o candidato da igreja

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o candidato da igreja.

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  • O Candidato da Igreja do que nos fala a sua presena na poltica brasileira

    Jlia Miranda1

    Voto no candidato da minha igreja; ...voc pode confiar, ele um homem de Deus

    (eleitor pentecostal)

    isso que as pessoas querem; um trabalho religioso voltado

    para o social (candidata catlica)

    RESUMO

    Desde 1996, as eleies no Brasil mostram o aumento do nmero de senadores e deputados

    eleitos pelos seus respectivos grupos religiosos: so os candidatos da igreja. Eles

    representam um elemento importante para a compreenso do que chamamos de cultura

    poltica brasileira. Neste artigo so analisadas algumas das implicaes da presena desse

    novo tipo de parlamentar.

    PALAVRAS-CHAVE

    CULTURA POLTICA

    RELIGIO E POLTICA

    ELEIES E VOTO RELIGIOSO

    CANDIDATOS DA IGREJA

    As Casas Legislativas federal, estadual e municipal no Brasil abrigam, desde a

    dcada de 90 do sculo XX, uma personagem at ento estranha poltica. Ela , no incio,

    apenas uma curiosa presena a despertar sorrisos entre seus pares, pouco afeitos ao

    convvio com parlamentares de caractersticas to singulares quanto o fato de se

    identificarem religiosamente e, mais do que isso, tendo construdo suas candidaturas com

    base na pertena a denominaes especficas que eles afirmam representar.

    1 A autora professora titular da UFC, pesquisadora do CNPq e coordenadora do Ncleo de Estudos de Religio, Cultura e Poltica (NERPO) do Programa de Ps-Graduao em Sociologia.

  • 2

    As eleies de 1996, 1998, 2000, 2002 e 2004 vo mostrar as particularidades

    dessas candidaturas, de corte pentecostal2, entre as quais: seu gradual surgimento em todas

    as capitais brasileiras; a inequvoca liderana da Igreja Universal do Reino de Deus; a

    consolidao de bem sucedidas estratgias para a apresentao dos candidatos; a entrada da

    Assemblia de Deus nesse processo3 e; finalmente, a apresentao, por ambas as

    denominaes, de membros da hierarquia bispos e pastores como opes para os

    eleitores. Eles so os candidatos da igreja.

    Essa expresso, que se consolida na mdia, invade o espao da academia, causa

    estranheza aos pesquisadores de outras realidades scio-religiosas e utilizada com muita

    cautela pelas lideranas eclesiais4, parece se referir a um fenmeno tipicamente brasileiro.

    Indissocivel, por definio, dos processos eleitorais, representa elemento importante para a

    compreenso do que chamamos de nossa cultura poltica. Este artigo reflete sobre algumas

    das implicaes dessa presena, tomando como base as eleies acima relacionadas, ao

    longo das quais foram feitas etnografias de eventos polticos e religiosos, entrevistas,

    anlise de material de campanha e acompanhamento de candidaturas5.

    O Voto da F6

    Para entender o candidato da igreja, ou seja, os elementos que criam as condies

    para o seu surgimento e sucesso eleitoral, assim como para pensar as implicaes polticas

    e religiosas de sua presena na poltica partidria brasileira deste incio de sculo XXI,

    parece-me interessante, num primeiro momento, fazer um contraponto com certas

    2 At 2002 os evanglicos mais do que triplicam o nmero de eleitos (57). Os pentecostais chegam a 43, divididos entre cinco denominaes: Igreja Universal do Reino de Deus (18); Assemblia de Deus (18); Evangelho Quadrangular (5); Sara Nossa Terra (1) e Internacional da Graa (1). Nesse pleito, apenas cinco denominaes no so pentecostais. Como se pode notar a IURD e a AD lideram quanto ao nmero de eleitos e as bancadas vm se elitizando, isto , seus integrantes so cada vez em maior nmero ligados hierarquia: na IURD, em 1998 eram 2 bispos e 7 pastores eleitos; em 2002 so 6 bispos e 6 pastores. A AD passa de 1 para 4 pastores. 3 Embora a IURD e a AD sejam as principais protagonistas desse processo, outras denominaes pentecostais tm apresentado candidatos prprios. 4 Depois que a mdia comeou a enfatizar o compromisso desses candidatos apenas com os interesses da igreja, as lideranas e assessores vm utilizando o artifcio de dizer que eles representam a igreja, mas so candidatos de todo o povo. 5 A pesquisa foi realizada no mbito do Ncleo de Antropologia da Poltica (NUAP) do PRONEX . 6 O termo f tem aqui o significado de crena religiosa.

  • 3

    candidaturas de corte catlico surgidas no mesmo perodo. Elas tm em comum aquele que

    eu chamo aqui de voto da f. Esse voto vem garantindo o sucesso dos candidatos da igreja

    e tambm dos candidatos das comunidades da Renovao Carismtica e de outros

    postulantes catlicos que no se vinculam a grupos ou Instituio. Tanto entre

    protestantes como entre catlicos observa-se, assim, a irrupo do religioso na poltica

    partidria atravs de prticas que buscam adequar respostas, fundamentadas religiosamente,

    s demandas da sociedade.

    Mas, o que seria o voto da f? O Cear, como os demais estados brasileiros, registra,

    at 2004, um crescendo das candidaturas tanto de pastores da Igreja Universal do Reino de

    Deus quanto da Assemblia de Deus.7 Entretanto, talvez dada a sua posio de segundo

    estado mais catlico do pas e de importante plo da Renovao Carismtica Catlica,

    surgem aqui, nessas eleies municipais, novos e inquiridores elementos para anlise.

    Tome-se, como emblemticos, dois momentos do pleito na capital, Fortaleza. So eles; a

    candidatura de Ftima Leite, apresentadora de um programa de rdio numa emissora

    catlica, e as candidaturas dos representantes da IURD e da AD8, que repetem um padro j

    observado nas disputas eleitorais anteriores. A primeira lana o j vereador pastor Gelson

    Ferraz e o estreante pastor Eliezer Moreira9, enquanto a AD apresenta as candidaturas do

    pastor Francisco Paixo e do evangelista Mairton Flix.

    Ftima Leite: Ela pedagoga nascida na cidade de Mauriti, onde foi professora de

    primeiro grau, e pode ser vista como zebra nessas eleies municipais em Fortaleza.

    eleita vereadora pelo PHS, com 5.220 votos, sem nenhum investimento financeiro, sem ter

    feito ou participado de um comcio - do tipo convencional - sequer, e principalmente, sem

    qualquer contato anterior com a poltica. No h como classificar o voto de que ela

    beneficiria, como de escracho ou de indignao10. Tampouco este um voto

    institucionalmente religioso; ela no representa a Igreja Catlica ou mesmo a Renovao

    Carismtica. Sequer sua comunidade religiosa de pertena. Ftima Leite elege-se rezando o 7 No primeiro caso com espetaculares vitrias e, no caso da AD, com as derrotas de 2004 se seguindo aos sucessos de 2000. 8 IURD e AD designam neste texto, respectivamente, Igreja Universal do Reino de Deus e Assemblia de Deus. 9 Curiosamente, pela primeira vez um representante da hierarquia eclesistica se apresenta oficialmente candidato sem o ttulo de pastor, fato que se repete nas demais capitais e requer especial ateno 10 Como o caso do voto que elegeu o deputado federal paulista Enas ou a vereadora de Fortaleza e striper Dbora Soft

  • 4

    tero - o Tero da Misericrdia - nos mais diferentes locais da capital casas,

    churrascarias, mercearias, oficinas, pizzarias e mesmo ruas fechadas para esse fim11, entre

    outros - a convite de moradores da periferia da capital. Ela fica conhecida como a Voz da

    Misericrdia.

    Catlica desde criana, a nova vereadora dedica-se ao lar e s atividades na

    Renovao Carismtica, onde ingressou h 16 anos, e onde consagrada em comunidade

    de aliana12. Ela esteve frente de um programa na extinta rdio de Ftima, em Fortaleza, e

    hoje apresenta um programa dirio na Rdio Assuno, sob o comando da Comunidade

    Shalon da RCC13 h quase quatro anos. o De Bem com a Vida, que vai ao ar das 13:30hs

    s 16hs e tem nos miserveis da periferia, seus principais ouvintes. A grade da

    programao varia ao longo da semana e inclui, de um modo geral, leitura de textos

    catlicos para meditao, oraes, caminhadas com Maria e novenas da medalha

    milagrosa. O pice da programao ocorre s 14hs, com Um Mergulho na Misericrdia,

    alusivo Santa Faustina - divulgadora da misericrdia. Nesse momento rezado o tero e,

    atravs do exerccio de carismas como o de cincia e o de cura, os ouvintes recebem graas

    intermediadas por Ftima.

    Vale destacar que a programao de Ftima na rdio Assuno rene, ali mesmo na

    sede, todos os dias, dezenas de fiis que acompanham o tero numa tenda montada para

    esse fim: a Tenda da Misericrdia. Ela abriga as pessoas que, no querendo ficar em casa,

    ao p do rdio, tampouco cabem no exguo espao do estdio. Funciona, assim, como

    extenso ao mesmo tempo do estdio e da comunidade; promove a proximidade,

    indispensvel para muitos, com a mediadora das graas alcanadas nesses momentos de

    orao.

    Mesmo declarando-se vocacionada para a poltica, ela frisa que a deciso de

    candidatar-se s veio depois de muita insistncia de irmos da comunidade de aliana. O

    que a convenceu foi a certeza de que na Cmara Municipal seu trabalho ser estendido,

    abrangendo no apenas as causas espirituais mas tambm a assistncia social. A nova 11 Com autorizao do Detran 12 Os membros das comunidades de aliana no moram em residncias coletivas, (como nas comunidades de vida) mas nas respectivas casas, e participam de reunies frequentes do grupo. Seus bens so, em princpio, disponibilizados para uso de todos, quando necessrio. 13A comunidade Shalon a primeira implantada no Cear. Tem mais de 20 anos e se tornou centro de referncia para o pas na formao de leigos, j tendo tambm sucursais no exterior. RCC grafia alternativa para Renovao Carismtica Catlica

  • 5

    vereadora no mantm contatos com fins eleitorais fora dos locais que visita a convite dos

    fiis catlicos, em sua imensa maioria alheios Renovao Carismtica, como ela mesma

    destaca. Para fins desta reflexo chamo o voto que a elegeu de o voto da f.

    Nunca prometi nada, no fiz promessas de nenhum tipo, no houve troca diz ela,

    acrescentando que apenas queria ser um diferencial. Mas no sabe explicar o que seria isso,

    pois, ao dizer que v o mandato como uma misso que lhe foi confiada, ela lembra que

    outros polticos tambm pensam assim. Os pobres so o meu alvo declara, pobres de tudo,

    principalmente de educao. Eu trago os temas sobre Maria do espiritual para o social;

    discuto com os ouvintes os problemas dos meninos de rua, das mulheres abandonadas, das

    mes solteiras. isso que as pessoas querem; um trabalho religioso voltado para o social.

    Oito pessoas, das quais apenas duas do Shalon (as outras eram voluntrias da rdio

    Assuno), compunham a equipe de Ftima, que percorria a cidade com um sistema de

    som, po e caf. Da porque ela a chamava de Campanha do Po com Manteiga. Desde o

    dia 10 de julho, quando do primeiro convite para rezar o Tero da Misericrdia, ela no

    pra mais. Quando a agenda da noite estava cheia, ela rezava tambm tarde. Quem fazia o

    convite alugava as cadeiras, levava mesas e at lanche. Findo o tero, ela falava de suas

    intenes e submetia sua postulao apreciao das pessoas. Ao terminar a campanha,

    restam ainda 107 pedidos de tero que no podem ser atendidos. Fora do roteiro do Tero

    da Misericrdia Ftima percorre e conversa com fortalezenses reunidos no Beco da

    Poeira14, no centro da cidade, no Mercado Central e na avenida Monsenhor Tabosa15. E ela

    conclui, encantada, que o povo confiou nela.

    Os candidatos da igreja: Ser candidato da igreja significa ser o alvo de todas as

    aes poltico-eleitorais. Como em eleies anteriores, na campanha do pastor Gelson

    Ferraz Cmara Municipal de Fortaleza em 2004, os obreiros, em todos os templos da

    Igreja Universal do Reino de Deus, vestem camisetas com foto e nmero do candidato e

    distribuem material de todo tipo. Como candidato da igreja, o pastor tem acesso ao palco

    ou lugar que funciona como tal - para apresentao de suas idias. Tambm do palco os

    pastores que dirigem os cultos instam os fiis a repetir o nome e o nmero do candidato,

    num trabalho de memorizao cujo sucesso se faz sentir ao terminar a apurao. Como j

    14 local de comrcio popular no centro de Fortaleza 15 Rua caracterizada pelo comrcio de confeces e pela grande afluncia de turistas

  • 6

    vem ocorrendo desde os anos 90, os representantes da Igreja Universal foram eleitos entre

    os 10 mais votados.16

    Nas eleies municipais de 2004 tanto a IURD quanto a AD lanam dois candidatos

    oficiais (ou da igreja), mas neste ltimo grupo religioso, outros membros buscam eleger-

    se e freqentam mesmo o seu templo central. As diferenas entre estas denominaes sero

    analisadas adiante.

    Uma constatao; Ftima Leite eleita por fiis, majoritariamente catlicos de

    vrios tipos, sem o respaldo de nenhuma instituio religiosa, enquanto as observaes

    apontam para o fato de que os candidatos da igreja o so, numa maioria esmagadora, pelos

    fiis de suas respectivas denominaes.

    Dois casos que se tornaram exemplares apiam essa tese. O pastor da IURD,

    Eriberto de Souza, eleito deputado estadual em 1998, desentende-se posteriormente com a

    hierarquia eclesial, larga o pastoreio e a denominao que o elegeu com excelente votao

    e, ao tentar reeleger-se em 2002, obtm apenas 1.338 votos. O ex-pastor Alexandre de

    Jesus, vereador de Fortaleza at janeiro de 2005, eleito tambm como candidato da Igreja

    Universal do Reino de Deus, vem igualmente a afastar-se das atividades hierrquicas e da

    prpria denominao, pela dificuldade de suportar a presso advinda do confronto entre

    indivduo e instituio, no exerccio do mandato parlamentar17. Consciente da

    impossibilidade de eleger-se sem o apoio da IURD, ele desiste de buscar a reeleio.

    Penso que a existncia, no seio da sociedade brasileira hoje, de dois processos

    interligados, quais sejam: a transformao nas formas de crer e o surgimento de novas

    dinmicas identitrias, balizam o quadro no interior do qual emergem os fatos relacionados

    acima. Esses dois processos tm a ver com o lugar ocupado pela religio no espao pblico

    brasileiro.

    As eleies municipais de 2004, assim, acrescentam novos elementos a essa

    desafiadora mistura de representaes, crenas e atitudes dificilmente classificveis, de

    pronto, como religiosas ou como polticas. Temos, no mnimo, que distinguir os atores

    16 Enquanto nenhum dos candidatos da Assemblia de Deus conseguiu se eleger, contrariando os resultados do ltimo pleito, federal e estadual. 17 O ex Pastor Alexandre de Jesus est atualmente na Igreja Batista tradicional, na qual no deseja, segundo declarou, vir a ocupar nenhum cargo na hierarquia.

  • 7

    envolvidos nesses processos; suas vivncias, convices e motivaes, que podem variar

    conforme se enfatize as lideranas eclesisticas ou os fiis.

    A presena desses candidatos e parlamentares que portam o selo de suas

    denominaes religiosas constitui elemento de importncia no desprezvel para se pensar,

    por exemplo, as recomposies dos imaginrios sociais18 e os novos desafios da

    convivncia entre parlamentares do mesmo partido e de partidos concorrentes19.

    Experincia, Sentido, Identidade e Poder

    Os fiis da Igreja Universal do Reino de Deus e da Assemblia de Deus afirmam

    com simplicidade e convico: voto nele porque da igreja; voto porque ele escolhido

    por Deus para fazer coisas boas; voto porque ele defende a obra de Deus; voto porque ele

    de Deus ou voto porque voc sabe a honestidade dele, porque ele de Deus. Poder-se-ia

    dizer que esses eleitores so induzidos, forados ou que sofreram lavagem cerebral.

    Qualquer processo de coao aqui apontado mereceria, no mnimo, um aprofundamento,

    indispensvel para evitar as simplificaes.

    Afinal, tambm possvel pensar nesse voto como ligado idia de salvao que,

    entre os pentecostais, remete prtica da orao, seu principal requisito, e se d no

    encontro com Jesus, atravs da graa do Esprito Santo. Para esses fiis importante ser um

    homem ou mulher que encontrou Jesus, e esse encontro os faz diferentes e melhores. To

    diferentes que, entre catlicos como entre pentecostais de vrias denominaes, os espaos

    de sociabilidade institudos a partir de sua prtica religiosa permanecem fechados em

    relao sociedade plural. H um povo de deus, os irmos, apartado do mundo l fora,

    este cheio de tentaes e condutas deplorveis20, justamente aquelas abandonadas aps a

    converso. Como no parece haver um projeto coletivo, aberto e plural, de sociedade, a

    poltica fica reduzida a sua dimenso eleitoral ou, no mximo, ao parlamentar voltada

    para os interesses assistenciais e comerciais que portam o selo das denominaes. As

    nfases a se do conforme se trate dos fiis ou de suas lideranas eclesiais.

    18 Ver Miranda, Jlia Imaginrios sociais, religio e poltica no Brasil (aceito para publicao) in: Oralidade, textualidade e transformaes do imaginrio, Fortaleza/Lyon, 2006 19 Ver Miranda, Jlia Ns, vocs e eles desafios de uma convivncia (in)desejada in Os votos de Deus - poltica e pentecostalismo no Brasil, Recife, Ed. Fundao Joaquim Nabuco, 2004 20 So inmeras as estrias sobre haver sido e no ser mais do mundo

  • 8

    Entre os primeiros, sobretudo, a poltica aparece como algo inevitvel (porque

    reduzida s eleies), portadora de diviso e de intrigas incompatveis com o esprito de

    fraternidade que existe entre os fiis. Cabe-lhes, pois, garantir a unidade. Ademais, a

    certeza de que so alvo de perseguies e de injustias, pela opo religiosa feita

    crena insistentemente alimentada pelos dirigentes de culto em vrias denominaes

    acaba por lev-los a um certo sentimento de marginalidade, com a conseqente busca de

    unio interna e de organizao. Esse processo desemboca, finalmente, no que tange

    poltica, nessa forma de ao comum de resistncia traduzida na frmula irmo vota em

    irmo, to funcional aos projetos das lideranas.

    Contrapondo o voto escolha quele que ele chama de adeso, Palmeira (s/data)

    destaca que esta ltima um processo que vai comprometendo o indivduo ou a famlia ou

    alguma outra unidade social significativa, ao longo do tempo, para alm do tempo da

    poltica. Lembra ainda que este um processo diferenciado, que assume feies diversas

    para diferentes posies ou categorias sociais, o que pode assegurar maior ou menor

    margem de escolha e de individualizao.

    Embora o autor se refira s disputas eleitorais e s construes da poltica na zona

    canavieira de Pernambuco, a sua reflexo me parece pertinente para pensar a realidade de

    que trato aqui. A famlia como unidade mnima da poltica, e no o indivduo livre (como

    na moderna teoria do Estado) est, nesse caso, substituda pela igreja, tambm uma espcie

    de famlia onde todos so irmos. A lealdade primordial que fala mais alto nesse caso

    aquela fundada na crena religiosa comum, o que garante o reconhecimento das lideranas

    e de seus papis, legitimando as candidaturas para alm da anlise dos indivduos que as

    portam. No est em jogo, portanto, uma escolha racional, do tipo que resulta da avaliao

    dos meios com relao a finalidades - nem poltica no sentido stritu - de representantes

    aptos para as funes almejadas. As justificativas o demonstram: voto porque da minha

    igreja; voto porque de deus. Estamos aqui mais prximos daquela racionalidade prpria

    das aes religiosamente motivadas que, segundo Weber, so apenas relativamente

    racionais, posto que orientadas pelas regras da experincia.

    Catlicos e pentecostais percebem-se como os nicos portadores de valores ticos

    (religiosos) e batizam a poltica, para salv-la. A salvao e aquele que a possibilita - o

    salvador - implicam uma luta permanente contra o mal, diferentemente representado pelos

  • 9

    diversos grupos religiosos. Jesus o salvador tambm na poltica, e nela sua ao

    mediada pelos candidatos que representam as denominaes. A legitimidade dessa

    mediao varia de intensidade segundo os grupos religiosos, embora a pesquisa tenha

    mostrado que ela est na base dos votos dados aos candidatos da igreja e mesmo queles

    que representam comunidades carismticas (neste caso em muito menor escala).

    possvel constatar ainda que os fiis da Assemblia de Deus, contrariamente aos

    da IURD, tm muito menos propenso identificar nos candidatos da igreja aqueles que

    merecem seu voto, apenas porque so irmos (alguns aspectos dessa diferena sero

    analisados adiante). Da a observao de um assistente de gabinete do recm eleito

    vereador, pastor Eliezer Moreira (IURD), para quem a Assemblia de Deus no conseguiu

    eleger nenhum candidato (nas eleies municipais de 2004), porque eles no se

    organizam...eles tm muitas ramificaes,...no conseguiram concentrar voto em um

    candidato...diferente da IURD, cujo candidato era o mesmo, no templo do Montese como

    no do Papicu.21

    E os eleitores de Ftima Leite? Eles so catlicos sem lideranas nicas

    identificveis por todos, e tendo como quadro institucional apenas uma Igreja Catlica,

    espao, hoje, de representaes e prticas diferenciadas. As justificativas para o voto so

    semelhantes: ela uma mulher de f; uma serva de Deus; o povo de Deus acredita nela

    e lhe confia uma misso. As motivaes expressadas so semelhantes.

    Entendo como polticas e tambm religiosas as prticas acima descritas. Prefiro

    pensar que se trata aqui de religio sim pelo menos num sentido latu - da porque chamo a

    esses votos de voto da f, e lembro com Geertz (2001) que, quando olhamos agora para

    nosso mundo sintonizado na mdia, para tentar ver o que h nele de religioso, no vemos -

    como alguns estudiosos no passado uma luminosa linha divisria entre as preocupaes

    com o eterno e as do cotidiano. Vemos, ao contrrio, em todos os lugares, concepes de

    cunho religioso sobre o que tudo, sempre e em toda parte, sendo impelidas para o centro

    da ateno cultural.

    H, naturalmente, diferenas entre as sociedades e particularidades de um e outro

    contexto que nos cabe observar e analisar. Ao recusar-se a reduzir a religio uma

    experincia individual, aquele antroplogo destaca sua caracterizao no apenas como

    21 Bairros de Fortaleza

  • 10

    experincia, identidade e poder, mas tambm como sentido. Chama ateno para o fato de

    que o mundo no funciona apenas com crenas, mas dificilmente consegue funcionar sem

    elas. E acrescenta que hoje, menos do que nunca, ns cremos solitariamente.

    A antropologia, a histria e mesmo a filosofia, hoje mais do que na primeira metade

    do sculo XX, opem-se uma certa ortodoxia que negligencia ou exclui todos os fatores

    afetivos e imaginrios do poltico ou que, na melhor das hipteses, os v como formas

    marginais e residuais perturbadoras. Consideram vo o desejo de transformar a vida poltica

    num espao apenas da razo instrumental, da qual estaria excluda, por exemplo, a religio.

    Qualquer classificao feita com base em concepes a-priorsticas do religioso e do

    poltico tende a nos afastar da anlise daquelas que Wunenburger chama de prticas

    desconhecidas, mal-interpretadas ou diabolizadas presentes no exerccio da poltica.

    O olhar sociolgico sobre os fatos religiosos vem mostrando que, nas sociedades

    ocidentais, o fim gradual das religies assumidas por tradio contemporneo de um

    crescimento das adeses livres, das converses que seguem lgicas distintas da

    imposio familiar como, entre catlicos e pentecostais: os chamados pessoais, a

    descoberta de respostas para os problemas individuais, ou o encontro com Jesus. Cada

    vez mais, ao invs de pessoas que se dizem adeptas de uma religio porque os pais a

    escolheram em seu lugar - criando-as conforme as regras de conduta que lhes so inerentes

    - surgem os peregrinos que circulam por vontade prpria entre tradies religiosas

    distintas ou fazem com elas uma certa bricolagem. Outras vezes, a cena tomada pelos

    convertidos22 que, atravs dos renascimentos, imprimem outros sentidos antiga

    pertena religiosa; esse o caso, no Brasil, dos novos catlicos e daqueles que fazem o

    trnsito entre as denominaes pentecostais e as diferentes formas de catolicismo,

    tradicionais ou renovadas.

    Essa adeso religiosa pessoal e deliberada uma escolha livre e reversvel, qual o

    indivduo atribui um sentido, e que no exclui sua atualizao no interior de grupos de

    partilha; no torna dispensvel a estrutura de plausibilidade requerida por toda forma de

    religiosidade.

    22 Os termos peregrino e convertido so aqui usados no sentido que lhes dado por Daniele Hervieu-Lger em Le plerin et le converti: la religion en mouvement, Paris Flammarion, 1999

  • 11

    Ao contrrio, nos grupos de orao como entre os integrantes de uma mesma

    pastoral e, sobretudo, nesses laboratrios comunitrios de produo de sentidos

    representados pelas comunidades de vrios tipos (eclesiais de base, carismticas e

    pentecostais, no caso dos cristos) so produzidos significados religiosos do mundo.

    Significados que freqentemente se distanciam de sua definio doutrinria (Hervieu-

    Lger). No caso dos catlicos esse um elemento de maior novidade, se comparados aos

    pentecostais, oriundos da tradio protestante j ela mais afeita s fragmentaes internas.

    Os significados, presentes nos smbolos religiosos, remetem s formas pelas quais

    os indivduos representam-se a si mesmos e sociedade; pensam a relao com o outro e

    com o mundo, orientam condutas e prticas individuais e sociais, entre as quais a poltica.

    Da que essas novas formas de pertena religiosa, nela includas a adeso e a experincia

    comunitria renovadas, do lugar quele que eu chamo de processo de ressignificao da

    religio e das realidades que com ela se articulam - como a poltica. E a esse processo

    remetem os fatos relacionados acima.

    Se podemos, no Brasil, falar em novas formas de crer, no nos possvel, por outro

    lado, esquecer que, a despeito de um recente e peculiar pluralismo religioso e de uma certa

    fragmentao do catolicismo, esta uma sociedade de imensa maioria crist23. Mesmo os

    que se dizem espritas e adeptos da umbanda e do candombl tm o cristianismo como

    referncia religiosa ltima.

    Para falarmos do trabalho da religio dos brasileiros deste final/incio de sculo nos

    processos de ressignificao do poltico , pois, necessrio, pensar nossas especificidades

    histricas e culturais e, entre elas, a matriz religiosa que desenvolvemos e sua

    correspondente matriz secular (ou profana), alm de observar como ambas se articulam

    historicamente com a poltica24. E mais, h que se considerar o fato de que o cristianismo

    exerce, nas sociedades ocidentais, a funo infra-poltica prpria da religio (Willaime).

    Da Igreja ao Parlamento

    23 Segundo o censo de IBGE 2000, os cristos brasileiros, catlicos e protestantes, somam 89.2% da populao. 24 A tradio crist, com seus mitos e smbolos, mesmo quando re-empregados fora do contexto originrio de significao(de Certeau) est inegavelmente presente e tem mesmo lugar central nesse processo permanente de ressignificao do nosso universo poltico, entre outros.

  • 12

    Tanto a Igreja Universal do Reino de Deus quanto a Assemblia de Deus vm, h

    cerca de 15 anos, construindo e aperfeioando estratgias de representao parlamentar25,

    com especial ateno para os pleitos nas capitais. Desde que decidiram entrar na poltica

    partidria26 de forma organizada primeiro a IURD e depois a AD - as lideranas eclesiais

    tm estado envolvidas em conflitos e disputas de poder que se iniciam no mbito das

    comunidades de f e se estendem s relaes no interior dos partidos, com as respectivas

    lideranas, para as negociaes que visam obteno de legendas. Quando os candidatos

    da igreja so eleitos, os conflitos adquirem novos tons, pois implicam uma convivncia

    incmoda e at certo ponto inusitada. Ali, todos so iguais, porque pertencem ao mesmo

    partido, mas tambm so diferentes, na medida em que uns so da igreja e outros no.

    Tambm entre irmos evanglicos, uns so mais irmos que outros, pois representam

    igrejas distintas. Exemplo disso a dura crtica do presidente do PL no Cear, e membro

    destacado da IURD em 2002, ao uso da sigla pelos pentecostais da AD apenas para se

    elegerem s custas da legenda. poca a sigla ainda era vista no estado como o brao

    poltico da Igreja Universal. Esse crescendo dos conflitos explica-se pelo reforo das

    solidariedades e, conseqentemente, dos enfrentamentos com os outros.

    No momento de fazer coligaes, no raro que os interesses da igreja e do partido

    ao qual pertencem os parlamentares-religiosos entrem em choque. A ambigidade das

    relaes partido/igreja podem ser vistas atravs do caso PL/IURD no Cear. Elas se

    explicitam, por exemplo, nas eleies de 2002. O dirigente liberal, cuja agremiao est,

    naquele momento, coligada com o PT em mbito nacional, possui interesses que o fazem

    hipotecar apoio pblico, no primeiro turno, ao candidato do PMDB ao governo do estado.

    Questionado pela imprensa, ele justifica: No um apoio do PL, mas uma determinao do

    ministrio, o apoio da igreja. Criticado, ele completa: Eu sou apoiado pela igreja mas no

    sou dirigente dela; nacionalmente o PL continua seguindo o que a verticalizao nos

    imps, mas aqui no Cear a igreja optou pelo senador. Igreja ou partido, o presidente do

    PL parece falar em nome de um ou de outro ao sabor das circunstncias e convenincias.

    Vale lembrar que os votos do PL/IURD que faltaram ao candidato Jos Airton, do PT, no

    25 Por enquanto as candidaturas que as representam so apenas ao poder legislativo 26 O batismo no esprito santo da poltica brasileira se deu ainda nos anos 80, por ocasio das eleies gerais constituintes de 1986.

  • 13

    primeiro turno ao governo do Cear poderiam t-lo eleito27. Quando a igreja, j no segundo

    turno, resolve ir s ruas em ato pblico, identificando o antigo governo estadual ao diabo e

    lembrando que o povo de Deus sabe como se livrar do diabo, a correlao de foras

    polticas j outra e o candidato tucano se elege, ainda que por uma margem pequena de

    votos.

    Cabe aqui destacar que h diferenas entre essas duas grandes denominaes

    pentecostais quando se observa a construo do candidato da igreja. Na Assemblia de

    Deus, embora as lideranas venham se espelhando na ao poltica da IURD, as

    caractersticas distintas das prticas religiosas de seus membros, assim como as distines

    de natureza eclesial, que implicam uma maior independncia das igrejas afiliadas, levaram

    a formas diferentes de indicao dos candidatos, como constatado nas eleies municipais

    de 2004 em Fortaleza.

    Em ambas, no entanto, sobressai um certo fascnio com a descoberta do poder,

    por parte dessas lideranas, em sua grande maioria provenientes das camadas mais pobres e

    menos escolarizadas da populao, no raras vezes resgatadas de situaes marginais

    (como alcoolismo, uso de drogas e prtica de vadiagem) pelo chamado de Jesus.

    Levando-se em conta o lugar quase inexpugnvel em que nossa sociedade coloca os

    portadores de mandato poltico, tornando letra morta a igualdade constitucional entre

    cidados, essa descoberta - e de sua fora tambm simblica - pode ajudar a explicar as

    lutas internas a que d lugar a indicao do candidato da igreja a cada nova eleio. Essas

    lutas, ao contrrio do que possa parecer, adquirem cores diferentes segundo as instituies

    consideradas.

    Assim, por exemplo, enquanto na Igreja Universal do Reino de Deus a indicao

    dos candidatos da igreja feita pelos dirigentes, na Assemblia de Deus ela assume outras

    formas, inclusive como no caso das eleies municipais de 2004 em Fortaleza a de uma

    consulta prvia membresia, a partir da apresentao de postulantes. Nas eleies

    municipais de 2004 ambas lanam dois candidatos oficiais - ou da igreja - mas nesta

    ltima outros membros buscam eleger-se e freqentam mesmo o seu templo central.

    27 Durante toda a campanha multiplicam-se os casos de insubordinao de diretrios do PL contra a aliana com o PT no Cear. Em janeiro de 2003 a imprensa dava conta de 16 diretrios municipais ameaados de interveno.

  • 14

    Uma vez que os candidatos da igreja tm sido principalmente membros da

    hierarquia28, no h como fugir da pergunta: Quem so eles e em que consistem; sua

    formao e atuao pastoral? Afinal elas que os credenciam para o exerccio do mandato

    poltico, segundo os dirigentes dessas igrejas.

    Na Igreja Universal do Reino de Deus como na Assemblia de Deus pouco se diz de

    modo a fazer inteligvel ao leigo pesquisador a formao desses pastores. Sabe-se, por

    exemplo, que h nas duas denominaes uma hierarquia com funes especficas (na AD,

    por exemplo, auxiliares, diconos, presbteros, evangelistas ou pastores). Mas no preciso

    passar por todas elas para chegar a pastor. Em ambas insiste-se em que para chegar a pastor

    o fiel deve dar testemunho de valores morais na conduo de sua vida privada, ler

    sistematicamente a Bblia e adot-la como orientao de conduta, demonstrar capacidade de

    bem interpret-la para a glria do Senhor e mostrar amor e temor a Deus. Com menos

    nfase at bem recentemente, as lideranas destacam, quando indagadas sobre aquilo que as

    qualifica como bons pastores, o exerccio de atividades de assistncia social comunidade

    de fiis29.

    No entanto, nessa rea que vem investindo maciamente a Igreja Universal do

    Reino de Deus, atravs da Associao Beneficente Crist, seu brao social com atuao em

    vrias regies do Brasil. Nas eleies de 2002 a campanha do Bispo Marcelo Crivella ao

    senado, pelo Rio de Janeiro, fez referncia permanente no apenas ABC mas sobretudo ao

    Projeto Nordeste, criado e dirigido por ele30. Cada vez mais, alis, os grupos religiosos

    evanglicos vm conquistando espao social e se credenciando como parceiros confiveis

    do Estado na execuo de polticas pblicas.31

    Ouvi com freqncia de candidatos da igreja ou de deputados eleitos pela Igreja

    Universal do Reino de Deus que, at serem indicados para represent-la numa eleio, eles

    jamais haviam pensado muitos deles sequer o desejavam em entrar para a poltica. Mas,

    28 Na IURD essa uma norma assumida como parte da estratgia poltica 29 Hoje, quem acessar o site do pastor Ronaldo Martins (deputado estadual cearense) da IURD na internet ler: Realizando um trabalho de assistncia e apoio aos mais carentes, Ronaldo Martins pode sentir de perto as necessidades das milhares de famlias que vivem praticamente margem da sociedade, completamente esquecidas pelo poder pblico 30 O Projeto Nordeste, no interior da Bahia, visa a transformar a Fazenda Cana em um modelo alternativo de irrigao para o semi-rido, apresentando assim a IURD como uma confivel e possvel parceira nos programas de polticas pblicas em mbitos federal e local. 31 Sobre o tema ver Joanildo Burity (comunicao apresentada na 57 reunio anual da SBPC, Fortaleza, 2005)

  • 15

    um deles me disse no haver como fugir designao, apresentada como um convite

    irrecusvel, vez que implica uma distino. Um parlamentar eleito pela Igreja Universal do

    Reino de Deus, e posteriormente desiludido com a atividade poltica, teve como nica

    opo para desistir dela, a de desligar-se da igreja. Os dirigentes no admitiram sua deciso.

    As lideranas da Igreja Universal do Reino de Deus falam da prtica de um rodzio

    dos nomes, aps cumpridos dois ou trs mandatos. A verdade que a renovao dessas

    bancadas vem chamando a ateno de pesquisadores Brasil afora32. Em muitos casos

    como aqueles aqui relatados o que faz esses representantes religiosos abandonarem a

    poltica so os desentendimentos com as lideranas eclesiais, que no abrem mo de uma

    ingerncia direta e permanente sobre todas as aes parlamentares dos eleitos. Conforme

    me afirmou um deles; a descoberta da poltica, no campo que lhe prprio, pouco significa,

    j que os mandatos so monitorados eclesiasticamente. Essa realidade explica, em parte,

    a renovao das bancadas.

    Mais recentemente surgiu nessas denominaes religiosas a figura do coordenador

    poltico. Vale lembrar que, j nas eleies de 1996, tambm a Renovao Carismtica

    Catlica cria uma Secretaria de Ao Poltica, justamente para orientar seus membros no

    exerccio da prtica eleitoral.

    Os Donos do Poder

    Por que um coordenador poltico em uma igreja me perguntava uma estudante de

    mestrado ainda pouco familiarizada com a nova realidade religiosa brasileira. Sua

    estranheza reflete o pensamento de todos quantos se acostumaram a pensar a poltica, por

    definio, excludente da religio. Veja-se uma resposta possvel; ela dada por um pastor

    da Assemblia de Deus, em carta aos membros de sua igreja, durante a campanha de 2004:

    Entendo e acho vlida a iniciativa do evanglico que se candidata a uma

    vaga na Cmara Municipal, na Assemblia Legislativa, no Senado, etc, com o

    objetivo de fazer a diferena e ser um legtimo representante da igreja. S que

    32 Conforme tambm Ma. Das Dores Machado O interesse dos evanglicos fluminenses pelo legislativo (comunicao apresentada no XI Congresso da SBS, Campinas, 2003)

  • 16

    a experincia tem nos mostrado que alm do sucesso da eleio, se torna

    necessria a formao de uma equipe permanente, formada por homens ou

    mulheres de Deus, para darem o apoio necessrio a esses irmos durante os

    mandatos, agindo como conselheiros, pacificadores, mediadores,

    intercessores, gerando assim uma condio maior para um atendimento claro

    e sadio dos eleitos, ao povo de Deus33.

    A figura do coordenador poltico, que se impe tanto na Igreja Universal do Reino

    de Deus quanto na Assembia de Deus, desde o final dos anos 90, representa um elemento

    importante nesse novo cenrio religioso e poltico-partidrio nacional. Bastante polmicas,

    porquanto as reais funes de seus ocupantes vo da ingerncia na indicao do candidato

    da igreja cobrana do direito s bem pagas assessorias parlamentares dos eleitos, essas

    coordenaes vm se tornando objeto de cobia e motivo de acirramento das lutas internas

    na igreja. possvel ver o coordenador poltico tambm como preposto de um determinado

    parlamentar eleito pela igreja e desejoso de manter sua influncia num ambiente em que as

    posies podem se dividir em mais e menos democrticas, como no caso da Assemblia de

    Deus (Conveno Belenzinho) cearense34, nas eleies municipais de 2004. quela poca,

    o deputado federal eleito pela denominao em 1998, atravs do Partido Liberal (com os

    votos da legenda), tem no coordenador poltico um verdadeiro cabo eleitoral, cujo poder

    lhe permite exigir, alm da representao de gabinete daquele deputado, tambm a principal

    assessoria parlamentar do deputado estadual eleito pela igreja nas mesmas eleies.35

    A equipe permanente para ajudar no exerccio do mandato dos eleitos de que fala

    o pastor citado acima remete ao Projeto Cidadania Assemblia de Deus Brasil, institudo

    em conveno nacional realizada na cidade de Salvador em 2002, antes das eleies

    daquele ano. Ali foi criada a Coordenao Poltica Nacional ( frente o pastor Ronaldo

    Fonseca, de Braslia), que daria as diretrizes gerais para as coordenaes polticas das

    capitais, funcionando estas, no restante, de acordo com as realidades locais. Ficou acertado

    que cada eleito teria um diretrio, isto , aquela equipe permanente j aludida. Na

    realidade porm, o que acontece em Fortaleza, que cada eleito tem o seu representante

    33 Os grifos so meus e destacam aspectos importantes para esta reflexo. 34 A Conveno Belenzinho da AD tem 250 templos na capital e mais de 5 mil em todo o estado do Cear 35 Em 2004 isso montava a 9 mil reais.

  • 17

    em cada templo, uma espcie de cabo eleitoral declara um pastor que no segue a linha de

    pensamento e ao do coordenador poltico e do deputado federal eleito em 1998, tido j

    poca, como aquele que d a ltima palavra na AD cearense, ainda que reconhecido por

    muitas outras lideranas como autoritrio e voltado apenas para os seus interesses pessoais.

    Os conflitos so mltiplos e envolvem as lideranas, estas sempre muito cautelosas

    para que as discordncias no cheguem at os irmos. E esses conflitos envolvem mesmo

    ameaas annimas sobre prticas ditas danosas preservao dos preceitos cristos de

    companheiros, veiculadas no material usado nas atividades intra-eclesiais. E mais, a

    intolerncia atinge tambm os candidatos fora da igreja. Em 2004, os apoiadores de

    determinado pastor ameaam dar um pau nos que apiam um candidato laico, cujo

    comit est localizado ao lado do templo central da AD. Essas divergncias levam a que,

    embora candidatos da igreja, os dois postulantes Cmara Municipal, no tenham o

    mesmo apoio por parte da hierarquia.

    Nesse jogo de muitos conflitos e variados processos de legitimao as lideranas

    eclesiais chegam, s vezes, a dar a impresso de considerar tanto os partidos como os

    eleitores, um detalhe de pequena importncia. Existe no seio da Igreja Universal do Reino

    de Deus a certeza da vitria sempre que as candidaturas so lanadas, disse-me um pastor.

    As eleies dos anos 90 e as do incio deste sculo parecem mostrar que essa convico no

    infundada. Alis, essa tambm parece ser uma certeza compartilhada pelos partidos que

    abrigam esses candidatos da igreja e os recebem de braos abertos, pelo menos at o incio

    dos trabalhos legislativos36.

    Isso d aos coordenadores polticos das igrejas e a seus parlamentares - tanto uma

    boa margem de escolha e negociao com os dirigentes partidrios, quanto o direito de

    afirmar, com descaso visvel, que partido no existe, qualquer partido nos aceita,37 ou

    que o partido s importante porque sem ele no h candidatura. Assim, ao criticar

    duramente o deputado federal que representa a IURD e tambm preside o Partido Liberal,

    um vereador laico, lder de bancada deste partido, sugere seu afastamento mas insiste, como

    soluo dos problemas, na ampliao da influncia do deputado estadual, pastor Ronaldo

    36 Sobre a convivncia delicada entre os eleitos pelas igrejas e os seus pares ver Ns, vocs e eles os deafios de uma convivncia (in)desejada, op. cit. 37 Declarao do candidato da IURD Assemblia Legislativa em 1998. A sempre imensa votao obtida pelos candidatos da IURD ajuda a eleger outros candidatos. Os representantes da AD eleitos em 2002 o foram com as sobras de votos da Universal.

  • 18

    Martins. Parece a evidente que nenhum dirigente ou lder partidrio, a despeito dos

    problemas de convivncia, abre mo dos companheiros pentecostais, responsveis pela

    avalanche de votos que vem possibilitando a eleio de correligionrios no religiosos.

    O testemunho de pastores da IURD mostra que, no interior da denominao, a

    prtica de indicao dos candidatos segue uma verticalidade maior do que na AD: as

    principais lideranas decidem. Em 1998, um pastor me explica que a escolha do partido no

    implica nenhum critrio alm da aceitao das candidaturas da IURD e da avaliao, feita

    por esta, de que a sigla oferece o suporte necessrio, isto , garantia de eleio com base

    sobretudo na exigncia de baixo coeficiente eleitoral. Se a esse critrio soma-se a

    expressividade da sigla, tanto melhor.

    Sobre as constantes trocas de partido dos candidatos da IURD - sobretudo at 1998,

    quando o PL passou a ser a opo preferida em vrios estados - o pastor Heriberto Farias

    declarava que h os partidos que nos procuram e que no queremos porque no nos do

    liberdade para defender a obra do Senhor; h outras vezes aqueles que nos interessam mas

    que no nos aceitam. Ele taxativo ao lembrar que os parlamentares iurdianos no

    permaneceriam em partidos que porventura fechassem questo para votar contra propostas

    que ferem os interesses da igreja; nesse caso a soluo seria a desobedincia ou a sada da

    agremiao. Em 2004 a situao j mudara bastante, pois o que se observa que todos os

    partidos no s aceitam esses candidatos da igreja e seus milhares de votos, como buscam o

    apoio pblico das denominaes que eles representam. Lembre-se que, nas eleies de

    2002, os candidatos Presidncia da Repblica travam verdadeiro duelo miditico pela

    explicitao dos referidos apoios, e do declaraes enfticas sobre a sua importncia.

    Pode-se pensar que a praticamente inexistente observncia da fidelidade partidria

    no Brasil e os mecanismos de incluso e excluso que orientam a adeso poltico-partidria

    entre ns longe esto de complicar essa presena crescente de candidatos da igreja,

    principalmente, neste caso, as pentecostais.

    O troca-troca de partidos entre os eleitos das igrejas outro elemento que vem

    chamando ateno pela sua recorrncia e presena em todo o territrio nacional. O pastor

    Pedro Ribeiro, eleito deputado federal em 2002 um bom exemplo. Foi eleito pelo PL, que

    abandonou antes da posse para dirigir o PTB, que deixou logo em seguida para ingressar no

  • 19

    PMDB. O seu caso, no entanto no exceo, mas a regra, entre os eleitos pela Igreja

    Universal do Reino de Deus e pela Assemblia de Deus.

    Se at as eleies de 2002 o Partido Liberal ainda era o preferido, porque aberto a

    todas as religies, possuindo no Cear uma verdadeira simbiose com a IURD, as coisas

    comeam lentamente a mudar j em 2004. E, em 2005, finalmente criado aquele que j

    chamado, naturalmente, de o partido da Igreja Universal do Reino de Deus, isto , o Partido

    Municipalista Renovador (PMR). As lideranas pentecostais se dizem perseguidas,

    necessitando, portanto, de representantes na poltica partidria para terem acesso s

    autoridades, para que a igreja seja protegida, e o sonho de um partido poltico com a

    sua cara finalmente se concretiza.

    Muitas vezes, os interesses defendidos pelos eleitos da Igreja Universal do Reino

    de Deus parecem afastar-se daquilo que a maioria das pessoas v, imediatamente, como

    religioso. Assim , por exemplo, sempre que um seu representante no Parlamento adota

    posies que no remetem assuntos como a reduo do barulho em certos horrios e

    zonas da cidade; ao controle da natalidade; ao reconhecimento da unio civil entre pessoas

    do mesmo sexo; ou ainda cobrana de impostos das instituies religiosas, entre outros.

    No entanto, quando so votadas, por esses parlamentares, leis referentes concesso de

    meios de comunicao de massa, ou assistncia pblica a comunidades carentes da

    periferia das grandes cidades, tambm aqui falam em primeiro lugar os interesses da

    igreja, ou seja, sua expanso como grupo empresarial multi-nacional38 e a ampliao de sua

    base de fiis (e eleitores), justamente nos segmentos da populao j indicados pelas

    pesquisas como aqueles onde se concentra a maioria dos que freqentam seus templos39.

    Alm dos j citados; Associao Beneficente Crist e Projeto Nordeste, a Igreja Universal

    do Reino de Deus mantm 90 emissoras de televiso e um jornal, A Folha Universal, com

    1.800 exemplares.

    E Ento?

    38 Conforme Marion Aubre in: As multi-nacionais da f: entre a Frana e o Brasil (conferncia apresentada na UFC, a convite do Ncleo de Estudos de Religio, Cultura e Poltica - NERPO) 39 Esta pesquisa sobre a presena dos pentecostais na poltica partidria brasileira, a partir do estudo de caso do Cear, est agora em sua ltima fase, qual seja, a de anlise das matrias votadas e dos projetos de lei apresentados pelos parlamentares eleitos.

  • 20

    Muitas so as leituras possveis dos fatos acima relacionados e que falam dessa

    presena religiosa na poltica brasileira da virada do sculo. Presena que se faz sob moldes

    significativamente diferentes de outros momentos de nossa histria republicana, marcada

    por uma particular relao entre uma matriz sagrada e outra profana que no cabe aqui

    analisar e na qual as combinaes entre religio e poltica oferecem momentos

    especialmente ricos para anlise40.

    Para efeito de concluso desta reflexo, porm, vou me deter somente sobre

    algumas implicaes das prticas descritas nas etnografias apresentadas e dos depoimentos

    dos fiis e de suas lideranas poltico-religiosas. A riqueza dos elementos, que se renovam a

    cada processo eleitoral, aliada natural impossibilidade de indicaes conclusivas na

    anlise dos fatos histricos, responde pelo carter parcial e transitrio destas notas.

    O pluralismo religioso brasileiro, recente e peculiar posto que implica na

    hegemonia crist (89.4% dos fiis) vai delineando um novo contexto de observao e

    anlise dos fatos. Continuamos majoritariamente cristos, mas cristos pertencentes a

    inmeras denominaes protestantes; pentecostais de vrios matizes; e catlicos que, nem

    por isso, so portadores de iguais concepes da religio e das prticas a que obriga o

    catolicismo. H meio sculo, quando se usava a expresso igreja em nossa sociedade, ela

    era grafada com maiscula e remetia naturalmente Igreja Catlica. Hoje, falamos de

    candidato da igreja e sequer estamos nos referindo ao universo catlico.

    O crescendo da religiosidade de comunidades, fruto da adeso livre e

    significativamente transitria, tem dado origem, por outro lado, a um processo de

    ressignificao da religio e das realidades que a ela se combinam, como o caso da

    poltica. A leitura religiosa da sociedade, originada nessas comunidades de sentido, vem

    levando a um processo de diferenciao, que torna qualitativamente superiores todas as

    prticas s quais seja possvel acrescentar o selo denominacional. Da a nfase no

    diferencial representado, para eleitores pentecostais e catlicos, pelos candidatos

    identificados por suas respectivas pertenas religiosas. No surpreende pois, no caso dos

    pentecostais, que a legitimao das lideranas religiosas pelos fiis se estenda s pretenses

    40 A campanha para as eleies constituintes de 1933 e as prticas polticas do cristianismo de libertao nos anos 60 e 70 podem ser tomados como exemplos, ao lado dessa contempornea irrupo do religioso na poltica partidria atravs do candidato da igreja.

  • 21

    polticas das primeiras, e que essas lideranas, quando candidatos da igreja, sejam

    reconhecidas, como merecedoras de confiana, porque so de Deus.

    No estou excluindo, sobretudo no caso da Igreja Universal do Reino de Deus, a

    extrema verticalizao das decises e as prticas de submisso dos fiis a elas, apenas

    quero lembrar que esses elementos vm ao encontro desse processo de ressignificao

    religiosa das realidades profanas. Entre os fiis, a poltica vista como o inevitvel - pela

    obrigatoriedade do voto -; como aquilo que no faz parte do cotidiano; e que relacionada

    ao roubo e corrupo. A maneira de faz-la menos ruim torn-la religiosa. Como

    povo - essa entidade abstrata esses eleitores de baixas (s vezes baixssimas);

    escolaridade e renda so deixados repetidamente margem das aes do estado. Como

    povo de deus h a esperana de que a assistncia social patrocinada pela igreja possa ser

    ampliada ou complementada pela poltica. Ser povo de deus, implica um reconhecimento,

    uma rede de partilhas, a certeza de estar entre irmos.

    As lideranas eclesiais, por sua vez, ao alimentarem nos fiis a convico de que

    so perseguidos e injustiados no interior desse novo espao religioso plural, vo

    fortalecendo a coeso interna ao grupo e a adoo de prticas que o identificam e

    diferenciam dos demais, alm de lhes assegurar meios prprios de lutar contra os

    adversrios. Os pastores, tanto na IURD quanto na AD, se dizem perseguidos e insistem em

    que as razes dessa perseguio so de natureza religiosa. Interesses econmicos que

    implicam a expanso empresarial da denominao com enriquecimento da hierarquia

    bem como a assistncia social voltada para o proselitismo religioso so assim reduzidos por

    eles dimenso religiosa. Tudo, inclusive a ao poltico-partidria e o desempenho

    parlamentar, vira defesa do igreja, no obstante os casos, amplamente j divulgados pela

    mdia, de intolerncia religiosa originados nessas mesmas denominaes pentecostais41. Na

    verdade, caberia aqui a discusso sobre a pertinncia de se identificar essas aes religio.

    No pretendo porm abord-la neste texto.

    Nesse Brasil dos parlamentares-pastores a poltica partidria passa a viver alguns

    conflitos de natureza distinta daquela que os caracteriza at aqui, tais como os problemas de

    convivncia entre lideranas laicas e coordenadores polticos das igrejas; entre deputados

    41 Em 1995 um pastor da Igreja Universal do Reino de Deus bateu e chutou a imagem de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, durante a realizao de um culto na televiso.

  • 22

    pentecostais e laicos de um mesmo partido e de partidos diferentes; assim como entre

    parlamentares pentecostais de denominaes distintas. Mas, a despeito desses conflitos, que

    variam segundo os partidos, as denominaes e os momentos histricos, possvel fazer

    algumas afirmaes.

    A fragilidade do sistema partidrio brasileiro, com o voto personalizado e a

    infidelidade admitida como coisa natural, por exemplo, longe de dificultarem o ingresso

    dos representantes de grupos religiosos, vem mostrando, ao contrrio, a sua funcionalidade

    para os projetos das lideranas eclesiais. Passada uma primeira resistncia aceitao dos

    candidatos da igreja, por parte de algumas legendas, hoje parece inimaginvel a recusa

    desses candidatos, verdadeiros puxadores de voto, que no apenas se elegem entre os

    mais votados mas o que mais importante ajudam a eleger companheiros no

    identificados pela pertena religiosa.

    Que as razes do voto sejam religiosas no parece, pois, preocupar os dirigentes

    partidrios que, assim, acabam por contribuir tambm, a seu modo, para essa indistino

    entre o poltico e o religioso. Os muitos sufrgios dados legenda, fortalecendo-a, os faz

    inclusive esquecer a concorrncia que esses campees de voto lhes faro depois da

    eleio; assim como os novos conflitos gerados no interior dos partidos, com a exigncia,

    por parte dos pastores eleitos, de ocupao de cargos de liderana partidria e de

    participao em diretrios e comisses parlamentares.

    Mas, os senadores, deputados e vereadores pastores no se esquecem do

    diferencial que os elegeu: a pertena religiosa. Em nome dela os mandatos so exercidos

    e ela que confere legitimidade s aes realizadas no decorrer do mandato, por mais

    distantes da dimenso religiosa que possam parecer ao olhar dos polticos e eleitores laicos.

    Aqueles a quem interessa fazer essas aes parecerem defesa da igreja ou do povo de

    deus so os irmos, e esses so convencidos no cotidiano das comunidades e atravs da

    pregao miditica, como na IURD.

    Na Igreja Universal do Reino de Deus, onde as estratgias adotadas a cada processo

    eleitoral sofre modificaes, sempre obedecendo a diretrizes nacionalmente impostas,

    nenhum elemento escapa aos clculos de otimizao de resultados feitos pelas lideranas da

    igreja. Se entre os fiis importante que o candidato da igreja se apresente com o ttulo

    religioso de pastor, o mesmo parece no acontecer no seio da sociedade plural. A mdia,

  • 23

    principalmente, que j tornara corrente o uso da expresso candidato da igreja, foi se

    tornando cada vez mais custica em relao a essa invaso do cenrio partidrio pelos

    pastores.

    Nas eleies de 2002 e 2004, diferentemente daquelas que as antecederam, nem

    todos os candidatos da igreja portam o ttulo eclesistico; sequer so registrados assim42. O

    caso do pastor Eliezer Moreira no Cear emblemtico: ele candidato, pela primeira vez,

    Cmara Municipal, pertence hierarquia e sua candidatura representa a IURD. Mas sua

    campanha se dilui e estende para outros contextos, que no os templos (ruas e espaos de

    outras denominaes evanglicas), enquanto a campanha nos cultos se concentra na

    candidatura reeleio do pastor Gelson Ferraz. Talvez tenha parecido temerria a

    apresentao de dois pastores numa eleio municipal na mesma cidade; principalmente

    se existe a prioridade da reeleio de Gelson Ferraz (candidato da igreja ao senado em

    2002, com expressiva votao).

    H que se levar em conta aqui, tambm as disputas intra-eclesiais, que explicariam o

    fato de o pastor Eliezer Moreira no abrir mo de tentar sua eleio, confiante que est nos

    laos criados por ocasio das eleies de 2002, quando era coordenador poltico da

    IURD. O prestgio representado pelo mandato poltico tem acirrado, nos ltimos pleitos, as

    disputas entre algumas lideranas vidas pela possibilidade de ser candidato da igreja. E

    esses conflitos de interesse chegam ao parlamento, onde os representantes da igreja tambm

    disputam prestgio e representao no mbito nacional. Recentemente, o ento deputado

    bispo Rodrigues, do Rio de Janeiro, coordenador poltico da IURD e vice-presidente do PL

    tem sua liderana abalada quando o bispo Marcelo Crivella43 eleito senador, igualmente

    pelo estado do Rio.

    Certamente, as observaes feitas no esgotam as possibilidades para entender os

    elementos que criam as condies de irrupo desses candidatos da igreja na poltica

    brasileira, assim como para identificar-lhes as implicaes. Esta reflexo visa a trazer a

    sociologia da religio para o centro da anlise, buscando fugir a uma leitura poltica tout-

    court dos fatos observados. 42 Esse fato tambm observado por Ma. das Dores Machado (op.cit) entre os candidatos fluminenses que representam a IURD. 43 No segundo semestre de 2005, depois de o bispo Rodrigues ter cado em desgraa na igreja, por envolvimento em corrupo, e dela se afastado, o novo senador bispo Crivella, criador e responsvel pelo Projeto Nordeste, alm de sobrinho de Edir Macedo, a liderana nacional inconteste da IURD.

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    Concluo, lembrando novamente Geertz que, a esse respeito, destaca que as cincias

    sociais seguem uma longa e criticvel tradio de buscar a explicao dos fenmenos

    religiosos em toda parte, menos neles mesmos. Espero ter levado em conta neste artigo sua

    absolutamente pertinente observao. Penso que a figura do candidato da igreja nos fala de

    poltica, mas tambm ou principalmente - de religio.

    Finalmente, destaco que a natureza mais etnogrfica deste artigo deve-se ao fato de

    ele ter sido produzido no quadro das pesquisas do Ncleo de Antropologia da Poltica

    (PRONEX/CNPq), e de as reflexes nele contidas representarem apenas um conjunto de

    dados que, ao lado de outros j explorados em trabalhos anteriores, visam a conferir

    visibilidade a elementos importantes dos campos, religioso e poltico, cearenses. Para alm

    de apresentarem algumas significativas particularidades locais, eles lembram que

    indispensvel ter em conta as diferenas regionais, tambm no que diz respeito presena

    dos grupos religiosos na poltica partidria brasileira desta virada de sculo.

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  • 26

    2008_capliv_JMiranda.pdfNas eleies municipais de 2004 tanto a IURD quanto a AD lanam dois candidatos oficiais (ou da igreja), mas neste ltimo grupo religioso, outros membros buscam eleger-se e freqentam mesmo o seu templo central. As diferenas entre estas denominae...Da Igreja ao ParlamentoTanto a Igreja Universal do Reino de Deus quanto a Assemblia de Deus vm, h cerca de 15 anos, construindo e aperfeioando estratgias de representao parlamentar24F , com especial ateno para os pleitos nas capitais. Desde que decidiram entrar na ...No momento de fazer coligaes, no raro que os interesses da igreja e do partido ao qual pertencem os parlamentares-religiosos entrem em choque. A ambigidade das relaes partido/igreja podem ser vistas atravs do caso PL/IURD no Cear. Elas se e...As lideranas da Igreja Universal do Reino de Deus falam da prtica de um rodzio dos nomes, aps cumpridos dois ou trs mandatos. A verdade que a renovao dessas bancadas vem chamando a ateno de pesquisadores Brasil afora31F . Em muitos casos ...