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URI – UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DASMISSÕES
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃODEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES
CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALENMESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA
FABIO MARTINS MOREIRA
O CÂNONE LITERÁRIO BRASILEIRO: PRECONCEITO E EUGENIAEM O PRESIDENTE NEGRO, DE MONTEIRO LOBATO
Prof. Dr. LIZANDRO CARLOS CALEGARI
Frederico Westphalen, RS, Brasil
Dezembro de 2011
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FABIO MARTINS MOREIRA
O CÂNONE LITERÁRIO BRASILEIRO: PRECONCEITO E EUGENIA EMO PRESIDENTE NEGRO, DE MONTEIRO LOBATO
Dissertação apresentada como requisito parci-al para obtenção do Título de Mestre em Le-tras na Universidade Regional Integrada do Al-to Uruguai e das Missões – URI, campus deFrederico Westphalen. Área de concentração:Literatura.
Orientador: Prof. Dr. Lizandro Carlos Calegari
Frederico Westphalen, RS, Brasil
Dezembro de 2011
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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕESPRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO
DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTESCAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN
MESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA
A Comissão Examinadora, abaixo assinada,aprova a Dissertação de Mestrado
O CÂNONE LITERÁRIO BRASILEIRO: PRECONCEITO E EUGENIAEM O PRESIDENTE NEGRO, DE MONTEIRO LOBATO
Elaborada porFABIO MARTINS MOREIRA
como requisito parcial para a obtenção do grau de
Mestre em Letras
COMISSÃO EXAMINADORA:
____________________________________________Prof. Dr. Lizandro Carlos Calegari – URI/FW
(Presidente/Orientador)
_____________________________________________Profa. Dra. Rosani Úrsula Ketzer Umbach – UFSM
(1ª arguidora)
____________________________________________Prof. Dra. Nelci Müller – URI/FW
(2ª arguidora)
Frederico Westphalen, 16 de dezembro de 2011
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Se somos, se existimos, se apesar de todos os males davida tanto a ela nos apegamos, é que no íntimo do nossoser a voz da persistência da espécie nos ampara. A meioda vida de cada criatura já é a prole o que lhe dá coragemde a viver até o fim. O celibatário, ser que vale por tristeponto final, sente-se um corpo estranho no tumulto bioló-gico — quase um amaldiçoado. Que dizer de um povo in-teiro assim amputado da sua descendência? A ver-se en-velhecer sem um choro de criança que o faça pensar noamanhã? Dia final. Dia já em crepúsculo rápido para umanoite eterna...
(O presidente negro, Monteiro Lobato)
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Para minha companheira, Fernanda, que, por meio do apoio, coexistecomigo no amor.
Para meus pais, Adelino e Zelir, por me permitirem a existência.
Para minha irmã, Suélen, por existir ao meu lado.
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AGRADECIMENTOS
Primeiramente a Deus,
pelas bênçãos incondicionais mesmo quando imerecidas. Pelo
dom da vida e a fé que propicia a coragem de continuar e,
acima de tudo, pelo discernimento que permite fazer e produ-
zir.
A Zelir, minha querida mãe, e Adelino, meu amado pai,
pelos conselhos e ensinamentos que determinaram a forma-
ção de valores eternos, imbuídos de bondade, honestidade e
perseverança. Por terem acreditado em seu filho mesmo dian-
te das adversidades e das provações que a vida oferece.
A Fernanda, minha eterna companheira,
pelo amor, parceria e ajuda irrestrita. Esse trabalho não seria
possível sem seu apoio, pois, em meio a tantas dificuldades e
percalços pelo caminho, o porto seguro que sua companhia
representou garantiu o ânimo para que eu perseverasse. Sou
eternamente grato por sua paciência silenciosa na qual se pri-
vou de tantas coisas para que essa pesquisa pudesse ser rea-
lizada. Tenho o resto da vida para compensá-la por ser parte
de tudo isso.
A minha irmã Suélen,
pela ajuda providencial e constante interesse na minha pes-
quisa.
A todos os professores do curso de Mestrado em Letras da URI,
pelos ensinamentos que germinaram em frutos e despertaram
a desejo de pesquisador em meu peito.
Ao casal Bernardos,
pela amizade e companheirismo.
A minhas colegas de curso, Adriana, Grasiela, Karine, Sandra, Solange e Viviane,
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pela cumplicidade nos estudos e consolo mútuo durante a la-
buta da vida de estudante.
Ao Prof. Dr. Lizandro Carlos Calegari – com a emoção da eterna gratidão,
pela parceria que indicou o caminho e conduziu os passos
desta pesquisa. Seu papel de orientador extrapolou os limites
da relação profissional e avançou nas trilhas de uma amizade
única, verdadeira e incondicional. Seu providencial apoio foi a
razão deste trabalho ter sido possível. Sem desmantelos, nem
exageros, fico com a certeza de que essa ajuda foi maior do
que se fez justo meu merecimento. Com paciência e dedica-
ção, nunca mediu esforços para orientação e nunca se pesou
em dividir experiências que foram vitais na busca de meu
amadurecimento. O caminho não está completo, mesmo as-
sim, o crédito daquilo que já foi percorrido está atrelado à figu-
ra do Dr. Lizandro Carlos Calegari, e isso ficará gravado em
minha alma mais do que no papel. Minha gratidão se alarga na
imagem do professor, do amigo e do exemplo de profissional
que almejo ser. Se, no futuro, minha evolução nos caminhos
dos estudos literários permitir reproduzir alguns de seus pas-
sos, estarei confiante de que o caminho está próximo do ideal.
De todos os ensinamentos, alguns são para toda vida e duas
coisas que você me ensinou serão eternas: fé e força! Do fun-
do do coração, eu agradeço meu amigo.
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RESUMODissertação de Mestrado
Curso de Mestrado em LetrasUniversidade Regional Integrada – Frederico Westphalen
O CÂNONE LITERÁRIO BRASILEIRO: PRECONCEITO E EUGENIA EMO PRESIDENTE NEGRO, DE MONTEIRO LOBATO
Autor: Fabio Martins MoreiraOrientador: Lizandro Carlos Calegari
Local e data da defesa: Frederico Westphalen, 16 de dezembro de 2011
A presente pesquisa se concentra na assimilação dos critérios de canonização pre-sente nos manuais de literatura e nos currículos acadêmicos. Tais critérios de sele-ção do cânone, seus favorecidos e, principalmente, seus excluídos, são pesquisados,levando-se em conta as ligações com o poder que é representado pela classe domi-nante. Como exemplo de exclusão literária, foi eleito por este estudo o negro e suapresença/ausência na história da literatura brasileira. Como corpus de pesquisa, foianalisado o livro O presidente negro, de Monteiro Lobato, publicado em 1926. Omodo como o autor concebe sua literatura e a presença de elementos ideológicosservem de base na compreensão das ligações canônicas vigentes na época de suapublicação. Tais ligações envolvem explícito preconceito com os negros com respal-dos científicos através da eugenia.
Palavras-chave: Cânone. Preconceito. Eugenia. Monteiro Lobato. O presidente ne-gro.
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ABSTRACTMaster’s Thesis
Master’s Degree Program in LiteratureUniversidade Regional Integrada – Frederico Westphalen
THE LITERARY BRAZILIAN CANON: PREJUDICE AND EUGENICS INMONTEIRO LOBATO’S O PRESIDENTE NEGRO
Author: Fabio Martins MoreiraChair: Lizandro Carlos Calegari
Time and place of defense: Frederico Westphalen, December 16th, 2011
This thesis focuses on the assimilation of canonization criteria present in literary text-books and in academic curricula. The selection criteria of the canon, and especially itsfavored, the excluded, are searched taking into account the links with the power rep-resented by the ruling class. As an example of literary exclusion, this work has beenranked by the blacks and their presence/absence in the history of Brazilian literature.As the corpus of the analysis, the book being studied was Monteiro Lobato’s O presi-dente negro, published in 1926. The way the author conceives his literature and thepresence of ideological elements underpin the canonical understanding of the linksexisting at the time of its publication. Such bonds involve explicit prejudice againstblacks supported in scientific books concerning eugenics.
Keywords: Canon. Prejudice. Eugenics. Monteiro Lobato. O presidente negro.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 11
1 PROCESSOS DE (DES)LEGITIMAÇÃO DO CÂNONE: O NEGRONA HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA ...................................................... 17
1.1 A formação do cânone literário: legitimação e desautorização ....................... 17
1.2 O cânone literário brasileiro e os momentos de formação .............................. 26
1.3 A presença do negro na literatura brasileira: um olhar sobre a exclusão ....... 38
2 MONTEIRO LOBATO: BIOGRAFIA, BIBLIOGRAFIA E POLÊMICAS ................ 47
2.1 A crítica literária lobatiana: o que se ganha e o que se perde ........................ 47
2.2 O racismo do início do século XX e os caminhos da eugenia no Brasil .......... 56
2.3 Monteiro Lobato, O presidente negro e a eugenia ........................................ 66
3 EUGENIA E PRECONCEITO EM O PRESIDENTE NEGRO ............................ 75
3.1 A propósito da eugenia e do preconceito no romance de Lobato ................... 75
3.2 Enredo e personagens de O presidente negro: ligações com opoder político e canônico de seu momento histórico ............................................ 92
3.3 A ciência e o governo: o futuro utópico de Monteiro Lobato comosolução do problema do negro no Brasil do início do século XX ........................ 107
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 123
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 128
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INTRODUÇÃO
A necessidade de se revisar o cânone literário brasileiro no que se refere às
classes marginalizadas consistiu no ponto de partida para execução desta pesquisa.
Ao se perceber que o cânone literário é, por vezes, tendencioso e preconceituoso,
toma-se o negro como referência de estudo a partir do modo como que ele é percebi-
do e, acima de tudo, representado na produção literária brasileira.
De modo geral, a literatura canônica busca manter escusos ou atribuir pouca
importância a determinados elementos marginalizados como o negro, a mulher e os
homossexuais, só para citar alguns exemplos. Assim, ao se analisar o cânone brasi-
leiro, atentando para a temática do negro, é possível se deparar com autores como
Monteiro Lobato em cuja parte de sua produção encontram-se indícios relevantes
para um estudo sobre o preconceito, a marginalização e a eugenia. O fato de o câno-
ne desconsiderar tais enfoques torna essa pesquisa ainda mais atrativa dentro da
proposta apresentada.
Assim, a dissertação intitulada O cânone literário brasileiro: preconceito e eu-
genia em O presidente negro, de Monteiro Lobato tem o intuito de contribuir com os
estudos contemporâneos no sentido de se fazer uma avaliação sobre a marginaliza-
ção, em especial, do negro no cânone e na obra em questão. Para tanto, foram bus-
cados elementos históricos e sociológicos que explicitam as bases de fundação do
cânone literário brasileiro, seus conceitos formadores, seus critérios de escolha e o
modo como ele reflete ou desconsidera autores e temas.
Tomadas as bases canônicas, as abordagens desta pesquisa necessitam de
um exemplo específico de marginalização. Nesse sentido, uma revisão crítica de
Monteiro Lobato fornece a compreensão dos elementos por ele abordados e, ainda,
os aspectos pesquisados pelos críticos tradicionais, elucidando, assim, considera-
ções negligenciadas pelo autor e pelos críticos de sua obra. Os estudos de Marisa
Lajolo permitem examinar a trajetória de Lobato e os enfoques dado por ele ao negro.
Por esse motivo, elegeu-se como corpus de investigação a obra O presidente negro,
na qual se buscam detalhes de como o próprio autor trata a questão sobre o olhar do
preconceito.
A compreensão do livro em questão exige também uma análise sócio-histórica
contemporânea à sua produção, procurando-se entender se a sua temática surge
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como algo isolado para a época ou se compactua com as premissas ideológicas do
momento. Dentre as tendências mais atuais a O presidente negro, a eugenia parece
ser a mais relevante, e o andamento da pesquisa buscará suas definições e aceita-
ções no meio social brasileiro e suas repercussões no momento presente.
As contribuições de Monteiro Lobato como escritor e editor coincidem com os
caminhos trilhados pela literatura brasileira em sua consolidação como arte difundida
e popularizada em meios, até então, alheios aos livros. Filho de uma época em que a
produção literária se limitava a poucos livros remidos a um seleto grupo intelectual,
Lobato assumiu o papel de escritor e foi além, ao chamar para si a responsabilidade
de divulgar seu legado e levar seus escritos ao maior número de leitores possível.
Dotado de uma biografia intensa e de uma bibliografia ainda não estudada em
sua totalidade, Monteiro Lobato tem em sua trajetória as marcas político-ideológicas
de cada período que vivenciou, sendo ativista das causas que defendia sem temer as
consequências que suas posturas poderiam ocasionar. Seus caminhos são alterna-
dos entre a glória adquirida por sua fama junto ao meio literário e o repúdio por seus
posicionamentos antimodernistas ou, mais grave ainda, as tortuosas consequências
de empreitadas, que se transformaram em verdadeiras cruzadas em questões políti-
cas, como foi o caso da exploração de petróleo no Brasil a qual tanto defendeu.
No campo literário, a riqueza da bibliografia de Lobato permite a inúmeros es-
tudiosos e críticos o resgate de aspectos de sua obra, que, dentre tantos enfoques
tenuamente elucidados, revelam, com enorme clareza, a infinidade de elementos ain-
da a serem pesquisados. No universo de escritos deixados por Lobato, as possibili-
dades de pesquisa são tamanhas, que o crescente número de pesquisadores con-
templa apenas uma diminuta parcela do que ainda pode ser feito.
Lobato foi responsável pela formação de leitores durante muitas gerações com
a sua literatura infantil, o que representa o marco de sua consagração e a principal
associação com a qual ele é lembrado. No entanto, é válido frisar que Lobado escre-
veu para crianças e para adultos, e o sucesso com os primeiros fez com que muito do
que ele escreveu para os segundos fosse ofuscado e até mesmo deixado de lado.
Em suas obras completas compostas por 30 volumes, publicadas pela Editora Brasi-
liense de São Paulo em 1948, percebe-se a divisão em “Literatura Geral” (13 volu-
mes) e “Literatura Infantil” (17 volumes). Mais tarde, os volumes de “Literatura Geral”
foram expandidos para o número de 17, equiparando-se com os livros infantis.
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Dentre suas obras adultas, tem-se destaque o livro O choque das raças ou Opresidente negro que foi publicado, inicialmente, em folhetins, entre setembro e ou-
tubro de 1926, pelo jornal A Manhã1. O romance, único de Lobato, aborda temas po-
lêmicos como a eugenia2 e a supremacia branca. Na visão do autor, esse livro era
considerado um futuro best-seller, porém, devido ao modo como aborda temas raci-
ais, assume um cunho social e político, visto, inclusive, como tratado de divulgação
eugênica. Escrito de modo estratégico pelo autor, O presidente negro contempla
teorias científicas atraentes aos intelectuais do início do século XX que viam nas
questões raciais e no controle da proliferação da raça negra a possibilidade da cria-
ção de uma identidade brasileira mais próxima do arianismo europeu. A eugenia apa-
rece camuflada na bandeira do nacionalismo, e o preconceito se esconde no ideal da
criação de uma nação de população branca e pura.
A eugenia extrema ou negativa, tema central do livro, consiste na busca de um
aperfeiçoamento genético, no qual o melhoramento da espécie é feito pela orientação
científica que leva em conta critérios de valores da classe detentora do poder. Nesse
sentido, o perfil ariano foi eleito como padrão de perfeição, legando-se aos negros a
condição de corruptores da pureza branca, defeito a ser consertado através de sua
eliminação.
O presidente negro, como alvo de análise do presente trabalho de pesquisa,
suscita questionamentos com respeito aos temas que aborda, em especial, a postura
que assume nas questões raciais, nas quais a supremacia branca é enaltecida pela
ciência e ao negro é atribuída a condição de representante da inferioridade america-
na, passível de banimento através de processos eugênicos. A ficção de Lobato forne-
ce indícios de sua maneira de pensar, o que é reforçado por meio de outras obras do
autor e registros biográficos como cartas e publicações de cunho científico. Além dis-
so, percebem-se, neste romance, reflexos das ideologias racistas populares no meio
intelectual das primeiras décadas do século XX e suas influências na cultura e litera-
tura do Brasil.
A relevância de um estudo nesse sentido está nas ideologias que a literatura
apresenta, bem como nas associações que os seus temas possuem com a classe
dominante e o grau que se favorecem e se protegem. Isso implica a questão de ca-
1 Jornal fundado em 1925 por Mário Leite Rodrigues, pai do escritor Nelson Rodrigues.2 Ciência que se ocupa com o estudo e cultivo de condições que tendem a melhorar as qualidadesfísicas e morais de gerações futuras, especialmente pelo controle social dos matrimônios. Ver:eugênica. Cf. Dicionário MICHAELIS, 1998.
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nonização de uma obra literária e os fatores de aceitação e exclusão presentes na
história da literatura brasileira. O cânone, como forma de elitização de determinadas
obras em detrimento a outras, é levado em conta pela presente pesquisa como ele-
mento associado ao poder político e intelectual, o qual reflete seus critérios de aceita-
ção nos valores do grupo de poder que representa. Nesses termos, é importante fri-
sar que o “cânone”, tal como tratado neste estudo, consiste naquele apresentado nos
manuais literários e defendido pelos moldes acadêmicos, o qual serve de base nos
estudos escolares e em seus currículos.
Para dar conta de sua proposta, o presente trabalho foi organizado em três
partes: no primeiro, trata-se das definições de cânone, suas aplicações no Brasil e o
espaço que o negro recebe no meio literário nacional; no segundo, faz-se uma análi-
se de Monteiro Lobato, sua fortuna crítica e seu envolvimento com as ciências eugê-
nicas e o modo como seus personagens negros são apresentados em sua obra; por
fim, realiza-se uma análise específica do livro O presidente negro, seus temas e
associações com teorias de superioridade racial, bem como suas ligações com o po-
der nos critérios de canonização.
Nesse sentido, na primeira parte, Processos de (des)legitimação do cânone: o
negro na história da literatura brasileira, são abordados os conceitos de cânone e a
tendência da crítica literária por elementos ocidentais como padrão de eleição tendo
como base de pesquisa os estudos de Flávio Kothe, Harold Bloom, Leyla Perrone-
Moisés e Roberto Reis. Além disso, são investigadas as características da canoniza-
ção nacional, e uma exemplificação de seus principais escolhidos, desde o período
colonial até o início do século passado. Um resgate do negro como alvo literário nes-
se recorte temporal permite a compreensão do modo como o tema é tratado pela lite-
ratura brasileira e o empecilho que ele representa como fator de canonização.
Na segunda parte, Monteiro Lobato: biografia, bibliografia e polêmicas, foi ela-
borado um resgate da fortuna crítica do autor, levando-se em conta os manuais de
literários de críticos como Afrânio Coutinho, Alfredo Bosi, Brito Broca, José Aderaldo
Castello, Massaud Moisés, Mário da Silva Brito, Nelson Werneck Sodré, Silviano San-
tiago e Wilson Martins. Essa análise permitiu a compreensão dos aspectos da obra
de Lobato que são levados em conta pela crítica em detrimento aos elementos pelos
quais o autor geralmente é lembrando pelos leitores tradicionais. Segue-se à fortuna
crítica um estudo sobre o tema eugenia e suas tendências no Brasil, o que serve de
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base na análise de suas abordagens na obra de Monteiro Lobato e em suas caracte-
rizações de personagens negros.
Na terceira parte, Eugenia e preconceito em O presidente negro, tem-se uma
análise do livro de Lobato com ênfase nas teorias e pensamentos intelectuais popula-
res no início do século XX. Associa-se a tal abordagem o estudo das possibilidades
de aplicação da eugenia na sociedade brasileira como aspiração da burguesia bran-
ca, além da consolidação desse ideal na ficção de Lobato. Esse estudo comporta a
assimilação das relações de poder que permeiam a política nacional e as tendências
que a sociedade assume, assim como as ligações que a literatura exerce com o po-
der na busca de sua canonização. Um estudo dos personagens de O presidente ne-gro comporta a compreensão de como a literatura reflete o preconceito do período
contemporâneo ao autor e o modo que na ficção os ideais da sociedade brasileira
estavam alcançados por meio da utopia do autor.
Em suma, a pesquisa questiona os padrões de canonização aplicados na lite-
ratura brasileira e as implicações de determinada literatura, com certas características
ideológicas serem preferência nas escolhas dos críticos. No momento que um tipo
específico de temática parece ser constantemente enaltecido, aqueles que não são
valorizadas se revelam claramente em sua exclusão. Dentre tantos temas legados ao
segundo plano pelo cânone, o tema “negro” é a abordagem central desta dissertação,
na qual o racismo é evidenciado, não simplesmente pela ocultação do tema, mas pe-
la aplicação de elementos que o desfavorecem com base no pensamento intelectual
da época e no amparo da ciência como pretexto para tal atitude.
Desse modo, a elaboração desta pesquisa justifica-se pela necessidade de se
fazer uma revisão e uma avaliação do cânone brasileiro, atentando para grupos mar-
ginalizados, que, consequentemente, acabam sendo desconsiderados pelas obras e
pelos estudos literários. O simples fato de um elemento ser marginalizado já desperta
a importância de seu estudo, principalmente em relação ao cânone, que, mais do que
literário, é social e humano, refletindo posturas históricas, políticas e ideológicas do
Brasil através de pensamentos e atitudes dos que o definiram.
Em Monteiro Lobato, busca-se um exemplo emblemático, um recorte canônico
daquilo que representa a preferência nas escolhas de temas literários no Brasil e do
modo como os temas desprestigiados, como no caso os negros, são tratados pela
literatura clássica brasileira.
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A produção literária de Lobato é produtiva nesse sentido, e este estudo se jus-
tifica uma vez que busca novos enfoques para sua obra, em especial no que se refe-
re a posturas racistas e à eugenia em O presidente negro. Até então, a maioria das
pesquisas em torno do escritor paulista tem desconsiderado os aspectos eugênicos
de sua obra. Assim, a atenção que se pretende dar ao negro nesta investigação
atende não somente a uma necessidade histórica em relação ao desprezo aplicado
pelo cânone, mas também se insere nas tendências modernas de estudos e análises
literárias.
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1 PROCESSOS DE (DES)LEGITIMAÇÃO DO CÂNONE: O NEGRONA HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA
Toda literatura, todo romance, todo poema, por mais impessoal queprocure ser, não passa de um julgamento. A ideia moral, que dominamesmo o autor mais liberto de tudo, não permite a simples pinturaobjetiva. E essa pintura seria um susto e um assombro para o ho-mem, que não consegue jamais conhecer-se a si mesmo porque nin-guém o desnuda.
(A barca de Geyre, Monteiro Lobato)
1.1 A formação do cânone literário: legitimação e desautorização
A literatura tem sido uma das grandes instituições de reforço de fron-teiras culturais e barreiras sociais, estabelecendo privilégios e recal-ques no interior da sociedade.
(Cânon, Roberto Reis)
O estudo científico de determinadas obras requer, muitas vezes, que se faça
um questionamento a respeito dos critérios que as legitimaram como parte da história
literária. Assim, os elementos que conferem autenticidade àqueles textos que formam
o cânone literário passam a ser alvo de análise e norteadores de padrões estéticos,
algo que se associa ao que se costuma chamar de “boa literatura”. Como pressupos-
to dessa análise, a definição de “cânone” torna-se imprescindível.
Segundo Leyla Perrone-Moisés, a palavra “cânone” vem do grego “kánon”,
através do latim “canon”, e significava “regra” ou “vara de medir”, e foi utilizada pri-
meiramente no âmbito religioso no que se referia ao padrão de conduta moralmente
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“correta” assumida pelos primeiros cristãos3. No século IV d.C., aparece um emprego
diferente para o vocábulo, mas afim à aplicação posterior na literatura, a qual coloca
a palavra “cânone” como um conjunto de textos percebidos como autênticos e inspi-
rados por Deus, segundo o julgamento dos líderes religiosos. A partir da eleição des-
ses textos, montou-se a Bíblia nos moldes conhecidos até hoje, tendo como base o
que se chamaria de cânone bíblico ou de textos canônicos.
O mesmo critério utilizado para incluir textos no cânone bíblico acabou por
excluir outros, vistos como apócrifos, ou seja, não dotados de autenticidade e inspira-
ção divina. Por mais escusos que fossem os critérios de escolha – como, por exem-
plo, o simples fato de um texto ser citado por outro canonizado, o que já era suficiente
para incluí-lo também –, eles representavam uma norma associada ao elitizado, ao
“correto” e, principalmente, ao sagrado. No mesmo sentido, a denominação “cânone”
foi utilizada para representar o conjunto de seres humanos considerados santos pela
Igreja Católica e, em razão disso, canonizados.
Com base na essência de suas origens, a palavra “cânone” passou a significar
o conjunto de elementos elitizados ou mesmo uma lista de merecedores de destaque
e, consequentemente, apartados do “comum” por meio de qualidades que o conferis-
sem distinção. Intrínseco na definição, percebe-se a legitimação de elementos cano-
nizados mediante a exclusão de agentes considerados inferiores, rejeitados ou não
aptos. Assim, o processo de definição e legitimação do cânone implica a existência
de relações de poder, visto que quem faz as escolhas tem autoridade para isso e lo-
gicamente atende aos seus interesses ou aos do grupo que representa.
O uso da palavra “cânone” foi importado do contexto religioso para a literatura,
tendo em seu uso a mesma base de significação original do vocábulo. O cânone lite-
rário passa a ser compreendido como o conjunto de obras valorosas que represen-
tam o que de “melhor” já foi produzido em literatura. São as “obras-primas” ou “clássi-
cas” dotadas em sua essência de valores e grandezas universais, que, por meio da
perenidade que representam, são dignas de admiração, respeito e preservação para
as gerações vindouras. Os livros e autores legitimados pelo cânone têm um lugar de
destaque no meio literário, servindo de referência para estudos e pesquisas.
Quando um estudioso se vale do cânone para selecionar obras para nortear
suas opções de leitura, esse mesmo cânone desempenha sua função indicativa ao
3 PERRONE-MOISÉS, Leyla. Altas literaturas: escolha e valor na obra crítica de escritores mo-dernos. 1998. p. 61.
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trazer à tona autores relevantes com textos amplamente reconhecidos como uma
espécie de guia na formação do leitor. Segundo Harold Bloom, em O cânone ociden-tal, a importância maior do cânone literário está ligada à limitação temporal da vida
humana e a impossibilidade de uma completa leitura do que já foi escrito: “quem ler
tem de escolher, pois não há literalmente tempo suficiente para ler tudo...”4. A efeme-
ridade a que o humano está sujeito exige um dinamismo na escolha de suas leituras,
selecionando aquilo que é julgado como relevante através das indicações feitas pelo
cânone literário.
A propósito, uma análise dos currículos escolares permite deslumbrar os ca-
minhos percorridos pelo cânone e a dimensão de seus escolhidos. Como instituição,
a escola ensina a ler e a escrever e, ao mesmo tempo, oferece “sugestão” daquilo
que deve ser lido nos padrões indicados pelo cânone. Os livros didáticos têm em sua
constituição a relação dos autores canonizados, os quais, de modo dogmático, são
repassados aos educandos que garantem a sua manutenção, perpassando a sua
continuidade.
Diante da importância que representa, o cânone literário se torna alvo de mui-
tos estudos e questionamentos, em particular no que diz respeito aos seus critérios
de seleção, legitimação e exclusão. Com base nas definições apresentadas nas ori-
gens da palavra “cânone”, a relação de poder está totalmente ligada à escolha de
autores que fazem parte dos seletos da literatura, o que interroga a imparcialidade do
processo diante da autoridade que atende a seus próprios interesses.
Segundo Roberto Reis, questionar o processo de canonização de obras literá-
rias é, em última instância, “colocar em xeque os mecanismos de poder a ele subja-
centes”5. Dentro de um sistema de articulação de interesses produzidos por aqueles
que detêm poder social, intelectual e financeiro, a eleição das obras clássicas repre-
senta igualmente a exclusão de uma grande gama de textos, por meio de mecanis-
mos e razões que extrapolam o âmbito literário e suas questões estéticas. Neste sen-
tido, a noção de “sugestão” atribuída à função do cânone se distância quanto mais se
aproxima de uma “imposição” manipulada por indivíduos detentores de poder. Con-
forme Reis,
4 BLOOM, Harold. O cânone ocidental. 2001. p. 23.5 REIS, Roberto. Cânon. In: JOBIM, José Luis (Org.). Palavras da crítica. 1992. p. 68.
19
verificamos que o corpus canônico da literatura (e, via de regra, nãose usa o adjetivo “ocidental”, embora os autores sejam oriundos doOcidente) está envolto por uma redoma de a-historicidade, como sehouvesse sido estipulado por uma supracomissão de cúpulas e dealto nível (infensa a condicionamentos de ordem ideológica ou declasse) que, por uma espécie de mandato divino, houvesse traçadoos contornos do cânon, elegendo tais obras e autores e varrendo domapa outros autores e obras6.
Averbado em seu poder, o cânone trilhou alguns caminhos facilmente perce-
bidos pela trajetória assumida na dominação do mundo ocidental, a começar pela
própria denominação “cânone ocidental”, que permite em sua formação etimológica a
exclusão do “oriental”, do “africano”, do “indígena” ou qualquer outro grupo que não
compartilhe da cultura e posição social do ocidente. Por questões geográficas de po-
der, o cânone compactua com a classe dominante de modo que o padrão literário
ocidental passa a ser visto como modelo de “boa literatura”, com estética “elitizada” e
“correta”, em detrimento a qualquer grupo originário de outras partes do planeta.
Além disso, a função literária extrapola a questão estética e assume o papel
de veículo propagador de uma determinada e específica cultura: a ocidental. Nesses
padrões, o perfil predominante na literatura canônica está ligado ao patriarcalismo, ao
arianismo, ao heterossexualismo e ao cristianismo. A percepção de “boa literatura”
está ligada à “boa cultura”, desprezando o diferente. Com isso, conforme postula
Reis, o cânone “está a serviço dos mais poderosos, estabelecendo hierarquias rígi-
das no todo social e funcionando como uma ferramenta de dominação”7. Os critérios
literários que norteiam os estudos das obras canônicas se confundem, ou, no pior dos
casos, são substituídos por questões ideológicas complacentes com o pensamento
dominante. Conforme Reis,
[a] escrita e o saber, na cultura ocidental, estiveram via de regra demãos dadas com o poder e funcionaram como forma de dominação.Todo saber é produzido a partir de determinadas condições históri-cas e ideológicas que constituem o solo do qual esse saber emerge.Toda interpretação é feita a partir de uma dada posição social, declasse, institucional. É muito difícil que um saber esteja desvinculadodo poder. Com isso deduzimos que os textos não podem ser disso-ciados de uma certa configuração ideológica, na proporção em que oque é dito depende de quem fala no texto e de sua inscrição social ehistórica. O que equivale a afirmar que todo texto parece estar inti-
6 Ibidem. p. 71.7 Ibidem. p. 71.
20
mamente sobredeterminado por uma instância de autoridade. O cri-tério para se questionar um texto literário não pode se descurar dofato de que, numa dada circunstância histórica, indivíduos dotadosde poder atribuíram o estatuto de literário àquele texto (e não a ou-tros), canonizando-o8.
O pluralismo de “culturas” propagado pela literatura fica engessado no singu-
lar, de modo que o grupo dominante dita o ritmo e os assuntos que sua concepção
tendenciosa percebe como apropriados. Nesse sentido, o cânone deixa de ser exclu-
sivamente literário para assumir uma conotação política, na qual a eleição segue um
processo simples: “se um autor serve às necessidades do sistema, ele é escolhido;
senão, não”9. É preciso compreender que a classe dominante, no uso de seus pode-
res, faz da literatura um reflexo de seus valores, encontrando no cânone um aporte à
manutenção e à propagação de suas ideologias, organizadas e repassadas aos seus
membros a partir do meio escolar, estendendo-se até mesmo como imposição em
outras culturas.
Como visto, as características ideológicas são o ponto de partida para qual-
quer obra aspirante à canonização. Superada essa barreira e não se levando em con-
ta favoritismos da crítica a determinado autor por quaisquer que sejam as razões,
resta em última instância aquilo que deveria ser o pressuposto de tudo: a qualidade
literária da obra. O fato de um livro acatar ao interesse ideológico da classe dominan-
te não garante ingresso no cânone. Ela deve atender a quesitos de qualidade, origi-
nalidade, valores ligados à atemporalidade e, ainda segundo Bloom, à estranheza
representada nas múltiplas possibilidades de análise: “[u]m dos sinais de originalida-
de que pode conquistar status canônico para uma obra literária é aquela estranheza
que jamais assimilamos inteiramente, ou que se torna um tal fato que nos deixa ce-
gos para idiossincrasias”10.
De um modo um tanto taxativo, Bloom chegou a catalogar o cânone limitando-
o a vinte e seis nomes, os quais vão de William Shakespeare a Virgínia Woolf11. Pos-
8 Ibidem. p. 69.9 FRANCO,Sandra Aparecida Pires. O cânone literário nos materiais didáticos do ensino mé-dio. 2008. p. 6. Disponível em: http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/. Acesso em: 10 jul. 2009.10 BLOOM, Harold. O cânone ocidental. 2001. p. 14.11 Em ordem cronológica, os 26 nomes presentes na lista de Bloom são: William Shakespeare,Dante Aliguieri, Samuel Johnson, Johann Wolfgang Goethe, William Wordsworth, Miguel de Cer-vantes, Geoffrey Chaucer, James Joyce, Michel de Montaigne, Molière, John Milton, Jane Austen,Walt Whitman, Emily Dickinson, Charles Dickens, Thomas Eliot, Leon Tolstoi, Johan Henrik Ibsen,
21
teriormente, a lista foi alargada para cem nomes escolhidos de modo mais democráti-
co e globalizado (incluindo, no caso brasileiro, Machado de Assis com ressalvas de
elogios). Segundo o autor, a qualidade dos presentes em sua lista ultrapassa a ques-
tão temporal sendo eternizados para gerações futuras. A obra “só entra no cânone
pela força poética, que se constitui basicamente de um amálgama: domínio da lin-
guagem figurativa, originalidade, poder cognitivo, conhecimento, dicção exuberan-
te”12.
Entretanto, as definições do estético que envolvem a qualidade canônica são
inevitavelmente vagas e imprecisas. Os critérios aplicados pela crítica literária não
são imutáveis e não permitem um manual daquilo que seria visto como padrão a ser
procurado durante a avaliação de determinada obra. Qualquer tentativa de cataloga-
ção destes critérios, além de exaustiva, pode-se revelar obsoleta antes mesmo do fim
da pesquisa, diante das constantes mudanças a que as teorias estão sujeitas.
A qualidade dos escolhidos por Bloom é inegável e estão dentro do padrão
“sugerido” pelo cânone ocidental. Em contrapartida, o que se questiona nesta pesqui-
sa não é o motivo de algumas obras fazerem parte do cânone, tanto que o longo
tempo de sua canonização mediante as análises de repetidas gerações de estudio-
sos certamente já teriam descartado obras carentes de valor; o questionamento está
na exclusão de tantas outras, que, mesmo atendendo aos padrões estéticos de quali-
dade e originalidade, não foram eleitas. Assim como afirma Flávio Kothe, “[o] proble-
ma não é apenas a vigência do cânone, mas a imposição da interpretação canonizan-
te como a única válida, a única ciência a que dá espaço e significação, na escola, na
mídia, nas editoras”13.
Nenhum defensor do cânone admitiria que temas ideológicos se sobrepuses-
sem às características estéticas. Isso seria negar o objeto de estudo em uma total
repulsa da teoria literária como ciência séria. Mesmo assim, não há como refutar o
fato de o cânone tradicional se revelar uma forma de propagação de modelos estabe-
lecidos pela sociedade ocidental. Nesse ínterim, o foco do questionamento do cânone
retoma uma conotação ideológica, em que o modelo ocidental deve ser desmistifica-
do para o “diferente” também ter espaço.
Sigmund Freud, Marcel Proust, Virgínia Woolf, Franz Kafka, Pablo Neruda, Jorge Luis Borges,Fernando Pessoa e Samuel Beckett.12 Ibidem. p. 36.13 KOTHE, Flávio. O cânone colonial. 1997. p. 107-108.
22
As discussões que permeiam o cânone são maiores a do que esta dissertação
possa dedicar atenção. Por isso mesmo, é necessário uma delimitação de aborda-
gens dentro da proposta de pesquisa aqui encenada. O tema realmente é polêmico, e
causa alvoroço na crítica tradicional o simples fato de se cogitar uma revisão de
obras e autores. Alguns críticos são pragmáticos e consideram heresia questionar o
cânone e seus atributos. Como defesa, os mais conservadores utilizam o argumento
de que a ideologia não deve ultrapassar os limites do estético, e com isso refutam
qualquer levantamento feito contra o cânone. Mas não é esta a questão, e a discus-
são desse argumento desloca toda a problemática dos excluídos, como se tem per-
cebido em muitos estudos. Questionar a tendência ocidental do cânone não significa
abrir as portas para todo e qualquer texto fazer parte dele. Será que critérios estéticos
podem ser mantidos sem existir uma concepção preconceituosa de temas?.
Neste sentido, é vital enfatizar que o questionamento do cânone apresentado
nessa pesquisa parte de uma análise dos excluídos, daqueles que não tiveram, por
muito tempo, espaço e reconhecimento no padrão de “boa literatura” imposta pelas
leis canônicas. Logo, o objetivo do trabalho não visa a “descanonizar” nenhum autor
(o tempo e os críticos contemporâneos se responsabilizarão por isso), muito menos
incluir na lista de eleitos outros autores pelo simples fato de conter ideologias diferen-
tes da tradicional. Romper as barreiras ideológicas das obras canônicas não significa
abrir mão dos elementos estéticos a serem levados em conta para sua eleição.
O que se pretende é perceber a parcialidade do cânone em suas escolhas
baseadas em ideologias a serviço da classe dominante bem como a consequente
exclusão do diferente, sem nem mesmo ser levado em conta suas qualidades literá-
rias ou sem um motivo plausível e convincente para tal. Conforme declara Reis:
[o] que interessa reter, mais do que uma diacronia, é que o conceitode cânon implica um princípio de seleção (e exclusão) e, assim, nãopode se desvincular da questão do poder: obviamente, os que sele-cionam (e excluem) estão investidos da autoridade para fazê-lo e ofarão de acordo com os seus interesses (isto é: de sua classe, desua cultura, etc.)14.
14 REIS, Roberto. Cânon. In: JOBIM, José Luis (Org.). Palavras da crítica. 1992. p. 70.
23
As obras protegidas pelo aval do cânone gozam de uma relativa segurança no
que tange à sua perpetuação. Mesmo assim, isso não as deixa imune a uma análise
crítica sobre suas ideologias na cumplicidade com o poder. E este, como ratifica a
história, sempre defendeu os interesses de uma classe bem específica. Basta pensar
em Shakespeare, autor canonizado pela unanimidade da crítica, em um contexto dife-
rente: caso seus personagens fossem asiáticos ou caso Hamlet fosse príncipe de
uma tribo africana, será que o autor ocuparia a mesma posição no cânone?.
O modo como alguns grupos marginalizados foram encarados por parte da-
queles que legitimaram o cânone demonstra a parcialidade nas escolhas. Desse
pressuposto, dois enfoques podem se levados em conta: 1) a reivindicação de espa-
ço por classes simplesmente ignoradas pelo padrão canônico; e 2) quando mencio-
nados em obras canônicas, como são descritos elementos dessas classes.
Dentre tantos grupos ignorados pelo cânone, a mulher e o negro são dois
exemplos claros de exclusão. A abertura literária (parcial e tardia) para esses dois
casos coincide, historicamente, com as lutas sociais por eles travadas no último sécu-
lo. No momento em que a mulher foi às ruas e lutou por direitos de igualdade, perce-
beu-se também certa mudança literária no padrão patriarcal vigente no cânone, assim
como as lutas contra o racismo acabaram por tornar “politicamente incorreta” a litera-
tura que pregasse o sectarismo. Afora esse momento de mudanças histórias, o câno-
ne que as antecede sempre manteve a mulher submissa a uma sociedade machista,
e o negro como membro de uma classe inferiorizada e, por essa razão, escravizada
como força de trabalho diante do europeu/colonizador. Se não bastasse isso, existe
um esforço por parte da crítica conservadora em esconder alguns aspectos precon-
ceituosos das bibliografias de autores canonizados. Nesse respeito, o trabalho do
estudioso contemporâneo, imparcial em sua tarefa, deve ater-se também a textos
“estrategicamente” escondidos, como é o caso de Monteiro Lobato e o seu romance
O presidente negro, publicado em 1926, o qual ficou praticamente esquecido por
mais de meio século, pois a crítica conservadora reuniu esforços na tentativa de man-
tê-lo imaculado.
Isso tudo não significa que o cânone representa uma consciente conspiração
contra grupos minoritários. Muitos fatores relativos ao momento histórico, a tendên-
cias políticas e de poder influenciaram nas escolhas caracterizando uma exclusão,
até certo ponto, inconsciente. Todavia, a visão tendenciosa aplicada no passado não
se justifica no contexto contemporâneo, no qual o distanciamento temporal permite
24
um olhar mais abrangente e, principalmente, imparcial nos critérios canônicos. A po-
lêmica vem à tona na medida em que nenhuma transformação, ainda mais dessa
grandeza, ocorreria sem protesto dos defensores do cânone em detrimento ao seu
poder. Segundo Constância Lima Duarte, em seus estudos sobre a literatura femini-
na, um questionamento sobre o cânone representa uma disputa pelo poder: “[c]om
certeza, parece que chegamos ao fim do cânone estabelecido a partir da visão limita-
da de um grupo ou de um único homem, ditado por seus preconceitos e valores. Esta
disputa – é evidente – é uma disputa pelo poder”15.
No entanto, o questionamento do padrão imposto pela história e pelos grupos
dominantes não se limita à literatura. Percebe-se no âmbito social uma abertura de
temas e discussões no último século. O discurso das minorias marginalizadas tem
ganhado espaço, efetivando-se como imprescindível na evolução humana, como se
nota nas causas feministas e antirracistas. O que torna a questão ainda mais polêmi-
ca está no fato de que o questionamento do cânone literário mexe com as estruturas
do poder político que o utiliza para propagar suas preferências. Investigar, por exem-
plo, os motivos que mantiveram o negro à parte na literatura implica analisar histori-
camente a postura da classe dominante em relação a esse grupo, desnudando um
perfil preconceituoso de uma sociedade inteira. A reivindicação literária torna-se um
questionamento social tendo em seu papel a desconstrução do discurso dominante
em detrimento à crítica tradicional.
Não é o que se verifica em muitas pesquisas acadêmicas sobre obras canôni-
cas, que fingem não perceber, por exemplo, o modo racista como o negro é tratado,
ou nem notam que a mulher é humilhada, não passando de coadjuvante na socieda-
de patriarcal. Aspectos como esses frequentemente tornam-se despercebidos pela
crítica, que não ousa questionar a idoneidade de seus escolhidos, ocultando fatores
que, em uma concepção contemporânea (inclusive Ocidental), são dignas de repúdio.
Qualquer autor contemporâneo que tratasse o negro da mesma forma como a litera-
tura clássica o tratou, estaria fadado ao desprezo e ao esquecimento, sem dizer das
implicações judiciais no que tange às leis contra ao preconceito e ao sectarismo.
Nesse sentido, Roberto Reis aponta a necessidade de se aplicar no cânone o olhar
crítico aplicado ao social:
15 DUARTE, Constância Lima. Estudos de mulher e literatura: história e cânone literário. In: ANAISDO VI SEMINÁRIO NACIONAL MULHER E LITERATURA, 1996.
25
[u]ma indagação do cânon tampouco deve ser apartada de toda umatendência, nesta época tida por pós-moderna, de colocar entre parên-teses alguns dos alicerces da cultura ocidental: a metafísica, o racio-nalismo, o humanismo, o logocentrismo, o falocentrismo, o patriarca-lismo, o etnocentrismo, o capitalismo, o colonialismo, o imperialismo,a hegemonia burguesa, o arianismo, o racismo, a homofobia, os mi-tos do Estado, da objetividade, da ciência, do progresso, da tecnolo-gia, a moral judaico-cristã, para listar os mais relevantes. Todos estessaberes serviram para assegurar a dominação do Ocidente, do bran-co, do homem, das classes privilegiadas sobre outras culturas, etni-as, grupos sociais, sexualidades16.
A mesma reivindicação aplicada no meio social também se estendeu ao meio
literário, no qual as minorias exigem seu espaço. Para essa abertura ocorrer na litera-
tura, o discurso literário teria que se adaptar e abrir mão de seu discurso elitizado no
seu status de canonizado, para incluir o discurso das minorias, que inegavelmente
fazem parte da mesma cultura. Se não é possível tocar em obras e autores sacraliza-
dos pelo cânone, talvez seja possível torná-los um pouco mais imparcial de agora em
diante, já que o passado se revelou bastante falho nesse sentido.
1.2 O cânone literário brasileiro e os momentos de formação
O autor e seus contemporâneos veem, compreendem e julgam, aci-ma de tudo, o que está mais perto de sua atualidade presente. O au-tor é um prisioneiro de sua época, de sua contemporaneidade. Ostempos que lhe sucedem o libertam dessa prisão e a ciência literáriatem vocação de contribuir para essa libertação.
(Estética da criação verbal, Mikhail Mikhailovith Bakhtin)
16 REIS, Roberto. Cânon. In: JOBIM, José Luis (Org.). Palavras da crítica. 1992. p. 75.
26
Questionamentos similares àqueles empregados para uma avaliação da cons-
tituição do cânone mundial também se aplicam a uma revisão do cânone literário bra-
sileiro. A compreensão dos critérios que determinaram os eleitos no Brasil, além de
uma compreensão histórica da literatura nacional, assume também uma conotação
crítica ao se discutirem seus valores de escolha. Como fundamento teórico desta
pesquisa e, por que não dizer fundamento histórico, faz-se uma análise de alguns
momentos da formação literária nacional, apontando fatores que legitimaram certos
escritores em detrimento de outros que não se fizeram presentes. O que se percebe,
nesse estudo, é que um grupo específico, dotado de poder, ora político, ora intelectu-
al, determinou os critérios de escolha do cânone e, inevitavelmente, procurou atender
aos seus interesses e aos da classe que representava.
A análise aqui encenada não tem a pretensão de revisar toda a literatura brasi-
leira, uma vez que grandes críticos como Antonio Candido e Sílvio Romero, por
exemplo, dedicaram décadas de estudo nesse sentido. Além disso, não se pretende
fazer uma revisão completa de todos os livros eleitos pelo cânone, nem mesmo ela-
borar uma lista exaustiva de autores considerados prediletos. O que se propõe, en-
tão, é a busca de elementos e/ou de critérios que determinaram as escolhas das
obras canonizadas. Nesse processo, toma-se por base a história nos padrões de pa-
ralelismo com os momentos literários e, logicamente, seus fatores de influência. Para
fins de interesse desta pesquisa, o período literário analisado se estende e se limita
às duas primeiras décadas do século XX, no limear da influência acadêmica e dos
movimentos de modernidade.
O questionamento de tudo parte da discussão básica de quando começou a
literatura brasileira. Para muitos críticos e estudiosos, o debate sobre esse pressu-
posto já é merecedor de inúmeras dissertações, já que não existe um consenso sobre
a data exata. As abordagens a esse propósito tomam por base autores como Antonio
Candido e Sílvio Romero citados anteriormente, bem como José Verissimo, Ronald
de Carvalho, Afrânio Coutinho e Eduardo Portella. Entretanto, apesar da relevância
dos nomes citados, o cânone não se curva diante de ninguém, e o que ficou para a
posteridade é o que se tem para analisar.
Como quer que seja, o ano de 1500 é considerado o marco do início da histó-
ria brasileira, quando os primeiros portugueses vieram para o novo mundo, coincidin-
do também com os primeiros registros escritos, alguns deles eternizados pelo câno-
ne. Por mais que os índios existissem no Brasil antes disso, consagrando-se como
27
habitantes originais, a ausência de uma linguagem escrita os deixava à parte do câ-
none. Nesse sentido, o ponto de partida estaria nos textos dos navegantes, coloniza-
dores e jesuítas, que desembarcavam em solo nacional. Aquilo que o cânone consa-
grou categoricamente está mantido, e o que é mais importante nesta pesquisa é o
porquê das escolhas feitas.
Nos primeiros cem anos da história brasileira, o que se tem percebido são
poucos escritos e, como se não bastasse isso, eram produzidos sem intenção literá-
ria. A precariedade da população estabelecida e a ausência de um sistema universi-
tário revelam claramente o motivo. Não havia literatura porque não havia pessoas
aptas a escrever nem a ler. Compreensível em um processo de colonização, o primei-
ro século da literatura no Brasil teve como base os registros informativos como cartas
e relatórios. O maior exemplo disso foi A carta, de Pero Vaz de Caminha, escrivão da
esquadra portuguesa, que redigiu ao rei D. Manuel em 1500 para prestar contas so-
bre a descoberta. A famosa carta não foi produzida com fins literários, tanto que ela
ficou inédita até 1817. As razões de seu conteúdo ser preservado até hoje repousam
no fato de ela atender aos interesses da coroa portuguesa na busca de informações
sobre o recém-descoberto e a importância histórica que ela assumiu posteriormente.
Se algum marinheiro da mesma esquadra surpreendentemente tivesse a habilidade
de escrita e elaborasse uma carta a sua amada ou a algum familiar português, com
inegável qualidade literária, estética requintada e com elementos que despertassem a
catarse, esta se perdeu para sempre.
Partindo desse momento histórico até boa parte do Brasil colônia, as influên-
cias e os interesses de Portugal ficaram evidenciados nos escritos brasileiros, em
uma relação de poder que fez o colonizador impor suas ideologias sobre o coloniza-
do. Nesse sentido, conforme argumenta Antonio Candido,
[h]istoricamente considerado, o problema da ocorrência de uma lite-ratura no Brasil se apresenta ligado de modo indissolúvel ao do ajus-tamento de uma tradição literária já provada há séculos – a portu-guesa – às novas condições de vida no trópico. Os homens que es-crevem aqui durante todo o período colonial são, ou formados emPortugal, ou formados à portuguesa, iniciando-se no uso de instru-mentos expressivos conforme os moldes da mãe-pátria. A sua ativi-dade intelectual ou se destina a um público português, quando de-sinteressada, ou é ditada por necessidades práticas (administrativas,religiosas etc). É preciso chegar ao século XIX para encontrar os
28
primeiros escritores formados aqui e destinando a sua obra ao ma-gro público local17.
Qualquer manifestação cujo conteúdo se colocasse contrário aos interesses
dominantes portugueses desse período era abafada. Afora a questão geográfica, o
que havia, no Brasil, era portugueses escrevendo nos moldes de aceitação e neces-
sidades de seu país, no caso, Portugal. Isso evidencia uma ausência de tradição lite-
rária brasileira e o motivo da discussão que permeia o início daquilo que se compre-
ende como literatura realmente brasileira.
No que se refere aos jesuítas como José de Anchieta, Padre Manuel da Nó-
brega e, posteriormente, Padre Antonio Vieira, seus textos estavam vinculados à ca-
tequese e foram preservados devido à forte ligação entre a igreja e a coroa e, ainda,
pelo caráter de oratória estrategicamente bem aceita por um público com limitações
de leitura. A literatura era um mero pretexto em relação ao real objetivo religioso, ten-
do, na catequização dos índios e na manutenção do catolicismo dos colonizadores,
um interesse não somente da igreja, mas também de Portugal na constituição de um
Brasil submisso à mesma fé. Por meio da catequização, incutia-se na mente do cate-
quizado normas de moral e de conduta que o mantinham, por motivos religiosos, fa-
cilmente susceptível à dominação e aos interesses portugueses. Nesses modelos, “a
cerimônia religiosa, a comemoração pública foram ocasião para se formarem os pú-
blicos mais duradouros em nossa literatura colonial, dominada pelo sermão e pelo
recitativo”18.
Outro elemento que contribui para a eleição de obras canônicas nesse período
colonial foi o poder exercido pelos grupos alfabetizados. Os textos escritos nos pri-
meiros séculos do Brasil tinham um número restrito de leitores, os quais estavam as-
sociados à elite e à classe dominante. Partícipes dessa mesma associação se fazem
os escritores que exerciam atividades de relevo na precária sociedade da época, en-
contrando na literatura um “hobby” na explanação de temas afins aos grupos que
conjecturavam:
17 CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos sobre teoria e história literária. 1985. p.100.18 Ibidem. p. 87.
29
[q]uando consideramos a literatura no Brasil, vemos que a sua orien-tação dependeu em parte dos públicos disponíveis nas várias fases,a começar pelos catecúmenos, estímulo dos autos de Anchieta, aeles ajustados e sobre eles atuando como lição de vida e concepçãodo mundo. Vemos em seguida que durante cerca de dois séculos,pouco mais ou menos, os públicos normais da literatura foram aquios auditórios – de igreja, academia, comemoração. O escritor nãoexistia enquanto papel social definido; vicejava como atividade mar-ginal de outras, mais requeridas pela sociedade pouco diferenciada:sacerdote, jurista, administrador19.
Na sequência do curso da histórica, no período sistematizado como arcadis-
mo, percebe-se uma maior valorização de formas consagradas de escrita, retoman-
do-se o modelo clássico renascentista, tendo como base de referência escritores por-
tugueses. Os autores brasileiros canonizados nesse período, além de atenderem a
padrões estéticos clássicos como pressuposto de eleição, precisavam ainda estar em
comunhão com as ideologias políticas que envolveram a Inconfidência Mineira. Os
autores que se afastavam disso, inevitavelmente, eram abolidos do cânone nacional.
Os nomes que permaneceram na lista de eleitos, como Claudio Manoel da Costa,
Tomás Antonio Gonzaga, Silva Alvarenga e Alvarenga Peixoto, estavam ligados ao
grupo mineiro e às suas ideologias políticas.
Esses escritores, incentivados pelo Iluminismo e seus ideais de liberdade,
igualdade e fraternidade, encontram, no arcadismo, a manifestação de uma ideologia
e, na Inconfidência, um engajamento político em prol da libertação. Aliar-se a esses
fatores significava assegurar espaço no cânone e no gosto dos leitores da época.
Nesse sentido, complementa Candido:
[a]ssim tocamos no principal elemento com que se integram aqui, aprincípio, a sua consciência grupal e o seu conceito social: o nati-vismo, logo tornado em nacionalismo, manifestado nos escritos e emtoda a sorte de associações político-culturais que reuniram sábios,poetas, oradores e, ao contrário das velhas Academias, os encami-nharam para a ação sobre a sociedade, abrindo-se para o exteriorpor meio da paixão libertária, mesmo quando fechadas sobre simesmas pelo esoterismo maçônico. Esta literatura militante chegouao grande público como sermão, artigo, panfleto, ode cívica; e ogrande público aprendeu a esperar dos intelectuais palavras de or-
19 Ibidem. p. 86.
30
dem ou incentivo, com referência aos problemas da jovem naçãoque surgia20.
O discurso literário foi legitimado pelos ideais de libertação pré-independência
e nacionalista, assegurados na aceitação que o tema representava para a elite finan-
ceira e intelectual de Minas Gerais. Na contramão da proposta Iluminista de igualda-
de, qualquer autor que não se adaptasse a tal contexto estava fadado ao esqueci-
mento em um processo muitas vezes alheio a questões de estéticas e de qualidade
literária.
Dentre os muitos elementos ignorados pelos interesses estipulados pelo câ-
none, provavelmente, hoje, quem mais clame e reclame por valorização, são os ne-
gros. Como indivíduos pertencentes à história brasileira, eles foram relegados à con-
dição de escravos, serviçais dos detentores do poder e, consequentemente, sua voz
não encontrava espaço na sociedade. No mesmo sentido, o cânone e seus formado-
res se responsabilizaram por silenciá-los também no meio literário, revelando uma
forma de pensar que, associada ao contexto histórico, afastava-os de qualquer abor-
dagem, tema ou função que não fosse ligada ao seu trabalho como escravo. Como
classe inferior, mais animal do que humana, não havia lugar, nem mesmo interesse
no tema negro, tampouco a ínfima possibilidade de ele postular como escritor.
Com a independência de 1822, o pensamento que imperava consistia na bus-
ca de uma identidade nacional afastada de Portugal e dotada de autonomia cultural.
O diferencial de uma consciência nacionalista estava na “cor local”, no ambiente tro-
pical e na natureza, e estes passam a ser os pressupostos de canonização literária.
Segundo Antonio Candido, os discursos de independência, carregados de emoção,
casaram-se bem com o romantismo no que tange ao sentimentalismo que envolveu o
nacionalismo do período:
o escritor brasileiro guardou sempre algo daquela vocação patriótico-sentimental, com que justificou a princípio a sua posição na socieda-de do país autonomista, e logo depois independente; o público, doseu lado, sempre tendeu a exigi-la como critério de aceitação e re-conhecimento do escritor. Ainda hoje, a cor local, a exibição afetiva,o pitoresco descritivo e a eloquência são requisitos mais ou menosprementes, mostrando que o homem de letras foi aceito como cida-
20 Ibidem. p. 87-88.
31
dão, disposto a falar aos grupos; e como amante da terra, pronto acelebrá-la com arroubo, para edificação de quantos, mesmo sem oler, estavam dispostos a ouvi-lo21.
Os temas voltados à natureza e à nova nação estavam na ordem do dia para
aqueles que desejavam reconhecimento e aspiravam, consequentemente, a um lugar
no cânone e na aceitação dos leitores do Brasil dito independente. O espírito nacio-
nalista projetava em seu imaginário os patamares de grandiosidade que o futuro re-
servava à nova nação, e a exaltação das exóticas belezas naturais transfigurava essa
grandiosidade para a literatura. A autonomia de uma literatura afastada de Portugal
estava associada e, em termos de interesse para o cânone, subordinada à autonomia
política do Brasil.
Como a busca por uma identidade nacional demandava uma consciência his-
tórica, o índio foi eleito como símbolo da memória nacional, idealizado nos padrões
canônicos vigentes e posto como herói segundo os moldes do medievalismo importa-
do. A temática indianista, como discurso de independência política e cultural, definiu
critérios canônicos, que, por sua vez, validaram autores como Basílio da Gama e
Santa Rita Durão, situados entre o arcadismo e o romantismo (mais neste último caso
do que no outro), bem como os românticos Gonçalves Dias e Gonçalves de Maga-
lhães.
Os critérios de canonização literária que envolvem o período da oficialização
do Brasil como país livre passam pela necessidade “da literatura se haver incorpora-
do ao civismo da Independência e ter-se ajustado a públicos mais amplos do que os
habilitados para a leitura compreensiva”, angariando, assim, a “aceitação pelas insti-
tuições governamentais, com a decorrente dependência em relação às ideologias
dominantes”22. Os autores que aceitaram os critérios impostos pelo cânone e pela
classe dominante estavam legitimados e, acima de tudo, tinham o ofício de escritor
oficializado:
[a] sua função consistiu, de um lado, em acolher a atividade literáriacomo função digna; de outro, a podar as suas demasias, pela pa-dronização imposta ao comportamento do escritor, na medida em
21 Ibidem. p. 90.22 Ibidem. p. 91.
32
que era funcionário, pensionado, agraciado, apoiado de qualquermodo. Houve, neste sentido, um mecenato por meio da prebenda edo favor imperial, que vinculavam as letras (os literatos à administra-ção e à política, e que se legitima na medida em que o Estado reco-nhecia, desta forma (confirmando-o junto ao público), o papel cívicoe construtivo que o escritor atribuía a si próprio como justificativa dasua atividade23.
Outro fator que elegia obras nesse período foi a abordagem de uma temática
burguesa. Elementos como o dinheiro, o belo, o amor e o casamento estavam pre-
sentes nos romances de folhetins, consoantes com o pensamento burguês desenvol-
vido após a independência do Brasil. Eram produções feitas por burgueses, com te-
mas burgueses direcionados à burguesia e a seus filhos, os quais eram frutos de um
grupo elitizado pelo poder econômico e dotados de habilidade de leitura, em detri-
mento a um país pobre, sem língua definida e composta de negros e mestiços acultu-
rados pela opressão e pela escravidão. As características dos personagens apresen-
tados em tais obras, bem como os temas e os direcionamentos que a literatura apon-
tava, estavam ligadas à estrutura burguesa, ao se valerem do heroísmo atribuído ex-
clusivamente aos brancos valorosos em suas atitudes, os quais encontraram no naci-
onalismo ou no amor o seu lugar na admiração dos leitores da época. Associado ao
perfil social emergente, o caráter representativo da obra revelava a aceitação nos
moldes impostos pela classe dominante e, desse modo, sua canonização.
É válido de ênfase que esse período literário que se sucedeu à independência
assimilou os valores nacionalistas não somente nos temas, mas também na compre-
ensão da necessidade de criação de uma literatura própria, com valores culturais
afastados da Europa e, principalmente, de Portugal. Segundo Candido, os esforços
direcionados nesse sentido puderam ser percebidos como tentativa de criação do
primeiro cânone literário brasileiro:
[p]rimeiro, o panorama geral, o “bosquejo”, para traçar rapidamenteo passado literário; ao lado dele, a antologia dos poucos textos dis-poníveis, o “florilégio”, ou “parnaso”. Em seguida, a concentração emcada autor, antes referido rapidamente no panorama: são as biogra-fias literárias, reunidas em “galerias”, em “pantheons”; ao lado disso,
23 Ibidem. p. 93.
33
um incremento de interesse pelos textos, que se desejam mais com-pletos; são as edições, reedições, acompanhadas geralmente de no-tas explicativas e informação biográfica. Depois, a tentativa de ela-borar a história, o livro documentário, construído sobre os elementoscitados24.
O que se percebe, é o encontro da sociedade com a busca de sua história, de
suas ideologias, com a libertação e a independência; e da literatura com sua afirma-
ção autônoma da Europa, possuidora também de sua própria história e de um cânone
nacional. Conforme argumentos de Regina Zilberman,
[n]o contexto brasileiro posterior a 1822, torna-se compreensível porque os críticos nacionais, sacudidos pelos ideais românticos, tenhamtomado a si a missão de fomentar o debate em torno da existência econstituição da literatura. Tratava-se, então, de encontrar mecanis-mos capazes de legitimar a recém implantada nação, e a literaturaoferecia-se como uma boa alternativa para a consecução desse ob-jetivo. Declarar a diferenciação da literatura produzida no Brasil emrelação à produção poética da ex-metrópole foi a fórmula encontradapelos intelectuais do país para contribuir com a tarefa de consolida-ção política da nação25.
Efervescente em seu momento embrionário, o cânone literário brasileiro, preo-
cupado com sua afirmação na busca de sua própria história, sucumbiu, desde cedo,
aos interesses da classe dominante na eleição de temas e na exclusão de grupos
que não fossem coniventes com suas ideologias. Os personagens brancos e os he-
róis burgueses da independência imperavam as narrativas românticas, afastando de-
las e, logicamente, do cânone, grupos consideradas inferiores como o negro.
Ao que parece, e o cânone serve de base para essa confirmação, é que, no
período histórico que envolve a Independência do Brasil até a Proclamação da Repú-
blica, o negro, como tema na literatura, foi estrategicamente esquecido. A partir de
meados do século XIX, o país, como última nação a libertar os escravos, sofreu forte
24 CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 1981. p. 348.25 ZILBERMAN, Regina. O berço do cânone. 1998. p. 9.
34
pressão internacional nesse sentido. O mundo ocidental já havia acabado com a es-
cravidão, enquanto o Brasil adiava essa decisão. Para o cânone, que estava tendo a
sua base de formação crítica naquele momento, o tema negro deveria ficar afastado
da produção literária a contento da classe dominante que insistia na escravidão.
Mais para o fim do período, quase beirando a efetivação da Lei Áurea e a Pro-
clamação da República, alguns textos com tom abolicionista foram validados. Tais
produções estavam em comunhão com as ideologias importadas da Europa e conlui-
ados com a burguesia brasileira que finalmente cedia às pressões internacionais de
libertação, camufladas no surgimento do capitalismo que via em um trabalhador assa-
lariado uma forma de mão-de-obra mais barata do que o próprio escravo. As poesias
de autores como Castro Alves – que, mesmo distante da causa negra, foi visto como
grandiloquente abolicionista – foram acolhidas pelo cânone no interesse da classe
dominante que aceitava discutir a questão da libertação dos escravos naquele mo-
mento histórico. Em contrapartida, autores como Luiz Gama, que fazia literatura ne-
gra para negros, não encontrou espaço no cânone. Castro Alves foi eleito pelo câno-
ne e, também, chamado de “O poeta dos escravos”, enquanto Luiz Gama foi fadado
ao esquecimento. Um trouxe o tema que servia à classe dominante, o outro era uma
voz inconveniente que deveria ser silenciada.
Impulsionado pelos rumos da história, o pensamento nacionalista – formulado,
em particular, durante romantismo – passa por um processo de distanciamento da
ideologia colonial, na tentativa de colocar a literatura produzida no Brasil no âmbito
universal. Essa literatura passa, então, a ser vinculada a outras áreas do conheci-
mento, tendo como base a ciência, o evolucionismo, o determinismo e o positivismo.
A busca de uma identidade nacional, idealizada e cantada pelos românticos, daria
espaço a uma revisão canônica inspirada no realismo e no naturalismo. Nesse senti-
do, conforme Afrânio Coutinho,
[e]m 1880, o Romantismo, ou a “escola subjetiva”, estava morto.Começava-se uma nova era, dominada pelo espírito filosófico, cientí-fico, de cunho materialista, naturalista, determinista. Por sua vez, oBrasil entrara num momento de grandes transformações sociais eeconômicas. Era a própria estrutura da sociedade brasileira que mu-dara, dando início à industrialização, por sobre a tradicional compo-sição agrária, latifundiária, aristocrática26.
26 COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. 1969. p. 20.
35
Essas novas ideias se originaram na Europa e, não obstante a xenofobia per-
cebida nos períodos anteriores, foram bem aceitas no Brasil, justificadas pela postura
cosmopolita que a república recém fundada exigia. Como alega Antonio Candido,
[s]e fosse possível estabelecer uma lei de evolução de nossa vidaespiritual, poderíamos talvez dizer que toda ela se rege pela dialéticado localismo e do cosmopolitismo, manifestada pelos modos maisdiversos. Ora a afirmação premeditada e por vezes violenta do naci-onalismo literário, com veleidades de criar até uma língua diversa,ora o declarado conformismo, a imitação consciente dos padrões eu-ropeus27.
O Rio de Janeiro, como centro do governo republicano, também era o núcleo
intelectual no final do século XIX, simbolizando o universalismo da metrópole e suas
intrínsecas ligações com o evoluído mundo europeu. Em contrapartida, inúmeros
problemas sociais envolviam a então capital nacional. O principal talvez tenha sido o
enorme contingente de pessoas menos favorecidas que eram margeadas, apinhan-
do-se em favelas compostas por pobres, imigrantes e negros recém-libertos. Assim,
na literatura, os critérios canônicos seguiam as ideologias do momento, validando
obras e autores que enaltecessem os novos pensamentos científicos vindos da Euro-
pa e dando menos ênfase para as tendências nacionalistas que ficaram remidas ao
Brasil Império.
Nesse sentido, alguns autores foram estratégicos em suas posturas e soube-
ram como lidar com as questões ideológicas que envolviam as escolhas canônicas. O
melhor exemplo disso parece ter sido Machado de Assis, que se manteve resoluto na
abordagem de temas sociais e, principalmente, no que se referia ao negro. Isso por-
que direcionou a sua produção mais reconhecida pela crítica para os valores univer-
sais que envolviam a sociedade como um todo, ao abordar situações e temas ligados
ao adultério, ao pessimismo e à ganância. Valendo-se de uma análise psicológica,
Machado conseguiu, através de seus livros, atingir o universalismo comum a todas as
27 CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos sobre teoria e história literária. 1985. p.57.
36
classes sem a preocupação de levar em conta uma temática social específica, o que
lhe garantiu, assim, a sua idoneidade canônica.
No âmbito do naturalismo brasileiro, autores como Adolfo Caminha, Aluísio
Azevedo e Júlio Ribeiro, só para citar alguns, levaram ao extremo as considerações
científicas, baseando suas obras em leis biológicas, sociais e geográficas. O pensa-
mento que inspirava tais autores era oriundo do escritor francês Émile Zola, que en-
contrava espaço no Brasil republicano aberto às ideias europeias.
Por possuir um caráter científico espelhado no modelo europeu, o naturalismo
foi legitimado pelo cânone na medida em que suas temáticas de raça e meio privile-
giavam a classe branca como superior. Assim, o cânone, por meio do naturalismo,
aceitava o tema negro, desde que este fosse representado por meio de característi-
cas negativas, sendo, por isso, intelectual e moralmente inferiorizado pelo aval da
ciência. O que se percebe nesse período que envolve o final do século XIX, enquanto
a escravidão estava em vias de ser abolida no continente americano, é a ciência que
surgiu para validar a dominação racial, ao propor que caucasoides fossem superiores
às pessoas não brancas, em especial aos africanos28.
As mesmas influências positivistas foram aplicadas na poesia por meio do
parnasianismo, que, em detrimento do conteúdo, valorizava, antes de tudo, a perfei-
ção formal. Amplamente aceita, essa nova escola literária era meramente descritiva,
mantendo-se distante de causas sociais, limitando-se ao extremo cuidado com as
formas perfeitas no mais alto padrão da língua portuguesa. A pomposidade ligada ao
parnasianismo definiu um padrão canônico de status e elitização da literatura permiti-
da apenas a um seleto grupo de poetas com relevância social e política, como é o
caso de Olavo Bilac, Raimundo Corrêa e Alberto de Oliveira. Essa atitude revela, con-
forme Luís Augusto Fischer, que tais escritores queriam “afastar a aura de enjeitados
e marginais”. Por isso, complementa ele, não admira que, durante o parnasianismo, o
“assunto menos presente (quase completamente ausente, para ser exato) seja exa-
tamente o cotidiano carioca e brasileiro”29, caracterizado pelos miseráveis “desmere-
cedores” da arte.
A convergência temporal em que se encontraram o realismo, o naturalismo e o
parnasianismo permitiu que os critérios canônicos fossem institucionalizados por
meio da criação da Academia Brasileira de Letras, fundada, não por acaso, nos mol-
28 TELLES, Edward Eric. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. 2003. p. 43.29 FISCHER, Luís Augusto. Parnasianismo brasileiro: entre ressonância e dissonância. 2003. p.87-88.
37
des franceses. Nesse momento, as referências canônicas ligavam-se ao academi-
cismo, tendo, no estilo literário de seus fundadores, o padrão de “boa literatura”. Os
acadêmicos defendiam o poder político da república; em contrapartida, recebiam o
amparo e a proteção do Estado, além do reconhecimento de sua existência como
instituição. Antonio Candido, a propósito, comenta que a literatura “havia atingido nos
dois primeiros decênios extremos verdadeiramente lamentáveis de dependência ideo-
lógica, tornando-se praticamente complemento da vida mundana e de banais padrões
acadêmicos”30.
O poder de legitimação que a academia passa a deter é efetivado nas esco-
lhas que acabam por marginalizar uma enorme gama de autores e obras que não
compactuavam com as ideologias e a postura social ostentada por seus membros.
Dentre os excluídos do período, é válida a referência a Cruz e Souza, que, por mais
que tivesse uma produção preocupada com os padrões defendidos pelos parnasia-
nos, não compartilhava dos temas objetivos do positivismo, ao escrever sobre tópicos
simbolistas e o mundo espiritual. Outro fator que contava contra ele consistia no fato
de ser negro, não um simples negro, mas um negro vindo do sul do Brasil. Em suma,
era um negro catarinense, escrevendo temas espirituais contra a ideologia branca do
Rio de Janeiro, centro cultural que detinha as rédeas do cânone, baseado na realida-
de e apadrinhados pela república. Naquele momento, Cruz e Souza não tinha espaço
para circular entre os eleitos.
As influências acadêmicas na eleição canônica se estendem às duas primeiras
décadas do século XX e, calcadas nos critérios realistas e parnasianos, acabam por
autenticar as obras do período pré-moderno. Autores como Euclides da Cunha e
Graça Aranha conseguem facilmente espaço literário pela filiação na academia. Ou-
tros como Lima Barreto sofrem grande preconceito pelos temas que envolviam ele-
mentos marginalizados como o negro e o mulato.
A abolição da escravatura, como geralmente se concebe, acabou oficialmente
com a escravidão, mas não com o racismo instituído. Assuntos ligados aos negros
eram vistos com desdém pela sociedade burguesa que sentia um incomodo acentua-
do pelo fato de o Brasil ser composto por uma maioria negra. A novidade era que o
elemento negro, percebido como inferiorizado, agora era validado pelas teorias cientí-
30 CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos sobre teoria e história literária. 1985. p.97.
38
ficas oriundas da Europa, aceitas pela classe dominante e legitimadas na literatura
pelo cânone acadêmico.
Empolgados pelas influências científicas europeias, alguns autores foram fieis
às teorias científicas, ao se utilizarem das ideologias de superioridade branca como
estratégia para legitimação de sua produção literária. Foi o caso de Monteiro Lobato,
que representou, em algumas de suas obras, o mulato como símbolo do atraso brasi-
leiro bem como descreveu a necessidade de um processo de “branqueamento” da
população por meio da vinda de imigrantes europeus. Ainda no caso de Lobato, a
aplicação das teorias da supremacia branca foi alvo de sua produção, tendo o seu
ápice no seu único romance, O presidente negro, que, com base na ciência e na
inteligência ariana, contribuiria para a promoção da eliminação da raça negra.
Tais autores, surgidos no final do século XIX e início do XX, conseguiram um
espaço entre os eleitos do cânone. Isso se deu não somente em virtude de sua capa-
cidade de criação literária, mas também devido à sua filiação aos grupos e ao modelo
acadêmico, os quais tinham certa predileção pelos assuntos que gravitassem em tor-
no da servidão e fossem ajustados à ideologia de base científica sustentada pela
classe superior branca e burguesa. A intolerância aos negros, o desprezo e o precon-
ceito que resultaram em sua marginalização estavam justificados na ciência, aclama-
dos pelo Estado e averbados pelo cânone e pela academia.
Tendo em vista que os padrões canônicos são tendenciosos e, conforme ana-
lisado, favorecem a classe detentora de poder, tornam-se questionáveis seus critérios
de seleção e, consequentemente, de exclusão. Para esta pesquisa, portanto, uma
nova análise da história literária se faz necessária, com ênfase nos excluídos e mar-
ginalizados, que aqui serão representados por meio da figura do negro.
1.3 A presença do negro na literatura brasileira: um olhar sobre a exclusão
As meninas admiraram-se daquilo. – Nunca viu boneca? – Boneca? –repetiu Negrinha. – Chama-se boneca? Riram-se as fidalgas de tantaingenuidade.
(Negrinha, Monteiro Lobato)
39
Uma revisão do cânone na busca do elemento negro permite uma concepção
de sua aceitação como tema e, acima de tudo, viabiliza uma avaliação do modo como
ele é tratado. Nesse sentido, em relação a obras e a autores já canonizados, faz-se
necessária a realização de uma análise que privilegie circunstâncias que gerem ex-
clusão e preconceito do negro como tema literário. Assim, é importante um estudo
baseado nos elementos que atentem para a marginalização do negro, de modo que
estejam afinados à proposta ideológica canônica bem como condizentes às escolhas
concebidas pelos próprios autores na produção de seus textos diante de suas postu-
ras em relação a esse grupo.
Dentro da enorme quantidade de autores negros e tantos outros que têm
abordado o assunto e que foram excluídos do cânone, fazem-se indispensáveis aná-
lises com base na estética de suas produções e na possibilidade de uma justa valida-
ção canônica. Entretanto, este não é o objetivo da presente pesquisa, já que o que se
propõe para fins de estudo é aquilo que o cânone eternizou e, nesse conjunto de elei-
tos, privilegiam-se algumas obras e determinados autores que optaram pelo negro
como temática. Isso significa que, neste subcapítulo, não são avaliados todos os tex-
tos que dedicam atenção ao negro, nem a maioria deles, mas alguns exemplos que
visam a demonstrar essa violência contra uma etnia ainda desprezada pela cor.
O que se percebe, ao se aprofundar no estudo do tema, é que o negro apare-
ce em quase todos os momentos da literatura, mas raramente a ele é dado voz, es-
paço ou permissão para que se posicione. O olhar dos escritores é dotado de um cer-
to distanciamento, de forma que o negro surge como mero coadjuvante, uma espécie
de “outro”, um deslocado no mundo dito “correto” dos brancos, mais parte do cenário
do que propriamente personagem. Fatores ideológicos e históricos estão envolvidos
nesse processo de exclusão que, além do contexto literário, permeia ainda o meio
social e político. Como afirma Proença Filho, “[a] presença do negro na literatura bra-
sileira não escapa ao tratamento marginalizador que, desde as instâncias fundadoras,
marca a etnia no processo de construção de nossa sociedade”31. Até 1888, a justifica-
tiva de exclusão estava na escravidão e nas heranças históricas que esse período
carregava. Depois dessa data, a exclusão se baseava na ideologia da superioridade
branca importada da ciência europeia e no preconceito em relação ao negro livre que
estava longe de fazer parte da sociedade brasileira. De qualquer maneira, a liberdade
nunca fora plena.
31 PROENÇA FILHO, Domício. A trajetória do negro na literatura brasileira. 2004. p. 2.
40
Desse modo, a literatura criou um negro estereotipado, ligado à escravidão,
eternamente servindo ao branco, limitado intelectualmente e tendo na sua força física
as características de selvagem. As marcas de inferioridade fazem parte das descri-
ções, e a imposição da cultura branca sufoca a cultura africana que fica esquecida na
literatura. Essa postura representa o desprezo, ou pior, a negação de uma fatia re-
presentativa de quase metade da população brasileira, uma nação negra em sua boa
parte, mas unicamente branca na sua literatura.
Praticamente inexpressivo antes do romantismo, a abordagem do tema negro
se mostra preconceituosa mais pela ausência do que pela presença, o que é facil-
mente compreendido pela carência de escritores e a associação com o grupo bur-
guês escravocrata dos poucos que existiam. Com o romantismo, a partir da metade
de 1800, percebe-se o personagem negro mais presente – mas não mais representa-
tivo – na literatura, sem ser realmente valorizado. Assim, ele era apenas um mero
tema do momento histórico, sempre escravo, nunca um ser humanizado e atuante.
Em José de Alencar, o índio foi apresentado nos moldes idealizantes do ro-
mantismo, que visava à busca do resgate nacionalista por meio de seu herói. Essa
visão sobre o índio, deturpada pelo medievalismo europeu, foi no mínimo privilegiada
em relação à visão de Alencar sobre o negro. Quanto a esse último, a rigor, sua pos-
tura foi diferente, relegando a ele a posição de escravo, inferior e conformado com
sua situação subalterna, devedor de gratidão aos seus donos bondosos. A visão da
superioridade branca, na obra desse escritor, parte não somente do personagem
branco, mas também do personagem negro, que se aceita na condição de serviçal
rebaixado. É justamente isso o que se percebe em o Tronco do ipê (1871) e Til
(1872), romances em que o negro assume uma espécie de conformismo harmônico
com seus senhores. Nesse sentido, conforme complementa Silviano Santiago,
não há necessidade de que haja poder coercitivo por parte do chefecontra as camadas que lhe são inferiores. Cada um sabe o lugar queocupa e que é certo, visto que as possibilidades de transferência, demobilidade, de ascensão, estão banidas do universo textual de Alen-car32.
32 SANTIAGO, Silviano. Liderança e hierarquia em Alencar. In: ____. Vale quanto pesa: ensaiossobre questões político-culturais. 1982. p. 105.
41
Como se não bastasse isso, as descrições alencarianas aplicadas ao negro
são claramente rápidas e econômicas em relação às descrições dos personagens
brancos. São, ainda, repletos de elementos zoomórficos, nos quais o negro é cons-
tantemente comparado a animais que expressam, em suas atitudes, falas e caracte-
rísticas físicas, a bestialidade inerente a uma raça inferior.
Alencar não foi despretensioso em sua literatura, e o que ele escreveu não foi
meramente um reflexo da sociedade escravocrata. Foi a sua visão com o seu pre-
conceito apoiado no cânone e confirmado no seu discurso aplicado em muitas cartas
– as quase esquecidas Cartas de Erasmo – direcionadas a Dom Pedro II no intuído
de favorecer a escravidão. Os argumentos do autor junto ao imperador incluíram a
necessidade de mão-de-obra, o perigo social que o negro livre representaria, o estra-
go racial que poderia ser causado com a miscigenação que o convívio do negro junto
ao branco traria e, valendo-se de sua retórica como escritor, apelou até mesmo para
a Bíblia para comprovar que existem raças superiores em relação a outras33. O curio-
so de tudo isso está no papel do cânone em estrategicamente esconder esses textos
durante quase um século e meio, sendo que a exemplar pesquisa de Tamis Parron
possibilitou o seu resgate em publicação datada de 2008 sob o titulo Cartas a favorda escravidão34.
Ainda no romantismo, outro destaque da presença negra na literatura está na
obra Escrava Isaura (1975), de Bernardo Guimarães. Por mais que o tema seja
abordado, o modo como a narrativa é conduzida pelo autor revela um forte pensa-
mento racista e uma exaltação da inferioridade do negro. Isso pode ser percebido
pelo personagem Isaura, que despertou comoção nos leitores da época diante do seu
sofrimento, por um simples fato: era uma escrava branca. Filha de uma mulata com
um branco, ela simbolizava o branqueamento do africano na proporção que adquiria
qualidades de superioridade em relação aos escravos negros, como beleza e inteli-
gência: “[d]eram-te uma educação, como não tiveram muitas ricas e ilustres damas
que eu conheço. És formosa, e tens uma cor linda, que ninguém dirá que gira em
tuas veias uma só gota de sangue africano”35.
33 PARRON, Tamis (Org.). Cartas a favor da escravidão. 2008.34 Cartas a favor da escravidão reúne uma série de sete textos políticos escritos entre 1867 e1868 por José de Alencar contra D. Pedro II, que dava sinais de abertura aos seus críticos estran-geiros. O propósito central da obra era a defesa política da escravidão brasileira, que vinha so-frendo intensa pressão internacional e doméstica após a abolição nos Estados Unidos (1865).Talvez por ter abordado um tema controverso para os padrões contemporâneos, as Cartas foramexcluídas das obras completas do autor.35 GUIMARÃES, Bernardo. Escrava Isaura. 1999. p. 12.
42
O negro era visto com desdém, dotado de qualidades negativas de maldade,
feiúra e ignorância que geraram uma espécie de caricatura padrão, a qual só poderia
ser quebrada pelo estereótipo de uma escrava branca. Como branca, ela estava des-
locada, e, para o público leitor, a senzala não era o seu lugar, já que era diferente de
uma negra genuína e, por isso mesmo, não obteria a sensibilidade dos leitores da
época. Mesmo assim, consciente de sua origem negra, é um personagem que se
mantém inferiorizada na forma de pensar, e o seu discurso continua sendo de escra-
vo submisso que sabe o seu “lugar”:
– Mas, senhora, apesar de tudo isso que sou eu mais do queuma simples escrava? Essa educação, que me deram e essa belezaque tanto me gabam, de que me servem?... São trastes de luxo co-locados na senzala do africano. A senzala nem por isso deixa de sero que é: uma senzala.
– Queixas-te de tua sorte, Isaura?
– Eu não, senhora, não tenho motivo... o que quero dizer comisto é que, apesar de todos esses dotes e vantagens, que me atribu-em, sei conhecer o meu lugar”36.
Como escrava privilegiada, merecedora da bondade dos senhores por sua cor,
o personagem efetiva-se como subordinada ao ter consciência da dívida de gratidão
que tinha com seus protetores. Assim, o distanciamento que Isaura tem das caracte-
rísticas africanas permitiu que ela assumisse a postura de heroína romântica com
direito inclusive ao happy-end romântico por meio da proposta de casamento do no-
bre branco, efetivando, com isso, o fim de suas heranças negras ao se tornar a dona
das terras onde nasceu. Nesse romance, outros personagens negros não são leva-
dos em conta nem é dada relevância a sua voz, muito menos à sua cultura que é fi-
nalmente apagada com a assimilação da cultura branca por Isaura.
Se o preconceito permitisse e o cânone aceitasse, Bernardo Guimarães pode-
ria ter escrito mais algumas páginas, nas quais Isaura comemora seu casamento com
seus irmãos negros em um terreiro de candomblé recém construído, enaltece sua
cultura cantando canções africanas há muito proibidas, e, como senhora, atribui liber-
36 Ibidem. p. 13.
43
dade a todos os escravos da fazenda como atitude exemplar para os proprietários
vizinhos. Entretanto, isso logicamente não aconteceu.
Em comunhão com as teorias científicas importadas da Europa, o naturalismo
apresenta a figura do negro de modo negativo, como é o caso da obra O cortiço(1890), de Aluísio Azevedo. Baseado no determinismo e no positivismo, os persona-
gens negros presentes nesse romance são percebidos ora dotados de vícios e atitu-
des degeneradas que acabam por contaminar a pureza da sociedade branca, ora
como eternos submissos à servidão.
As posturas assumidas pelo personagem Rita Baiana – apresentado como
erotizado, objeto de apelo sexual, imoral e amoral como uma raça inferior deveria ser
– demonstram a posição que o negro e o mulato tinham na hierarquia social da épo-
ca, como se observa nesta passagem: “[e]la saltou em meio da roda, com os braços
na cintura, rebolando as ilhargas e bamboleando a cabeça, ora para a esquerda, ora
para a direita, como numa sofreguidão de gozo carnal, num requebrado luxurioso que
a punha ofegante”37. Além disso, o personagem Jerônimo, português branco, digno
de boa moral e bons costumes, ao se envolver com Rita, acaba por adquirir aspectos
negativos, ao se contaminar pelos vícios do grupo degenerado do qual a mestiça faz
parte.
O outro destaque está no personagem Bertoleza, que, mesmo alforriado, nun-
ca atingiu a liberdade, sendo impiedosamente fiel ao descendente europeu João Ro-
mão. A sujeição envolve a entrega sexual e o trabalho físico condicionados em uma
relação de superioridade que o autor descreve, dentre outras características, pelo
fato de que “Bertoleza não queria sujeitar-se a negros e procurava instintivamente o
homem numa raça superior à sua”38. João Romão, como protótipo da raça superior,
explora Bertoleza até as últimas consequências, sem dividir com a ex-escrava qual-
quer fruto de sua ascensão social, apenas uma falsa valorização, que nada mais era
do que outra faceta da condição de exploração: “[o] que custava aquele homem con-
sentir com ela, uma vez por outra, se chegasse para junto dela? Todo dono, nos mo-
mentos de bom humor, afaga seu cão...”39.
No início do século XX, o escritor Graça Aranha, em sua obra Canaã (1902),
abordou a vinda do emigrante europeu e os processos de adaptação em solo brasilei-
ro. Conforme a República se efetivava, o questionamento que permeava os pensa-
37 AZEVEDO, Aluisio. O cortiço. p. 72-73.38 Idem. Ibidem. p. 18.39 Idem. Ibidem. p. 132.
44
mentos da elite brasileira estava no futuro da nação e na sua definição enquanto ra-
ça. No período imediatamente posterior à libertação dos escravos, tem-se a vinda de
imigrantes europeus como forma de suprir a necessidade de mão-de-obra e ainda
contribuir para o “branqueamento” da população, o que serviria para a elitização da
raça e para o apagamento dos vestígios africanos no Brasil. Segundo Moacyr Flores,
“[o] branqueamento passa a ser importante na escalada social no fim do século XIX,
não havendo lugar para o negro que continua[va] na base da pirâmide social”40.
Dentro de um contexto no qual a miscigenação era inevitável, Graça Aranha,
em seu livro Canaã, descreve a vinda de colonos alemães e suas inquietudes diante
da mistura das raças no cenário brasileiro. Pela origem europeia, os alemães são
apresentados como símbolo de superioridade, dotados de capacidades intelectuais
acentuadas e comprovadas pelas teorias científicas em vigor na época. Em contra-
partida, o negro e o mulato, no Brasil, são protótipos do atraso, tendo em sua nature-
za africana a limitação a uma sub-raça.
O pensamento do autor, que era um espelho do seu período histórico, trata da
miscigenação como algo positivo no tocante à grande quantidade de negros que gra-
dativamente seriam “branqueados”, enquanto que o lado negativo consistia no surgi-
mento de mulatos com inferioridade intelectual. Isso pode ser confirmado na fala do
personagem alemão Lentz, que transfigura o pensamento de superioridade racial do
europeu em relação ao africano:
[n]ão acredito que da fusão com espécies radicalmente incapazesresulte uma raça sobre que se possa desenvolver a civilização. Serásempre uma cultura inferior, civilização de mulatos, eternos escravosem revoltas e quedas. Enquanto não se eliminar a raça que é o pro-duto de tal fusão, a civilização será sempre um misterioso artifício,todos os minutos rotos pelo sensualismo, pela bestialidade e peloservilismo inato do negro41.
De qualquer maneira, a presença do negro, agora ex-escravo e, para tanto,
parte da sociedade brasileira, era vista como uma preocupação, um problema que o
imigrante branco poderia amenizar com a fusão das raças. A razão pela qual os ne-
gros foram trazidos para o Brasil já não havia mais, o que pressupõe não haver justi-
40 FLORES, Moacyr. O negro na dramaturgia brasileira, 1838/1888.1995. p. 10.41 ARANHA, Graça. Canaã. 1998. p. 35.
45
ficativas convincentes para que o negro existisse em outro lugar que não fosse a Áfri-
ca.
A chegada dos imigrantes alemães coincide com o fim do processo de liberta-
ção dos escravos. Nesse sentido, depreende-se da obra Canaã que dois grupos dis-
tintos estavam tentando angariar meios de serem introduzidos na sociedade brasilei-
ra. Por serem de etnia privilegiada, os colonos alemães receberam terras e apoio go-
vernamental, sendo prontamente reconhecidos como parte constituinte da sociedade
da época. Em contrapartida, o negro era liberto à deriva, sem qualquer preparo para
lidar com a liberdade, e sem nenhuma política de inserção que os amparasse.
O modo depreciativo como a obra trata o negro, além de percebido na inten-
ção de se eliminar tal etnia gradativamente, pode ser visto nas funções que ele exer-
cia no meio social. Embora livre, o negro sempre estava ligado a trabalhos subalter-
nos e de pouca expressão social, enquanto o mulato assumia cargos de maior relevo,
o que remete a uma simbologia de ascensão social impulsionada pelo processo de
branqueamento.
A obra destaca ainda a submissão do negro mesmo depois da abolição, quan-
do permaneceu na condição de inferiorizado, eternamente cativo, não sendo capaz
de lidar com a liberdade diante da precariedade das condições de vida que lhe eram
apresentadas e, por isso mesmo, sente inclusive saudades da época em que era es-
cravo:
[a]h! Tempo bom de fazenda! A gente trabalhava junto, quem apa-nhava café apanhava, quem debulhava milho debulhava, tudo deparceria, bandão de gente, mulatas, cafuzas... Que importava o fei-tor?... Nunca ninguém morreu de pancadas. Comida sempre havia, equando era sábado, véspera de domingo, ah! Meu sinhô, tambor ve-lho roncava até de madrugada42.
Conivente com as ideias apresentadas por Graça Aranha em Canaã, o seu
contemporâneo Monteiro Lobado explorou em muitos aspectos a questão do negro
na sociedade brasileira e o processo de mestiçagem que imperou na época. O mula-
to, fruto dessa miscigenação, será no conjunto da obra do autor alvo de destaque
como tema e problematização.
42 Idem. Ibidem. p. 17.
46
Pelo grande valor que Lobato tem junto ao cânone, seus livros são merecedo-
res de atenção nesta pesquisa, levando em conta o modo como o tema negro é
abordado pelo autor e as marcas preconceituosas que sua obra pode conter. A rele-
vância desse estudo se acentua na proporção que a abordagem literária, quando
apresentada de modo parcial, nega o direito à cidadania, ignorando a capacidade
intelectual de uma etnia inteira. Hierarquizado num degrau mais baixo, a voz do negro
é negada pela classe dominante que determina o pensamento norteador de várias
gerações de brancos em parceria com outros poderes, como o cânone, que, por ve-
zes, colabora com essa postura na literatura preconceituosa que consagra. Levando
em conta que tal produção divulga o saber, ajuda na formação de opiniões e, ainda,
apresenta a cultura de um povo na constituição de seu imaginário, as posturas pre-
conceituosas amparadas pelo cânone são, no mínimo, reflexos do preconceito exis-
tente no Brasil.
Nesse momento, os defensores do cânone vão se manifestar, argumentando
que o momento histórico permitia e aceitava tais concepções. Era comum pensar as-
sim, mas era racismo. Isso explica as causas do que foi feito naquele tempo, sem
apresentar uma justificativa para se ignorar esse fato no momento presente. Por mais
que tenha o amparo histórico, o modo como se apresenta o negro na literatura, na
maioria das vezes, é preconceituoso, e as escolhas canônicas revelam claramente tal
postura. Isso não pode ser negado, como também não pode ser negado ao pesqui-
sador contemporâneo o direito à exposição das parcialidades da literatura.
47
2 MONTEIRO LOBATO: BIOGRAFIA, BIBLIOGRAFIA E
POLÊMICAS
Quer tentar? insistiu ela. Contar-lhe-ei com a máxima fidelidade o quevai passar-se. De posse desse material, e depois de pessoalmentefazer vários cortes que o ajudem a formar ideia justa do ambiente fu-turo, atirar-se-á à tarefa. Desde já asseguro uma coisa: sairá novelaúnica no gênero. Ninguém lhe dará nenhuma importância no momen-to, julgando-a pura obra da imaginação fantasista. Mas um dia a hu-manidade se assanhará diante das previsões do escritor, e os cientis-tas quebrarão a cabeça no estudo de um caso, único no mundo, deprofecia integral e rigorosa até nos mínimos detalhes.
(O presidente negro, Monteiro Lobato)
2.1 A crítica literária lobatiana: o que se ganha e o que se perde
Toda literatura, todo romance, todo poema, por mais impessoal queprocure ser, não passa de um julgamento. A ideia moral, que dominamesmo o autor mais liberto de tudo, não permite a simples pinturaobjetiva. E essa pintura seria um susto e um assombro para o ho-mem, que não consegue jamais conhecer-se a si mesmo porque nin-guém o desnuda.
(A barca de Geyre, Monteiro Lobato)
A revisão da fortuna crítica de Monteiro Lobato revela que as várias temáticas
tratadas pelo autor em sua vasta obra não são, na sua totalidade, abordadas pelos
críticos da literatura. Nesse sentido, são apenas alguns aspectos da produção lobati-
ana que são levadas em conta quando do julgamento de sua inserção no cânone
literário. Assim, ao se olhar para os manuais canônicos de literatura, não é difícil per-
48
ceber “os vários Lobatos” que se projetam através do respeitado contista para adul-
tos, do nacionalista panfletário, do escritor infantil ou mesmo do tradutor exemplar. O
que chama atenção nessa análise é o fato de se dar ênfase a apenas algumas as-
pectos de sua obra em detrimento de outros, que são apenas citados, servindo so-
mente de número quantitativo no endosso da bibliografia do autor.
Para a maioria de seus leitores, Lobato é eternamente um autor de literatura
infantil, e seu nome estará sempre associado ao Sítio do pica-pau amarelo, sendo
seus personagens parte do imaginário de muitas gerações. No entanto, este não é o
enfoque principal dado pela maioria dos críticos nem pelos manuais de literatura bra-
sileira. Os estudiosos do autor enfatizam outros aspectos de sua produção, que têm
mais a ver com sua obra adulta e sua ligação a uma certa tradição. Prova disso é o
momento histórico-literário em que o autor é situado, ou seja, o chamado “pré-
modernismo brasileiro”, que cronologicamente antecede a sua consagração popular
como escritor de literatura infantil.
Por mais que a denominação do aludido momento literário seja discrepante
por parte de alguns críticos, fica evidente que a canonicidade de Lobato, segundo
Alfredo Bosi, esteja associada às condições de desenvolvimento da literatura brasilei-
ra das primeiras décadas do século XX. É neste momento que surgem os livros Uru-pês, Cidades mortas e Negrinha, todos eles considerados de temática adulta, com
ênfase em aspectos regionalistas. Conforme complementa Bosi:
[a] sua obra de narrador entronca-se na tradição pós-romântica: reta-lhos de costumes interioranos, muita intenção satírica, alguma pieda-de e efeitos vàriamente sentimentais ou patéticos. Apesar de ponti-lhada de raro em raro por certas ousadias impressionistas, é umaprosa que não rompe, no fundo, nenhum molde convencional. O mo-delo não atingido é Eça de Queirós, pela carga irônica e o gosto dapalavra pitoresca. Um resto de purismo (que ele tão bem satirizou emO colocador de pronomes) levava-o a catar em Camilo vozes e tor-neios castiçamente lusos43.
Para Bosi, o escritor paulista foi um “[m]oralista e doutrinador aguerrido, de
acentuadas tendências para uma concepção racionalista e pragmática do homem”, o
que o coloca dentro do padrão estético filiado ao academicismo da época, agindo
durante a “vida toda, em nome do bom senso e da razão (como se fora um velho
43 BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 2006. p. 241.
49
acadêmico)”, mesmo que, para o crítico, Lobato seja o terceiro na ordem de impor-
tância do período: “com efeito, depois de Euclides e de Lima Barreto, ninguém melhor
do que ele soube apontar as mazelas físicas, sociais e mentais do Brasil oligárquico e
da I República”44.
Tal avaliação da obra lobatiana é compartilhada por Tadeu Chiarelli em UmJeca nos vernissages: Monteiro Lobato e o desejo de uma arte nacional no Brasil.
Nesse livro, o autor afirma que a preferência do escritor “pela ‘simplicidade animal’ do
homem do campo, em contraponto à ojeriza ao homem falsamente sofisticado das
cidades brasileiras, será uma das bases do nacionalismo”45. Dito em outros termos,
tanto para Bosi quanto para Chiarelli, é o nacionalismo presente nos escritor de Loba-
to que permitem inseri-lo na produção mais significativa surgida naquele momento.
Por outro lado, tendo em mente a filiação estética de Lobato, Bosi não é muito
generoso na caracterização da qualidade estética do autor. Segundo o crítico, o escri-
tor paulista estava “querendo imitar a objetividade de Maupassant, sem o gênio do
mestre”, sendo mais valoroso “no retrato físico, na busca dos defeitos do corpo ou
dos aspectos risíveis do temperamento ou do caráter”46. Ainda de acordo com Bosi,
para Lobato atingir tais objetivos, ele fazia uso de um anti-romantismo “que o desvia-
va continuamente da interioridade, fazia-o descansar na superfície dos seres e dos
fatos cuja sequência se revela por isso desumanamente funcional, no sentido daque-
les mesmos efeitos de cômico e patético que o autor queria produzir47.
Em suma, para Bosi, “[a] indicação dos limites da arte lobatiana parece colidir
com a relevância da figura humana que vive na história brasileira onde já assumiu um
papel simbólico”. Ou seja, as limitações estéticas de Lobato não desmerecem o valor
histórico de seu trabalho, nem diminuem o seu nacionalismo ao expor o homem do
campo brasileiro como realmente se apresentava. Para o mesmo crítico, “[a] verdade
[...] é que os limites estéticos derivam de um tipo de personalidade cuja direção bási-
ca não era a estética”. E ainda alerta: “[c]ompreendê-la em sua natureza específica,
sem confundir os planos, é sempre a mais honesta das formas de lembrá-la”48.
Bosi, em seus manuais, comenta a influência recebida por Lobato de Orwell e
Huxley no que se refere a temas ligados à ficção científica. Esse detalhe é importante
44 Ibidem. p. 241.45 CHIARELLI, Tadeu. Um Jeca nos vernissages: Monteiro Lobato e o desejo de uma arte nacio-nal no Brasil. 1995. p. 124.46 BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 2006. p. 242.47 Ibidem. p. 242.48 Ibidem. p. 242.
50
uma vez que O presidente negro está assentado nessas bases. O crítico, entretan-
to, não faz referência à aludida obra do escritor, mas, ao menos, remete a ela de ma-
neira indireta, algo que não ocorre com os outros historiadores analisados nesta pes-
quisa. Não se pode desconsiderar que a menção, mesmo que indireta ao romance
lobatiano, não ocorre devido à temática nele presente, mas à sua afiliação à ficção
cientifica. Mais uma vez, portanto, Lobato não é julgado pelos seus posicionamentos
preconceituosos.
Quanto ao gênero infantil, Bosi também é econômico em suas abordagens, li-
mitando-se a comentar a “originalíssima fusão de fantasia e pedagogia que represen-
ta a sua literatura juvenil”49. Nesse ínterim, as únicas obras de Lobato abordadas por
Bosi em sua História concisa da literatura brasileira e referidas explicitamente são
Urupês, Cidades mortas e Negrinha, hoje consagradas pelo cânone.
O que se depreende das análises de Bosi, é que ele critica o modo de escre-
ver de Lobato, mas elogia os temas presentes em sua produção. Nesse sentido, po-
de-se dizer que ele valoriza um Lobato conservador e, ao mesmo tempo, preocupado
em denunciar a condição do caboclo brasileiro. Coisa semelhante aconteceu com a
estudiosa Vasda Bonafini Landers em De Jeca a Macunaíma: Monteiro Lobato e o
modernismo. A autora reitera a importância do nacionalismo de Lobato ao afirmar que
talvez ele “se preocupasse demais com o Brasil social para ser entendido e discutido
como homem de letras”50.
Não é difícil entender o motivo por que isso aconteceu. Ao se levar em conta
que a biografia de Lobato, muitas vezes, transcende a sua própria bibliografia – em
virtude de sua importância editorial, suas lutas sociais e políticas, suas inegáveis con-
tribuições na formação de leitores –, o tom de respeito é mantido pelos críticos. Es-
tes, por sua vez, valorizam a produção lobatiana não tanto pela qualidade de suas
obras, mas por consideração de sua influência social, o que limita suas críticas a me-
ras análises descritivas que geralmente se transfiguram em coletâneas biográficas.
É o caso de José Aderaldo Castello em seu estudo A literatura brasileira,origens e unidade. Assim como Bosi, Castello enfatiza que as obras de Lobato es-
tão voltadas para o nacionalismo crítico e para o regionalismo, citando Urupês, Ci-dades mortas e Ideias de Jeca Tatu. Para Castello, esses livros mantêm o padrão
acadêmico e marcam “a estreia definitiva de um escritor que considerava sua literatu-
49 Ibidem. p. 241.50 LANDERS, Vasda Bonafini. De Jeca a Macunaíma: Monteiro Lobato e o modernismo. 1988. p.25.
51
ra nascida do envolvimento com a realidade, que ele denunciava”51. Nessa perspecti-
va, o crítico tece uma descrição do modo como o personagem caboclo foi construído
nas obras de Lobato, em especial em Urupês, e sua importância como denúncia das
disparidades do meio rural e do urbano. No final de seu manual, o estudioso faz uma
“bibliografia seletiva da produção literária” de Lobato, listando suas obras completas,
as quais não aparecem como alvo de estudo no corpo do trabalho. Os comentários
críticos de Castello se misturam com a biografia de Lobato com ênfase em seus ca-
minhos editoriais e na Revista do Brasil.
Brito Broca, em Naturalistas, parnasianos e decadentistas: vida literária do
realismo ao pré-modernismo, faz uma análise da estética de Lobato sobre a ótica da
influência de Camilo Castelo Branco. O crítico comenta que Lobato “adotava, com
frequência, não somente o vocabulário, mas também a sintaxe camiliana”52. Nesse
sentido, o autor realiza um estudo de literatura comparada, com enfoques em contos
que retratam os personagens rurais de Lobato, a exemplo dos presentes em Urupês.
A análise comparatista continua com Ildefonso Albano e seu personagem Ma-
né Xique-Xique, de obra homônima. Enquanto este trabalha e evolui, o Jeca, de Lo-
bato, é um símbolo do atraso e da preguiça. Após essas duas primeiras compara-
ções, Broca se atém em Euclides da Cunha e o sertanejo de sua obra, para, mais
uma vez, fazer um paralelo com o Jeca. O crítico, nesse cotejo, exalta o personagem
de Lobato por ter sido concebido por alguém que conhecia a fundo o caipira da épo-
ca. Segundo Broca, “[o]s que pintavam o caipira não o conheciam. Lobato como fa-
zendeiro, entrou em contato direto com o matuto e pode observar ele bem diverso da
imagem idealizada que nos ofereciam”53.
Além disso, em A vida literária no Brasil ─ 1900, Broca explora as caracte-
rísticas epistolares de Lobato, tecendo comentários sobre a coletânea de cartas intitu-
lada A barca de Gleyre e o papel que a amizade do autor com Godofredo Rangel
exerceu nas obras do escrito paulista. Nesse sentido, averigua o crítico:
[a]o calor dessa amizade essencialmente literária vão surgir dois li-vros dos maiores da literatura brasileira contemporânea: Urupês eVida ociosa. Assistimos à germinação lenta de ambos: as hesita-
51 CASTELLI, Aderaldo. A literatura brasileira, origens e unidade. 1999. p. 48.52 BROCA, Brito. Naturalistas, parnasianos e decadentistas: vida literária do realismo ao pré-modernismo. 1991. p. 312.53 Ibidem. p. 349.
52
ções, as consultas, as sugestões, as advertências, através das quaisse foram concretizando em realização nítida e perfeita54.
Para Massaud Moisés, em A literatura brasileira através dos textos e His-tória da literatura brasileira, mesmo classificando Lobato como simbolista, diferen-
temente dos outros críticos que oscilam entre pré-moderno e moderno, mantém a
preferência na análise de Urupês e Cidades mortas, apontando as qualidades pre-
sentes nessas obras. Segundo Moisés, “a limpidez do retrato psicológico e a objetivi-
dade na localização do invisível ou do incerto são características que permanecem,
tornando o prosador de Taubaté um dos nossos mais engenhosos artífices do con-
to”55. Dentre as análises de Massaud, está Meu conto de Maupassant, sexto texto de
Urupês, com comentários bem mais positivos do que os feitos por Bosi sobre o
mesmo assunto.
De acordo com Afrânio Coutinho, a ênfase da obra de Lobato está centrada
nos mesmos elementos dos críticos analisados acima, percebendo em “Jeca Tatu [...]
a representação realista do caipira”56. Acrescido a isso, Coutinho valoriza mais ele-
mentos linguísticos do que sociais, ao frisar que a “sabedoria de Lobato foi saber con-
tar, com vivacidade, colorido, simplicidade”57, além de ser permeado “pelo imprevisto
das imagens, pelo vigor do estilo caldeado numa língua de longo trato com os clássi-
cos da mais pura fonte portuguesa, a que se mistura o linguajar do caboclo paulis-
ta”58. Em sua obra Introdução à literatura no Brasil, Coutinho afirma que Lobato
“deve ser incluído nos rol dos precursores da renovação estética”, no que se refere
ao “sentido da nacionalização de sua obra, pelo cunho regionalista da Revista doBrasil, sob sua direção”, e ainda, mais importante, “pela valorização do homem brasi-
leiro do sertão, o caipira, o Jeca Tatu, a cuja novidade não foi indiferente o próprio
Rui Barbosa”. Este último, a propósito, colaborou com a divulgação da obra lobatiana,
em seu discurso eleitoral, ao fazer uso dos seguintes termos:
Senhores: Conheceis, porventura o Jeca Tatu, dos Urupês de Mon-teiro Lobato, o admirável escritor paulista? Tiveste algum dia, ocasiãode ver surgir, abaixo desse pincel de uma arte rara, na sua rudeza,
54 BROCA, José Brito. A vida literária no Brasil ─ 1900. 1975. p. 184.
55 MOISÉS, Massaud. A literatura brasileira através dos textos. 2000. p. 367.56 COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura no Brasil. 2001. p. 205.57 COUTINHO, Afrânio. Evolução do conto. In: ____. A literatura no Brasil. 1971. p. 213.58 Ibidem. p. 53.
53
aquele tipo de uma raça, que, “entre as formadoras da nossa nacio-nalidade”, se perpetua, “a vegetar de cócoras, incapaz de evolução eimpenetrável ao progresso”?59.
Para Coutinho, esse fato permitiu a Lobato uma grande repercussão que lhe
rendeu sua associação canônica: “[f]oi no seu discurso famoso de 1918 que Rui ati-
rou para o proscênio, concorrendo indiretamente para a vitória dos ideais adversos,
aquela dimensão literária que lobato introduzira”60. Como se percebe, o prestígio de
Lobato não estava vinculado à qualidade estética de suas obras, mas atrelado às
influências de pessoas importantes politicamente à sua época. Mais uma vez, é o tom
nacionalista do autor que é levado em conta, e Rui Barbosa parece ter sido um tanto
que oportunista nessa ocasião.
Não tão generoso em seus comentários, Wilson Martins, em História da inte-ligência brasileira, afirma que Urupês resume a obra de Lobato e que Cidadesmortas e Negrinha representam o resquício literário do autor em uma espécie de
“desesperada raspagem de gavetas” por um escritor “subconscientemente convenci-
do da própria exaustão como criador de literatura”61. Segundo o crítico, depois desses
livros, o que resta de relevante de Lobato está em sua biografia, no “nacionalismo
visceral”62, no seu envolvimento tumultuoso com os modernistas e, em especial, na
campanha editorial, a qual Martins depreende grande ênfase em seus estudos. De
qualquer maneira, Martins é conivente com as obras a que comumente os críticos
recorrem para justificar Lobato no cânone literário brasileiro.
Com severidade similar e idêntico alvo de análise, Silviano Santiago impõe as
limitações do texto lobatiano ao colocar o caboclo como substituto do índio romântico:
“[e]m página bastante conhecida sobre a expressão literária da nacionalidade, Lobato
substitui o índio pelo caboclo. A simplicidade no raciocínio evolutivo é tão grande que
parece estarmos diante de uma errata pouco pensante”63. E vai mais além, afirmando
59 BARBOSA, Rui. A questão social e política no Brasil. Disponível em<http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/artigos/rui_barbosa/p_a5.pdf>. Acesso em 15 jun.2011.60 COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura no Brasil. 2001. p. 258.61 MARTINS, Wilson. A literatura brasileira: o modernismo. 1977. p. 173.62 Ibidem. p. 115.63 SANTIAGO, Silviano. Monteiro Lobato hoje: ponto e vírgula. In: ROCHA, João Cezar de Castro(Org.). Nenhum Brasil existe. 2003. p. 656.
54
que “Jeca Tatu foi escrito por fazendeiro para agregados, isto é, para ser lido por
aqueles que, julgava serem os jecas tatus da vida”64.
Entremeada com elogios e austeras críticas, ao que parece, o livro Urupês é
uma unanimidade entre os críticos ao representar não somente a associação canôni-
ca do autor, bem como o alcance angariado pela obra através da campanha editorial
do próprio Lobato. Em Vozes do tempo de Lobato, Paulo Dantas destaca um co-
mentário de Jorge Amado sobre a importância de Lobato na popularização da leitura:
[n]inguém recriou, com a grandeza com que ele o fez, a vida das pe-quenas cidades do interior – das cidades mortas. O contista de Uru-pês é um mestre e se hoje existe um tão grande movimento em tor-no do conto brasileiro, isso se deve, em grande parte, à obra deMonteiro Lobato que deu popularidade, angariou leitores, para umgênero até então de pequena circulação; o conto ganhou público noBrasil com os livros de Lobato65.
Seguindo pelo viés interiorano, a preferência acentuada pelo estudo pertinente
ao caipira Jeca Tatu é materializada em trabalhos críticos como: Urupês e o sertane-jo brasileiro (1919), de Leônidas de Loyola, A humanidade do Geca Tatu (1920),
de Luís da Câmara Cascudo, Jeca Tatu e as representações do caipira brasileiro(1984), de Nísia Lima Trindade, A atualidade de Monteiro Lobato (1985), de Cassi-
ano Nunes, A república do Pica-pau amarelo (1986), de André Luiz Vieira de Cam-
pos, O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil (1995), de Darcy Ribeiro, Oficcionista Monteiro Lobato (1996), de Alaor Barbosa, As metamorfoses do JecaTatu: a questão da identidade do brasileiro em Monteiro Lobato (2003), de Aluízio
Alves Filho, e Na trilha do Jeca: Monteiro Lobato e a formação do campo literário no
Brasil (2003), de Ênio Passiani, entre outros.
Afora o Jeca, um assunto constantemente abordado pelos estudiosos são as
críticas de Lobato à exposição de Anita Malfatti em A propósito de Malfatti, para-noia ou mistificação66. As opiniões são as mais variadas e oscilam entre defensores
de Lobato, ou do modernismo; entre os quais o classificam como conservador ou, até
mesmo, os que o colocam como modernista incompreendido. É o caso de Wilson
Martins, referido acima, que afirma que as primeiras obras de Lobato já contêm todo
64 Ibidem. p. 660.65 DANTAS, Paulo. Vozes do tempo de Lobato. 1982. p. 56.66 A crítica foi publicada no jornal O Estado de São Paulo, de 20 de dezembro de 1917, e depoisincluída no livro Ideias de Jeca Tatu, em 1919.
55
o ideário do movimento modernista e que Urupês havia antecipado boa parte da sua
doutrina67. Segundo o crítico, os comentários de Lobato em Paranoia ou mistifica-ção fazem parte do seu grande nacionalismo em atacar “aquilo que na arte modernis-
ta não era brasileiro, os conceitos e estilos de importação, a imitação compulsiva”68.
Essa mesma ordem de ideias, a rigor, também é defendida por Nelson Wer-
neck Sodré em História da literatura brasileira. Além de tecer comentários sobre
Urupês – o que já se percebe como de praxe –, nos quais classifica Jeca Tatu como
“deformação caricatural”69, aborda o tema Lobato/modernismo e afirma que “tido co-
mo inimigo do modernismo, Monteiro Lobato foi, na verdade, um renovador da prosa,
fazendo-a simples, fácil, correntia”70. Os contrários, a exemplo de Mário da Silva Bri-
to, em sua História do modernismo brasileiro, classificam Lobato como carrasco
de Malfatti e do modernismo. Tadeu Chiarelli, aliás, em Um Jeca nos vernissages,
afirma que tudo não passou de ressentimento de um Lobato frustrado como pintor.
A preferência dos críticos ficou evidente na pesquisa acima. “Monteiro Lobato,
o autor de Urupês” ou o “Monteiro Lobato e a censura a Anita Malfatti” aparecem na
história da crítica literária quase que antonomásias do escritor, ao se perceber que o
direcionamento da maioria dos estudos segue o mesmo caminho.
O que se depreende disso é que tais estudos são de grande valia na compre-
ensão de uma admirável parcela da obra lobatiana, da assimilação do regionalis-
mo/nacionalista de Lobato, das contribuições (ora vistas como positivas, ora como
negativas) do autor com relação ao modernismo e, principalmente, no desnudamento
daquilo que não é levado em conta. Ou seja, quando aspectos específicos da obra de
Lobato são eleitos como alvo de estudo e canonização, fica evidente a exclusão de
outros tantos elementos que não foram abordados pelos críticos citados. A preferên-
cia das abordagens ilustra a necessidade, e por que não, a urgência da compreensão
de quais aspectos da obra de Monteiro Lobato foram negligenciados e, mais impor-
tante, a identificação do motivo de isso ter acontecido.
Prontamente, pode ser listada a literatura infantil como alvo de exclusão pela
crítica, por ser, em muitos casos, apenas citada ou propositalmente esquecida pela
maioria dos historiadores, sem uma merecida análise mais profunda por não a consi-
derarem um gênero sério de literatura. A valorização do gênero infantil tem sido rei-
67 MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira. 1978. p. 149.68 Ibidem. p. 169.69 SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira. 1982. p. 417.70 Ibidem. p. 560.
56
vindicada por muitos pesquisadores contemporâneos, em especial a partir da década
de 70, como é caso das exemplares pesquisas de Nelly Novaes Coelho71, Marisa
Lajolo e Regina Zilberman72.
Como se observou ao longo deste segmento, a partir de comentários de críti-
cos que voltaram sua atenção à produção de Lobato, pode-se dizer que as razões
para incluir o autor no cânone literário são diversas, mas algumas delas são conver-
gentes. Embora seus textos careçam de qualidade estética, segundo alguns estudio-
sos, a temática do nacionalismo, alegorizada na figura do Jeca, pertinente à sua épo-
ca, contribuiu para sua consagração no âmbito literário. Afora isso, outro aspecto de-
cisivo para o enaltecimento do autor diz respeito à sua prestigiosa posição como bra-
sileiro que se envolveu em causa políticas do seu tempo. Sua popularidade também
foi favorecida pelas facilidades que tinha em publicar seus livros por ser proprietário
de editoras.
O que chamou atenção, nessa revisão da fortuna crítica do autor, é que o pre-
conceito veiculado em muitos dos seus livros não foi levado em consideração nos
critérios de sua legitimação. Em muitos livros de Lobato, o negro é retratado de forma
negativa, mas nenhum crítico se pautou neste detalhe para julgá-lo como desmere-
cedor de um lugar na lista de autores consagrados. Vários critérios foram considera-
dos para a legitimação de Lobato; no entanto, o desprestigio do autor pelos negros
em nenhum momento é citado. O presidente negro, livro que constitui o corpus des-
te trabalho, único romance do autor, mas carregado de preconceitos, foi praticamente
esquecido. Esses detalhes reforçam a tese defendida no capítulo anterior, ou seja, o
cânone é preconceituoso, sendo que seus critérios de escolha primam por elementos
que não se calcam na realidade excludente de uma sociedade.
2.2 O racismo do início do século XX e os caminhos da eugenia no Brasil
O nosso intuito, pois, relativamente ao Instituto de Eugenia, selimitará a lançar apenas a semente, até que um milagre se faça, –surgindo, então, o novo tempo onde se cuidará da nacionalidade bra-sileira, como faz o Instituto de Eugenia de Berlin, para a nacionalida-de germânica.
71 COELHO, Nelly Novaes. Panorama histórico da literatura infantil/juvenil. 1991.
72 LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: história e histórias. 1988.
57
Já temos o Instituto Agronômico e Instituto Veterinário, sendobem possível que dentro de alguns anos, de muitos anos, depois queficarem resolvidos os graves problemas da broca do café e da brocado gado, se cogite então de fundar um Instituto de Eugenia destinadoao estudo dos meios de combater as brocas do gênero humano.
Quando chegarmos a tal resultado poder-se-á, talvez, decorri-dos mais alguns anos, comemorar com toda solenidade o “dia da ra-ça”.
(Boletim de eugenia, Renato Kehl)
Após a libertação dos escravos no Brasil, pôde-se perceber o aumento e a
efetivação do racismo. Na prática, a liberdade legal não significou aos negros o fim do
preconceito e da humilhação. Além disso, a condição de inferiorizado teve sequência
na sociedade brasileira, sendo materializada pelos grupos de intelectuais e, mesmo,
pela literatura. No início do século XX, a rigor, a busca de uma identidade nacional e,
acima de tudo, o reconhecimento do país como nação diante da opinião internacional
fizeram com que o grupo intelectual brasileiro apontasse razões para o atraso do pa-
ís. Tal atraso, invariavelmente, foi associado ao perfil racial que se apresentava, com
uma esmagadora quantidade de negros e mulatos.
Para Oliveira Vianna, pensador preconceituoso do início do século XX, “[n]ão
só a potencialidade eugenística do Homo afer [negro] é reduzida em si mesma, como
posta em função da civilização organizada pelo homem da raça branca, ainda mais
reduzida se torna”. Ou seja, para ele, “[o] negro puro nunca poderá, com efeito, assi-
milar completamente a cultura ariana, mesmo os seus exemplares mais elevados”,
isso porque “a sua capacidade de civilização, a sua civilizabilidade, não vai além da
imitação, mais ou menos perfeita, dos hábitos e costumes do homem branco”. Vianna
ainda acrescenta que a impossibilidade de a nação evoluir estava na limitação inte-
lectual dos negros: “[e]ntre a mentalidade deste [branco] e a do homem africano há
uma diferença de estrutura, substancial e irredutível, que nenhuma pressão social ou
cultural, por mais prolongada que seja, será capaz de vencer ou eliminar”73.
Desprezando os problemas estruturais de ordem social e histórica, via-se no
negro o símbolo das dificuldades que limitavam o crescimento nacional. Desse modo,
entre a elite brasileira, espalhava-se a sensação de inferioridade em relação a países
desenvolvidos, enquanto aumentava o preconceito em relação às raças vistas como
culpadas pelo problema. Assim, tomando a causa como sinônimo de patriotismo, mui-
tos intelectuais e cientistas se empenharam na busca de soluções que permitissem a
73 VIANNA, Oliveira. Evolução do povo brasileiro. 1956. p. 155.
58
evolução do país e a melhoria do nível de seus habitantes, tendo com base o padrão
de países desenvolvidos. Amparados pela bandeira do desenvolvimento, muitos mo-
vimentos racistas se proliferaram, tendo destaque o grupo eugenista, que, através de
muitas tentativas, tinha a intenção de efetivar suas teorias excludentes no Brasil nas
primeiras décadas do século passado.
A definição do termo eugenia foi desenvolvido pelo cientista inglês Francis
Galton74, significando “bem nascido”. Galton definiu a eugenia como o “estudo dos
agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades ra-
ciais das futuras gerações seja física ou mentalmente”75. Em outras palavras, repre-
senta um aprimoriamento genético e racial. O autor era primo de Darwin, que criou a
teoria da seleção natural. Para Galton, a seleção não deveria ser “natural” e sim ace-
lerada e conduzida pela ciência.
A eugenia, como seleção “não natural”, passou a ser adotada na Europa e nos
Estados Unidos como um aperfeicoamento da raça superior. Para tanto, os conside-
rados fracos e inferiores – como deficientes físicos e mentais, criminosos, gays e do-
entes – eram controlados por meio da esterilização e até mesmo eliminados, para
que seus “genes defeituosos” não passassem para as gerações seguintes. Não de-
morou muito e a supeioridade foi associada à raça branca, colocando os negros e os
amarelos (assim como eram chamados os asiáticos) como raças inferiores e defeitu-
osas.
No Brasil, o movimento eugenista começou mais voltado à higiene e à saúde
pública, configurando-se (ou confundindo-se), a princípio, como higienismo. A Socie-
dade Eugênica de São Paulo foi criada em 1918 com o intuito de promover, segundo
seu fundador Renato Kehl, mais que a modernidade cultural, “ela é mais que ciência,
74 Francis Galton (1822-1911), antropologista, meteorologista, matemático e estatístico inglês,nasceu em 16 de fevereiro de 1822, perto de Birmingham, Inglaterra. Foi criador do termo eugeniae descobridor da individualidade das impressões digitais (1885). Professor da Universidade deLondres, Galton foi o pai do campo da eugenia, sendo conhecido pelos seus estudos de heredita-riedade e inteligência humana. Primo de Charles Darwin, subsidiou as futuras teorias deste, reali-zando estudos conjuntos sobre antropologia e inteligência humana, orientados para demonstrar ocaráter hereditário dos traços físicos e mentais dos indivíduos. Notável teórico da hereditariedade,formulou a polêmica teoria eugênica sobre o aprimoramento da espécie. Usou o termo eugeniapara expressar a possibilidade de aprimoramento da raça humana por meio de cruzamentos gené-ticos premeditados. Embora identificada com as ideias do nazismo, que preconizava a eugeniapelo extermínio das raças consideradas inferiores, sua teoria não defendia a criação de classesprivilegiadas, mas a evolução positiva da humanidade em seu conjunto. O primeiro livro importantepara a Psicologia de Galton foi Hereditary Genius, de 1869. Sua tese afirmava que um homemnotável teria filhos notáveis.75 Cf. explicação dada por José Roberto Goldim para o termo “eugenia”. Disponível emhttp://www.ufrgs.br/bioetica/eugenia.htm. Acesso em 08 ago. 2010.
59
é religião, religião da saúde, do corpo e do espírito – a verdadeira religião da humani-
dade”76. Por uma confusão inicial de definições e atribuições, a eugenia no Brasil não
foi tão preconceituosa em suas raízes como seria na sequência. De acordo com Nan-
cy Stepan, “estrutural e cientificamente, a eugenia brasileira era congruente, em ter-
mos gerais, com as ciências sanitárias, e alguns simplesmente a interpretavam como
um novo ramo da higiene”77. O objetivo dos sanitaristas, como eram conhecidos os
eugenistas, era a higiene social prevenindo doenças e epidemias pela divulgação dos
conceitos básicos de saneamento, muitas vezes desconhecidos pela população em
geral.
Ingenuamente ou propositalmente, camuflada por ideais de sanitarismo, a eu-
genia brasileira foi ganhando adeptos entre os intelectuais e a classe burguesa, e,
finalmente, seus verdadeiros objetivos começaram a surgir. A proposta eugênica não
se limitava à saúde por meio da higiene, era uma busca da seleção do povo puro e
superior, era a “sociedade humana contra os fatores de degeneração, controlando os
casamentos, evitando o matrimônio entre tarados e degenerados, vulgarizando e
aplicando os conhecimentos necessários à proteção individual e racial”78. No Primeiro
Congresso Brasileiro de Eugenia realizado em 1929, o ideal eugênico foi claramente
explicitado: “[d]urante muito tempo, supôs-se que o meio dominava os organismos,
portanto a medicina e a higiene resolveriam o problema da saúde; mas a ciência de-
monstrou haver alguma coisa que independe da higiene: é a semente, a herança, que
depende da eugenia”79.
O grupo de eugenistas estava montado, organizado e disposto a aplicar as te-
orias de Galton no Brasil. De acordo com a historiadora Marta Maria Chagas de Car-
valho, “propostas de higienização do social, associadas à eugenia, tiveram intensa
circulação no Brasil nas décadas de 20 e 30” e propunham “transformar o processo
de seleção natural, que funcionava às ocultas do homem, em instrumento racional
conscientemente empregado”. Deste modo, “a eugenia sustentava projetos de erradi-
cação do que era entendido como causa de degradação biológica e espiritual”, possi-
76 KEHL, Renato. Eugenia e medicina social. 1920. p. 29.77 STEPAN, Nancy. A eugenia no Brasil – 1917 a 1940. In: HOCHMAN, G.; ARMUS, D. (Orgs.).Cuidar, controlar, curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e Caribe.2004. p. 348.78 KEHL, Renato. Lições de eugenia. 1935. p. 17.79 In Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia: Atas e Trabalhos, 1929. p. 11.
60
bilitando um mecanismo de controle dos agentes da “degeneração da espécie e
abastardamento da raça”80.
Em 1931, foi criado o Comitê Central de Eugenismo, presidido por Renato
Kehl e Belisário Penna. O objetivo do comitê era o fim da miscigenação, da emigra-
ção de não-brancos e “colaborar com qualquer projeto governamental que visasse
interesses eugênicos ou para-eugênicos”, que sejam ligados à imigração, ao povoa-
mento, ao saneamento, à educação sexual, às exigências modernas pré-
matrimoniais, à fundação de estabelecimentos ou laboratórios para estudos galtonia-
nos81.
O historiador norte-americano Thomas Elliot Skidmore, pesquisador da história
brasileira, sintetiza o pensamento do grupo eugenista brasileiro e seus objetivos ao
afirmar que “[a] tese do branqueamento baseava-se na presunção da superioridade
branca, às vezes, pelo uso dos eufemismos raças ‘mais adiantadas’ e ‘menos adian-
tadas’ e pelo fato de ficar em aberto a questão de ser a inferioridade inata”. Isso pode-
ria acontecer de modo espontâneo, pois “a população negra diminuía progressivamen-
te em relação à branca por motivos que incluíam a suposta taxa de natalidade mais
baixa, a maior incidência de doenças e a desorganização social”. Ou ainda, em um
processo controlado, “a miscigenação produzia ‘naturalmente’ uma população mais
clara”, devido “em parte porque o gene branco era mais forte e em parte porque as
pessoas procurassem parceiros mais claros do que elas (a imigração branca reforçaria
a resultante predominância branca)”82.
Entre as propostas de branqueamento, estava o controle migratório que visava
ao controle de imigrantes negros e asiáticos ao Brasil. Para tanto, a ajuda de mem-
bros políticos foi de suma importância como foi o caso do deputado pernambucano
Andrade Bezerra e o do paulista Cincinato Braga que apresentaram, em 1921, no
Congresso, um Projeto de Lei que promulgava: “[f]ica proibido no Brasil a imigração
de indivíduos humanos das raças de cor preta”. Em 1923, o deputado mineiro Fidélis
Rei apresentou um novo projeto de lei que no mesmo sentido afirmava: “[é] proibida a
entrada de colonos da raça preta no Brasil e, quanto ao amarelo, será ela permitida,
80 CARVALHO, Marta Maria Chagas de. Molde nacional e forma cívica: higiene, moral e trabalhono Projeto da Associação Brasileira de Educação (1924-1931). 1998. p. 314.81 KEHL, Renato. Comissão Central Brasileira de Eugenia. Boletim de Eugenia, 1931. p. 1.82 SKIDMORE, Thomas. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. 1989.p. 81.
61
anualmente, em número correspondente a 6% dos indivíduos existentes no país”83.
Por mais que os projetos tenham sido rejeitados na época, posteriormente, a Consti-
tuição de 1934, no artigo 151, de modo sutil, permitiu uma vitória parcial aos eugenis-
tas:
[a] entrada de imigrantes no território nacional sofrerá as restriçõesnecessárias à garantia da integração étnica e capacidade física e civildo imigrante, não podendo, porém, a corrente migratória de cada pa-ís exceder, anualmente, o limite de 2% sobre o número total dos res-pectivos nacionais fixados nos últimos cinquenta anos84.
Embasado na constituição, o ideal de controle racial eugenista passava a ter
aplicação prática. Com esse fim, durante a Era Vargas, foi fundado o Conselho de
Imigração e Colonização, que tinha como membro o médico Arthur Neiva, um fervo-
roso defensor da eugenia. Para ele, cabia à ciência e aos intelectuais escolherem o
“que o Brasil se[ria] sob o ponto de vista étnico dentro de alguns séculos”. Seus pen-
samentos resumem suas intenções nas barreiras migratórias: “[q]uero crer nenhum
brasileiro aspire a que, dentro de meio milênio, nossa civilização seja amarela ou ne-
gra... Julgamos que todos nós desejamos ser um país de civilização branca dentro de
nossa tradição histórica”85.
Mesmo assim a maioria dos objetivos da eugenia no Brasil foi frustrada no que
se refere à segregação racial, de modo que a opinião pública nunca foi totalmente
favorável a ela, em especial, quando a eugenia alemã culminou no holocausto nas
mãos dos nazistas. Depois que o Brasil entrou no bloco dos países aliados, a eugenia
deixava de ser vista como ciência para assumir um caráter político, e as ideias radi-
cais não tiveram mais espaço depois da Segunda Guerra Mundial.
Entre os intelectuais que simpatizavam com a eugenia, encontrava-se Montei-
ro Lobato. Como visto, a eugenia tinha adeptos, mas felizmente não conseguiu se
tornar unanimidade na sociedade brasileira, nem materializar todos os seus objeti-
vos86. No que se refere a Lobato, sua perspectiva foi diferente. Na obra Choque das
83 TORRES, João Camilo de Oliveira. Interpretação da realidade brasileira. 1969. p. 90-91.84 Disponível em <http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/92067/constituicao-dos-estados-unidos-do-brasil-37>. Acesso em 03 jul. 2011.85 NEIVA, Arthur. O problema imigratório. Revista de Imigração e Colonização, 1943. p. 509-510. In: CARNEIRO, Maria Luiza TucciI. O antissemitismo na Era Vargas: fantasmas de umageração (1930-1945). São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 138-139.86 Não se quer aqui desconsiderar as conquistas do grupo higienista (não eugenista, por mais queos dois se confundam), em especial os sanitaristas e sua contribuição com a saúde pública brasi-leira.
62
raças ou O presidente negro, ele pôde efetivar a utopia da eugenia. O autor sabia
que o tema era polêmico, mas acreditava que na polêmica o seu lucro seria garanti-
do.
O choque das raças ou O presidente negro foi publicado em folhetins entre
setembro e outubro de 1926 pelo jornal A Manhã, de Mário Rodrigues, pai de Mario
Filho e de Nélson Rodrigues. O romance, único de Lobato considerado adulto, aborda
temas polêmicos como a eugenia e a supremacia branca. A história fala de um apare-
lho capaz de ver o futuro, e com o qual é deslumbrada a eleição americana de 2228.
Três candidatos disputam a Casa Branca: um branco, uma mulher e um negro. Entre
vários acontecimentos, o candidato negro vence e se torna o primeiro presidente ne-
gro dos Estados Unidos. Inconformados com a derrota, os brancos procuram uma
solução para o “problema negro”. É criada, então, uma máquina para alisar os cabe-
los pixains, na qual todos os negros se sujeitam voluntariamente. No entanto, a má-
quina tinha dupla função: além de alisar os cabelos, esterilizava todos os negros, limi-
tando-os àquela geração. Não havia mais futuro para os negros e a supremacia bran-
ca estava garantida.
A dúvida que resta é a exoneração, ou não, do autor diante da obra ficcional.
A ficção é apenas ficção ou a materialização das ideias racistas de seu autor? A eu-
genia, como parte da vida de Lobato, ficou escondida durante muito tempo, e apenas
a análise de correspondências e registros pessoais do autor pôde dar luz ao assunto.
No que se refere aos livros didáticos, direcionados aos alunos de nível médio, aspec-
tos sombrios como os tratados neste trabalho não são repassados nem analisados.
Muitos livros didáticos nem ao menos citam a obra O presidente negro como parte
da bibliografia de Monteiro Lobato. Segundo Pietra Diwan, muitos dos intelectuais da
primeira metade do século XX “limparam de suas biografias essa passagem de suas
vidas”87.
Durante muitos anos, O presidente negro foi estrategicamente esquecido.
Seu perfil adulto e polêmico não combinava com o restante de sua obra, que tem tom
puro e infantil (hoje visto em muitos artigos como não sendo tão puro assim). A pro-
fessora Cláudia Alexandra Silva Santos, mestre em Estudos Étnicos e Africanos, em
artigo para o Jornal Ìrohìn88, parece ter a resposta do “esquecimento” da obra:
87 DIWAN, Pietra. Raça pura: uma história da eugenia no Brasil e no mundo. 2007. p. 93.
88 O Ìrohìn nasce em 1996 como fruto da movimentação em torno da Marcha Zumbi 300 anos,contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida (1995). Sediado em Brasília – capital do país e sede de
63
[e]sse romance não se tornou uma obra conhecida do grandepúblico até então por se tratar de uma publicação classificada peloseditores como inadequada para leitores adultos. Monteiro Lobatopossui mais visibilidade no cânone literário brasileiro ora como escri-tor de artigos, ora como escritor infanto-juvenil.
Com o passar dos anos, adaptados a outras mídias diferentesdo livro, essas narrativas que fizeram Monteiro Lobato se integrar aocânone literário brasileiro têm informado não apenas crianças e jo-vens – adultos são também alvo do amplo apelo comercial dessa li-teratura, que teve sua circulação historicamente relacionada à ofertade materiais didáticos no Brasil.
A maneira como Monteiro Lobato representa as relações étni-co-raciais é a outra razão para a pouca popularidade desse roman-ce. Para crianças e jovens Lobato fez uma literatura onde persona-gens negros estão situados numa escala inferior de uma hierarquiaétnico-racial89.
Monteiro Lobato sabia o que estava fazendo quando escreveu O presidentenegro. A exoneração do autor em relação a tal obra não se aplica ao seu caso. Ele
conhecia bem a eugenia, bem como o trabalho de seu criador Francis Galton, e, com
isso, pôde aplicar a teoria de modo completo em seu romance. Em certa altura do
livro, é possível constatar a referência a Galton:
[a] predominância do branco era pois esmagadora e de molde a nãoarrastar o americano a ver no negro um perigo serio. Mas com oproibicionismo coincidiu o surto das ideias eugenísticas de FrancisGalton. As elites pensantes convenceram-se de que a restrição danatalidade se impunha por mil e uma razões, resumíveis no velhotruísmo: qualidade vale mais que quantidade. Deu-se então a ruptu-ra da balança. Os brancos entraram a primar em qualidade, enquan-to os negros persistiam em avultar em quantidade. Foi a maré mon-tante do pigmento. Mais tarde, quando a eugenia venceu em toda alinha e se criou o Ministério da Seleção Artificial, o surto negro já eraimenso90.
governo – em seus primeiros anos, o Ìrohìn se propõe a dois objetivos: articular as organizaçõesdo movimento negro para acompanhamento de políticas governamentais de promoção da comu-nidade afro-brasileira por meio da capacitação de lideranças negras para esse acompanhamento;e acompanhar a atuação do Congresso Nacional em assuntos diretamente relacionados aos direi-tos e promoção da comunidade afro-brasileira.89Cf. <http://www.irohin.org.br/onl/new.php?sec=news&id=3800>. Acesso em 08 ago. 2010.90 LOBATO, Monteiro. O presidente negro. 1961. p. 211.
64
Mesmo assim, aquilo que é produzido na literatura é ficção e, para tanto, ad-
voga em favor do autor. Diferente da biografia que se torna mais digna de uma pro-
motoria, Monteiro Lobato era íntimo do grupo eugenista do Brasil. Um fato que com-
prova isso é o seguinte: quando foi fundada a Liga Pró-Saneamento do Brasil (LPSB),
para discutir propostas de projetos para a área de saúde, com a participação de Beli-
sário Penna, Carlos Chagas, Arthur Neiva, Miguel Pereira, Vital Brasil e Afrânio Pei-
xoto, Monteiro Lobato também estava lá.
Este mesmo grupo patrocinou a publicação da obra de Lobato, chamada Pro-blema vital, que teve o prefácio elaborado por Renato Kehl, amigo do autor e funda-
dor da Sociedade Eugênica de São Paulo. O mesmo prefácio foi retirado das Obrascompletas de Monteiro Lobato editada pela Brasiliense em contrato fechado em
1945. A amizade entre os dois se confirma em vários livros de Kehl, como Bio-perspectivas, entre outros, que tem o prefácio elaborados por Lobato onde afirma:
“Renato me parece o mais acabado tipo de cientista que a nossa atualidade pensante
possui”91. Além dessa troca de mimos em prefácios, o livro de Renato Kehl, A curada fealdade: eugenia e medicina social, de 1923, foi editado pela Monteiro Lobato e
Cia tendo, logicamente, seu conhecimento e aprovação. Para que não haja dúvidas
da afinidade entre os dois, no ano de 1951, foi publicado o livro O médico no lar:dicionário popular de medicina de urgência, de autoria conjunta entre Lobato e Kehl92.
Por ocasião da reedição de O presidente negro pela editora Brasiliense, em
1948, o mundo havia provado as piores consequências que a eugenia poderia acarre-
tar com o holocauto e a busca da supremacia ariana alemã durante a Segunda Guer-
ra Mundial. O mundo assistiu horrorizado à busca de uma “raça pura”, resultando em
um número sem precedentes de mortos. Mesmo assim, foram desconsideradas as
experiências negaticas da eugenia e a Brasiliense reeditou o “legado eugênico de
Monteiro Lobato” na íntegra. O texto original foi mantido e nada foi mudado, a despei-
to de um desejo antigo de Lobato deixado em carta a Renato Kehl, maior defensor da
eugenia no Brasil, no qual o único lamento do autor foi não ter mudado o prefácio:
Renato, tu és o pai da eugenia no Brasil e a ti devia eu dedicar meuChoque, grito de guerra pró-eugenia. Vejo que errei não te pondo láno frontispício, mas perdoai a este estropeado amigo. [...] Precisa-
91 LOBATO, Monteiro. Prefácios e entrevistas. 1961. p. 75.92 KEHL, Renato; LOBATO, Monteiro. O médico no lar: dicionário popular de medicina de urgên-cia. 1951.
65
mos lançar, vulgarizar estas ideias. A humanidade precisa de umacoisa só: poda. É como a vinha93.
Entretanto, Lobato não ficou tão distante de Kehl. A dedicatória original do
Choque das raças ou O presidente negro foi atribuída, além de a Coelho Netto, a
Arthur Neiva94, membro da Sociedade Eugênica de São Paulo. Fora este detalhe,
Monteiro Lobato não reformulou nenhuma ideia do seu texto eugênico nem demos-
trou que as experiências históricas como o nazismo e o fascismo fizeram-no reconsi-
derar sua postura, conforme comenta Maria Ana Quaglino:
[u]ma análise da correspondência do autor com cientistas da época[...], literatos, editores estrangeiros, amigos e parentes, assim comoda obra adulta e infantil do autor revelam que Lobato até o fim dasua vida, em 1948, não repudiou tais ideias e que estas estão pre-sentes ao longo de sua obra95.
A propósito de Arthur Neiva, citado anteriormente, Lobato, em carta datada de
1928, comenta que “[p]aís de mestiços, onde branco não tem força para organizar
uma Ku-Kux-Klan, é país perdido para altos destinos”. E ainda acrescenta que “[u]m
dia se fará justiça ao Ku-Klux-Klan; tivéssemos aí uma defesa desta ordem, que man-
tém o negro em seu lugar, [...] porque a mestiçagem do negro destrói a capacidade
construtiva”96.
Íntimo do grupo eugenista, Lobato partilhava da preocupação com a quantida-
de de mulatos que adivinha do cruzamento das raças. O grupo buscava, com isso,
uma forma de branquear a população. Para eles, a eugenia representava a salvação
93 Apud DIWAN, Pietra. Eugenia, a biologia como farsa. In:____. História viva. 2007. p. 81.
94 Participou da Assembleia Nacional Constituinte de 1933, quando, juntamente com os médicosMiguel Couto (eleito pelo Distrito Federal, hoje Rio de Janeiro) e Antônio Xavier de Oliveira (eleitopelo Ceará), defendeu “teses científicas” de darwinismo social e de eugenia racial, que propunhama necessidade do “branqueamento” da população brasileira e pediam o fim da imigração dos de-generados “aborígenes nipões” (japoneses).95 QUAGLINO, Maria Ana. Noções de raça e eugenia em Monteiro Lobato: vida e obra. XI EN-CONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA ANPUH-RJ – Democracia e Conflito, 2004.96 Carta de Lobato enviada a Arthur Neiva em 10 de abril de 1928 publicada na revista Bravo!Disponível em <http://bravonline.abril.com.br/conteudo/literatura/monteiro-lobato-era-racista-626234.shtml>. Acesso em 23 jul. 2011.
66
do país: “[a]pesar do paradoxo racial, implantar a eugenia no Brasil era visto por cien-
tistas e intelectuais do período como um caminho para elevar um país povoado por
uma legião de jecas”97. Não há como negar, então, que o escritor compartilhou do
pensamento racista a exemplo de vários médicos e intelectuais da primeira metade
do século XX. Na verdade, sua visão preconceituosa vem de muito antes dos primei-
ros contatos com os eugenistas. Em uma carta de 1908, endereçada ao amigo Godo-
fredo Rangel, Lobato já esboçava seu pensamento:
[e]stive uns dias no Rio. Que contra-Grécia é o Rio! O mulatismo di-zem que traz dessoramento do caráter. Dizem que a mestiçagem li-quefaz essa cristalização racial que é o caráter e dá uns produtosinstáveis. Isso no moral – e no físico, que feiura!”. Num desfile, à tar-de, pela horrível rua Marechal Floriano, da gente que volta para ossubúrbios, perpassam todas as degenerescências, todas as formase má-formas humanas – todas, menos a normal”. Os negros da Áfri-ca, caçados a tiro e trazidos à força para a escravidão, vingaram-sedo português da maneira mais terrível – amulatando-o e liquefazen-do-o, dando aquela coisa residual que vem dos subúrbios de manhãe reflui para os subúrbios à tarde. Como consertar essa gente? Co-mo sermos gente, no conserto dos povos? Que problemas terríveis opobre negro da África nos criou aqui, na sua inconsciente vingan-ça!...Talvez a salvação venha de São Paulo e outras zonas que in-tensamente se injetam de sangue europeu98.
O mesmo pensamento racista se manifesta na visão que Lobato tinha do ca-
boclo, concebido através do personagem Jeca Tatu. O desprezo pelo negro e pelo
mulato, representado em sua obra como sendo o caboclo, ou Jeca, vai ganhando
força em sua mente e se desenvolvendo em seus escritos, para finalmente encontrar
a teoria perfeita, que contemplava a síntese de seu pensamento preconceituoso: a
eugenia. Foi na figura de Renato Kehl que tudo se completava, para lamento de Lo-
bato que demorou a encontrá-lo e, para tanto, confessa, em carta direcionada a ele,
sentir-se “envergonhado por só agora travar conhecimento com um espírito tão bri-
lhante como o [s]eu, untado para tão nobres ideais e servido, na expressão do pen-
97 DIWAN, Pietra. Raça pura: uma história da eugenia no Brasil e no mundo. 2007. p. 80.
98 LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre. 1944. p. 133.
67
samento, para um estilo verdadeiramente ‘eugênico’ pela clareza, equilíbrio e rigor
vernacular”99.
Em suma, o pensamento racista sempre fez parte de Monteiro Lobato e foi nos
eugenistas que ele encontrou teoria para desenvolver suas ideias e aplicar em sua
literatura. O presidente negro foi fruto deste pensamento em união às teorias euge-
nista da época, culminando na ficção, aquilo que o autor achava possível ser efetiva-
do na realidade. Mesmo assim, a questão eugênica da obra, como expressão de
pensamento de um grupo político/intelectual da primeira metade do século passado,
bem como do próprio Lobato, não deve ser desconsiderada e muito menos esqueci-
da.
2.3 Monteiro Lobato, O presidente negro e a eugenia
Não caçamos pretos, no meio da rua, a pauladas, como nos EstadosUnidos. Mas fazemos o que talvez seja pior. A vida do preto brasileiroé toda tecida de humilhações. Nós tratamos com uma cordialidadeque é o disfarce pusilânime de um desprezo que fermenta em nós,dia e noite.
(Teatro experimental do negro, Nelson Rodrigues)
A obra de Monteiro Lobato, além de extensa, é muito polêmica. Por trás da
inocência de seus personagens infantis, existem muitas evidências racistas, as quais
começam a ser exploradas em algumas pesquisas mais contemporâneas. Defendido
por uns, crucificado por outros, Lobato ditou os caminhos editoriais do Brasil durante
muitos anos com suas editoras e livros, e só não seduziu o mercado editorial ameri-
cano da década de 30 – como era sua intenção – devido a suas ideias racistas que
por lá não foram aceitas. Tais ideias estão contidas no livro O presidente negro, ori-
ginalmente chamado de O choque das raças e editado em 1926, com o qual o autor
intencionava ganhar o mundo e ficar milionário.
99 Correspondência de Monteiro Lobato a Renato Kehl. São Paulo, 6 abr. 1918 (Fundo PessoalRenato Kehl, DAD-COC).
68
A trajetória do escritor/editor revela muitos aspectos de interesse para um es-
tudo crítico acerca da sua produção, em especial sua postura em relação ao racismo
e à aceitação disso no Brasil e nos Estados Unidos, tanto na década de 30 como na
época atual. Por ocasião da eleição americana de 2008, na qual um presidente negro
chegou à Casa Branca, o tema abordado por Lobato assumiu um tom profético e atu-
alizado, justificando mais uma vez um estudo neste sentido, e, acima de tudo, com
ênfase em seu pensamento com relação ao negro e à eugenia.
Monteiro Lobato teve um papel muito importante no meio editorial brasileiro.
Suas editoras popularizaram os livros e permitiram seu acesso à população. Antes de
seu movimento editorial, os livros eram publicados em editoras portuguesas. Três
foram as suas editoras: Monteiro Lobato e Companhia, Companhia Gráfico-Editora
Monteiro Lobato e Companhia Editora Nacional. No início da década de 1920, ele já
havia conseguido elaborar uma rede de distribuição nacional “em 500 localidades, de
modo que já est[ava] rompido o velho processo de confinar-se a produção literária às
capitais”. Deste modo, Lobato podia afirmar: “[h]oje, livro que edito aparece simulta-
neamente em quanto lugarejo haja, de Norte a Sul”100.
Mesmo com todo sucesso, a sua vida financeira não ia bem. Vitimada pela
crise e pela empolgação do autor, a Companhia Gráfico-Editora Monteiro Lobato faliu.
Neste momento da vida, Lobato se dedica ao seu novo projeto: o mercado editorial
americano. Animado, ele comenta sobre isso com o amigo Godofredo Rangel:
[s]abe o que ando gestando? Uma ideia-mãe! Um romance america-no, isto é, editável nos Estados Unidos. Já comecei e caminha de-pressa. Meio à Wells, com visão do futuro. O clou será o choque daraça negra com a branca, quando a primeira, cujo índice de prolife-ração é maior, alcançar a raça branca e batê-la nas urnas, elegendoum presidente negro! Acontecem coisas tremendas, mas vence porfim a inteligência do branco. Consegue por meio dos raios N., inven-tados pelo professor Brown, esterilizar os negros sem que estes de-em pela coisa101.
100 Carta de Lobato a Cascudo em 14-4-1921. CEDAE/Unicamp.
101 LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre. Tomo 2. 1961. p. 293.
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Na visão de Lobato, essa história era considerada um futuro best-seller. Entre-
tanto, devido ao modo como ele trata a questão do negro, a obra assume um cunho
social e político, o qual revela ser um tratado de divulgação da eugenia.
Nos dias que antecederam o início da publicação, o jornal A Manhã fez alu-
sões do que seria a obra, afirmando que Monteiro Lobato “recorre à Imaginação,
sempre firme na Lógica, e cria uma visão de futuro onde o grande número dos so-
nhos de hoje aparecem plenamente realizados”. O jornal enfatiza a localização geo-
gráfica da narrativa: “[c]omo era natural, o drama foi alocado na América do Norte, a
locomotiva da civilização, o país maravilhoso de Henry Ford, esse messias da ideia
nova que está criando as bases industriais do mundo futuro”. E termina afirmando
que o livro “[é] um hino à Eugenia, às leis espartanas revividas na América e é um
brado d´armas em prol do principio mágico que está fazendo da América do Norte um
mundo dentro do mundo – a Eficiência”102.
E assim foi lançado originalmente O choque das raças ou O presidente ne-gro, com uma tiragem inicial de 16 mil exemplares, um bom número para época,
mesmo assim longe da estimativa de Lobato, de que o livro seria publicado simulta-
neamente em Nova York e em mais cinco línguas. Apesar disso, o mercado america-
no era o objetivo futuro do autor: “[m]inhas esperanças estão todas na América. Mas
o Choque só em fins de janeiro estará traduzido para o inglês, de modo que só lá
pelo segundo semestre verei dólares. Mas os verei e à beça, já não resta a menor
dúvida”103.
Em carta datada de 23 de março de 1927 ao amigo Godrofredo Rangel, Loba-
to fala de sua tentativa de uma publicação internacional: “[f]oi para a América um te-
legrama da United Press sobre O choque. Telegrama para uma cadeia de jornais.
Uma revista americana deu notícia e falou de provável edição inglesa”104. Alguns me-
ses depois, em maio de 1927, Lobato vai morar em Nova York para conduzir a publi-
cação de seu livro e fundar uma editora, a Tupy Publishing Company. Na mesma car-
ta de março de 1927, Lobato conta a Rangel:
102 AZEVEDO, Carmem Lucia de; CAMARGOS, Márcia; SACCHETTA, Vladimir. Monteiro Loba-to: furacão na Botocúndia. 2000. p. 213-214.103 LOBATO, Monteiro. Cartas escolhidas. Tomo 1. 1961. p. 189.104 LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre. Tomo 2. 1961. p. 299.
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[a] 27 de abril sigo de mudança para os Estados Unidos, para ondefui nomeado Adido Comercial. Verei se lanço lá a edição inglesa doChoque de raças e estudarei a hipótese do transplante da nossasegunda empresa editora. Se for possível, chamar-se-á Tupy Publi-shing Co. e há de crescer mais que a Ford105.
O otimismo de Lobato tem justificativa na esperança de que o mercado ameri-
cano aceitasse suas ideias baseadas na eugenia, ainda mais pela “homenagem” que
o livro trazia aos Estados Unidos como país que encontrou a “solução definitiva” para
a questão dos negros e da superioridade das raças.
Depois de meses de espera das editoras, chega a resposta sobre a publicação
de seu livro. Quem responde é William David Pall, diretor da agência literária califor-
niana Palmer:
[i]nfelizmente, [...] o enredo central é baseado em um assunto parti-cularmente difícil de se abordar neste país, porque ele irá, certamen-te, acender o tipo mais amargo de sectarismo e, por esta razão, oseditores são invariavelmente avessos à ideia de apresentá-lo ao pú-blico leitor. [...] [E] nem mesmo o fato do ocorrido estar localizado300 anos no futuro iria amenizá-lo na cabeça dos leitores negros.Estivesse o senhor lidando com a invasão de uma nação estrangei-ra, ou raça, a reação seria bem diferente; mas o negro é um cidadãoamericano, uma parte integrante da vida nacional, e sugerir seu ex-termínio por meio da sabedoria e da capacidade superior da raçabranca levaria a uma dissensão tão violenta no espírito dos leitoresquanto faria um conflito entre dois partidos políticos, ou duas religi-ões, em que um extirparia o outro106.
Seu plano editorial havia falhado. Por mais que o movimento em prol da euge-
nia fosse forte nos Estados Unidos, havia grande movimento contrário. Os temas po-
lêmicos e preconceituosos de Lobato não poderiam ser aceitos por um país que es-
boçava firmes movimentos de antirracismo. Nesse sentido, Lobato se lamenta com o
amigo: “[m]eu romance não encontra editor. Falhou a Tupy Company”. E ainda apre-
105 Ibidem. p. 300.106 AZEVEDO, Carmem Lucia de; CAMARGOS, Márcia; SACCHETTA, Vladimir. Monteiro Loba-to: furacão na Botocúndia. 2000. p. 392.
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senta o motivo de sua empreitada ter falhado: “[a]cham-no ofensivo à dignidade ame-
ricana, visto admitir que depois de tanto séculos de progresso moral possa este povo,
coletivamente, combater a sangue frio o belo crime que sugeri”. Sem remorsos, ele
conclui: “[e]rrei vindo cá tão verde. Devia ter vindo no tempo em que eles linchavam
os negros. Os originais estão com o Isaac Goldberg para ver se há arranjo. Adeus,
Tupy Company!”107.
Sem desanimar, Lobato vai contra todas as negativas e acredita que, quanto
mais polêmico for o livro, maior será o seu lucro:
[u]m escândalo literário equivale no mínimo a 2.000.000 dólares parao autor e com essa dose de fertilizante não há Tupy que não grele.Esse ovo de escândalo foi recusado por cinco editores conservado-res e amigos de obras bem comportadas, mas acaba de encher deentusiasmo um editor judeu que quer que eu o refaça e ponha maismatéria de exasperação. Penso como ele e estou com ideias de en-xertar um capítulo no qual conte a guerra donde resultou a conquistapelos Estados Unidos do México e toda essa infecção Spanish daAmérica Central. O meu judeu acha que com isso até uma proibiçãopolicial obteremos – o que vale um milhão de dólares. Um livro proi-bido aqui sai na Inglaterra e entra boothegued como o whisky e ou-tras implicâncias dos puritanos108.
Apesar de tudo isso, nada aconteceu. O livro nunca foi editado nos Estado
Unidos, nem recebeu uma edição inglesa. O peso dos assuntos abordados não pos-
sibilitou espaço no mercado internacional, limitando-se a uma edição Argentina109,
país onde havia um grupo eugenista efetivado, denominados de Associação Argenti-
na de Biotipologia, Eugenia e Medicina Social (AABE) que foi criado com inspiração
em fundamentos do fascismo italiano.
Algumas partes de O presidente negro ajudam a explicar o motivo da aver-
são internacional. No romance, uma máquina chamada de “porviroscópio” consegue
deslumbrar os Estados Unidos de 2228, momento em que a eugenia tinha purificado
a população:
107 LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre. Tomo 2. 1961. p. 304.
108 LOBATO, Monteiro. Cartas escolhidas. Tomo 1. 1961. p. 112.109 A Argentina foi o único país da America Latina com uma legislação regulamentando a esterili-zação eugênica.
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[a] lei Owen, como era chamado esse Código da Raça, promo-veu a esterilização dos tarados, dos mal-formados mentais, de todosos indivíduos em suma capazes de prejudicar com má progênie o fu-turo da espécie. Só depois da aplicação de tais leis é que foi possí-vel realizar o grandioso programa de seleção que já havia empolga-do todos os espíritos. Os admiráveis processos hoje em emprego nacriação dos belos cavalos puro-sangue passaram a reger a criaçãodo homem na America. [...]
Desapareceram os peludos – os surdos-mudos, os aleijados,os loucos, os morféticos, os histéricos, os criminosos natos, os faná-ticos, os gramáticos, os místicos, os retóricos, os vigaristas, os cor-ruptores de donzelas, as prostitutas, a legião inteira de mal-formadosno físico e no moral, causadores de todas as perturbações da socie-dade humana110.
Na ficção, Monteiro Lobato conseguiu provar as supostas vantagens da sele-
ção “não natural”, de modo que os considerados “inferiores” foram eliminados. Entre-
tanto, ainda havia a questão do negro, que aos poucos o autor vai caracterizando na
obra:
– Mas... o “mas” perturbador de todos os cálculos humanossurgiu. Apesar de submetida aos mesmos processos restritivos dosbrancos, a raça negra começou desde logo a apresentar um índicemais alto de crescimento. A proporção do negro puro relativa aobranco subiu a um quinto, a um quarto, a um terço, e por fim chegouá metade... Quer dizer que o binômio racial, desprezado na era docrescimento imigratório e descurado no inicio do regime seletivo,passou a entrar na fase aguda do “resolve-me ou devoro-te”111.
A primeira solução que o livro apresenta era a expulsão de todos os negros.
Eles seriam “exportados” dos Estados Unidos: “[e]stávamos na solução branca, e
direi que todos os brancos americanos só queriam uma coisa: exportar, despejar os
cem milhões de negros americanos no vale do Amazonas”112. No entanto, tal solução
não era possível, já que os negros não sairiam voluntariamente, e uma guerra civil
poderia ser decretada. A solução definitiva veio com a criação dos raios Omega, in-
110 LOBATO, Monteiro. O presidente negro. 1961. p. 76.
111 Ibidem. p. 77.112 Ibidem. p. 79.
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ventados pelo cientista John Dudley. Com a promessa de se livrar dos cabelos pi-
xaim, os negros se sujeitaram a sessões de alisamento com os raios, sem saber que
na verdade estavam sendo esterilizados:
– “Tua raça morreu, Jim” – repetiu Kerlog. “Com a frieza impla-cável do Sangue que nada vê acima de si, o branco pôs um ponto fi-nal no negro da America”.
Jim quedou-se um instante imóvel, como que adivinhando.
– “Os raios Omega!” exclamou afinal num clarão, agarrando osbraços de Kerlog com os dedos crispados.
– “Sim”, confirmou Kerlog. “Os raios de John Dudley possuemvirtude dupla... Ao mesmo tempo que alisam os cabelos...”
Os olhos de Jim saltaram das orbitas. Seu transtorno de fei-ções era tamanho que o líder branco vacilou de piedade. A raça cru-el, porém, reagiu nele. E, surda, quase imperceptível, aflorou emseus lábios a palavra fatal:
– “... esterilizam o homem”113.
O problema estava resolvido. Pacificamente, a raça negra foi extinta do solo
americano. Na visão de Monteiro Lobato, foi a solução perfeita, e ele não conseguia
entender como o mercado editorial americano não percebia o brilhantismo de sua
obra. Na ficção, conforme relatório do governo americano apresentado no livro, o ide-
al da eugenia fora efetivado em plenitude:
[o] governo americano vem dar conta ao povo do golpe de força aque foi arrastado em cumprimento da suprema deliberação dos che-fes da raça branca, reunidos em palácio no dia 7 de maio de 2228.Foi aprovada nessa assembleia a moção Leland, resumida nestaspalavras: “A convenção da raça branca decide alterar a Lei Owen nosentido de incluir entre as taras que implicam a esterilização o pig-mento negro camuflado... A raça branca autoriza o governo ameri-cano a lançar mãos dos recursos que julgar convenientes para aexecução desta sentença suprema e inapelável”. Assim autorizado,o governo procurou agir de modo a evitar perturbações na vida naci-onal: estava em estudos da matéria quando John Dudley apareceucom a revelação da virtude dupla dos raios Omega. Adotado esse
113 Ibidem. p. 163.
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maravilhoso processo, operou-se a esterilização dos homens pig-mentados pelo único meio talvez em condições de não acarretar pa-ra o país um desastre. O problema negro da America está pois re-solvido da melhor forma para a raça superior, detentora do cetro su-premo da realeza humana114.
O sonho da eugenia se efetiva na ficção. Sem arrependimento nem culpa, a
história de Lobato mostra um feliz e harmônico futuro, no qual a raça branca impera e
o negro é apenas uma lembrança:
[d]ecênios mais tarde, no maravilhoso jardim americano onde sóabrolhavam camélias de pétalas levemente acobreadas pela forçamisteriosa do geoambiente, erguia-se, ao alto do monumento de gra-tidão erigido pelo sócio branco em homenagem ao sócio negro, obusto do velhinho mágico que em 2228 curara a dor de cabeça his-tórica115 do 87° Presidente...116.
Na parte final do livro, um resquício de humanismo envolve o personagem Ayr-
ton, mas durou apenas por um segundo:
Não ter futuro, acabar... Que torturante a sensação dessa mas-sa de cem milhões de criaturas assim amputadas do seu porvir! Poroutro lado, que maravilhoso surto não ia ter na America o homembranco, a expandir-se libérrimo na sua Canãa prodigiosa!117
A nossa solução foi medíocre. Estragou as duas raças, fundin-do-as. O negro perdeu as suas admiráveis qualidades físicas de sel-vagem e o branco sofreu a inevitável piora de caráter, consequente atodos os cruzamentos entre raças díspares. Caráter racial é uma cris-talização que às lentas se vai operando através dos séculos. O cru-zamento perturba essa cristalização118.
As afirmações racistas foram demais para o grupo editorial americano da dé-
cada de 20, e a obra de Lobato não foi aceita. No Brasil, o livro foi reeditado várias
114 Ibidem. p. 169.115 A dor de cabeça histórica a que o texto se refere é como se livrar dos negros.116 Ibidem. p. 166.117 Ibidem. p. 170.118 Ibidem. p. 206.
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vezes e, por fim, foi publicada pela Editora Globo em 2008. Essa última foi um tanto
oportuna, em razão da eleição americana ocorrida no mesmo ano, na qual um presi-
dente negro – Barack Obama – fora eleito, derrotando um candidato branco e uma
feminista. O teor visionário tornou-se comercial. Uma disputa pelos direitos autorais
da família Lobato com a Editora Brasiliense, originalmente detentora dos direitos so-
bre a obra do autor, foi estrategicamente sanada e os direitos concedidos à Editora
Globo. Em carta à editora, por ocasião da pesquisa deste artigo, foi questionado deta-
lhes da nova publicação, mas não foram repassados dados sobre a tiragem, apenas
a confirmação de que não há previsão para uma edição internacional de O presiden-te negro.
Esse romance, que provavelmente formula de modo mais contundente à ques-
tão do preconceito e da eugenia no Brasil no início do século XX, não recebeu o de-
vido tratamento por parte da crítica. Como se verificou na primeira seção deste capí-
tulo, os estudiosos de Lobato desconsideram o preconceito racial que existe em sua
obra. É claro, naquele início de século, o racismo contra certos grupos – e, aqui, in-
cluem-se os negros – era bastante comum e, às vezes, encarado com certa naturali-
dade, mas, a exemplo do que ainda acontece hoje, constituía-se numa forma de vio-
lação aos direitos humanos. Assim, portanto, carregado de valores negativos, o tema
da obra, num primeiro momento, pareceu sem grande importância, talvez devido à
naturalidade como o assunto era tratado. Contudo, num segundo momento, a crítica
entra em cena e, ao que parece, optou por associar o autor a outros temas, a fim de
não comprometer a sua legitimidade no cânone, nem associá-lo a uma imagem pre-
conceituosa.
Com isso, um primeiro critério para a exclusão de O presidente negro do câ-
none, no momento de sua publicação, diz respeito ao fato de o tema não ser relevan-
te para os leitores, já que o racismo era comum na época. Passado algum tempo, no
instante em que a sociedade começa a se colocar desfavorável ao racismo, os críti-
cos manipulam os estudos acerca de Lobato de modo que o romance passa a ser
omitido da literatura a fim de não manchar a reputação do autor. Nesse gesto, po-
dem-se notar as manobras do cânone para não ser acusado de excludente nem de
estar calcado em ideologias preconceituosas. Dito em outros termos, a publicação de
O presidente negro poderia ter sido considerada uma mola propulsora para se rea-
valiar a produção lobatiana com base no critério da violência; no entanto, isso não
aconteceu. Particularmente em relação ao tema do preconceito racial contra o negro
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em Lobato, o esforço do cânone foi tratá-lo como algo inexistente, o que revela, por
outro lado, o seu empenho para mascará-lo.
O propósito, aqui, não consiste em elencar justificativas para omitir Monteiro
Lobato e sua produção do cânone, nem mesmo desqualificar as suas temáticas mais
constantes. A ideia é justamente propor uma reavaliação dos critérios de canonização
em que muitos críticos se pautam para a escolha de um autor. Com isso, o objetivo,
além de ser uma rediscussão do que está legitimado por um a certa tradição acadê-
mica, é também debater a importância do que foi mantido às escuras até o momento
atual para se propor uma visão mais abrangente sobre um autor e sua obra. Essa
reflexão dialética visa, em última instância, a estabelecer linhas de pensamento e
critérios de legitimação menos preconceituosos e mais abrangentes em relação ao
que se teve no passado.
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3 EUGENIA E PRECONCEITO EM O PRESIDENTE NEGRO
O mesmo trabalho feito pela Natureza ao correr de milhares de anos,pela seleção natural, nos reinos animal e vegetal, o Homem tem-noconseguido em meio século, pela Seleção Artificial. A eugênica pro-põe-se aproveitar deste fato, tão cheio de significação e de novas es-peranças, para os fins do progresso humano, para o melhoramentoda nossa própria raça, para apressar os processos infinitamente va-garosos da Evolução! A eugênica define-se como a ciência que tratadas influências que possam melhorar as qualidades natas de uma ra-ça, ou que as possam desenvolver com maior vantagem. Trata efeti-vamente da aplicação prática das leis de hereditariedade ao rápidomelhoramento da Raça Humana.
(Melhoremos a nossa raça, Charles Arminstrong)
3.1 A propósito da eugenia e do preconceito no romance de Lobato
O racismo como crença na desigualdade das raças humanas, emnome da qual certas raças e certas culturas se encontram submeti-das à exploração econômica, à segregação social e mesmo à des-truição física. São racistas todos os indivíduos e todas as políticas cu-jos atos se inspirem, conscientemente ou não, nessa crença.
(Racismo à brasileira, Martiniano José da Silva)
Para a compreensão dos fatores de canonização e dos elementos sociais pre-
sentes em O presidente negro, levam-se em conta as três primeiras décadas do
século XX como recorte temporal, uma vez que é neste período que se dá a publica-
ção do livro bem como consiste na época em que se desenrola a trama literária. Vale
ainda frisar que o entendimento deste período permite a percepção dos fatores que
determinavam as tendências sociais e consequentemente culturais que, para o pre-
sente caso, mostram-se válidas na literatura e nos fatores de suas preferências e le-
gitimações, amparadas pelos detentores do poder e privilegiadas em forma de câno-
ne.
Uma análise preliminar passa pela República Velha, que antecede a quebra
da bolsa de valores em Nova York em 1929. Os intelectuais desse período tiveram
importante papel na construção de elementos culturais e saberes que permitiram a
organização do Estado, consciente de sua realidade e detentor dos mais variados
padrões aceitos pela República. Segundo Oliveira Vianna, “[a] realização de um
grande ideal nunca é obra coletiva da massa, mas sim de uma elite, de um grupo, de
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uma classe, que com ele se identifica, que por ele peleja, que, quando vitoriosa, lhe
dá realidade e lhe assegura execução”119.
Essa ideia apresentada por Vianna representa a busca da identidade nacional,
que, impulsionada pelo grupo intelectual, era feita por diretrizes e normas que, ten-
denciosamente, colocavam tais intelectuais como camada social privilegiada nesse
universo republicano. De acordo com Alberto Torres, o poder exercido pelos intelec-
tuais passa pelo pressuposto de que “[t]ornar-se uma ‘força social’ supunha nada
menos que ‘traçar a política’ do país, tomando consciência de duas tarefas urgentes
do momento: forjar uma consciência nacional [...] e promover a organização nacio-
nal”120. Em contrapartida, os questionamentos de Renato Ortiz apontam o lado ten-
dencioso dessa busca pela identidade nacional: “a pergunta fundamental seria: quem
é o artífice desta identidade e desta memória que se querem nacionais? A que gru-
pos sociais elas se vinculam e a que interesses elas servem?”121.
Calcados em teorias científicas oriundas da Europa, os padrões de “superiori-
dade” foram estabelecidos e associados ao poder da República, na qual os referidos
intelectuais colocaram-se na privilegiada posição de participar, inclusive, como repre-
sentantes políticos. Por mais que o grupo intelectual tivesse suas divergências, seus
pensamentos mantinham-se unidos no que se refere à sua posição elevada em rela-
ção à população de modo geral.
Tendo esse panorama como contexto, surgiram teorias que atribuíam primazi-
as ao grupo dominante, não apenas pelo poder que detinham em relação à grande
massa, mas também na questão da dominação racial. Inevitavelmente, “ganharam
espaço diversas modalidades do pensamento darwinista social, com a função de dar
fundamentos à rígida hierarquização social do país, a partir das diferenças raciais”122.
Os problemas de ordem social que o Brasil enfrentava foram atribuídos às raças infe-
riores e, como Renato Ortiz comenta, era imprescindível uma solução:
[t]orna-se necessário, por isso, explicar o atraso brasileiro e apontarpara um futuro próximo ou remoto, a possibilidade de o Brasil seconstituir enquanto povo, isto é, como nação. O dilema dos intelectu-ais desta época é compreender a defasagem entre a teoria e a reali-
119 OLIVEIRA VIANNA, Francisco J. O Idealismo da Constituição. 1939. p. 87.120 Apud PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil. 1990. p. 29.121 ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. 1994. p. 139.122 VIEIRA, Rosa Maria. Celso Furtado: reforma, política e ideologia (1950-1964). 2007. p. 140.
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dade, o que se consubstancia na construção de uma identidade naci-onal123.
A superioridade foi associada à origem europeia, de modo que aos negros foi
atribuída a condição de corruptores da identidade nacional pura e branca. Os intelec-
tuais realmente acreditavam que a evolução do Brasil estava comprometida devido à
presença africana. Como comenta Nina Rodrigues, “por maiores que tenham sido os
seus incontestáveis serviços à nossa civilização, por mais justificadas que sejam as
simpatias de que a cercou o revoltante abuso da escravidão”, a raça negra “há de
constituir sempre um dos fatores de nossa inferioridade como povo”124. Assim como
afirma a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz,
[i]ncômoda era a situação desses grupos intelectuais, que oscilavamentre a adoção de modelos deterministas e a reflexão sobre suas im-plicações; entre a exaltação de uma “modernidade nacional” e a veri-ficação de que o país, como tal, era inviável. “Devia ser difícil abrirmão da crítica externa e de uma certa internalização desse tipo de vi-são estrangeira a respeito do Brasil, como um país aberrante [...].Afinal, em um momento em que se redescobria a nação, aborígenes,africanos e mestiços passavam a ser entendidos como obstáculospara que o país atingisse o esplendor da civilização, como uma bar-reira para a formação de uma verdadeira identidade nacional”125.
Em consonância com tais pensamentos, qualquer manifestação que defen-
desse os interesses da elite branca tinha espaço no meio intelectual, o que envolvia,
entre outras manifestações culturais, a própria literatura. A produção literária que es-
tivesse afinada com tais manifestações era amparada pela elite intelectual, que deti-
nha o poder junto à República e ao cânone. É o caso do livro Canaã (1902), de Graça
Aranha, em que o personagem Lentz tem em seu discurso a marca do pensamento
racista que estava em voga. Em certa altura do romance, lê-se: “– Mas o que se tem
feito quase nada, e ainda assim o esforço do europeu. O homem brasileiro não é um
fator do progresso: é um híbrido. E a civilização não se fará jamais nas raças inferio-
res”126.
O meio social, controlado pela elite burguesa, criou os limites e as possibilida-
des para a literatura e para os homens de letras. Defender as concepções burguesas
123 ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. 1994. p. 15.124 RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. 1976. p. 14.125 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. 1993. p. 240.126 ARANHA, Graça. Canaã. 2002. p. 40.
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em seus valores e preferências consistia numa aliança com o cânone que, inevita-
velmente, representava um lugar promissor no meio literário. Nesse sentido, a obra
de Lobato atendia a seus espectadores, desde a época da criação do Jeca Tatu co-
mo denúncia-símbolo do olhar crítico na busca da compreensão da realidade do Bra-
sil visando à sua evolução e à concepção de nação, bem como à “exoneração” dada
por Lobato ao seu caboclo quando as campanhas de higienização prometiam resol-
ver o problema do atraso brasileiro.
De modo semelhante, a trajetória de aceitação e estratégico esquecimento do
romance O presidente negro pelo cânone brasileiro revelam a tentativa do autor de
angariar a aprovação dos leitores da época, representados pela elite branca, sua
imediata aceitação pelos críticos do período e um posterior estado de esquecimento
quando o tema abordado pela obra se tornou politicamente “incorreto” no momento
em que seus ideais caíram de moda.
Isso decorre do fato de a sociedade burguesa e branca da década de 20, na
grande maioria simpática aos temas racismo e eugenia tais como abordados por Lo-
bato, ter aceito a obra como instrumento de divulgação ideológica em detrimento à
própria literatura, conforme afirmado no jornal A Manhã: “[era] um hino à Eugenia, às
leis espartanas”127. No mesmo sentido, a nota introdutória do romance, por ocasião
da reedição pela Editora Brasiliense, destaca: “[e]mbora aparentemente uma ‘brinca-
deira de talento’, encerra um quadro do que realmente seria o mundo de amanhã, se
fosse Lobato o reformador – e em muitos pontos havemos de concordar que sob apa-
rências brincalhonas brilha um pensamento de grande penetração psicológica e soci-
al”128.
A mesma nota introdutória apresentada acima termina listando vários elemen-
tos prefigurados por Lobato, dando destaque a sua visão futurística e, não por acaso,
colocando em primeiro lugar “[o] conserto do mundo pela eugenia”129, que o romance
proporciona. Nesse sentido, com um tema conivente ao pensamento da sociedade
burguesa branca da época, que, na verdade, era composta pelos críticos, os quais,
por sua vez, contribuíam para a constituição do próprio cânone, as possibilidades de
o livro ser um sucesso se alargavam. Segundo Celso Furtado,
127 In AZEVEDO, Carmem Lucia de; CAMARGOS, Márcia; SACCHETTA, Vladimir. Monteiro Lo-bato: furacão na Botocúndia. 2000. p. 112.128 LOBATO, Monteiro. O presidente negro. 1961. p. 125.129 Ibidem.
81
sob o impacto da abolição da escravatura e da Monarquia e daemergência da República e do trabalho livre, a questão em pauta eraas possibilidades de se construir uma nação civilizada nos trópicos –a europeização do Brasil, o branqueamento de sua população. Amiscigenação tornou-se o tema central para as elites intelectuais, fil-trando-se a leitura da problemática nacional pelo viés da raça. Ali-mentados por vasta literatura determinista, importada dos centros eu-ropeus, pensadores brasileiros do período debateram-se com o dile-ma de conciliar os modelos teóricos evolucionistas, que apontavam ainevitabilidade do progresso e da civilização, e as teses racistas, quealertavam para os riscos das misturas raciais, geradoras da degene-ração do indivíduo e da sociedade130.
Lobato era, sem sombra de dúvidas, o maior editor daquele período, era um
profissional em publicar livros e lançar escritores, conhecia como ninguém a crítica e
os gostos dos leitores e, por isso mesmo, sabia o que estava fazendo. A ideologia da
eugenia como ciência estava à frente da própria literatura, assim como a dedicatória
de Lobato contida no romance a dois famosos eugenistas: “A Arthur Neiva e Coelho
Netto, dois grandes mestres no trabalho, na ciência [primariamente] e nas letras [de-
pois]”131.
Atualmente, as posturas assumidas por Lobato em O presidente negro pare-
cem um pouco dissonantes com o nacionalismo que o eternizara no cânone. De
acordo com os autores de Furacão na Boticúndia, “[f]rancamente eugenista, a trama
urdida por Lobato em O choque, onde a inteligência dos brancos acabava vencendo,
vem destacar posições ambíguas do escritor”132. Segundo eles, as ideias de superio-
ridade racial destacadas por Lobato nesse livro diferem no seu nacionalismo “em ou-
tros momentos [em que] resgata o elemento de origem africana e reconhece seu pa-
pel na cultura brasileira” e usam como exemplo a “caracterização de Tia Nastácia e
Tio Barnabé, personagens do Sítio do pica-pau amarelo representantes do saber
popular”133.
Tal ambiguidade descrita pelos autores é percebida em uma análise contem-
porânea daquilo que representa o texto lobatiano e daquilo que o cânone manteve
como destaque até os dias presentes. Por outro lado, quando a análise é feita no
momento em que a obra foi produzida, com os juízos de valor utilizados pela crítica
da época e os critérios canônicos do início do século passado, os resultados não re-
130 Cf. VIEIRA, Rosa Maria. Celso Furtado: reforma, política e ideologia. 2007. p. 138.131 LOBATO, Monteiro. O presidente negro. 1961. p. 125.132 AZEVEDO, Carmem Lucia de; CAMARGOS, Márcia; SACCHETTA, Vladimir. Monteiro Loba-to: furacão na Botocúndia. 2000. p. 117.133 Ibidem. p. 117.
82
velam ambiguidade. Para o grupo intelectual desse período, falar no enaltecimento da
raça branca era sinônimo de nacionalismo. Em vários dos contos lobatianos, o pen-
samento de superioridade racial já havia sido aplicado pelo autor e foi em O presi-dente negro que eles se efetivaram. Não era novidade o fato de o autor tratar desses
temas e, por isso, não causou surpresa seu aparecimento nesse último romance.
Mesmo assim, o que chama a atenção – e é visto como ambiguidade pelos autores
de O furacão – é a evolução de suas ideias racistas, que agora surgiam impulsiona-
das pela ciência eugenista que Lobato estava tendo contato. Tais pensamentos racis-
tas estão mais acentuados do que no restante de sua obra, sistematizados e aplica-
dos com frieza.
Com o tempo, os pensamentos racistas foram perdendo força na sociedade
brasileira, e as abordagens de Lobato em O presidente negro não tiveram espaço
no mundo pós-holocausto. Entretanto, por mais que o tempo tenha feito o seu livro
ficar afastado do cânone e dos manuais literários, no momento de sua publicação,
era bem aceito de modo que o cânone acolhia o romance e os pensamentos do au-
tor. Diferente, é claro, e frustrante para Lobato, do cânone literário nos Estados Uni-
dos do início do século passado, que simplesmente não aceitou sua obra e seus ide-
ais eugênicos. Em outras palavras, O presidente negro foi levado em conta pelo
cânone brasileiro quando o assunto tratado era popular e reconhecido, mas, posteri-
ormente, foi deixado de lado com sua temática racista dissociada do autor quando
isso não era mais conveniente. Em suma, o texto passou por um processo de esque-
cimento quando o racismo representava uma “mancha” na história literária de Lobato.
No que se refere ao momento de sua publicação, em que os temas de O pre-sidente negro estavam afinados à crítica e à sua canonização, percebe-se, no modo
como os personagens foram caracterizados e, acima de tudo, nas diferenças entre
brancos e negros, a superioridade da classe que Lobato representava.
Ao se levar em conta o perfil dos personagens centrais da trama de Lobato,
percebe-se a adequação ao padrão da elite burguesa da época, ou, ao menos, a
busca por essa adequação. Os personagens que permeiam o centro da obra são cri-
ados no arquétipo canônico no qual a raça ariana era preferencial. De acordo com o
historiador Roger Chartier, “[a]s representações não são discursos neutros: produzem
estratégias e práticas tendentes a impor uma autoridade, uma deferência, e mesmo a
legitimar escolhas”134. Dessa forma, a partir da preferência nas escolhas dos elemen-
134 CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. 2002. p. 17.
83
tos principais da narrativa, e ainda atenuado pelo seu desfecho, nota-se na literatura
a busca do branqueamento do social, tanto em âmbito humano como canônico, ou
seja, “uma forma socialmente valorizada de discurso que elege quais grupos são dig-
nos de praticá-la ou de se tornar seu objeto”135. Por isso, ao negro se relega uma fun-
ção secundária. Assim, a propósito de O presidente negro, tem-se a necessidade da
presença de um arquétipo na comprovação da superioridade do branco como forma
de se efetivar as teorias eugênicas.
Através dos diálogos entre os personagens Ayrton e Miss Jane, o autor apre-
senta detalhes do que seria a realidade futura da América no ano 2228. Miss Jane,
por meio da ciência e de uma máquina chamada “porviroscópio” – construída pelo
Professor Benson, seu pai – conseguiu deslumbrar o futuro, mesmo ela estando situ-
ada temporalmente no século XX. Os diálogos com Ayrton são as confissões dessas
visões futuras, já que o “porviroscópio” havia sido destruído por seu criador, restando
apenas as memórias de Miss Jane. O tema “branqueamento” da raça é a temática
central de O presidente negro e, por meio de tais conversas, revela as falhas na
aplicação desse processo no Brasil e o ideal de perfeição quando aplicado nos Esta-
dos Unidos. O livro deixa claro que, no caso brasileiro, grandes esforços foram feitos,
mas o idealismo não garantiu a criação de uma nação branca e elitizada:
[s]e o senhor Ayrton observar um pouco a psique americana verá, aocontrário, que é o único povo idealista que floresce hoje no mundo.Único, vê? Apenas se dá o seguinte: o idealismo dos americanos nãoé o idealismo latino que recebemos com o sangue. Possuem-no deforma específica, próprio, e de implantação impossível em povos nãodotados do mesmo caráter racial. Possuem o idealismo orgânico.Nós temos o utópico136.
Nesse fragmento, as referências que Lobato faz ao “idealismo orgânico” e ao
“idealismo utópico” não foram colocadas por acaso. Elas estavam fortemente ligadas
às teorias de Oliveira Vianna (membro da ABL em 1937), as quais Lobato conhecia
muito bem como amigo e leitor de suas obras O idealismo na evolução política doImpério e da República (1922), Evolução do povo brasileiro (1923) e O idealismoda constituição (1924). A intimidade de Lobato com esses textos era inegável, já
que eles foram publicados por suas editoras. Nesses estudos, Vianna afirma que os
135 SHOHAT, Ella; STAM, Robert. Crítica da imagem eurocêntrica: multiculturalismo e represen-tação. 2006. p. 51.136 LOBATO, Monteiro. O presidente negro. 1961. p. 66.
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motivos iniciais do atraso social brasileiro, em especial com suas chamadas raças
inferiores (negros, índios e mulatos), estavam ligados ao idealismo utópico instaurado
no Brasil com a República e os pensamentos que foram importados sem se levar em
conta a realidade da nação. Conforme Vianna, “se, ontem como agora, o problema da
democracia no Brasil tem sido mal posto, é porque tem sido posto à maneira inglesa,
à maneira francesa, à maneira americana; mas, nunca, à maneira brasileira”. Para
ele, ainda, esse idealismo utópico era “qualquer conjunto de aspirações políticas em
íntimo desacordo com as condições reais e orgânicas da sociedade que pretende
reger e dirigir”137.
Por sua vez, o “idealismo orgânico” levaria em conta a realidade do Brasil e,
com isso, supostamente traria as soluções mais adequados para os problemas naci-
onais, pois “nascem da própria evolução orgânica da sociedade e não são outra coisa
senão visões antecipadas de uma evolução futura”138. Em outras palavras, o “idea-
lismo utópico” partiria das normas para a sociedade, não levando em conta os dados
da experiência. O “idealismo orgânico”, por outro lado, partiria da sociedade para as
normas, apoiando-se na experiência e orientando-se pela observação do povo e do
meio139.
Com esses mesmos pensamentos, Lobato defende, em O presidente negro,
esse “idealismo orgânico”, afirmando que, “[e]m todos os grandes momentos da sua
história, sempre vencedor o idealismo orgânico, o idealismo pragmático, a programa-
ção das possibilidades que se ajeitam dentro da natureza humana”140. E, consequen-
temente, o povo americano é “[i]dealista como nenhum outro povo [...] e do único ide-
alismo verdadeiramente construtor da atualidade”141.
A admiração de Lobato pelos processos eugênicos americanos demonstra a
sua insatisfação com o processo racial no Brasil. Não é por acaso que ele elege os
Estados Unidos como alvo de sua admiração, pois acredita que, em solo americano,
a elitização da raça branca seria possível por meio de seu idealismo orgânico. Com a
possibilidade da literatura, Lobato constrói os Estados Unidos com a perfeição do
apartheid racial que as tentativas da elite brasileira não haviam atingido, e com deta-
lhes o livro expõe:
137 VIANNA, Oliveira. O idealismo da constituição. 1939. p. 10.138 Ibidem. p. 11.139 Ibidem. p. 12-13.140 LOBATO, Monteiro. O presidente negro. 1961. p. 66.141 Ibidem. p. 67.
85
– Quer dizer que prefere a solução americana, que não foi so-lução de coisa nenhuma, já que deixou as duas raças a se desenvol-verem paralelas dentro do mesmo território separadas por uma bar-reira de ódio?[...]
– Esse ódio, ou melhor, esse orgulho, respondeu Miss Jane,serena como se a própria Minerva falasse pela sua boca, foi a maisfecunda das profilaxias. Impediu que uma raça desnaturasse descris-talizasse a outra, e conservou a ambas em estado de relativa pureza.Esse orgulho foi o criador do mais belo fenômeno da eclosão étnicaque vi em meus cortes do futuro.[...]
– Não há mal nem bem no jogo das forças cósmicas. O ódiodesabrocha tantas maravilhas quanto o amor. O amor matou no Bra-sil a possibilidade de uma suprema expressão biológica. O ódio criouna America a glória do eugenismo humano...142.
Os Estados Unidos ficcional de Lobato mantiveram as raças apartadas e puras
em sua essência positiva ou negativa. Quanto ao Brasil, segundo o romance de Lo-
bato, a política de branqueamento foi amplamente difundida sem levar em conta as
possibilidades de falha, que se tornaram evidentes quando a miscigenação resultara
em um povo sem identidade própria, mestiço e, com isso, inferior:
[a] nossa solução foi medíocre. Estragou as duas raças, fundindo-as.O negro perdeu as suas admiráveis qualidades físicas de selvagem eo branco sofreu a inevitável piora de caráter, consequente a todos oscruzamentos entre raças dispares. Caráter racial é uma cristalizaçãoque às lentas se vai operando através dos séculos. O cruzamentoperturba essa cristalização, liquefá-la, torna-a instável. A nossa solu-ção deu mau resultado143.
Semelhante à ficção, a história brasileira do início do século passado mostra,
no que se refere às questões raciais, que as políticas de branqueamento, por meio da
vinda de imigrantes europeus, consistiram em uma solução do tipo “utópica”, pois não
resolveria o problema da existência de uma grande população negra no Brasil. Para o
médico maranhense Nina Rodrigues, o negro “há de constituir sempre um dos fatores
da nossa inferioridade como povo”, e os processos de branqueamento estavam “en-
142 Ibidem. p. 71.143 Ibidem. p. 70-71.
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tregando o país aos mestiços, acabarão privando-o, por longo prazo pelo menos, da
direção suprema da raça branca”144. Nesse sentido, complementa Vianna:
[e]stas duas raças inferiores [índios e negros] só se fazem agentesde civilização, isto é, somente concorrem com elementos eugênicospara a formação das classes superiores, quando perdem a sua pure-za e se cruzam com o branco. [...] Da plebe mestiça, em toda a nossahistória, ao sul e ao norte, tem saído com efeito poderosas individua-lidades, de capacidade ascensional, incoercível, com uma ação deci-siva no nosso movimento civilizador145.
Como no Brasil o idealismo orgânico não foi aplicado, o resultado foi a misci-
genação desmedida, que, segundo o mesmo Vianna (cujas ideias estão afinadas às
propostas expostas no livro de Lobato), não garantiu evolução do povo brasileiro co-
mo nação pura, apenas deu origem a uma sociedade amulatada e sem relevância
diante das grandes nações puras, como era o caso das europeias.
Voltando o olhar para a obra de Lobato, a efetivação de um Estados Unidos
futurístico com a raça branca e a negra se mantendo puras, sem mestiçagens, não
garantia o convívio pacífico entre as duas, nem mesmo a satisfação daquele povo
branco que se via obrigado a conviver com a inferioridade racial oriunda da África.
Lobato não havia criado uma ficção para representar o equilíbrio existencial entre as
raças num mundo futuro. Seu objetivo tinha bases eugênicas que visavam ao enalte-
cimento da raça ariana e não é por acaso que o nome original do livro O presidentenegro era o Choque das raças.
Isso pode ser depreendido da sequência dos diálogos entre Ayrton e Miss Ja-
ne, nos quais é explicado como foi a formação étnica dos Estados Unidos. Segundo o
romance, “[o]ndas sucessivas dos melhores elementos europeus para lá se transpor-
taram” formando a base daquela nação. “Depois vieram as leis seletivas da emigra-
ção, e as massas que a procuravam, já de si boas, viram-se peneiradas ao chegar.
Ficava a flor. O restolho voltava...”. Miss Jane ainda frisa: “[n]ote o enriquecimento de
valores humanos que isso representou para aquela nação”146. No entanto, essa har-
monia foi quebrada: “[e]ntrou o negro e foi esse o único erro inicial cometido naquela
feliz composição”147. A pureza ariana original havia sido comprometida com a vinda
144 RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. 1982. p. 7.145 VIANNA, Oliveira. Evolução do povo no Brasil. 1933. p. 137.146 LOBATO, Monteiro. O presidente negro. 1961. p. 69.147 Ibidem. p. 70.
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arbitrária dos africanos: “[a] semente de que nasceu a América não continha em seus
cotiledones essas venenosas toxinas”148.
Mesmo não sendo tão exigente com sua colonização inicial, o Brasil teve as
bases de formação étnica semelhantes às americanas. Diferente foi a solução encon-
trada pelo país no momento que buscou sua identidade ao optar pelo branqueamento
através de mais imigração europeia. Conforme declara um dos personagens do ro-
mance, “[e]ntre dar uma solução inepta e não dar solução nenhuma, o americano
optou pela última alternativa, continuou Miss Jane”149. Os diálogos seguintes prefigu-
ram a solução americana – que será o ápice da obra – através da inquietação de Ayr-
ton:
– Quer dizer que eternizou o problema, conclui vitorioso.– A sua eternidade, senhor Ayrton, é bem precária. Durará
apenas mais 302 anos. O inevitável choque das duas raças dar-se-áem 2228, e a solução...
– Já sei qual será! exclamei muito lampeiro. Um massacre emmassa, uma chacina horrorosa!...
– Nada disso.– Expulsam os negros de lá, então! adverti apressadamente, na
minha ânsia de adivinhar.– Nada, nada disso.Parei atrapalhado, mas num clarão apresentou-se-me a tercei-
ra hipótese.– Dividem o país em duas partes, a negra e a branca!– Nada, ainda. Creio que por mais esforços que o senhor Ayr-
ton faça não adivinhará.Refleti alguns instantes a ver se me ocorria uma quarta hipóte-
se. Não ocorreu coisa nenhuma e confessei-me vencido.– Se a solução não vai ser alguma destas, quer dizer que o ca-
so fica insolúvel, rematei.– Ao contrario. Será solvido da maneira mais completa, sem
sacrifício dos negros existentes e sem transigência dos brancos. Oorgulho é criador, senhor Ayrton e, além disso, extremamente enge-nhoso...150.
Na ficção de Lobato, as raças branca e negra foram se desenvolvendo parale-
lamente, cada uma mantendo sua pureza, até que o número de negros aumentou
consideravelmente, tornando-se motivo de preocupação para a sociedade branca.
Segundo o livro, “o ‘mas’ perturbador de todos os cálculos humanos surgiu. Apesar
de submetida aos mesmos processos restritivos dos brancos, a raça negra começou
148 Ibidem. p. 69.149 Ibidem. p. 71.150 Ibidem. p. 71-72.
88
desde logo a apresentar um índice mais alto de crescimento”151. Mais adiante, tem-
se: “as estatísticas apresentavam dados alarmantes. Negros, 108 milhões; brancos,
206 milhões. E como o coeficiente da natalidade negra acusasse uma nova subida, o
instinto de conservação dos brancos eriçou-se nos primeiros arrepios da legitima de-
fesa”152.
Lobato, por meio da literatura, apresentou um país americano que não permi-
tia o cruzamento entre as raças, mantendo-se puro em suas essências. Esse perfil de
nação dividida pela cor era, na verdade, um reflexo daquilo que realmente acontecia
nos Estados Unidos do início do século passado, o que, para o autor, representava
uma solução mais adequada do que a mistura de raças praticada no Brasil. Diferen-
temente de Lobato, Afrânio Peixoto acreditava que a miscigenação seria a solução
para o Brasil:
[j]á não existem africanos de puro sangue; os negros e mulatos naci-onais vão-se cruzando entre si e com os brancos; calcula-se que,mais dois séculos, eles tenham desaparecido, nas diluições sucessi-vas de sangue branco, depurado o Brasil do sangue negro que lheimpuseram153.
Assim como Sílvio Romero também já havia afirmado algumas décadas antes:
[a] minha tese, pois, é que a vitória na luta pela vida, entre nós, per-tencerá, no porvir ao branco; mas que este, para essa mesma vitória,atentas as agruras do clima, tem necessidade de aproveitar-se doque útil as duas outras raças lhe podem fornecer, máxime a preta,com que tem cruzado. Pela seleção natural, todavia, depois de pres-tado o auxílio de que necessita, o tipo branco irá tomando a prepon-derância até mostrar-se puro e belo como no velho mundo154.
O modo americano de lidar com a questão racial chamava a atenção do grupo
intelectual brasileiro, que, assim como Lobato, buscava naquele país a inspiração
para a solução dos problemas nacionais. Trata-se do caso de Afrânio Peixoto, que,
em tom meio profético, semelhante ao do texto de Lobato, afirmou, por meio de um
de seus personagens de A esfinge (1911), que, “[e]m trezentos anos mais, seremos
todos brancos: não sei que será dos Estados Unidos com sua rígida separação de
151 Ibidem. p. 77.152 Ibidem. p. 77.153 PEIXOTO, Afrânio. Noções de literatura brasileira. 1931. p. 42.154 Apud AZEVEDO, Ana Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imagi-nário das elites – século XIX. 1987. p. 71.
89
cores, se a intolerância saxônia deixar crescer, isolado, o núcleo compacto de seus
12 milhões de negros”155.
Muitas foram as possibilidades apresentadas por Lobato para solucionar o
problema de seu Estados Unidos futurístico, mas nem cogitava a mistura das raças.
Dentre as tentativas que o livro descreve, há a “expatriação dos negros”156 para o
Vale do Amazonas, já que o Brasil ficcional de Lobato estava dividido em dois: um
tropical, ao norte, contemplando as raças inferiores, e outro temperado ao sul, que
mantinha a supremacia branca, pois “a divisão do país constitui uma solução ótima, a
melhor possível, dado o erro inicial da mistura das raças”157. O curioso é que a divi-
são territorial como solução racial não tinha o mesmo valor em solo americano, por-
que “os brancos [dos EUA] preferiam continuar no status quo a resolver o caso por
esse processo, o problema racial permanecia de pé, cada vez mais ameaçador”158.
De qualquer modo, “todos os brancos americanos só queriam uma coisa: exportar,
despejar os cem milhões de negros americanos no vale do Amazonas”159. No entan-
to, essa solução não foi possível devido a uma questão ética que Lobato faz parecer
um tanto incoerente. Segundo o livro, “constituía uma empresa formidável ou, melhor,
impraticável, não só em virtude de tremendas dificuldades materiais como por ferir de
face à Constituição Americana”160. Não mais ofensiva à Constituição será solução
definitiva dada ao negro.
Outra possibilidade apresentada pela obra foi a despigmentação dos negros
pela ciência: “[q]uase toda a população negra da América apresentava pele [esbran-
quiçada]. A ciência havia resolvido o caso de cor pela destruição do pigmento”161.
“Esbranquiçado – um pouco desse tom duvidoso das mulatas de hoje que borram a
cara de creme e pó de arroz... – Barata descascada”162. Mesmo assim, o ódio racial
continuava nos Estados Unidos, e ter aparência branca não era suficiente para sanar
o preconceito:
[m]as nem eliminando com os recursos da ciência o característicoessencial da raça deixavam os negros de ser negros na América. An-tes agravavam a sua situação social, porque os brancos, orgulhosos
155 PEIXOTO, Afrânio. A esfinge. 1911. p. 209.156 LOBATO, Monteiro. O presidente negro. 1961. p. 77.157 Ibidem. p. 78.158 Ibidem. p. 80.159 Ibidem. p. 79.160 Ibidem. p. 79.161 Ibidem. p. 80.162 Ibidem. p. 81.
90
da pureza étnica e do privilégio da cor branca ingênita, não lhes po-diam perdoar aquela camouflage da despigmentação163.
O negro continuaria sendo negro, mesmo que estivesse estereotipado de
branco. Conforme a estudiosa Elisa Larkin Nascimento explica, “[a] noção de ‘raça’,
firmemente embutida na hierarquia da cor, carece de realidade biológica, mas exerce
uma função social de forte impacto concreto sobre a vida real. Trata-se do fenômeno
de raça socialmente construída”164. A partir dessa superioridade, Sartre afirma que
“[o] negro não pode negar que seja negro ou reclamar para si esta abstrata humani-
dade incolor: ele é preto”. Sendo assim, nada mudaria sua condição de inferior, pois
está “encurralado na autenticidade: insultado, avassalado, reergue-se, apanha a pa-
lavra ‘preto’ que lhe atiram qual uma pedra, reivindica-se como negro, perante o
branco, na altivez”165. Sua condição de inferiorizado estava além da cor, estava em
suas origens, e, por mais que assimilassem a cultura branca, parecessem brancos
nos hábitos e atitudes, sempre seriam inferiores, como bem destaca Oliveira Vianna,
com suas palavras sendo a síntese do pensamento da época de Lobato:
[n]ão só a potencialidade eugenística do H. afer é reduzida em simesma, como, posta em função da civilização organizada pelo ho-mem da raça branca, ainda mais reduzida se torna. O negro puronunca poderá, com efeito, assimilar completamente a cultura ariana,mesmo os seus exemplares mais elevados: a sua capacidade de civi-lização, a sua civilizabilidade, não vai além da imitação, mais ou me-nos perfeita, dos hábitos e costumes do homem branco166.
Do mesmo modo, na ficção de Lobato, o negro, mesmo camuflado de branco,
continuava sendo inferior. Sem solução à vista, o problema do negro nos Estados
Unidos persiste, e, pior de tudo, agrava-se com as eleições presidenciais do ano
2228:
[a] ideia do expatriamento para o vale do Amazonas tinha um pontofraco: só podia ser voluntária e o negro não se mostrava inclinado atrocar a cidadania americana por outra qualquer. O processo científi-co de embranquecê-los aproximava-os dos brancos na cor, emboranão lhes alterasse o sangue nem o encarapinhamento dos cabelos.
163 Ibidem. p. 81.164 NASCIMENTO. Elisa Larkin. O sortilégio da cor: identidade raça e gênero no Brasil. 2003. p.235.165 SARTRE, Jean-Paul. Orfeu negro. In: ____. Reflexões sobre o racismo. 1968. p. 94.166 VIANNA, Oliveira. Evolução do povo no Brasil. 1933. p. 154-155.
91
O desencarapinhamento constituía o ideal da raça negra, mas até alia ciência lutara em vão contra a fatalidade capilar. Se isso se desse,poderia o caso negro entrar por um caminho imprevisto, a perfeitacamouflage do negro em branco. Tal saída, entretanto, era apenasum sonho dos imaginativos impenitentes. E como a repartição do pa-ís em duas zonas não fosse forma aceita pelos brancos, iam os Es-tados Unidos entrar no seu 88° período presidencial com o mesmoproblema que trezentos e trinta e nove anos antes preocupara ogrande George Washington167.
O problema que se agravava com a eleição era a do posicionamento do parti-
do negro. Por mais que os negros tivessem um candidato, o negro Jim Roy, ninguém
acreditava na possibilidade de ele se tornar presidente, já que os eleitores brancos
representavam o dobro dos negros. Essa hipótese “jamais passou pelo espírito de
nenhum americano, branco ou preto”168. Mesmo assim, o partido branco estava divi-
dido em uma questão de gênero, havia um representante masculino, o atual presi-
dente Kerlog, e um representante feminino, Miss Evelyn Astor. Em meio a muitas di-
vergências, a única certeza desses últimos “era do apoio de Jim Roy a um dos parti-
dos brancos”169. Para surpresa de todos, Jim Roy, que não apoiou nenhum dos dois
partidos brancos, manteve a candidatura própria, e o resultado foi sua eleição:
[d]epois de 87 presidentes brancos surgia o primeiro negro, eleito por54 milhões de votos. Miss Astor obtivera 50 milhões e meio e Kerlog50 milhões e pico. Apesar de disporem de um eleitorado quase duplodo contrário, os brancos perdiam a presidência graças à cisão entreos dois sexos provocada pelo elvinismo...170.
Ao que parece, não foi uma vitória da raça negra, foi uma derrota dos brancos
pelos próprios brancos: “[b]astou um momento de divórcio para que a raça branca se
visse nesta horrível situação: apeada do domínio e à mercê de uma raça de pitecos
que, essa sim, tem contas terríveis a justar conosco...”171. O derrotado candidato
branco estava horrorizado, e “a sensação que o empolgou foi de pesadelo. Kerlog
apalpou-se e beliscou as carnes a ver se dormia. Não era pesadelo, não. Era coisa
pior – fato. E como a hipótese da eleição de um negro nem por sombra lhe houvesse
passado pela ideia, o seu desnorteamento fez-se absoluto”172. De modo similar, Miss
167 LOBATO, Monteiro. O presidente negro. 1961. p. 98.168 Ibidem. p. 116.169 Ibidem. p. 115.170 Ibidem. p. 112-113.171 Ibidem. p. 113.172 Ibidem. p. 114.
92
Astor “[s]entiu uma nuvem turvar-lhe a vista, uma zoeira nos ouvidos, um turbilhão no
cérebro.E descaiu para trás, desmaiada”173.
A sequência de O presidente negro apresenta a solução para o problema do
negro nos Estados Unidos. Segundo a ficção, depois de um encontro da liderança
branca, a “Convenção da Raça Branca”174, foi decidido que os negros não poderiam
permanecer no poder, e o perigo da proliferação da raça africana na América deveria
ser urgentemente bloqueada. A solução encontrada consistia na eliminação da raça
negra, o que, segundo o livro, seria acertada, pois seria aplicada “[s]em dor, sem le-
são, sem que o paciente sequer o suspeite”, pois o “problema que em vão a política
tentara solver, a ciência resolvia por um processo mágico”175.
A solução estava atrelada a um processo de alisamento dos cabelos da popu-
lação negra. Como visto anteriormente, havia uma grande preocupação dos negros
em parecerem brancos, o que fez com que imitassem, entre outras coisas, a cor da
pele ariana. Mesmo assim, os cabelos sempre foram um problema, pois a ciência
nunca havia encontrado uma forma para transformá-los no estilo das pessoas bran-
cas, até o surgimento dos “[r]aios Omega [que] tinham a propriedade miraculosa de
modificar o cabelo africano. Com três aplicações apenas o mais rebelde pixaim torna-
va-se não só liso, como ainda fino e sedoso como o cabelo do mais apurado tipo de
branco”176. A adesão dos negros ao processo foi maciça, e as pessoas estavam eufó-
ricas por se tornarem “[b]rancas, afinal! Libertas afinal do odioso estigma!”177.
No entanto, sem que ninguém soubesse, o processo de alisamento pelos raios
Omega resultava também na esterilização do negro. Para Lobato, “[o] problema ne-
gro da América está pois resolvido da melhor forma para a raça superior, detentora
do cetro supremo da realeza humana”. Como toda a polução negra havia se sujeitado
ao alisamento, todos estavam estéreis, e, sem nascimento de novos negros, a raça
africana extinguiu dos Estados Unidos em uma geração.
O desfecho do livro contém a materialização do sonho eugênico de Lobato e
de tantos outros intelectuais brasileiros do início do século passado. Como essa apli-
cação era utópica e não tinha efeitos na prática, tem-se, na inclinação do autor, a
compreensão do pensamento racista daquela geração. A tentativa de “branqueamen-
173 Ibidem. p. 111.174 Ibidem. p. 141.175 Ibidem. p. 145.176 Ibidem. p. 147.177 Ibidem. p. 148.
93
to” físico da população dos Estados Unidos em O presidente negro prefigura o
branqueamento do Brasil contemporâneo de Lobato. Não somente o branqueamento
instigado pelas campanhas de imigração europeias por meio da miscigenação grada-
tiva, e sim “[o] embranquecimento do negro [que] realizar-se-á principalmente pela
assimilação dos valores culturais do branco”178. Esse processo “pressupunha-se a
admiração da cor do outro, o amor ao branco, a aceitação da colonização e a autor-
recusa”. Assim como em Lobato, “[a] intelectualidade se recusava a valorizar o negro
porque o negro era o escravo e o escravo era o trabalho, a camada inferior da popu-
lação”. Nos termos de Sodré, “[a] classe dominante repudiava essa face africana,
escondia essa face como se esconde as mazelas, as coisas inconfiáveis, as mácu-
las”179.
Sendo assim, de modo consciente, a elite branca brasileira tentou liquidar a
raça negra, fisicamente por meio da mestiçagem e, culturalmente, relegando aos ne-
gros o segundo plano na sociedade, na política, na literatura, e, dentro dessa pesqui-
sa, do próprio cânone. Exemplo dessa aplicação diz respeito às ideologias pregadas
em O presidente negro, no qual o negro apenas aparece no tocante à confirmação
da supremacia branca, distante no futuro previsto pelo “porviroscópio” e ainda conde-
nado a tão fatídico fim. No tocante à trama do livro que ocorre no presente, no espaço
de tempo que coincide com o período histórico em que a obra foi escrita, os persona-
gens negros simplesmente não aparecem. Quem tem destaque são os brancos como
Miss Jane, com “cabelos louros como aqueles, olhos azuis como aqueles”180; Mister
Benson, com sua inteligência única; Ayrton Lobo, protótipo do branco emergente, e
seus patrões da Sá Pato e Cia, exemplares da burguesia, mas a nenhum negro Loba-
to deu voz.
Os pensamentos racistas apresentados por Lobato comprovam que “[a] elite
branca brasileira já tinha em sua própria sociedade os elementos necessários para
forjar sua ideologia racial. Tinha aprendido desde o período colonial a ver os negros
como inferiores”. Nesse sentido, O presidente negro tem, em sua essência, o perfil
canônico defendido pela burguesia branca detentora do poder e a comprovação de
que “[q]ualquer europeu ou americano que postulasse a superioridade branca seria
necessariamente bem recebido”181.
178 MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. 1986. p. 27.179 SODRÉ, Nelson Werneck. Literatura e história no Brasil contemporâneo. 1999. p. 15.180 LOBATO, Monteiro. O presidente negro. 1961. p. 22.181 COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 1985. p. 257.
94
3.2 Enredo e personagens de O presidente negro: ligações com o poderpolítico e canônico de seu momento histórico
A ideologia inverte as relações entre as causas e os efeitos. Abstraios fatos do seu contexto social e histórico. É uma visão distorcida,falsa da realidade. Isso não acontece por descuido, mas por objetivosbem específicos da classe dominante.
(O que é ideologia, Marilena Chauí)
Muitos são os fatores que caracterizam o enredo de uma determinada obra li-
terária e assinalam seus personagens. Por detrás da narrativa, percebe-se mais do
que inspiração criadora de seu autor. As influências do contexto histórico bem como
os modismos ideológicos ou pensamentos populares aos intelectuais de determinada
época podem ser percebidos nas preferências de um autor. Além disso, existe uma
adequação canônica que visa à aceitação da crítica e à garantia de permanência do
texto e do autor na qual “obrigatoriamente reflete[m] características positivas regula-
doras de um comportamento compatível com a sociedade em questão”182. Inevita-
velmente, esses fatores tornam-se tendenciosos diante de suas preferências e reve-
lam-se, assim, aquilo que foi excluído. Sujeitos a esses caminhos, os autores muitas
vezes aderem aos moldes da “crítica engajada”, que “projeta a sua ideologia no cor-
pus literário”, resultando na inclinação de se “avaliar os textos e escritores em função
do grau maior ou menor de ‘nacionalidade’ que porventura contenham”183. Como re-
sultado, “a literatura se converte numa forma de práxis discursiva e social, não ape-
nas representando, mas também criando a realidade”184.
É o caso de O presidente negro, de Monteiro Lobato, que, por meio de uma
análise de suas características ideológicas, revela, no âmbito literário, os pensamen-
tos em voga no período de sua escrita, além das tendências que privilegiam elemen-
tos coniventes com os ideais da elite em detrimento àquilo que não consistia em inte-
resse pela crítica e seus representantes.
Preliminarmente, a análise gravita em torno de Ayrton, personagem em torno
do qual o romance O presidente negro se desenrola e a quem é dada a função de
narrador pelo autor. A narrativa em primeira pessoa permite uma compreensão muito
própria daquilo que permeia o pensamento da época, baseada em um típico brasileiro
182 CORRÊA, Alamir Aquino. Historiografia, cânone e autoridade. CELLIP – CONGRESSO DEESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS DO PARANÁ, 8., 1995. p. 325.183 REIS, Roberto. Canon. In: JOBIM, José Luis (Org.). Palavras da crítica. 1993. p. 81.184 Ibidem. p. 72.
95
branco, trabalhador, que intencionava o crescimento econômico e a ascensão social
através do trabalho.
Como narrador, sua voz aparece desde o início da narrativa, ficando apenas
para o terceiro capítulo a identificação de seu nome: Ayrton Lobo. Antes de ser apre-
sentado oficialmente pelo seu nome, Ayrton descreve sua vida, seu trabalho e suas
aspirações. Profissionalmente, era empregado em uma empresa de cobranças dos
sócios Sá, Pato & Cia., os quais representavam o seu ideal de crescimento social e o
alvo de sua admiração como pessoas de sucesso financeiro. Ayrton os descreve co-
mo “gordos e sólidos negociantes que me enterneciam a alma nas épocas de balanço
ao concederem-me a pequena gratificação constituidora do meu lucro”185.
Como parte de um esquema capitalista, Ayrton se colocava como empregado
e subalterno de seus patrões: “[p]ara eles era eu o empregado [...], isto é, humilde
peça da máquina de ganhar dinheiro que os senhores Sá, Pato & Cia. houveram por
bem montar dentro de uma certa aglomeração humana”186. Ayrton via a sua posição
profissional como símbolo de sua condição humilde, abaixo de seus patrões: “[d]iante
do comendador Pato eu tremia e balbuciava”187; a ponto de tê-lo “como o mais formi-
dável expoente do gênio humano”188. É válido frisar que a posição dos patrões de
Ayrton, como ricos e socialmente favorecidos, desempenhava um papel duplo na
mente dos aspirantes sociais como ele. O primeiro estava no desejo de ascensão de
seus subalternos que, como Ayrton, queriam ter uma posição mais privilegiava no
contexto capitalista instaurado desde aquela época. O segundo papel estava no po-
der que a elite burguesa exercia na formação de opiniões da grande massa populaci-
onal, que poderia ser tanto em modismo como em concepções de valores sociais,
raciais e até mesmo artísticos, como é o caso das preferências do cânone literário.
Os detentores do poder dirigiam os estilos e os pensamentos da época, “e como não
ser assim, se qualquer Sá ou qualquer Pato dirige a opinião?”189.
Em consonância com a sociedade brasileira da década de 1920, o persona-
gem tem seus pensamentos e aspirações guiados pelo molde capitalista, no qual o
ideal de crescimento econômico era padronizado, entre outros fatores, pelo estilo de
vida americano. Isso demonstra a admiração que Lobato tinha pelos Estados Unidos
e seu crescimento financeiro, em detrimento ao atraso do povo brasileiro. Lobato es-
185 LOBATO, Monteiro. O presidente negro. 1961. p. 10.186 Ibidem. p. 16.187 Ibidem. p. 36.188 Ibidem. p. 40.189 Ibidem. p. 134.
96
tava deslumbrado com o progresso americano, conforme ele confessa em carta ao
amigo Godofredo Rangel: “[s]into-me encantado com a América. O país com que so-
nhava. Eficiência! Galope! Futuro! Ninguém andando de costa. [...] Tudo como quero,
como sempre sonhei”190. Quanto mais ele se encantava com a evolução do povo
americano, mais ele se conscientizava do atraso brasileiro: “[c]omparados os países
com veículos, veremos que os Estados Unidos são uma locomotiva elétrica; a Argen-
tina, um automóvel; o México uma carroça; e o Brasil um carro de boi”191. Em outra
carta ao mesmo amigo, datada de 1915, Lobato já expressava desconforto com a
defasagem brasileira e esboça o seu pensamento capitalista:
[o] Brasil ainda é uma horta, Rangel, e em horta, o que se quer sãocebolas e cebolórios, coentros e couves tronchudas, tomates e nabobranco chato francês. Não somos ainda uma nação, uma nacionali-dade. As enciclopédias francesas começam o artigo Brasil assim:“Une vaste contrée...”. Não somos país, somos uma região. O que háa fazer aqui é ganhar dinheiro e cada um viva como lhe apraz aosinstintos192.
Nesse mesmo sentido, em O presidente negro, o autor evidencia o atraso
econômico da nação ao acentuar a evolução americana por meio dos pensamentos
de Henry Ford193. Para Lobato, os Estados Unidos representavam o modelo de cres-
cimento econômico a ser seguido, e Ford “parece um messias da Ideia Nova”194. To-
das as inovações observadas pelo romance, segundo Miss Jane, têm “com[o] ponto
de partida [o] idealismo pragmático de Henry Ford”195. Não foi por acaso que Lobato,
neste texto, faz pelo menos uma dezena de referências às teorias de Ford, já que
conhecia bem o livro do americano, do qual traduziu e publicou dois títulos, Minhavida e minha obra (1926) e Hoje e amanhã (1927). No prefácio do primeiro, Lobato
expressa todo o seu apreço:
[h]omem de boa-fé não há nenhum que, lendo My Life and Work, ogrande livro de Henry Ford, não sinta que está ali a palavra messiâni-ca do futuro. É a palavra do Bom-Senso, é a palavra da Razão, é apalavra da Inteligência que não borboleteia, mas penetra no fundo
190 LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre. tomo 2. 1961. p. 302.191 LOBATO, Monteiro. Conferência, artigos e crônicas. 1961. p. 181.192 LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre. tomo 2. 1961. p. 32.193 Henry Ford (Springwells, 30 de julho de 1863 – Dearborn, 7 de abril de 1947) foi um empreen-dedor estadunidense, fundador da Ford Motor Company e o primeiro empresário a aplicar a mon-tagem em série de forma a produzir em massa automóveis em menos tempo e a um menor custo.194 LOBATO, Monteiro. O presidente negro. 1961. p. 67.195 Ibidem. p. 68.
97
das coisas como a broca de aço penetra no granito. Nele Ford enfei-xou num só foco de luz todas as profundas conclusões do seu estudodas realidades. Essa luz, clara como a do sol, tonifica e desfaz a tre-va. A miséria humana é apenas uma consequência da treva. Para oBrasil não há leitura nem estudo mais fecundo que o livro de HenryFord. Tudo está por fazer – e que lucro imenso se começarmos a fa-zer com base na lição do portador da nova Boa-Nova!196.
O método fordista197 de produção e trabalho causava grande admiração em
Lobato, e o automóvel assume um caráter emblemático, materializado em afirmações
do autor em obras, como em Mr. Slang e o Brasil, na qual comenta que “[a] entrada
do automóvel perturbou o equilíbrio da vida mesquinha de milhares de cocheiros de
tilburi198. Mas transformou esses homens. [...] Ai do mundo, se em atenção ao tilburis
e seus cocheiros impedíssemos o advento do automóvel”199. No caso do personagem
Ayrton, a representação de sua ascensão social estava ligada à aquisição de um au-
tomóvel, não por acaso, um Ford. A posse de um automóvel era “símbolo por exce-
lência do moderno no início do século XX. Sua chegada a diferentes partes do mundo
ilustra a trajetória irresistível da mobilidade”, e Ayrton como “piloto introduz o não vis-
to e o estranho, na forma de antecipação do futuro. Vem de longe anunciando grande
transformação200. Deste modo, para o personagem, o automóvel era sinônimo de su-
perioridade e status, era o seu sonho de consumo que o colocaria acima das pessoas
comuns:
[m]as todos nós possuímos um ideal na vida. Meu amigo corretor so-nha dirigir a carteira cambial de um banco. Aquele pobre que ali pas-sa, tocando o realejo que herdou do pai e ao qual faltam três notas,sonha com um realejo novo em que não falte nota nenhuma. Eu so-nhava... com um automóvel. Meu Deus! As noites que passei pen-sando nisso, vendo-me no volante, de olhar firme para a frente, fa-
196 LOBATO, Monteiro. Conferências artigos e crônicas.1961. p. 67.197 O Fordismo é um modelo de produção em massa idealizado pelo empresário estadunidenseHenry Ford. Esse modelo revolucionou a indústria automobilística a partir de janeiro de 1914,quando introduziu a primeira linha de montagem automatizada. Uma das principais característicasdo Fordismo foi o aperfeiçoamento da linha de montagem. Os veículos eram montados em estei-ras rolantes que se movimentavam enquanto o operário ficava praticamente parado, realizandouma pequena etapa da produção. Desta forma, não era necessária quase nenhuma qualificaçãodos trabalhadores. Outra característica é a de que o trabalho é entregue ao operário, em vez des-se ir buscá-lo, fazendo, assim, a analogia à eliminação do movimento inútil. SZEZERBICKI, A. S.;PILATTI, L. A.; KOVALESKI, J. L. Henry Ford: a visão Inovadora de um homem do início do sécu-lo XX. 2004.198 Tílburi é um carro de duas rodas e dois assentos (tibureiro e passageiro), sem boleia, com ca-pota, e tirado por um só animal. Foi inventado por Gregor Tilbury, na Inglaterra, em 1818, e trazidoao Rio de Janeiro como transporte coletivo, através da França, em 1830.199 LOBATO, Monteiro. Mr. Slang e o Brasil e problema vital. 1961. p. 23.200 GIUCCI, Guillermo. A vida cultural do automóvel: percursos da modernidade cinética. 2004.p. 63.
98
zendo, a berros de klaxon, disparar do meu caminho os pobres e as-sustadiços pedestres! Como tal sonho me enchia a imaginação!201.
Ayrton sonhava “mudar de casta e [...] levar os pedestres a abrirem [...] alas,
sob pena de esmagamento”202. Para tanto, “[o] automóvel era capaz de assegurar a
sensação de pertencimento a uma coletividade imaginária bem como fomentar as
diferenças, reafirmando as distâncias sociais”203. Como representação de seu sonho
capitalista, no qual a modernidade e a tecnologia estavam ao seu alcance, o perso-
nagem afirma: “com maior enlevo d'alma que entrei certa manhã numa agência e
comprei a máquina que me mudaria a situação social. Um Ford”204. Dentro dos mol-
des capitalista que associava o crescimento econômico ao poder, “[a] automobiliza-
ção transforma-se em suporte fundamental do individualismo moderno e o automóvel
é o seu expoente material máximo: um objeto de culto”205. Os patrões de Ayrton da
Sá Pato & Cia. também aprovaram a sua aquisição, pois “dobraram-me o ordenado,
quando demonstrei o quanto lhes aumentaria o renome da firma o terem um auxiliar
possuidor de automóvel próprio”206. É importante frisar que o desejo consumista de
Ayrton não é saciado com o primeiro automóvel já que “depois de um mês, já não
contente com a velocidade desenvolvida por aquele carro”, pôs-se “a sonhar a aquisi-
ção de outro, que chispasse cem quilômetros por hora”207.
Assim como na ficção, para a sociedade do início do século XX, o “automóvel
promete uma nova forma de liberdade que coloca em questão a distinção entre mobi-
lidade aristocrática e democrática”208. Segundo o personagem, o mundo era dividido
entre “pedestres e rodantes, [...] homens comuns e aos que circulavam sobre quatro
pneus”209. E completa o pensamento: “[o] pedestre [...] de pouco rendimento, [en-
quanto] o orgulhoso e impassível rodante, o homem superior [...] não anda, mas des-
liza veloz”210. No momento em que Ayrton “muda de casta”, assume um desprezo por
aqueles que se mantinham abaixo, conforme se depreende de seus comentários:
201 LOBATO, Monteiro. O presidente negro. 1961. p. 10.202 Ibidem. p. 11.203 GIUCCI, Guillermo. A vida cultural do automóvel: percursos da modernidade cinética. 2004.p. 19.204 LOBATO, Monteiro. O presidente negro. 1961. p. 11.205 Ibidem. p. 15.206 Ibidem. p. 11.207 Ibidem. p. 11.208 GIUCCI, Guillermo. A vida cultural do automóvel: percursos da modernidade cinética. 2004.p. 28.209 LOBATO, Monteiro. O presidente negro. 1961. p. 10.210 Ibidem. p. 10.
99
“[a]dquiri, em suma, a mentalidade dos rodantes, passando a desprezar o pedestre
como coisa vil e de somenos importância na vida”211. E acrescenta que o pedestre
tornou-se para ele “uma criatura odiosa, embaraçadora do meu direito à rapidez e à
linha reta”212. Em uma espécie de relação de poder, Ayrton conclui: “[p]ensei até em
representar ao governo, sugerindo uma lei que proibisse a semelhantes trambolhos
semoventes o trânsito pelas vias asfaltadas”213.
A trajetória de Ayrton como piloto tem fim com um acidente no caminho de
Friburgo, o que permite desenrolar os acontecimentos que norteiam a ficção de Loba-
to, já que o personagem é salvo pelos empregados do Professor Benson e levado
para sua casa para se recuperar. Sem saber onde estava, recebe a explicação do
professor: “[u]m dos meus homens o encontrou sem sentidos no fundo de um despe-
nhadeiro, ao lado de um Ford em pandarecos”214. Esse encontro vai determinar a
sequência do livro, o contato com Miss Jane e as revelações do “porviroscópio”.
Mesmo assim, nesse momento, a preocupação de Ayrton estava em seu automóvel
destruído:
– O meu Ford em pandarecos! Desgraçado que sou... gemi. Ador do braço ofendido era grande, mas a minha dor moral muito mai-or. Creio até que entre perder o carro e perder um braço eu não vaci-laria na escolha. Custara-me tanto consegui-lo... E, além do mais,dada a psicologia dos meus patrões, o certo era reduzirem-me o or-denado, já que eu voltaria a servi-los a pé como outrora... Tão negranotícia me sombreou de crepes a alma. Não podia conformar-mecom o desastre215.
O receio de retroceder em sua ascensão social era maior que a dor física, e a
perda do automóvel comprometia sua posição elitizada: “[d]elirei. Soube mais tarde,
pelo professor, que nesse delírio uma obsessão única transparecia: o desespero ante
o meu retorno à miserável casta dos pedestres...”216. Como Ayrton não queria se
“apresentar diante dos senhores Sá, Pato & Cia. a pé, murcho, resignado às suas
pilherias e à lógica redução de salário”217, ele pede ao professor que lhe arranje uma
ocupação qualquer, pois não desejava voltar à cidade e ter de se apresentar decaído
211 Ibidem. p. 11-12.212 Ibidem. p. 11-12.213 Ibidem. p. 11-12.214 Ibidem. p. 12-13.215 Ibidem. p. 13.216 Ibidem. p. 13.217 Ibidem. p. 13.
100
ante os seus patrões. Deste modo, Ayrton se tornaria confidente do Professor Ben-
son, mas ele morreu antes disso, forçando Ayrton a voltar a sua vida de cobrador da
Sá, Pato & Cia. Quando a necessidade o fez regressar à firma, as palavras do patrão
confirmam os degraus que ele havia descido na escala social: “não nos é possível
pagar a um moço que anda a pé o mesmo ordenado que pagávamos a um que tinha
automóvel próprio... Pronunciou um ‘próprio’ de boca cheia”218. No restante do livro,
Ayrton passa a semana trabalhando na firma e, aos domingos, visita a enlutada Miss
Jane para ser confidente dos acontecimentos futuros que ela havia visto no “porviros-
cópio”.
No que se refere ao Professor Benson, sua caracterização em O presidentenegro é de um homem misterioso que passa a vida no fundo dos laboratórios, sábio
em ciências naturais e sábio ainda em finanças219. Depois de uma vida inteira dedi-
cada às suas experiências, consegue desenvolver a máquina que deslumbra o futuro,
a qual destrói um pouco antes de sua morte, pois “[a]cha que a sua invenção cairia
no poder de um grupo o qual abusaria da tremenda soma de superioridade que a
descoberta lhe concederia”220. Como detentor dos dias que estão por vir, ele poderia
ter se aproveitado das privilegiadas informações sobre o mercado financeiro que dis-
punha de antemão, mesmo assim, limitou-se a fazer investimento que garantissem
uma vida modesta e, o mais importante, o financiamento de suas pesquisas. Sua úni-
ca preocupação era com a sua filha, cujo futuro ele fez questão de garantir:
[i]sso lhe permitirá pôr-se a salvo das contingências da necessidade.Possui Jane um caderninho onde anotou a cotação dos principais va-lores de bolsa nestes próximos cinquenta anos. Está assim habilitadaa ser detentora do dinheiro que quiser. O dinheiro ainda é tudo paraos homens. O estranho dote que deixo à minha filha se resume nes-se caderninho de notas... Mas conheço Jane. Extremamente imuneàs ambições que atormentam o comum das mulheres, levará um vi-ver apagado, sem exterioridade, toda entregue à vida cerebral, que atem intensíssima221.
Assim, o Professor Benson acaba morrendo pouco depois de resgatar Ayrton
do seu acidente. As conversas entre os dois são para que Ayrton fique a par das suas
invenções e entenda o processo que permite ver o futuro. Logo após, ele desfalece
218 Ibidem. p. 62.219 Ibidem. p. 8.220 Ibidem. p. 43.221 Ibidem. p. 48.
101
sem que o livro forneça maiores detalhes. Na sequência, Miss Jane assume as con-
versas com Ayrton e dão-se início as revelações futuras. No que tange à questão ra-
cial dos Estados Unidos futurista, Benson nada comenta, ficando tudo isso a cargo de
sua filha. Nada ele relata, nem mostra comoção com a dizimação da raça negra, co-
mo se fosse apenas mais um acontecimento do fascinante e curioso futuro.
Miss Jane, por sua vez, mesmo tendo todo o futuro para ser deslumbrado,
concentra suas atenções no “choque das raças”, o que para ela se revela o mais inte-
ressante acontecimento do porvir. A relação que ela exerce com Ayrton perpassa
uma hierarquia intelectual, na qual ela, superiormente posicionada, atua como direci-
onadora dos acontecimentos e permite, por meio de seus conhecimentos, servir de
guia para Ayrton em suas limitações as quais foram enfatizadas pelo próprio Profes-
sor Benson:
[o] senhor Ayrton, pelo que vejo e adivinho, é um inocente, começouele. Chamo inocente ao homem comum, de educação mediana epouco penetrado nos segredos da natureza. Empregado no comér-cio: quer dizer que não teve estudos.
– Estudos ligeiros, ginasiais apenas, expliquei com modéstia.– Isso e nada é o mesmo. Eu preferia ter para confidente um
sábio ou, melhor, uma organização de sábio, inteligência de escol,das que compreendem. Em regra, o homem é um bípede incompre-ensivo. Alimenta-se de ideias feitas e desnorteia diante do novo. Mascostumo respeitar as injunções do Acaso. Ele o trouxe ao meu en-contro, seja pois o meu confidente222.
Em uma relação de poder, em que a intelectualidade representa o patamar
mais alto, Miss Jane é apresentada como dotada de inteligência superior e de uma
beleza que fascina o narrador a ponto de ele se apaixonar. Curioso o fato de que,
entre os personagens que permeiam a trama no plano presente, ela é a única que
recebe maiores características, nas quais sua beleza de mulher branca é enaltecida
por meio de seu cabelo loiro e de seus olhos azuis.
Deixando a questão de raça para depois, vê-se a princípio uma questão de
gênero, que, em uma análise preliminar, parece contar em favor do feminino, subli-
mado pela beleza e intelectualidade da mulher. No entanto, a caracterização feita por
Lobato desse perfil feminino, expoente para o seu tempo, tem na obra a função de
exercer o fascínio sobre o personagem/narrador Ayrton que, através do encanto e da
paixão que passa a nutrir por Miss Jane, sujeita-se a constantes visitas dominicais
222 Ibidem. p. 19.
102
nas quais os acontecimentos envolvendo as futuras questões raciais são reveladas.
Quando terminadas as revelações futuras, Miss Jane [re?]assume o papel feminino
inerente às mulheres do início do século, subordinando-se em sua natureza, desfa-
zendo sua postura de superioridade e se entregando à sedução masculina:
[o]lhei-a com o coração nos olhos. O “puro espírito” viu em mim a ta-ça cheia em excesso, cuja espuma se derrama – e perturbou-se.Seus olhos baixaram-se. Seu peito ofegou. Era o céu. Atirei-me comoquem se atira à vida, e esmaguei-lhe nos lábios o beijo sem fim deJohn Barrymore223. E qual o raio que acende em chamas o troncoimpassível, meu beijo arrancou da gelada filha do Professor Bensona ardente mulher que eu sonhara. – Minha, afinal!...224.
Além disso, as características superiores atribuídas ao personagem fogem da-
quilo que era visto como padrão feminino no início do século passado, e as palavras
de Ayrton contribuem para essa conclusão: “[f]ui percebendo aos poucos que de fe-
minino só havia em Miss Jane o aspecto. Seu espírito formado na ciência e seu con-
vívio com um homem superior, dela afastavam todas as preocupações de coquetis-
mo, próprias da mulher comum”225. Em outro excerto, ele também comenta que esta-
va “mais apaixonado do que nunca pela encantadora filha do velho sábio – sábia
também ela, mas, ai! Bem pouco feminina...”226. Assim como no caso dos negros, em
que o livro atribui qualidades positivas unicamente no momento em que passam por
um “branqueamento” físico ou cultural, a mulher também é apresentada com superio-
ridade ao absorver características masculinas. Mediante as relações de poder con-
temporâneas a Lobato e as características percebidas em seu romance, compreen-
de-se que “a mulher ocupa, à sua revelia, um lugar secundário em relação ao lugar
223 John Sidney Blyth Barrymore (Filadélfia, 14 de fevereiro de 1882 – Los Angeles, 29 de maio de1942) foi um ator americano. Inicialmente, ganhou fama como ator teatral em comédias ligeiras,depois em papéis dramáticos, acabando por tornar-se grande intérprete de personagens shakes-pearianos (Ricardo III, 1920 e Hamlet, 1922). Seu sucesso continuou no cinema, em filmes degêneros variados tanto na era do cinema mudo como na do falado. A vida pessoal de Barrymorefoi alvo de muitos textos, antes e mesmo depois de seu falecimento em 1942. Foi muito popular nadécada de 1920, chamado de “O Grande Perfil”. Hoje é lembrado por seus papéis em filmes comoDr. Jekyll e Mr. Hyde (1920), Don Juan (1926), Grande hotel (1932) e Jantar às oito (1933).Notar que Don Juan, simbologia do grande conquistador, é datado do mesmo ano da publicaçãode O presidente negro, além de o livro fazer referência ao filme A fera do mar do mesmo ano.224 LOBATO, Monteiro. O presidente negro. 1961. p. 174.225 Ibidem. p. 42.226 Ibidem. p. 99.
103
ocupado pelo homem. Tais discursos [...] acabam por fundamentar os cânones críti-
cos e teóricos tradicionais e masculinos que regem o saber sobre a literatura”227.
Nesse mesmo ínterim, O presidente negro apresenta mais dois personagens
femininos, ambos inseridas nos Estados Unidos futurístico. Nesse meio, a mulher
lutava para vencer “o seu estágio de inferioridade política e cultural, consequência
menos duma pretensa inferioridade do cérebro [...] do que de uma organização cere-
bral diversa da do homem e, portanto, inapta a produzir o mesmo rendimento quando
submetida ao mesmo regime de educação”228. Na figura de Glória Elvin, é criado o
partido feminista, que, dentre outras teorias, pregava que as diferenças de gênero
existiam devido à diferença de espécies. Para Miss Elvin, em seu livro Simbiosedesmascarada, a mulher não era a representante feminina do Homo, mas uma outra
espécie, tomada à força pelo homem quando este perdera sua companheira natural
no período pré-histórico. Ou seja, o “[h]omo suplantou o mamífero adverso e de posse
da fêmea alheia veio através das idades tentando um equilíbrio sexual impossível”229.
Em resumo, na ficção lobatiana, foi usurpada da mulher a condição de huma-
no, e, em suas limitações de mero mamífero compatível para reprodução, “[a] cultura
como a criara o homem não se adaptava ao cérebro da mulher, de funcionamento
especialíssimo e sempre influenciado por certas glândulas misteriosas”230. No futuro
ficcional de Lobato, não apenas a raça negra seria dizimada, mas à mulher, como ser
inferior, relega-se a condição de Sabina Mutans231, mamífero diferente do ser huma-
no e limitado em suas capacidades. Através de afirmações como as contidas em Opresidente negro, depreende-se, conforme Ria Lemaire, que “as representações
masculinas sobre a mulher, como o sexo ‘natural, essencial e universalmente’ mais
fraco, podem ser consideradas como uma das formas mais radicais deste tipo de legi-
timação de poder”232.
Dentro de um padrão canônico comum à contemporaneidade de Lobato, a mu-
lher perde sua voz, mesmo estando presente do discurso literário, ela não fala como
mulher, sendo masculinizada ou relegada, como no caso de O presidente negro, a
uma classificação não humana. Isso demanda do fato de o cânone ter “a experiência
227 ZOLIN, Lúcia. Osana. Crítica feminista. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Orgs.).Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 2003. p. 162.228 LOBATO, Monteiro. O presidente negro. 1961. p. 84.229 Ibidem. p. 85.230 Ibidem. p. 86.231 Ibidem. p. 89.232 LEMAIRE, Ria. Repensando a história literária. In: BUARQUE DE HOLLANDA, Heloísa (Org.).Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. 1994. p. 58.
104
masculina como paradigma da existência humana nos sistemas simbólicos de repre-
sentação”. Em outros termos, “[n]a medida em que esse paradigma adquiriu caráter
universalizante, a diferença da experiência feminina foi neutralizada e sua represen-
tação subtraída de importância”233.
Importante notar que Miss Jane, ao relatar esses acontecimentos futuros, no
qual o seu gênero estava reduzido à mera espécie domesticada, não revela nenhuma
resignação ou despeito feminista. Para as autoras de A mulher escrita, a figura fe-
minina é “quem se define através da privação, da perda, da ausência: é ela a que não
possui. Destituída de voz, de poder, de intelecto, de alma, de pênis, resta-lhe a falta,
a lacuna, esse lugar do vazio em que o feminino se instaura”234. No caso de Lobato,
ele aproveita esse momento para, por meio de seu personagem, falar sobre o femi-
nismo que ensaiava os primeiros passos na década de 20, e profetizar sua futura fa-
lha: “[d]e toda a sua agitação só veio a resultar uma coisa; a feminista, a odiosa mu-
lher-homem, que pensava com ideais de homem, usava colarinhos de homem, con-
seguindo com isso apenas [...] não ser homem nem mulher”235.
No que se refere ao partido feminista de O presidente negro, as mulheres
aderiram maciçamente às teorias de Miss Elvin, sendo denominadas de “elvinistas”.
O livro relata que “[e]xcelentes mães de família e ótimas esposas batiam-se pelo ‘sa-
bino’ com inconsciência de pasmar”236. Mesmo assim, a submissão feminina era mais
forte e, quando “chegadas em casa, despiam o cérebro da extravagância e beijavam
na testa o Homo que na rua vinham de condenar como ‘infame raptor’”237. Dente os
membros do partido feminista, a mais expoente era Miss Evelyn Astor, que represen-
tava o partido como candidata à presidência. Sua candidatura, como força da voz
feminina, cala-se abruptamente quando o candidato negro vence o pleito e as femi-
nistas percebem o erro que cometeram ao se afastar do seu Homo branco. O arre-
pendimento pela busca da independência feminina é expressa nas palavras de Miss
Astor:
– Mulheres! Eis as consequências da nossa loucura! Divorcia-mo-nos do nosso velho companheiro sexual e [...] declaramos-lhe
233 SCHIMIDT, Rita Terezinha. Repensando a cultura, a literatura e o espaço da autoria feminina.In: NAVARRO, Márcia Hoppe (Org.). Rompendo o silêncio: gênero e literatura na América Lati-na. 1995. p. 184.234 CASTELLO BRANCO, Lúcia; BRANDÃO, Ruth Silviano. A mulher escrita. 1989. p. 125.235 LOBATO, Monteiro. O presidente negro. 1961. p. 86.236 Ibidem. p. 94.237 Ibidem. p. 94.
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guerra, difamamo-lo, e a paixão nos cegou a ponto de não vermos opolvo que espiava a brecha a fim de envolver o Capitólio nos seustentáculos! Ah, Kerlog, que injusta fui contigo recusando a fusão par-tidária que me propunhas! E como fui cruel respondendo às tuas leaispalavras com anfigurís em linguagem sabina! Vejo bem claro agora onosso erro e, embora reconhecendo as queixas que a mulher tem domacho, também reconheço que sem o concurso dele nada valería-mos no mundo238.
Foi do partido feminista a pronta iniciativa de restabelecer a aliança com o par-
tido masculino. Como averigua Miss Evelyn Astor, "[t]emos de nos aliar de novo ao
homem [...] porque já não se trata de um mero choque político entre as duas facções
da raça branca. Trata-se da luva que nos vem de lançar ao rosto a raça negra”239.
Assim, as feministas, lideradas por Astor, foram declarar sua submissão de gênero ao
presidente branco: “Kerlog, querido Kerlog! Venho em nome de todas as mulheres
pedir perdão ao Homo [...]. Volta a mulher de novo aos braços do seu velho compa-
nheiro de peregrinação pelo mundo”240. Deste modo, finda a rebeldia feminista que
deixa de lado suas ideologias de gênero e assume a submissão incondicional ao ho-
mem, “[d]e mãos dadas compusemos à sublime epopeia do amor – poema que prin-
cipiou com a Vida e só com ela terá fim”241.
Outro aspecto interessante das caracterizações de O presidente negro está
no personagem Jim Roy, candidato que representava o partido negro denominado de
“Associação negra”242. É valido frisar que o romance de Lobato não apresenta ne-
nhum negro de cor, apenas de sangue, já que todos foram submetidos a um proces-
so que os deixava “horrivelmente esbranquiçado[s]”243, inclusive Jim Roy que não
parecia em sua pele ter origem africana.
O livro descreve Jim Roy como sendo “a própria raça negra por um milagre de
compressão posta inteira dentro de um homem”244. Dotado de uma inteligência inco-
mum, ele consegue unir os negros e aproveita-se da divisão dos brancos pela ques-
tão de gênero e consagra-se presidente dos Estados Unidos. Mesmo sendo detentor
de uma personalidade diferenciada, ao longo de O presidente negro, raras vezes é
dado voz às suas falas, como ocorre na conferência que ele teve com Miss Astor, na
238 Ibidem. p. 113.239 Ibidem. p. 112.240 Ibidem. p. 117.241 Ibidem. p. 114.242 Ibidem. p. 81.243 Ibidem. p. 80.244 Ibidem. p. 91.
106
qual as palavras da feminista aparecem descritas na integra em discurso direto, en-
quanto a voz de Jim Roy é subtraída do discurso, que mais parece um monólogo fe-
minino. Fica a cargo do narrador a resposta do candidato negro: “Jim Roy ouviu-a
com serena impassibilidade, sem que um sorriso ou ruga de apreensão lhe quebras-
se a calma das feições, e ao responder limitou-se a promessas ondeantes, fechado
em fórmulas vagas e de duplo sentido”245. A suposta representante de uma espécie
de mamíferos diferente da humana, Sabina Mutans, parece ter mais voz do que o
humano inferiorizado por sua cor.
Jim Roy é o único personagem negro que aparece diretamente na obra de Lo-
bato. Suas qualidades políticas o colocam em um patamar de liderança, único entre
os descendentes africanos. Aos outros negros é legada a posição de coadjuvantes
das manobras políticas e submissos às decisões de seu representante à presidência,
tanto que, na véspera do pleito, eles estavam no aguardo da mensagem de Jim Roy
sobre qual dos partidos deveriam votar: no partido feminino ou masculino. Aos negros
de modo geral, retratados como desprovidos de aspirações políticas e de poder, o
seu candidato parecia ter mais uma função decorativa, em vez de ser um real concor-
rente à presidência americana. Prova disso está no assombro com que eles recebe-
ram a mensagem de Jim Roy que os orientava a votar no seu nome, e maior assom-
bro ainda quanto ele vence a eleição. O livro deixa claro que nenhum dos negros, “a
não ser Jim Roy, h[avia] esperado por aquele desfecho”246, e eles pareciam não
acreditar
[a] estupefação dos brancos derrotados não era menor que a dos ne-gros vencedores. Haviam estes agido como autômatos; deram o votoa Roy como o dariam a Kerlog, a Miss Astor, ou o não dariam a ne-nhum dos três, se tal fosse a senha recebida. E agora olhavam-seuns para os outros num estonteamento de vitória em absoluto inéditopara eles247.
A empolgação dos negros com a vitória durou pouco tempo, pois suas aten-
ções se desviaram para a “entrada em cena dos abençoados raios Omega”248. Estes
alisavam os cabelos dos negros e os faziam “se esquecerem completamente da polí-
245 Ibidem. p. 90-91.246 Ibidem. p. 121.247 Ibidem. p. 121.248 Ibidem. p. 159.
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tica”249. O modo como os acontecimentos são apresentados em O presidente negrorevela que a vitória da raça nas eleições assume um papel secundário em relação à
possibilidade que os negros tinham de realmente parecerem brancos no aspecto físi-
co. Ao branqueamento corporal definitivo, “[c]em milhões de criaturas reviravam para
o céu os olhos agradecidos” e se apresentavam voluntariamente ao processo, em
uma ânsia desesperada em se tornarem brancos “como cães famintos a bofes fume-
gantes”250. Os negros apresentados no romance de Lobato não são negros; são pro-
tótipos do pensamento branco que, em sua superioridade, imagina ser o modelo inve-
jado pela raça negra inferior que nega a sua essência:
[o]s negros chegaram a tomar-se de puro êxtase, convictos de quedas Alturas descera a pugnar por eles alguma alta divindade, comooutrora os bons deuses do Olimpo. Mal repostos ainda da emoçãoconsequente à vitória de Jim Roy, outra os empolgava agora – e estamais fecunda, pois redundaria num aperfeiçoamento físico da raça.Já o pigmento fora destruído e, embora o esbranquiçado da pele nãose revelasse cor agradável à vista, tinham esperança de obter com otempo a perfeita equiparação cutânea251.
O problema não era em ser negro, mas parecer negro, e, quando “[r]eduzidas
desse modo as duas características estigmatizantes da raça [pele e cabelo], o tipo
africano melhorava a ponto de em numerosos casos provocar confusão com o aria-
no”252. Chega a ser irônico que os negros do futurístico Estados Unidos de Lobato
tenham sido agraciados finalmente com a aparência branca que tanto ambicionavam
por meio de um processo que os exterminaria da América. Os brancos apenas acei-
tam que o negro se assemelhe com sua cor no momento em que isso serve de meio
para sua definitiva eliminação.
No que se refere a Jim Roy, quando ele recebe a notícia de que a raça negra
havia sido esterilizada por ocasião do alisamento dos cabelos, desfalece diante da
compreensão de que não existiria futuro, pois os negros americanos estariam limita-
dos àquela que seria a última geração:
[n]em Shakespeare descreveria o aspecto do líder negro no momentoem que a palavra assassina lhe despedaçou o coração. Um terremo-to d'alma aluiu por terra o titã. Fê-lo tombar sobre a poltrona, com es-
249 Ibidem. p. 159.250 Ibidem. p. 148.251 Ibidem. p. 157.252 Ibidem. p. 147.
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gares de idiota, encolhido como a criança inerme que vê serpente.Breves crispações de músculos passearam-lhes pelas faces. Dobrouo corpo sobre a secretária. Imobilizou-se253.
A morte de Jim Roy é um tanto emblemática, pois calava a única voz em 100
milhões de negros que parecia amedrontar os políticos brancos. Ele era uma exce-
ção, diferente dos seus irmãos de cor que receberam a notícia da morte de seu líder
com indignação passageira, pois rapidamente assimilaram o ocorrido conformados e
submissos, pois “[o] fatalismo ancestral sobrepairou à raiva e o imenso corpo sem
cabeça, num recuo de instinto, repôs-se no lugar humilde donde o tirara a vitória de
Roy”254. Novas eleições foram realizadas, o candidato branco Kerlog assumiu a pre-
sidência e “[n]ormalizou-se a vida da América”255. Nem mesmo quando foi revelada a
real consequência do alisamento pelos raios Omega e veio a público a condição esté-
ril dos negros, esboçou-se uma reação dos descendes africanos na América: “[a] raça
ferida na fonte vital pendeu sobre o peito a cabeça como a planta a que o podador
estrangula a circulação da seiva. Ia passar. Estéril como a pedra, iria extinguir-se
num crepúsculo indolor, mas de trágica melancolia”256.
O que se assimila da análise desses elementos de O presidente negro, é a
ligação que o enredo e os personagens possuem junto às teorias sociais vigentes nas
primeiras décadas do século XX, contemporâneas à escrita do livro. Ao se voltar para
essa ótica, entende-se que “os textos não podem ser dissociados de uma certa confi-
guração ideológica, na proporção em que o que é dito depende de quem fala no texto
e de sua inscrição social e histórica”257. Consequentemente, a “interpretação é feita a
partir de uma dada posição social, de classe, institucional”, o que inviabiliza a afirma-
ção de que “um saber esteja desvinculado do poder”, e permite conceber que o “texto
parece estar intimamente sobredeterminado por uma instância de autoridade”258.
Interessado nessas relações de filiação, Monteiro Lobato, através de O presi-dente negro, associa-se ao modelo canônico, o qual parece ser mantido em toda a
obra, valorizando o estereótipo padrão associado ao poder. Ao se deparar com tais
indícios, o pesquisador deve levar em conta que “[o] critério para se questionar um
texto literário não pode se descurar do fato de que, numa dada circunstância históri-
253 Ibidem. p.163-164.254 Ibidem. p. 167.255 Ibidem. p. 167.256 Ibidem. p. 169.257 REIS, Roberto. Canon. In: JOBIM, José Luis (Org.). Palavras da crítica. 1993. p. 69.258 Ibidem. p. 69.
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ca, indivíduos dotados de poder atribuíram o estatuto de literário àquele texto (e não
a outros), canonizando-o”259. No entanto, mesmo provido do amparo canônico, o fato
é que, em O presidente negro, ao homem de origem ariana é concedida uma posi-
ção privilegiada, detentora de voz e poder político, legando ao diferente, como o ne-
gro e a mulher, a postura de subalternos com bases, inclusive, válidas na ciência. Em
resumo, “[a] literatura tem sido uma das grandes instituições de reforço de fronteiras
culturais e barreiras sociais, estabelecendo privilégios e recalques no interior da soci-
edade”260.
3.3 A ciência e o governo: o futuro utópico de Monteiro Lobato como solu-ção do problema do negro no Brasil do início do século XX
O sangue não raciocina, como os filósofos. O sangue sidera,qual o raio. Como homem, admiro-te, Jim. Vejo em ti o irmão e sintoo gênio. Mas como branco só vejo em ti o inimigo a esmagar...
“E não trepidará o branco em esmagar a América se for condi-ção para esmagar o negro?” rugiu. Kerlog retrucou calmamente comose pela sua boca falasse o próprio deus do Orgulho: – “Acima daAmerica está o Sangue”.
(O presidente negro, Monteiro Lobato)
Monteiro Lobato, engajado nas causas sociais e políticas inerentes ao seu
tempo, foi um grande nacionalista nos padrões e valores do início do século passado.
Como a maioria dos intelectuais contemporâneos a ele, “ao mesmo tempo em que
absorviam e reelaboravam as matrizes teóricas do pensamento europeu, procura-
vam, de um lado, encontrar a expressão genuína de uma possível cultura brasilei-
ra”261. No entanto, havia entraves raciais que impediam a evolução do provo brasileiro
nos moldes almejados pela elite brasileira que buscava, na ocasião, uma forma de
branquear a população. Para eles, a eugenia representava a salvação do país:
“[a]pesar do paradoxo racial, implantar a eugenia no Brasil era visto por cientistas e
intelectuais do período como um caminho para elevar um país povoado por uma legi-
ão de jecas”262.
259 Ibidem. p. 69.260 Ibidem. p. 7.261 MOTA, Maria Aparecida Rezende. Sílvio Romero: dilemas e combates no Brasil da virada doséculo XX. 2000. p. 28.262 DIWAN, Pietra. Raça pura: uma história da eugenia no Brasil e no mundo. 2007.
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Dessa forma, Monteiro Lobato compartilhou do pensamento racista com vários
médicos e intelectuais da primeira metade do século XX, e a sua obra é marcada por
uma constante preocupação com a quantidade de mulatos que adivinha do cruza-
mento das raças e as possibilidades que a ciência oferecia para solucionar o proble-
ma. Na verdade, sua visão preconceituosa vem de muito antes dos primeiros conta-
tos com os eugenistas, e um resgate da sua trajetória que contemple a evolução de
seus pensamentos com respeito às questões raciais são de auxílio na compreensão
dos estudos elencadas pela presente pesquisa.
O resgate da trajetória de Lobato passa por sua cidade natal, Taubaté, no inte-
rior de São Paulo, onde foi criado em uma fazenda. Seus pais morreram quando ain-
da era adolescente e sua criação ficou a cargo do avô, o Visconde de Tremembé.
Como bacharel em direito, Lobato foi servir como promotor em pequenas cidades do
interior paulista, nas quais o ócio interiorano, juntamente com as lembranças da in-
fância, abriram espaço para a inspiração que os lugarejos lhe impunham através de
contos como os listados primariamente em Urupês (1918) e, posteriormente, como
sequência em Cidades mortas (1919)263. Do primeiro para o segundo, percebe-se a
passagem de um tom trágico para uma ironia cômica por meio de contos permeados
de reflexões críticas acerca do povo do interior, suas condições sociais primitivas e o
descaso da oligarquia urbana: “[a]li tudo foi, nada é. Não se conjugam verbos no pre-
sente. Tudo é pretérito. Umas tantas cidades moribundas arrastam um viver decrépi-
to, gasto em chorar na mesquinhez de hoje as saudosas grandezas dantes”264.
No ano de 1911, Monteiro Lobato sentia-se melancólico e cansado da vida
pública quando “desse estado de espírito vem tirá-lo trágica e inesperada notícia: seu
avô, o Visconde de Tremembé, vítima de uma ruptura do aneurisma, acaba de falecer
em Taubaté”265. A vida de promotor é deixada de lado para assumir a responsabilida-
de junto à herança da família, “agora ele é proprietário de coisas – terras, casas, fa-
zendas... A literatura ficará para depois”266. Apesar de tudo, o convívio com as pes-
soas simples do interior permite que Lobato adquira mais consciência do modo de
vida do caboclo e a situação lamentável em que se encontrava. Em um artigo publi-
263 Na primeira edição de Cidades mortas, havia a seguinte nota introdutória: “entra neste livroum punhado de coisas antigas, impressões d’uma mocidade que vegetou no ambiente marasmáti-co das cidades mortas, Oblivion, Itaóca... Quantas saudades!...”.264 LOBATO, Monteiro. Cidades mortas. 1961. p. 21.265 CAVALHEIRO, Edgard. Monteiro Lobato: vida e obra. 1956. tomo.1. p. 146.266 Ibidem. p. 149.
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cado em 1914 no jornal O Estado de São Paulo, cujo título era “Velha praga”, Loba-
do demonstra a sua reprovação à preguiça e à vagabundagem do caboclo:
[e]ste funesto parasita da terra é o CABLOCO, espécie de homembaldio, seminômade, inadaptável à civilização, mas que vive à beiradela na penumbra das zonas fronteiriças. À medida que o progressovem chegando... vai ele refulgindo em silêncio, com o seu cachorro, oseu pilão [...] de modo a sempre se conservar fronteiriço, mudo esorna. Encoscorado numa rotina de pedra, recua para não se adaptar[...] o caboclo é uma quantidade negativa267.
Suas observações, nas quais manifesta a insatisfação e o desgosto em rela-
ção ao homem do campo, são materializadas em um de seus personagens mais co-
nhecidos, o Jeca Tatu de Urupês, o que, para muitos, foi “uma revolução nas le-
tras”268. Desta forma, a imagem do caboclo romântico e idealizado é desconstruída
para o surgimento de um caboclo preguiçoso, anti-herói, doente e cheio de vermes,
sem vocação para nada, muito menos para o trabalho. O Jeca, como símbolo do
atraso dos caboclos, representa o abandono dos governantes para com a população
rural, bem como uma defesa ao sentimento nacional quebrantado por tal situação269.
Segundo Cassiano Nunes, “nenhum escritor de alto porte, entre nós, falou como ele,
pela maioria silenciosa, pelos analfabetos, pelos caboclos, pela baixa classe média,
tartamuda e, hoje, alienada pelos meios de comunicação interesseiros e vulgares”270.
Embalado pelo sucesso de seus personagens interioranos, Lobato lança novas séries
de contos como O problema vital (1918), As ideias de Jeca Tatu (1919) e Negri-nha (1920).
Para tanto, os temas preferidos tinham a ver com a realidade regional, dotados
de militância social e denúncias políticas, mesmo “sem se filiar oficialmente a organi-
zações ou partidos políticos, Lobato sempre esteve presente nos debates sobre pro-
267 LOBATO, Monteiro. Urupês. 1961. p. 271.268 FREYRE, Gilberto. Vinte e cinco anos depois. 1981. p. 209-210.269 A caricatura de Jeca Tatu teve sua repercussão ampliada pela Rui Barbosa, então candidato àPresidência da República, ao utilizá-la em um discurso: “Senhores: Conheceis, porventura o JecaTatu, dos Urupês de Monteiro Lobato, o admirável escritor paulista? Tiveste algum dia, ocasião dever surgir, abaixo desse pincel de uma arte rara, na sua rudeza, aquele tipo de uma raça, que,‘entre as formadoras da nossa nacionalidade’, se perpetua, ‘a vegetar de cócoras, incapaz de evo-lução e impenetrável ao progresso’?”. BARBOSA, Rui. A questão social e política no Brasil.1981. p. 171.270 NUNES, Cassiano (Org.). Monteiro Lobato vivo. 1986. p. 15.
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blemas nacionais, e nunca deixou de opinar sobre os assuntos que afetavam a vida
do país”271.
Exemplos disso foram os textos apresentados na coletânea O problema vital,
em que Lobato, a partir do envolvimento com grupos sanitaristas, percebe no caboclo
mais uma vítima do que um alienado culpado por sua situação. Com uma visão con-
valescente, os “Jecas” são apresentados como doentes, acometidos com uma gama
de enfermidades endêmicas, sempre agravadas pela alienação dos governantes, jus-
tificando, assim, a sua miséria. Na epígrafe da coletânea, consta a confirmação do
novo pensamento de Lobato: “[o] Jeca não é assim: está assim”272, e o texto prega a
ideia de que, se o caboclo fosse devidamente tratado e orientado nas normas de sa-
neamento básico, ele sairia da inércia e prosperaria por meio de seu trabalho:
[o] nosso problema, verificado que foi o mau estado da populaçãonativa, é simples e uno: sanear. Para sanear é forçoso, preliminar-mente, convencermos o país da sua doença; e em seguida fazerdessa ideia o programa de todos os governos, a ideia fixa de todosos particulares. Tudo mais rola para plano secundário. Sanear é agrande questão. Não há problema nacional que se não entrose nes-se. Só a alta crescente do índice da saúde coletiva trará a soluçãodo problema econômico, do problema imigratório, do problema fi-nanceiro, do problema militar e do problema político273.
O problema vital de Lobato se transforma em um marco na campanha sanita-
rista no Brasil, apresentando a possibilidade da cura do caboclo, tanto nos males do
corpo como da índole, evidenciando de modo implícito um plano nacional de regene-
ração de uma parte significativa da população brasileira. O otimismo dessa mesma
imagem de um Jeca regenerado foi apresentado a partir da década de 20 em campa-
nhas publicitárias da indústria farmacêutica sobre o semblante de Jecatatuzinho274.
Nesses termos, percebe-se que Lobato materializou na literatura o pensamen-
to de que o problema que envolvia o caboclo poderia ser resolvido pela ciência. Se-
271 AZEVEDO, Carmem Lucia de; CAMARGOS, Márcia; SACCHETTA, Vladimir. Monteiro Loba-to: furacão na Botocúndia. 2000. p. 210.272 LOBATO, Monteiro. Mr. Slang e o Brasil e Problema vital. 1961. p. 221.273 Ibidem. p. 272.274 Monteiro Lobato sugeriu que seu amigo Candido Fontoura denominasse seu tônico de Biotôni-co Fontoura. O sucesso do remédio veio com o Almanaque Fontoura que continha a imagem doJecatatuzinho fraquinho e amarelo que se tornava forte e saudável depois de ingerir o biotônico. Osucesso do almanaque foi enorme, tendo 50.000 exemplares na primeira edição. Nos anos 80, atiragem do almanaque bateu todos os recordes de edição ao ultrapassar a marca de 100 milhõesde exemplares em 60 anos de divulgação.
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duzido pelas soluções lógicas que a ciência poderiam oferecer, Lobato acreditava
que o Brasil poderia ir mais além na busca de sua nacionalidade através da solução
de outros problemas. Para os intelectuais contemporâneos de Lobato, a “ciência era
frequentemente uma palavra prestigiosa, capaz de garantir a verdade do que afirma-
vam”275. Sendo assim, “Lobato encarnou o divulgador agressivo da Ciência, do pro-
gressismo, do ‘mundo moderno’, tendo sido um demolidor de tabus, à maneira dos
socialistas fabianos, com um superavit de verve e de sarcasmo”276. Isso pode ser
percebido ao longo de toda obra lobatiana, que, a exemplo do caboclo, via a possibi-
lidade de solucionar todos os problemas de ordem humana que impossibilitavam a
formação da nação brasileira. A simpatia de Lobato pela ciência é vista inclusive em
suas obras infantis:
O diabo é o símbolo da maldade, mas até a maldade amansaquando em companhia da bondade. De viverem juntos ali na capeli-nha, o santo e o diabo se transformaram em amigos, e os bons sen-timentos de um passaram para o outro.
– Influência do meio! – gritou Pedrinho, que andava a ler Dar-win277.[...]
– Gostei, gostei! – exclamou Emília. – Não tem nada de bobaessa historinha. É uma luta de esperteza contra esperteza, em que omais esperto saiu ganhando. Pedrinho sabe o que isto significa emlinguagem científica. Diga lá, Pedrinho.
E o menino, que era um darwinista levado da breca, veio logocom a sua cienciazinha.
– Isso significa a vitória do mais apto. O mais apto é o mais es-perto278.
Conforme as teorias científicas se popularizavam no Brasil, as tendências pre-
conceituosas, disfarçadas pela bandeira do nacionalismo, assumiam cunhos diferen-
tes, algo que se percebe na obra de Lobato. Do caboclo rejeitado como o mal da ter-
ra, vieram teorias para regenerá-lo, da regeneração surgiu o problema da cor, que se
mantinha mesmo diante do tratamento higiênico. Surge, então, a ânsia pelo branque-
amento, pois “a elite brasileira, preocupada com a construção de uma unidade nacio-
nal, via esta ameaçada pela pluralidade étnico-racial. A mestiçagem era para ela uma
ponte para o destino final: o branqueamento do povo brasileiro”279. A partir desse en-
275 LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. 1983. p. 180.276 BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 2006. p. 216.277 LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. 1961. p. 76.278 Ibidem. p. 100.279 MUNANGA. Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versusIdentidade negra. 2004. p. 125.
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cadeamento, “a tese do branqueamento como projeto nacional surgiu, no Brasil, co-
mo uma forma de conciliar a crença na superioridade branca com a busca do pro-
gressivo desaparecimento do negro, cuja presença era interpretada como um mal
para o país”280 – mas não foi o suficiente.
Para os contemporâneos de Lobato, as possibilidades de recuperação do ca-
boclo por meio da ciência indicava, em primeira instância, os caminhos para criação
de uma nação com aspectos superiores, próxima daquilo que seria o ideal europeu.
No entanto, a classificação ética do caboclo se associava à mestiçagem, e “[a] avali-
ação negativa dos mulatos pelos cientistas europeus e norte-americanos era confron-
tada pela afirmação brasileira de que seria por meio da miscigenação racial que o
Brasil realizaria seu próprio futuro ‘eugênico’”281. Deste modo, espalhou-se, pelo meio
intelectual da década de 20, a convicção de que, mesmo tratado, medicado e regene-
rado, os caboclos mestiços, do “ponto de vista moral, [...] manifestam uma acentuada
fraqueza: a emotividade exagerada, ótima condição para o surto dos estados passio-
nais”282. Ao que parece, a ciência era uma desculpa para justificar o racismo que
permeava o meio intelectual:
[h]á de se diferenciar uma política de alteração do quadro demográfi-co brasileiro, com a gradual prevalência dos brancos sobre a popula-ção negra, de um projeto influenciado por teorias evolucionistas deviés racista, em que a miscigenação seletiva e a imigração seriam osparâmetros da via brasileira para a criação de uma sociedade branca,civilizada e europeia, com a eliminação da raça negra283.
Antonio Candido, ao analisar a influência dos pensamentos de superioridade
branca na literatura, afirma que “[n]a nossa cultura há uma ambiguidade fundamental:
a de sermos um povo latino, de herança cultural europeia, mas etnicamente mestiço,
situado no trópico, influenciado por culturas primitivas, ameríndias e africanas”284. O
resultado era o sentimento de inferioridade das elites nacionais em relação à Europa,
280 JACCOUD, Luciana. Racismo e república: o debate sobre o branqueamento e a discriminaçãoracial no Brasil. In: THEODORO, Mário (Org.). As políticas públicas e a desigualdade racial noBrasil: 120 anos após a abolição. 2008. p. 49.281 STEPAN, Nancy. A eugenia no Brasil – 1917 a 1940. In: HOCHMAN, G.; ARMUS, D. Cuidar,controlar, curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e Caribe. 2004. p.357.282 ROQUETTE-PINTO, Edgar. Ensaios de Anthropologia Brasiliana. 1933. p. 150.283 MAIO, Marcos Chor. Raça, doença e saúde pública no Brasil: um debate sobre o pensamentohigienista do século XIX. In: MONTEIRO, Simone (Org.). Etnicidade na América Latina: um de-bate sobre raça, saúde e direitos reprodutivos. 2004. p. 29-30.284 CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos sobre teoria e história literária. 1985. p.126-127.
115
materializando nas “afirmações particularistas um tom de constrangimento”285, pela
cor do povo brasileiro. Ou seja, estava sendo popularizada a ideia de que a aborda-
gem com respeito ao caboclo e aos mulatos havia sido feita de modo equivocada,
pois, até então, “supôs-se que o meio dominava os organismos, portanto a medicina
e a higiene resolveriam o problema da saúde; mas a ciência demonstrou haver algu-
ma coisa que independe da higiene: é a semente, a herança, que depende da Euge-
nia”286.
Embalados pelas teorias cientificas, o pensamento intelectual recai no fato de
que o problema racial brasileiro não poderia ser resolvido pelo tratamento higiênico,
nem pelo processo de branqueamento advindo de campanhas de imigração europeia
e “recusam-se a aceitar o princípio da igualdade das raças brancas com as demais
raças do globo, especialmente com a raça negra”287. Era uma questão de cor, e ao
negro foi legada a posição mais baixa. Aos intelectuais e políticos do início do século
XX, a ciência delimitou a posição dos brasileiros pela cor: “[a]o branco, cabia repre-
sentar o papel de elemento civilizador”288. Em segundo plano, “[a]o índio, era neces-
sário restituir sua dignidade original, ajudando-o a galgar os degraus da civiliza-
ção”289. Por fim, ao negro “restava o espaço de detração, mas uma vez que era en-
tendido como fator de impedimento ao progresso da nação”290. O objetivo consistia
em “melhorar as condições humanas, reorganizando os assuntos humanos em uma
base racional”291. Deste modo, “o racismo manifesta a convicção de que uma certa
categoria de seres humanos [no caso, os negros] não pode ser incorporada a essa
ordem racional, qualquer que seja o esforço”292.
Conivente a esses pensamentos sociais, e contemporâneo a esse período his-
tórico, Lobato, empolgado pelas ideias científicas, encontrou na eugenia o sinônimo
da evolução nacional que permitiria ao Brasil tornar-se a nação do futuro. Segundo
Alfredo Bosi, em Lobato, “esse pendor para a militância foi-se acentuando no decor-
rer da sua produção literária, de tal sorte que às primeiras obras narrativas logo se
seguiram livros de ficção científica à Orwell e à Huxley, de polêmica econômica e so-
285 Ibidem. p. 127.286 KHEL, Renato. A eugenia no Brasil: esboço histórico e bibliográfico. In: Actas e Trabalhos doPrimeiro Congresso Brasileiro de Eugenia. 1929. p. 11.287 VIANNA, Oliveira. Raça e assimilação. 1932. p. 243.288 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. 1993. p. 112.289 Ibidem. p. 112.290 Ibidem. p. 112.291 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto. 1998. p. 87.292 Ibidem. p. 87.
116
cial”293. Nascia assim o romance de Lobato – O presidente negro –, que colocaria na
literatura as tendências cientificas em voga no início do século XX, e apresentaria a
solução para o problema que entravava a evolução do Brasil como nação: o negro e
as formas para eliminá-lo.
Diferente daquilo que acontecia no Brasil da época de Lobato, no qual as so-
luções com respeito ao negro foram falhas por meio de uma eugenia mais teórica do
que prática, em O presidente negro, a solução racial estava ligada ao poder, que,
norteado por um governo autoritário, poderia materializar a eugenia no sentido mais
extremo. Isso contempla a “ideia de que cabia ao Estado fixar as metas pelas quais a
sociedade deveria lutar, porque a própria sociedade não seria capaz de fixá-las, ten-
do em vista a maximização do progresso nacional”294. Como forma de solução que
permitiria a implantação integral da eugenia, na obra fictícia de Lobato, foi criado o
Ministério da Seleção Artificial, “[o] ‘grande Ministério’, o verdadeiro fator da espanto-
sa transformação sofrida pelo povo americano. O seu espírito criador, a coragem de
enveredar por sendas novas sem esperar que outros o fizessem primeiro, deu àquele
povo um enorme avanço sobre os demais”295. Era uma ação do governo, através de
leis de seleção, que possibilitava a manutenção dos seres superiores em aspectos
físicos e psicológicos e a eliminação daqueles classificados como defeituosos.
De acordo com as narrações de Miss Jane a Ayrton com respeito aos Estados
Unidos futurístico, o ministério tinha como objetivo, a princípio, elevar a qualidade
física da população, classificando como inaceitáveis. O resultado foi que “[o] número
dos mal-formados no físico desceu a proporções. mínimas – sobretudo depois do
ressurgimento da sábia lei espartana”296.
No que se refere eugenia aplicada à “perfeita” população dos Estados Unidos
do futuro, depois de isoladas revoltas, “o alto progresso do espírito da América permi-
tiu-lhe a vitória”297, e o livro não aponta maiores aversões às leis de seleção, nem
esboça nenhuma reação contrária ou de remorso diante das eliminações dos inferio-
res. Ao que parece, mesmo sendo aplicada a um familiar, a eliminação ainda era vis-
ta como positiva. Em contrapartida, Ayrton, personagem que representa na história o
plano do presente, ou seja, o próprio pensamento popular do Brasil do início do sécu-
lo, vê a situação como absurda: “[a] que matava no nascedouro as crianças defeituo-
293 BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 2006. p. 215-216.294 SANTOS, Wandeley dos. Ordem burguesa e liberalismo político. 1978. p. 103-104.295 LOBATO, Monteiro. O presidente negro. 1961. p. 75.296 Ibidem. p. 75.297 Ibidem. p. 132.
117
sas? exclamei arrepiado. Tiveram eles a coragem de fazer isso?”298 A resposta a ele
vem na voz de Miss Jane, e parece simbolizar a voz da ciência internacional do início
do século, dizendo à elite nacional que ela estava errada no modo que lidaram com
as questões raciais brasileiras com suas soluções eugênicas sendo falhas:
[s]e o senhor Ayrton visse, como eu vi, o resultado dessa e de outrasleis semelhantes, só se admiraria da estupidez do homem em retar-dar por tanto tempo a adoção de normas tão fecundas. Entre cortarno início o fio da vida a uma posta de carne sem sombra de consci-ência e deixar que dela saia o ser consciente que vai vegetar anos eanos na horrível categoria dos “desgraçados”, a crueldade está nosegundo processo. A lei espartana reduziu praticamente a zero onumero dos desgraçados por defeito físico299.
O que Lobato apresentava em sua ficção era a materialização da mais pura
eugenia que apenas teria efeitos semelhantes na realidade por ocasião do holocausto
promovido pelos nazistas. A proposta do Ministério da Seleção Artificial era o sonho
dos eugenista brasileiros da década de 20, que visavam a aperfeiçoar a seleção “na-
tural” de Darwin em algo conduzido pelo governo e pela elite de modo “artificial”. O
projeto eugênico brasileiro, mesmo não sendo aplicado de modo tão cabal como na
obra de Lobato, propunha “transformar o processo de seleção natural, que funcionava
às ocultas do homem, em instrumento racional conscientemente empregado”300, o
que deveria ser refletido na “erradicação do que era entendido como causa de degra-
dação biológica e espiritual”301. Em resumo, a eugenia “[a]dicionava à hereditariedade
fatores psicossociais, abrindo-se para o esquadrinhamento e controle de uma gama
variada de agentes do que era entendido como degeneração da espécie e abastar-
damento da raça”302.
O livro de Lobato reflete o modo como a elite social brasileira encarava a
questão racial e a popularidade com que a eugenia era difundida no país. De acordo
com Waldir Stefano em seus estudos sobre Nancy Stepan, “durante as décadas de
1920 a 1940, na América Latina, a eugenia estava associada, direta ou indiretamente,
a congressos e conferências sobre legislação social, do bem estar infantil, saúde da
298 Ibidem. p. 75.299 Ibidem. p. 75-76.300 CARVALHO, Marta Maria Chagas de. Molde nacional e forma cívica: higiene, moral e traba-lho no Projeto da Associação Brasileira de Educação (1924-1931). 1998. p. 314.301 Ibidem. p. 314.302 Ibidem. p. 314.
118
mãe, doenças e famílias”303. As preocupações com a proliferação da raça negra e “o
tema melhoramento ‘eugênico’ estava[m] presente[s] nos debates sobre medicina
legal e na legislação sobre o papel do Estado na regulamentação do matrimônio”304.
Em contrapartida, faltavam leis que oficializassem a eugenia brasileira, e os intelectu-
ais acreditavam que “quanto mais a sociedade progride, mais necessários se farão os
regimes autoritários”305. O líder eugênico, Renato Kehl, lamenta esse fato ao afirmar
que “o legislador brasileiro, aferrado, ainda, ao dogmatismo jurídico mal compreendi-
do, recusou-se a satisfazer a essa aspiração nacional, talvez levado pelo receio de
cercear a decantada liberdade individual”306.
O governo brasileiro que antecede a década de 30, aspirava ao desejo de de-
mocracia, e “o núcleo semântico mínimo da noção de autoritarismo consiste na rela-
ção de exclusão recíproca que a opõe à noção de democracia”307, justificando, assim,
a aparente falta de apoio governamental aos eugenistas mais extremos. Deste modo,
o governo usou a ideia de democracia e promoveu a “democracia racial”308 que “isen-
tava a política do Estado ou racismo informal de qualquer responsabilidade adicional
pela situação da população negra, e até mesmo colocou esta responsabilidade dire-
tamente no ombro dos próprios afro-brasileiros”309.
Tal postura do governo era um tanto cômoda e, acima de tudo, conveniente
para sua isenção sobre o assunto, pois acreditava que “[s]e os negros fracassaram
303 STEFANO, Waldir. Relações entre eugenia e genética mendeliana no Brasil: Octavio Domin-gues. In: MARTINS, R. A.; MARTINS, L. A. C., P.; SILVA, C. C.; FERREIRA, J. M. H. (Orgs.). Fi-losofia e história da ciência no Cone Sul. 2004. p. 346.304 Ibidem. p. 346.305 SANTOS, Wandeley dos. Ordem burguesa e liberalismo político. 1978. p. 102.306 KEHL, Renato. A cura da fealdade: eugenia e medicina social. 1923. p. 94.307 MORAES, João. Ideólogos autoritários e teorias sobre o autoritarismo: uma síntese crítica,filosofia, política. 1986. p. 205.308 Democracia Racial é um termo usado por alguns para descrever as relações raciais no Brasil.O termo denota a crença de que o Brasil escapou do racismo e da discriminação racial vista emoutros países, mais especificamente, como nos Estados Unidos. Pesquisadores notam que a mai-oria dos brasileiros não se veem pelas lentes da discriminação racial, e não prejudicam ou promo-vem pessoas baseadas na raça. Graças a isso, enquanto a mobilidade social dos brasileiros podeser reduzida por vários fatores, como sexo e classe social, a discriminação racial seria considera-da irrelevante. No entanto, para muitos estudiosos, a Democracia Racial é considerada um mito,não sendo efetivada na prática, como é o caso de Gilberto Freyre, que traz à tona questionamen-tos sobre esse mito: “Porque depois que o Brasil fez seu festivo e retórico 13 de maio, quem cui-dou da educação do negro? Quem cuidou de integrar esse negro liberto à sociedade brasileira? AIgreja? Era inteiramente ausente. A República? Nada. A nova expressão de poder econômico doBrasil, que sucedia ao poder patriarcal agrário, e que era a urbana industrial? De modo algum. Deforma que nós estamos hoje, com descendentes de negros marginalizados, por nós próprios. Mar-ginalizados na sua condição social. [...]. Não há pura democracia no Brasil, nem racial, nem social,nem política, mas, repito, aqui existe muito mais aproximação a uma democracia racial do que emqualquer outra parte do mundo”.309 ANDREWS, George Reid. Negros e brancos em São Paulo (1988-1998). 1998. p. 210.
119
em sua ascensão na sociedade brasileira, evidentemente foi por sua própria culpa,
pois essa sociedade não o reprimiu nem obstruiu de modo algum o seu progresso”310.
Protegido por esse pensamento, o governo acreditava que “[a] realidade continuada
da pobreza e marginalização dos negros não era vista como uma refutação da ideia
de democracia racial, mas sim uma confirmação da preguiça, ignorância, estupidez,
incapacidade etc.”311, fatores que impediam “os negros de aproveitar as oportunida-
des a eles oferecidas pela sociedade brasileira – em suma, um estabelecimento da
ideologia da vadiagem”312. Ou seja, aquilo que era utopia para o grupo eugenista na-
cional pelas barreiras governamentais, em O presidente negro, transforma-se em
realidade por meio do Ministério da Seleção Artificial, enfatizando as vantagens que o
processo poderia trazer ao Brasil, caso atingisse um patamar tão elevado como o dos
Estados Unidos, e permitisse a plena aplicação da eugenia:
[e]sses foram impedidos de se reproduzirem pela Lei Owen, fruto dasgrandes ideias pregadas por Walter Owen. Walter Owen foi o verda-deiro remodelador da raça branca na América. Apareceu cento epoucos anos antes do choque das raças com o seu famoso livro Odireito de procriar, onde lançava os fundamentos do Código da Ra-ça, conjunto de leis tão sábias e fecundas em resultados que, pode-mos dizer, a Era Nova da raça humana datou da sua promulgação. Alei Owen, como era chamado esse Código da Raça, promoveu a es-terilização dos tarados, dos mal-formados mentais, de todos os indi-víduos em suma capazes de prejudicar com má progênie o futuro daespécie. Só depois da aplicação de tais leis é que foi possível realizaro grandioso programa de seleção que já havia empolgado todos osespíritos. Os admiráveis processos hoje em emprego na criação dosbelos cavalos puro-sangue passaram a reger a criação do homem naAmerica313.
As afirmações de O presidente negro lembram muito as teorias de Renato
Kehl, líder do eugenismo no Brasil, que estava disposto “a colaborar com qualquer
projeto governamental que visasse a interesses eugênicos ou para-eugênicos”, apli-
cados “à imigração, ao povoamento, ao saneamento, à educação sexual, às exigên-
cias modernas pré-matrimoniais, à fundação de estabelecimentos ou laboratórios pa-
ra estudos galtonianos”314. Objetivos do grupo de eugênico de Renato Kehl envolviam
pesquisas raciais seletivas “relativas à influência do meio, do estado econômico, da
310 Ibidem. p. 210.311 Ibidem. p. 210.312 Ibidem. p. 210.313 LOBATO, Monteiro. O presidente negro. 1961. p. 76.314 KEHL, Renato. Uma nova entidade científica que aparece: a Comissão Central Brasileira deEugenia. Boletim de Eugenia, 1931. p. 1.
120
legislação, dos costumes, do valor das gerações sucessivas e sobre as aptidões físi-
cas, intelectuais e morais, sempre tirando dessas discussões ideias destinadas a bem
da nossa raça [branca]”315. Lobato, em O presidente negro, confirma as vantagens
desses processos de seleção, pois a “América não equivalia mais a avultar às tontas
em número, como hoje, e sim a elevar o índice mental e físico dos seus habitan-
tes”316. Ainda segundo o livro, “Os Estados Unidos (e o Canadá, que já se fundira
neles) cresciam dessa maneira admirável, se bem que incompreensível para nós ho-
je, que vivemos em plena licenciosa anarquia procriadora”317. Graças ao Ministério da
Seleção Artificial,
[d]esapareceram os peludos – os surdosmudos, os aleijados, os lou-cos, os morféticos, os histéricos, os criminosos natos, os fanáticos,os gramáticos, os místicos, os retóricos, os vigaristas, os corruptoresde donzelas, as prostitutas, a legião inteira de mal-formados no físicoe no moral, causadores de todas as perturbações da sociedade hu-mana. Essas leis está claro que eram fortemente restritivas da natali-dade, sobretudo, no começo, quando havia quase tanto joio quantotrigo318.
É importante ressaltar que, até esse momento do romance de Lobato, a ques-
tão racial não foi enfatizada como principal alvo eugenista, tanto que a raça negra
não foi citada entre os grupos inferiores a serem eliminados pelo Ministério da Sele-
ção Artificial. Desta maneira, Lobato cria um quadro literário que contempla a situa-
ção real vivida entre as raças branca e negra no início nos Estados Unidos do século
XX. Assim como na ficção, a separação racial americana era mantida no seu extre-
mo, sem o processo de mestiçagem ocorrido no Brasil. De acordo com o pesquisador
Andrew Hacker, os Estados Unidos estavam divididos pela cor:
[a]mericanos negros são americanos, mas eles ainda subsistem co-mo estranhos na única terra que eles conhecem. Outros grupos po-dem permanecer à margem da sociedade – como, por exemplo, al-gumas seitas religiosas –, mas estas assim permanecem voluntaria-mente. Em contraste, os negros devem suportar uma segregaçãoque está longe de ser uma escolha livre. Assim a América pode servista como duas nações separadas. É claro que existem lugares emque as raças se misturam. Mas nos aspectos mais significativos, aseparação é penetrante. Como uma divisão humana e social essa
315 KEHL; Renato. Eugenia e medicina social: problemas da vida. 1923. p. 165.316 LOBATO, Monteiro. O presidente negro. 1961. p. 76.317 Ibidem. p. 76.318 Ibidem. p. 76.
121
separação sobrepuja todas as outras – mesmo as de gênero – em in-tensidade e subordinação319
No que se refere aO presidente negro, a divisão das duas raças nos Estados
Unidos futurístico tem um caráter estratégico na trama do autor, com o intuito de con-
firmar a teoria de que, mesmo sem miscigenar com os brancos, a raça negra ainda
representava perigo à soberania de uma nação. Nas palavras de Miss Jane, o livro
explica que o “mais perturbador de todos os cálculos humanos surgiu. Apesar de
submetida aos mesmos processos restritivos dos brancos, a raça negra começou
desde logo a apresentar um índice mais alto de crescimento”320. Ela prossegue afir-
mando que “[a] proporção do negro puro relativa ao branco subiu a um quinto, a um
quarto, a um terço, e por fim chegou á metade”321. Desse modo, “o binômio racial,
desprezado na era do crescimento imigratório e descurado no início do regime seleti-
vo, passou a entrar na fase aguda do ‘resolve-me ou devoro-te’"322. Se não bastasse
o crescimento assustador despertando o “instinto de conservação dos brancos [que]
eriçou-se nos primeiros arrepios da legitima defesa”323, ocorreu a maior de todas as
ofensas ao orgulho ariano, quando na eleição de 2228, um candidato negro foi eleito
presidente dos Estados Unidos, fato inédito na história.
Diante de toda essa trama, Lobato criou a situação que possibilitaria a aplica-
ção completa da eugenia nos Estados Unidos do futuro. Segundo o livro, foi realizado
um encontro dos lideres brancos, denominada de “convenção branca”324, que tinha
como objetivo eliminar a raça negra: “[c]omo há razões de estado, também há razões
de raça que nos cumpre ouvir e atender”325. Os brancos de 2228 haviam compreen-
dido que não havia possibilidades de convívio com a raça negra, e que pela cor eles
sempre representariam um sinônimo de inferioridade para o povo americano. Não
havia lugar para o negro no futuro. E, assim, foi feita a esterilização, disfarçada por
meio do processo de alisamento, ao qual voluntariamente todos os negros se sujeita-
ram. O resultado da “convenção branca”, que representa “o poder que tem de modifi-
319 Apud CALLINICOS, Alex. Capitalismo e racismo. 2000. p. 5.320 LOBATO, Monteiro. O presidente negro. 1961. p. 77.321 Ibidem. p. 77.322 Ibidem. p. 77.323 Ibidem. p. 77.324 Ibidem. p. 131.325 Ibidem. p. 131.
122
car ou suprimir qualquer elemento da ordem social”326 é descrito no penúltimo capitu-
lo de O presidente negro:
[p]ela primeira vez na vida dos povos realizava-se uma operação ci-rúrgica de tamanha envergadura. O frio bisturi de um grupo humanofizera a ablação do futuro de um outro grupo de cento e oito milhõessem que o paciente nada percebesse. A raça branca, afeita à guerracomo a ultima ratio da sua majestade, desviava-se da velha trilha eimpunha um manso ponto final étnico ao grupo que a ajudara a criara América, mas com o qual não mais podia viver em comum. Tinha-ocomo obstáculo ao ideal da Super-Civilização ariana que naquele ter-ritório começava a desabrochar, e pois não iria render-se a fraquezasde sentimento, nocivas à esplendorosa florescência do homem bran-co327.
Firma-se, assim, a teoria embutida em O presidente negro, de que a raça
negra não deveria ser aceita na América, sem nenhuma política alternativa a isso.
Com uma espécie de lógica progressiva, o autor descreve em seu livro como o negro
passa de um problema isolado, contido pela divisão das raças, a um perigo real
quando um descendente africano chega ao poder. Um presidente negro, com sua
inacreditável posição de chefe da nação americana, expunha a ameaça que os ne-
gros representavam à supremacia ariana. Portanto, não bastava eliminar o presidente
negro, sendo que outros poderiam ascender ao poder, elimina-se, pois, a raça negra
inteira. As leis eugênicas dos Estados Unidos futurístico falharam em não incluir o
negro em sua lista de eliminação; no entanto, a experiência iria corrigir esse erro e o
poder autoritário se resume na retificação das atribuições do Ministério da Seleção
Artificial:
[o] governo americano vem dar conta ao povo do golpe de força aque foi arrastado em cumprimento da suprema deliberação dos che-fes da raça branca, reunidos em palácio no dia 7 de maio de 2228.Foi aprovada nessa assembleia a moção Leland, resumida nestaspalavras: “A convenção da raça branca decide alterar a Lei Owen nosentido de incluir entre as taras que implicam a esterilização o pig-mento negro camuflado... A raça branca autoriza o governo america-no a lançar mãos dos recursos que julgar convenientes para a exe-cução desta sentença suprema e inapeláve”328l.
326 VIANNA, Oliveira. Instituições políticas brasileiras. 1987. p. 100.327 LOBATO, Monteiro. O presidente negro. 1961. p. 169.328 Ibidem. p. 168.
123
Ao se voltar ao tempo real da época da publicação do livro, 1926, tal teoria
concebia o sonho dos eugenistas contemporâneos a Lobato, e o modo que a trama
de O presidente negro se desenrola, vem a comprovar que as soluções encontradas
pelo Brasil com a miscigenação ou a política separatista dos EUA, ambas eram fa-
lhas. Por meio da ficção de Lobato, depreende-se que, caso fosse permitida a mistura
das raças, a pureza da raça branca seria comprometida pelo gene inferior dos ne-
gros, do mesmo modo, se fosse permitido ao negro subsistir isolado do branco, a ra-
ça africana poderia aumentar em quantidade a ponto de superar os brancos em nú-
mero de modo a passarem a reenviar poderes políticos. Em suma, para o livro de
Lobato, a única solução possível era a sumária eliminação do negro.
O pensamento preconceituoso de Lobato havia evoluído até culminar em Opresidente negro. Mais de uma década havia se passado desde que o autor conce-
beu o caboclo como símbolo do atraso brasileiro, a praga da terra que infestava as
“cidades mortas” do interior paulista. A preocupação com a regeneração de seu Jeca
por meio das teorias de higienistas também já havia passado, bem como a empolga-
ção compartilhada com os intelectuais do início da década de 20 no que se refere ao
branqueamento da população com a importação de sangue europeu. O enfoque ago-
ra era outro, naquilo “que ainda restaria disciplinar: a espécie. Tendo em pauta uma
aproximação das máximas eugênicas e de sua implementação como um projeto de
restauração nacional”329. Pela literatura, Lobato demonstra que apenas medidas mais
radicais poderiam elevar uma nação branca da inferioridade da raça negra. Pelas
palavras de Lobato endereçadas ao amigo Godofredo Rangel, as teorias eugênicas
eram a solução pela “poda” da raça africana: “[p]recisamos lançar, vulgarizar estas
ideias. A humanidade precisa de uma coisa só: poda. É como a vinha”330. Desse mo-
do, “[a] nação era conclamada por estadistas, intelectuais e políticos mobilizados em
prol do nobre objetivo de ‘melhorar a raça’, eliminando a ‘mancha negra’ com a maior
rapidez, isto é, a maior dedicação possível”331.
Em Lobato, “prevalecia a esperança de um futuro branco para o Brasil, ou seja
a eliminação da raça”, através da ciência, que recusava “a aceitar o princípio da
igualdade das raças brancas com as demais raças do globo, especialmente com a
raça negra”332, e do poder autoritário, “uma vez que a soberania do estado moderno é
o poder de definir e de fazer as definições pegarem, tudo que se autodefine ou que
329 MOTA, André. Quem é bom já nasce feito: sanitarismo e eugenia no Brasil. 2003. p. 16.330 Apud DIWAN, Pietra. Eugenia, a biologia como farsa. In: ____. História viva. 2007. p. 81.331 NASCIMENTO, Elisa Larkin. O sortilégio da cor. 2003. p. 239.332 VIANNA, Oliveira. Raça e assimilação. 1932. p. 243.
124
escapa à definição assistida pelo poder é subversivo”333. O grupo intelectual com o
qual Lobato compartilhava essas teorias, era composta por arianos e, segundo Olivei-
ra Vianna, “[a]rianos são estes os que, de posse dos aparelhos de disciplina e de
educação, dominam esta turba informe e pululante de mestiços inferiores”334, detento-
res do poder necessário para mantê-la “pela compressão social e jurídica dentro das
normas da moral ariana, e a vão afeiçoando lentamente à mentalidade da raça bran-
ca”. A literatura de Lobato é o reflexo do sonho eugenista na qual “[c]om a frieza im-
placável do Sangue que nada vê acima de si, o branco pôs um ponto final no negro
da America”335.
333 BAUMAN, Zygmun. Modernidade e ambivalência. 1999. p. 16.334 VIANNA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil. 1982. p. 127.335 LOBATO, Monteiro. O presidente negro. 1961. p. 163.
125
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo objetivou a busca da compreensão dos prováveis motivos
que habilitam determinado livro ou autor a ter espaço entre os escolhidos pelo câno-
ne literário brasileiro. Uma análise histórica dos fatores de canonização revelou que
os critérios dessas escolhas são efetivados na medida em que a literatura serve aos
interesses do grupo ligado ao poder. Inevitavelmente, cada período literário tem em
sua caracterização elementos que atendem à classe política dominante e aos repre-
sentantes intelectuais ligados ao grupo burguês. O autor ou a obra que não se adapta
aos moldes impostos permanece afastado do cânone e legado ao esquecimento.
Outro fator relevante elencado pela pesquisa consiste nas temáticas comu-
mente abordadas pelas obras vistas com bons olhos pelo cânone. Os temas centra-
dos em personagens brancos com características europeias são preferenciais, e os
autores que se mantiveram nas listas canônicas obedecem a esse padrão. No mo-
mento em que o negro surge como personagem ou tema de uma obra, o teor da fic-
ção tende ao preconceito, e a sublimação da raça branca é, via de regra, trazida à
tona. Isso é percebido na caracterização dos personagens, nas ideologias pregadas
pela obra ou ainda, apresentado de modo mais gritante como no caso de O presi-dente negro em que a lógica cientifica justifica as formas de preconceito.
Uma reflexão crítica sobre as bases de sustentação do cânone permitiu verifi-
car que a escolha de autores e obras por historiadores da literatura e autores de ma-
nuais didáticos está associada a interesses da elite intelectual brasileira. Esta, por
sua vez, é caracterizada por contradições ideológicas complexas. No campo da elite
intelectual, por sua vez, ocorrem debates referentes a valores sociais, políticos e
econômicos.
Essas reflexões apontam para a ideia de que estar ou não no cânone é resul-
tado de um processo seletivo que se caracteriza pela legitimação de exclusões. Dis-
tinguir entre um bom autor e um mau autor, uma boa obra e uma má obra, é uma ta-
refa que não se apresenta mais hoje para os estudos literários brasileiros como se
apresentava nos anos 1970. Para se definir um valor literário atualmente, conside-
rando a complexidade do campo de debate, é preciso ter clareza de critérios. O cam-
po intelectual discute, como não podia discutir no passado, pontos de vista sobre a
definição de critérios.
126
Eduardo Coutinho afirmou que se tem tornado imperativo resgatar produções
culturais colocadas em segundo plano pela tradição336. Entre as exclusões convenci-
onalmente operadas, o cânone brasileiro é marcado de modo geral pela ausência,
por exemplo, do cordel, da tradição oral, dos registros indígenas. É importante, então,
o esforço de pesquisadores em resgatar autores e obras que, por variadas circuns-
tâncias históricas e ideológicas, deixaram de ser reconhecidas em seu tempo. Estu-
diosos ligados ao feminismo, às etnias e a grupos sociais marginalizados têm procu-
rado indicar lacunas e reverter critérios de valor consolidados.
A discussão envolve também implicações em termos de política cultural, em
relação à concepção de prioridades nas bases histórico-sociais de formação do país.
Assim, a luta pela inclusão ou exclusão de um autor no cânone brasileiro passa a ser
essencialmente ideológicas. Nesse sentido, ao se examinarem os critérios de inclu-
são e exclusão do cânone, busca-se compreender por que “há poucas mulheres,
quase nenhum não-branco e muito provavelmente escassos membros dos segmen-
tos menos favorecidos da pirâmide social”337.
Na literatura brasileira, o caso de Monteiro Lobato se revelou bastante curioso.
A sua obra, além de extensa, é muito polêmica. Por trás da inocência de seus perso-
nagens infantis, existem muitas evidências racistas, as quais já foram exploradas em
inúmeros artigos. Defendido por uns, crucificado por outros, Lobato ditou os caminhos
editoriais do Brasil durante muitos anos com suas editoras e livros, e só não seduziu
o mercado editorial americano da década de 30 (como era sua intenção) devido a
suas ideias racistas que por lá não foram bem aceitas. O livro O presidente negro,
originalmente chamado de O choque das raças, editado em 1926, com o qual pre-
tendia ganhar o mundo e ficar milionário, é a materialização dessas ideias.
A pesquisa procurou elencar o modo como o livro de Lobato se adaptou às
ideologias racistas do início do século XX tanto em sua trama como em seus perso-
nagens. Como visto, a publicação de O presidente negro foi estrategicamente mon-
tada para uma campanha editorial que visava a atingir o público americano em espe-
cial, com requintes explícitos de um racismo amparado pelas ciências eugênicas.
Nesse sentido, uma obra de ficção científica atenderia à necessidade de um nortea-
mento lógico para os acontecimentos abordados na trama e na justificativa de que a
raça branca era superior às demais. Isso foi percebido no modo como os negros fo-
336 COUTINHO, Eduardo. Literatura comparada, literaturas nacionais e o questionamento do câ-none. Revista Brasileira de Literatura Comparada, 1996. p. 72.337 REIS, Roberto. Cânon. In: JOBIN, José Luis (Org.). Palavra da crítica. 1992. p. 73.
127
ram caracterizados, dotados com um senso de repulsa pela sua própria cor, ansiosos
pelos processos de branqueamento que a ciência estava proporcionando na vontade
desmedida de se tornarem seres superiores e brancos. Longe de ser uma forma de
acabar com o racismo, já que as raças seriam unificadas na cor, o livro comprovou
que uma raça inferior é sempre inferior, indiferente ao aspecto de camuflagem que
apresente.
Os personagens de O presidente negro são característicos nesse sentido.
Partiu-se a análise pelo narrador, Ayrton, que detinha os ideais de um típico homem
branco na busca de crescimento financeiro nos moldes capitalistas. Viu-se, em Miss
Jane, o símbolo do intelecto, da superioridade de “um exemplar de olhos azuis” que,
de tão inteligente, deixava de ser feminina. Entrando na viagem futurística de Lobato,
foram apresentados os negros em 2228, falsos negros que negaram sua essência na
contínua busca da assimilação do branco na forma física e ideológica. Sem orgulho
da própria cor, eles assistiram calados à esterilização da sua raça, suscetíveis à
opressão branca na comprovação de sua inferioridade.
Do outro lado, os brancos vitoriosos regozijavam-se na vitória ariana, felizes
com um futuro exclusivo à sua raça, sem que a América tivesse que se envergonhar
pelos já eliminados habitantes negros. Até mesmo Kerlog, o negro eleito presidente
dos Estados Unidos, descrito como astuto de um modo tão acentuado que desafiava
a lógica de seu sangue negro, sucumbiu ao desejo de ser branco ao assumir uma
camuflagem que negava totalmente a sua cor.
Outro aspecto relevante no livro de Lobato está no poder exercido pela classe
dominante no direcionamento dos acontecimentos. O governo americano do futuro de
modo autoritário aplicou a eugenia até as últimas consequências. Isso ilustrou as fa-
lhas do Brasil do início do século passado que não detinha leis que efetivassem os
interesses eugênicos da elite burguesa e intelectual, além das limitações dos proces-
sos de branqueamento que, ao invés de solucionar o problema, contribuíram para o
mulatismo que tanto envergonhava a classe branca diante dos países europeus.
Tais pensamentos apresentados por Monteiro Lobato vieram a demonstrar
uma visão que não lhe era exclusiva, mas compartilhada pela elite intelectual con-
temporânea a ele. Mais do que ficção, a eugenia estava nas rodas de discussão das
três primeiras décadas do século passado, e a literatura serviu como amostra dos
extremos que o preconceito poderia atingir. De acordo com a pesquisa, médicos, es-
critores, sociólogos como Nina Rodrigues, Oliveira Vianna, Renato Kehl, Afrânio Pei-
128
xoto e o próprio Monteiro Lobato fizeram parte do grupo eugenista brasileiro e tenta-
ram de modo exaustivo promover processos de branqueamento no país. Esses pro-
cessos foram aplicados de modo físico com a vinda de imigrantes europeus e de mo-
do ideológico por se restringir o meio cultural e literário aos interesses da raça bran-
ca.
O que se questionou, nesse particular, é por que a crítica tem buscado escon-
der esta obra dos olhos do público e como o negro é representado em outros livros
do autor. O problema, ao que parece, e é isso que se busca averiguar, não é especí-
fico a Lobato, mas vários autores têm tratado o personagem negro em suas produ-
ções com desdém e inexpressividade. Nesse sentido, em relação às discussões so-
bre o cânone, a eliminação ou o abafamento da voz negra em um livro não é exce-
ção, mas parte de um projeto mais geral sustentada pela elite.
Em suma, o pensamento racista sempre fez parte de Monteiro Lobato e foi nos
eugenistas que ele encontrou a teoria para desenvolver suas ideias e aplicá-las em
sua literatura. O presidente negro foi fruto desse pensamento em união às teorias
eugenista da época, culminando, na ficção, naquilo que julgava conveniente e possí-
vel de ser efetivado na realidade. Por ocasião da eleição americana de 2008, o livro
ganhou novo enfoque, sendo reverenciado pelo teor visionário e um tanto profético de
Lobato. Mesmo assim, a questão eugênica da obra, como expressão de pensamento
de um grupo político e intelectual da primeira metade do século passado, bem como
do próprio Lobato, não deve ser desconsiderada e muito menos esquecida.
A literatura, longe de ser apenas arte descompromissada, é permeada de
elementos sociológicos que inevitavelmente tendem a favorecer determinado grupo
ou ideologia. No que se refere ao enfoque brasileiro sobre o tema, buscou-se emba-
samento nas pesquisas realizadas por Antonio Candido, Flávio Kothe e Roberto Reis,
cujas reflexões permitem uma avaliação crítica do cânone nacional. A presente pes-
quisa ambicionou fornecer uma trajetória para a compreensão da formação literária
brasileira e das condições que permitiram a canonização de certas obras e autores,
pressuposto necessário para se compreender o processo de marginalização de gru-
pos e temáticas específicas.
A presente pesquisa não elucidou a totalidade de aspectos que o tema permi-
te, nem objetivou desprestigiar a posição canônica angariada por autores como Mon-
teiro Lobato, por mais tendenciosos que os critérios de escolha pareçam no momento
da formação do cânone em questão. Por outro lado, a maior relevância desses estu-
129
dos talvez esteja nos questionamentos que são lançados e nos novos enfoques que
podem ser dados à literatura brasileira, vista unilateralmente pelas análises tradicio-
nais.
O papel do pesquisador de literatura está ligado à busca de elementos que
permitem um melhor conhecimento do seu alvo de estudo. Por isso, seu objeto de
investigação é visto como algo produtivo na medida em que viabiliza a desmistifica-
ção de certos tabus e revela aspectos, muitas vezes, desconsiderados pela tradição
literária.
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