower uma situação realmente bastante difícil dentro dos EUA. Ao governo norte-americano não convinha combater frontalmente a Revolução, devido à popularidade de que ela ainda desfrutava na América Latina. O expediente utilizado para nutrir e orientar a oposição a Fidel Castro foi acusá-lo de trair os objetivos que inspiraram o movimento contra Batista. (BANDEIRA, 1998, p. 246-47).

Contudo, essa percepção da diplomacia de Eisenhower veio tarde. Já havia uma forte

oposição interna nos EUA à política norte-americana para enfrentar o processo revolucionário.

Essa oposição, inclusive, foi um dos motivos para que os republicanos perdessem apoio do

eleitorado estadunidense. Mesmo assim, a política de confronto não seria abandonada, nem

pelo governo Eisenhower, nos seus últimos dias de mandato, nem pelo seu sucessor, o

democrata John Kennedy. Apesar da flexibilização das relações econômicas com o restante da

América Latina, o caso cubano era encarado como uma exceção, com o qual os norte-

americanos lidariam com determinada truculência.

Bandeira (1998, p. 249-51) teve acesso a uma série de memorandos das agências de

inteligência dos Estados Unidos, que comprovam a preocupação com os assuntos cubanos.

Segundos esses documentos, havia um plano de ataque ao governo revolucionário, a partir da

base militar norte-americana em Guantánamo. Esse movimento seria liderado por cubanos

contrarrevolucionários exilados em Miami.

Com as proximidades das eleições nos Estados Unidos, aumentavam as pressões por

uma resposta a aproximação de Cuba aos soviéticos. Essa aproximação foi explicitada dentro

do próprio território norte-americano, quando Fidel Castro e Nikita Khrushchov no Harlem,

em Nova Iorque, tiveram um encontro bastante amistoso à vista da imprensa. Tal encontro

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aconteceu às vésperas da XV Assembleia Geral das Nações Unidas, na qual Cuba denunciara,

com o apoio dos soviéticos, a tentativa dos EUA de intervirem militarmente na ilha. Tais

denúncias, no entanto, foram inócuas, já que, por pressão dos estadunidenses, o plenário da

ONU, uma vez mais, decidiu que as contendas entre os dois países deveriam ser assuntos nos

fóruns da OEA.

Apesar do insucesso em Nova Iorque, Fidel Castro não perdera a oportunidade de fazer

mais um dos seus longos discursos, no qual rechaçava a Doutrina Monroe e negava aos

Estados Unidos o direito de intervenção nos assuntos internos cubanos. (KAROL, 1972, p.

211). No entanto, a comunidade internacional não deu ouvido ao denuncismo castrista, dando

apoio às demandas dos representantes do governo Eisenhower.

Com todo o clima de tensão estabelecido, o governo revolucionário, em meados de

outubro de 1960, decide nacionalizar mais de 300 empresas e bancos cubanos e estrangeiros,

entre eles vários norte-americanos. A resposta do governo Eisenhower veio quase que

imediatamente, no dia 19 daquele mês, com a imposição de um embargo de seu comércio com

Cuba.

Löwy (2000, p. 263) enxerga nas medidas estatizantes do governo cubano, tomadas

naquele mês, a "evolução da Revolução Cubana para uma revolução socialista". O mesmo

autor reconhece, no entanto, que esse "salto qualitativo do processo revolucionário" só seria

proclamado com discurso de Fidel Castro feito em 16 de abril de 1961.

Houve, no entanto, entre outubro de 1960 e abril de 1961, uma série de outros fatos

que contribuíram significativamente para o a exacerbação das tensões entre os dois países.

Além disso, a mudança dentro do próprio governo revolucionário demonstrava a

transformação ideológica do movimento:

O fato excepcional da Revolução Cubana é que toda uma equipe política de origem pequeno-burguesa, inspirada por uma ideologia jacobina e pelas ideias de José Martí, passou para o campo do proletariado e tornou-se marxista em uma 'metamorfose ideológica' coletiva verdadeiramente sem precedentes. Foi a determinação de realizar plena e incondicionalmente as transformações democráticas que levaram Fidel e a esquerda do Movimento 26 de Julho a descobrir na revolução socialista o único caminho capaz de realizar essas tarefas históricas. Livre dos esquemas etapistas paralisantes do PSP, a liderança castrista não teve medo de tomar medidas anticapitalistas. Portanto, não foi por acaso que a primeira revolução socialista da América

[O CARÁTER ANTI-IMPERIALISTA DA REVOLUÇÃO CUBANA (1898-1961) * VITOR BEMVINDO]

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foi feita sob a liderança de revolucionários alheios ao molde ideológico do comunismo stalinista, com sua concepção evolucionista do processo histórico e sua interpretação economicista do marxismo. (LÖWY, 2000, p. 44).

Michael Löwy destaca que, apesar do caráter peculiar da construção do socialismo

cubano, este não entrou em conflito com o modelo stalinista soviético. A oposição entre os

dois modelos serve para mostrar que a adesão de Cuba a um novo sistema se deu de forma

espontânea e sem a interferência direta do Komintern já que os principais líderes

revolucionários cubanos não tinham filiação a qualquer partido comunista até os primeiros

anos da Revolução. O que houve em Cuba foi o processo inverso: o partido comunista foi

incorporado à estrutura governamental e passou a ser liderado por membros da burocracia

revolucionária, 'convertidos' ao marxismo tardiamente.

Löwy defende que o momento inaugurado em 1960 representou um "novo período

revolucionário para o marxismo latino-americano", independente dos movimentos pré-

Revolução Cubana. Apesar de não ter havido uma política e ideológica, o autor ressalta que

essa "nova era" recuperou momentos históricos anteriores como a revolução salvadorenha de

1932, e pensadores como José Martí, José Carlos Mariátegui e Julio Antonio Mella.

Essa peculiaridade não foi suficiente, porém, para afastar Cuba da União Soviética.

Pelo contrário, a adoção de medidas anticapitalistas foi responsável pelo aumento da simpatia

entre os dois governos. A adesão não-convencional ao marxismo não foi empecilho para que

acordos políticos e comerciais fossem sendo desenvolvidos e, automaticamente, o caráter

antiamericanista da Revolução fosse tomando cada vez mais a forma de anti-imperialismo,

segundo a cartilha marxista.

Um dos principais responsáveis pela transição dos pensamentos martinianos para a

ideologia marxista foi Ernesto Che Guevara, que além de ter ocupado diversos cargos na

burocracia revolucionária cubana, estabeleceu uma série de preceitos que combinavam o

marxismo clássico ao pensamento social latino-americano. Apesar de sua importância na

transição de Cuba para o socialismo, Guevara era contrário ao atrelamento do

desenvolvimento político e econômico do país à União Soviética. Ele via o apoio de Moscou

aos assuntos políticos de maneira pragmática, mas diversas vezes destacou que Cuba não

poderia deixar de ser dependente dos EUA para passar a ser da URSS.

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Esse posicionamento em relação à aproximação com o bloco socialista não foi capaz

de influenciar os passos tomados pelo governo revolucionário em sua atuação internacional. A

influência de Guevara, pelo menos nos primeiros anos da Revolução, se restringiu a mudança

do caráter ideológico do movimento.

Entendida a base teórica da transformação ideológica do movimento revolucionário

cubano, é necessário voltar a se ater aos fatos políticos responsáveis pela ruptura definitiva

entre EUA e Cuba. Quando 1961 se iniciou, as tensões entre Cuba e os Estados Unidos

alcançavam um ponto perto do insustentável. Em seus últimos dias de mandato, o presidente

norte-americano, Dwight Eisenhower, declarou o rompimento das relações diplomáticas com

Cuba, em retaliação às manifestações de Fidel Castro, aqui narradas por Moniz Bandeira:

[...] Eisenhower não teve alternativa senão tomar tal iniciativa [rompimento diplomático com Cuba], depois que Fidel Castro, ao celebrar em 2 de janeiro de 1961, o segundo aniversário da Revolução, acusou a embaixada dos EUA em Havana de constituir um centro de subversão e espionagem e exigiu a redução de seus funcionários, da ordem de algumas dezenas, para apenas 11, número equivalente ao que a embaixada de Cuba mantinha em Washington. Esta medida realmente se justificava, dado que, sem dúvida alguma, muitos dos funcionários instalados na embaixada americana ou eram agentes da CIA, cuja agência, lá instalada, teve de ser transferida para Miami, ou colaboravam de algum modo com as forças contrarrevolucionárias, dando-lhes instrução sobre a maneira de proceder e fornecendo-lhes meios materiais para a perpetração de atentados e atos de sabotagem, como os ocorridos no centro de Havana, do que o governo revolucionário alegava possuir provas documentais (BANDEIRA, 1998, p. 257-258).

Tais atividades das agências de inteligência estadunidense já eram de conhecimento do

novo presidente, John Kennedy, desde a sua vitória nas eleições. Mesmo defendendo uma

nova política de aproximação com a América Latina, o novo governo dos EUA não recuou na

postura de confronto ao castrismo. Por conta disso, as relações entre os dois países

permaneceram tensas, mesmo com a sucessão presidencial norte-americana. A diferença

consubstancial entre a atuação das administrações Eisenhower e Kennedy estava no tocante a

como devia ser feita a intervenção a Cuba. Apesar de ambas apoiarem uma operação militar, a

segunda defendia que a interferência dos estadunidenses deveria ser apenas no recrutamento,

financiamento e treinamento dos contrarrevolucionários.

[O CARÁTER ANTI-IMPERIALISTA DA REVOLUÇÃO CUBANA (1898-1961) * VITOR BEMVINDO]

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A concretização dos planos, articulados pela CIA desde 1960, ocorreu em abril de

1961, com o primeiro ataque contrarrevolucionário ao território cubano. No dia 15, uma série

de bombardeios atingiu bases militares em quatro cidades. Os ataques deixaram 7 mortos e 53

feridos.

A reação imediata de Fidel Castro veio no dia seguinte, 16, através do discurso, no

qual declara o caráter socialista da Revolução Cubana. Além disso, Castro acusa os Estados

Unidos de estarem por trás dos ataques, classificando a ação como um atentado do

imperialismo norte-americano ao processo revolucionário. No dia 17, há o desembarque de

cerca de 1200 contrarrevolucionários na Baía dos Porcos (Bahía de los Cochinos) em duas

praias: Girón e Larga. O contragolpe das tropas oficiais é imediato e vários dos aviões

invasores são abatidos. Fidel Castro, que comandou a operação pessoalmente, ordenou um

contra-ataque aéreo com o intuito de neutralizar as embarcações que se aproximavam por mar.

Nas 48 horas que seguiram o desembarque dos contrarrevolucionários na Baía dos

Porcos, o exército e as milícias revolucionárias aniquilaram os invasores, demonstrando o

poder de organização militar e mobilização popular do comandante Castro. Em discurso

veiculado pelas redes de televisão cubanas, logo após a vitória sobre os

contrarrevolucionários, Ernesto Che Guevara declarou que a invasão à "Baía dos Porcos era

um símbolo para todos os povos oprimidos". Além disso, manifestou que o triunfo em praia

Girón teria sido a "primeira derrota do imperialismo na América Latina, mas também era uma

das primeiras vitórias do imperialismo em escala mundial" (GUEVARA, 2011).

Conclusão

A análise aqui exposta evidencia o referencial ideológico que influenciou o movimento

revolucionário cubano que triunfou em 1959. Ainda antes da declaração do caráter socialista

da Revolução, em abril de 1961, é possível perceber uma base ideológica bastante densa,

apoiada principalmente no princípio anti-imperialista de inspiração martiniana.

A ideia de “semivazio ideológico”, proposta por Wright-Mills, pode ser facilmente

derrubada a partir do estudo detalhado da cultura política cubana, desde as lutas anticoloniais

até a chegada de Fidel Castro e seus companheiros ao poder. As ideias de José Martí, a

[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ NUESTRA AMÉRICA] Ano 2, n° 2 | 2012, verão

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trajetória de Julio Antonio Mella e os ideais anti-imperialistas de Eduardo Chibás são base

para a consolidação de uma identidade ideológica sem a qual o movimento revolucionário

cubano não teria respaldo na sociedade cubana e, portanto, não triunfaria.

A incorporação dos ideais marxista-leninistas ao contrário de representar o

“preenchimento do vazio”, ajudou a complementar e reorientar a base ideológica da

Revolução Cubana. Longe de ser somente uma estratégia para angariar apoio político e

suporte econômico da URSS, a declaração do caráter socialista da Revolução foi o caminho

encontrado pelos líderes do movimento para por em marcha as transformações por eles

idealizadas.

Portanto, mesmo com a “metamorfose ideológica”, apontada por Löwy (2000, p. 44),

pode-se dizer que o processo revolucionário cubano se deu sobre forte orientação ideológica,

incialmente pautada pelo anti-imperialismo martiniano e, mais tarde, pela incorporação de

elementos socialistas de base marxista-leninista.

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