o canto como base do processo de educação musical infantil e a formação

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    O canto como base do processo de educação musical infantil e a formação

    dos professores.

     Marisleusa de Souza Egg

    [email protected] 

    Resumo: Este trabalho faz uma discussão bibliográfica e uma reflexão sobre a importânciado canto na educação infantil e da formação dos professores. Considerando o canto comoelemento primordial do aprendizado musical, propõe que ele não seja considerado apenasprerrogativa do professor de música, mas que se possa pensar na capacitação de todos osprofessores para servir como modelo vocal de qualidade, nos aspectos da escolha dorepertório, tonalidade e extensão vocal, resultando em um cantar sudável.

    Palavras chave: canto, formação de professores, educação infantil

    Introdução

    Ao observarmos o canto espontâneo de um bebê surge uma sonoridade cheia de

    nuances melódicas. Este canto é puramente criativo, sem imitação, e próprio desta fase. Com

    o passar dos meses ocorrem mudanças e improvisos entremeados de trechos já conhecidos. As

    crianças têm acesso ao canto antes mesmo de desenvolver a fala, por isso o canto pode serconsiderado a mais completa forma de manifestação musical. (MÁRSICO, 1982, p. 35)

    Na idade escolar, as crianças continuam ampliando seu aprendizado. Nesta fase,

    cantar espontaneamente ou de forma dirigida em sala de aula pode ativar os sistemas da

    linguagem, da memória, de ordenação seqüencial, entre outros. Através do canto

    acompanhado por gestos e movimentos corporais a criança pode vir a ter, pelo menos, seis

    sistemas de seu cérebro estimulados: da linguagem, da memória, da ordenação seqüencial

    (vinculados ao canto), de orientação espacial, motor (vinculados aos gestos) e de pensamentosocial (quando são atividades coletivas). (ILARI, 2003, p. 15)

    Para estimular o desenvolvimento dessas capacidades na criança, é importante que o

    ato de cantar seja para ela uma experiência prazerosa. Através do canto ela será capaz de

    explorar vários tipos de vozes (falar, cantar, imitar, gritar, sussurrar, cantarolar), desenvolver

    o controle da voz (cantar as diferentes alturas de maneira afinada) e desenvolver um

    repertório de canções. (JOLY, 1997)

    Um exemplo dessa aplicação do canto e das canções infantis como meio para a

    educação musical foi dado por Kodály, cujo método de ensino aplicado na Hungria levava

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    em conta um ideal de música ao alcance de todos. Neste sentido o canto é a forma de

    expressão musical  mais acessível e primordial, cujo desenvolvimento é mais importante que

    qualquer outro fator, como por exemplo a audição de obras musicais complexas ou o

    aprendizado de um instrumento. Antes de qualquer outro passo no aprendizado musical, as

    crianças húngaras foram estimuladas a cantar as canções de sua terra, exemplo que pode ser

    muito útil à realidade brasileira. (SZÖNYI, 1996)

    Levando em consideração que a criança canta o que ouve, devemos nos preocupar

    sobre a capacidade vocal do professor de sala de aula, uma vez que a criança passa uma boa

    parte do dia na escola. Caso o professor não utilize corretamente a voz cantada diante do

    grupo, os mesmos vícios serão assimilados pelas crianças. O canto é assimilado pela audição

    e também pela observação da postura do corpo. Crianças fazem muito bem a leitura corporal e

    cuidados nesta área são necessários ao professor. Esta questão fica ainda mais importante no

    período inicial da Educação Infantil.

    O objetivo deste artigo é refletir sobre a necessidade de uma formação para o

    professor ao utilizar o canto no contexto escolar, auxiliando no desenvolvimento de vozes

    saudáveis. Para tanto será necessário iniciar uma discussão sobre a inclusão do tema nos

    currículos dos cursos de pedagogia e licenciatura em música, o que possibilitará o surgimento

    de professores que trabalharão como multiplicadores de um canto saudável.

    A importância do canto na educação musical

    A imitação do professor (ou de outros adultos) é um ponto de partida, mas a

    expressão da criatividade da própria criança através do canto é não só desejável como

    necessária. (PARIZZI, 2006; MÁRSICO, 1996, p. 133) O cantar pode ser uma prerrogativa de

    todo o espaço escolar, e ter o comprometimento de todos os profissionais envolvidos, não

    deixando que seja considerado um assunto exclusivo das aulas de música.

    Se todos os professores que trabalham com as crianças, e não apenas os de música,

    puderem servir de bons modelos no cantar, isso irá proporcionar uma experiência muito mais

    positiva para as crianças. O que ressalta a importância de tal formação aos professores,

    rompendo com um ciclo histórico que se construiu no Brasil, onde a falta de práticas musicais

    resulta em professores que não aprenderam a cantar, portanto não sabem ensinar as crianças a

    cantar. (FIGUEIREDO, 2004)

    Conhecer alguns princípios sobre a formação da voz infantil, pode permitir aos

    professores que trabalham com crianças sejam um bom exemplo ao cantar com os alunos,mesmo sem ter formação em canto ou técnica vocal. A capacitação para o canto com crianças,

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    demonstrará que este é um ato singelo que pode ser feito por qualquer pessoa e não exige

    formação específica como cantor.

    Os professores generalistas não são matemáticos mas incluem matemática

    em sua prática cotidiana; não são cientistas mas abordam as ciências em suasatividades de ensino; não são poetas nem escritores mas são responsáveis porquestões da língua portuguesa; mas normalmente não se sentem confiantespara aplicar questões artísticas e musicais por se considerarem desprovidosde talento para tal. Essa situação coloca a música e também as outras artescomo pertencentes a um tipo exclusivo de conhecimento humano, acessívelapenas para um número restrito de pessoas que nascem com os donsnecessários para usufruir dessa condição... (FIGUEIREDO, 2004, p. 56). 

    Como cantar?

    Todos os professores, especialistas em música ou não, podem se sentir à vontade emcantar, se receberem capacitação nesta área, se possível passando por experiências musicais

    antes de adotar uma postura diante de seus alunos. Ao receber uma formação adequada, o

    professor se sentirá seguro para assumir algumas funções básicas do uso da música nas

    atividades escolares, não sendo uma prerrogativa exclusiva do professor especialista.

    (FIGUEIREDO, 2004)

    A partir de entrevistas com regentes de coral, SOBREIRA (2003, p. 115) aponta para

    o costume que alguns professores tem de entoar em regiões vocais inadequadas às vozesinfantis, cantando geralmente em tonalidades muito graves, na região da voz adulta falada,

    por não sentirem condição vocal. Tal atitude pode fazer com que as crianças praticamente

    falem, em vez de cantar, prejudicando a qualidade de sua emissão vocal.

    Este fato ocorre até mesmo entre professores com formação em música, que muitas

    vezes escolhem os tons das músicas que irão cantar com as crianças pensando mais no próprio

    conforto vocal do que na adequação pedagógica para o canto infantil. Segundo SOBREIRA

    (2003, p. 70) o uso inadequado da extensão vocal pode ser suficiente para causar problemas

    de desafinação em uma criança.

    A questão da extensão vocal é primordial para o ensino do canto para crianças, e os

    problemas decorrentes de seu planejamento inadequado são apontados por SOBREIRA

    (2003, p. 71) com base em estudos de vários pesquisadores estrangeiros (Argentina, Inglaterra

    e EUA). Estes estudos indicam que a escolha inadequada das tonalidades das músicas

    cantadas com os alunos leva a diversas conseqüências negativas para a afinação vocal das

    crianças.

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    O canto como recurso ou como processo educacional?

    Outros estudos citados por SOBREIRA (2003, p. 96) demonstram claramente que,

    devido à tendência de imitar que a criança possui, a presença de um modelo como estímulo e

    a qualidade deste modelo podem inibir ou realçar a capacidade da criança de cantar

    adequadamente. A autora também demonstra que o canto desenvolve as habilidades vocais

    gerais da criança, contribuindo, inclusive, para melhorar os problemas da voz falada. Além

    disso, a criança se beneficiará com o treinamento da memória, concentração e autocontrole.

    Cantar é um processo onde vários fatores têm que ser compreendidos, até que se

    consiga dominar a voz. O aprendizado do canto se dá por imitação, assim como o aprendizado

    da fala, sendo que algumas pessoas têm uma facilidade maior para cantar, enquanto outras

    terão que aprender. (SOBREIRA, 2003, p. 113; MÁRSICO, 1996, p. 83)Sobre a questão do que é este aprendizado do cantar, surge a questão da afinação

    como parâmetro a ser desenvolvido:

    Afinar implica não apenas na reprodução correta das alturas das notasisoladas, mas também na compreensão da estrutura musical em que essasalturas se encontram; para afinar uma nota, a pessoa deve ser capaz deperceber sua função dentro do contexto musical embora, em geral talprocedimento seja feito de maneira inconsciente. (SOBREIRA, 2003, p. 29)

    ROMANELLI (2009, p. 80) relata que a música ainda é considerada um elemento

    decorativo no processo de ensino, ou uma atividade supérflua da escolarização. Da mesma

    forma podemos perceber que o canto é muitas vezes utilizado como mera forma de preencher

    tempo da programação em vários momentos dentro do espaço escolar.

    O canto é utilizado como recurso para apresentar conteúdos de várias disciplinas seja

    no teatro, no conto de histórias, em datas comemorativas, hora do lanche e outros. É positiva a

    postura de quem o utiliza, é válido sim fazê-lo. Mas como ele está sendo utilizado? Pode-se

    pensar na melhor qualidade vocal e no uso pedagógico das canções.

    O que as crianças estão ouvindo?

    Outra questão a ser apontada, são os modelos vocais que as crianças ouvem nas

    músicas gravadas e nas veiculadas pelos meios de comunicação. Em muitos momentos, a

    escolha do gênero de música a ser ouvida na escola decai preferencialmente entre algumas

    ofertadas pela mídia, que tentando ressaltar o sentimento de alegria que se imagina que deve

    ser despertado pela música, possuem a característica de apenas fazer as crianças pularem ao

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    invés de ouvir. Entre outros motivos, isso ocorre porque o próprio modelo vocal oferecido é

    muitas vezes inacessível à voz infantil. (BEYER, 2001, p. 50-51)

    O conforto vocal tem sido um dos aspectos menos levados a sério quando nas

    produções musicais voltadas para o público infantil. Isso é mais grave se levarmos em conta

    que é no repertório que se revelam pressupostos que acabam influindo seriamente no trabalho

    com as crianças. O repertório deveria abarcar uma maior variedade de possibilidades do uso

    da voz, com arranjos diversificados, intercalando grupos vocais, solos, canto à capela e

    acompanhamento instrumental. A escolha de um repertório adequado é fundamental para se

    obter resultado satisfatório na educação da voz. (BEYER, 2001; MÁRSICO, 1982, p. 134)

    Percebe-se nestes momentos a grande oportunidade do professor em ampliar o

    universo de conhecimentos musicais da criança, permitindo contato que talvez não teria em

    outro espaço. Ao se familiarizar com uma variedade de discursos musicais, gêneros, épocas e

    estilos, as crianças ampliarão suas opções de escolhas musicais, não ficando restritos às

    limitações de seu grupo cultural específico.

    O uso do canto na educação musical nos anos iniciais da escolarização pode,

    portanto, ser planejado como uma ação educativa importante, ao envolver vários agentes, de

    especialistas a professores de sala, todos com formação adequada para lidar com essa aptidão

    natural das crianças que é o cantar. Que pode e deve ser usada estrategicamente no seu

    desenvolvimento musical a partir da realidade escolar. 

    Considerações finais

    De um modo especial a canção reúne vários elementos essenciais ao processo de

    educação musical da criança. Seja ela formal ou informal - quando através de jogos musicais

    e brincadeiras cantadas, observa-se o canto como viga mestra de toda a manifestação musical

    infantil. Mesmo para quem se propõe fazer música como profissional, o canto é essencial: nas

    melhores interpretações dos músicos e grupos mais renomados os instrumentos não fazem

    outra coisa senão cantar, o que o instrumentista fará melhor se for capaz de primeiro cantar a

    obra.

    Considerando o canto como base no processo de educação musical, a intenção é

    refletir juntamente com o professor de sala e com o professor especialista em música, sobre a

    importância de um olhar atencioso ao uso do canto na Educação Infantil, por abraçar vários

    elementos da linguagem musical.

    A importância do professor no processo de cantar é essencial, pois ele tem profundaparticipação no desenvolvimento do canto das crianças, que pode ser muito positiva. Por isso,

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    pensar estrategicamente o papel do professor e sua formação para o uso do canto com as

    crianças torna-se uma questão fundamental no momento em que o Brasil se prepara para por

    em prática a nova legislação que implanta o ensino de música nas escolas.

    Referências

    BEYER, Esther. “O formal e o informal na educação musical: o caso da educação infantil.”in Anais do IV ENCONTRO REGIONAL DA ABEM-SUL / I Encontro do Laboratório de

     Ensino de Música LEM-CE-UFSM . 2001, UFSM, p. 45-52.

    FIGUEIREDO, Sérgio. “A preparação musical de professores generalistas no Brasil” in Revista da ABEM , n° 11, set 2004, p. 55-61.

    FRANCO, Maria Amélia Santoro. Pesquisa em educação - Alternativas investigativas comobjetos complexos. São Paulo: Loyola, 2006.

    ILARI, Beatriz. “A música e o cérebro: algumas implicações do neurodesenvolvimento paraa educação musical.” in  Revista da ABEM , n° 9, set 2003, p. 7-16.

    JOLY, Ilza Zenker Leme. “O coral infantil.” in Canto, canção, cantoria: como montar umcoral infantil. São Paulo: SESC, 1997. p. 7-14.

    MARSICO, Leda Osório.  A criança e a música. Porto Alegre/Rio de Janeiro: Globo, 1982.

    PARIZZI, Maria Betânia. “O canto espontâneo da criança de zero a seis anos: dos balbuciosàs canções transcendentes.” in  Revista da ABEM , n° 15, set 2006, p. 39-48.

    ROMANELLI, Guilherme.  A música que soa na escola: estudo etnográfico nas sériesiniciais do Ensino Fundamental. Tese de Doutorado, Setor de Educação – UFPR, 2009.

    SOBREIRA, Sílvia.  Desafinação vocal. 2. ed. Brasília: MusiMed, 2003.

    SOUZA, Jusamara. “Caminhos para a construção de uma outra didática da música”. In Música, cotidiano e educação. Porto Alegre: UFRGS, 2000. p. 173-185.

    SZÖNYI, Erzsébet.  A educação musical na Hungria através do método Kodály. Trad. MarliBatista Ávila. São Paulo: Sociedade Kodály do Brasil, 1996.