o campo histórico. josé d'assunção barros

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História Unisinos 9(3):230-242, Setembro/Dezembro 2005 © 2005 by Unisinos 1  Doutor em História Social pela Universidade Federal Flumi- nense (UFF), professor da Uni- versidade Severino Sombra (USS), de Vassouras, nos Cursos de Mestrado e Graduação em História, onde leciona discipli- nas ligadas ao campo da Teoria e Metodologia da História. O campo histórico – considerações sobre as especialidades na historiografia contemporânea The field of history – considerations about specialties in contemporary historiography  José D’Assunção Barros 1  [email protected] Resumo. Este artigo busca esclarecer e discutir alguns aspectos relacionados às diversas modalidades da História, organizando uma visão panorâmica dos vários campos em que se divide o conhecimento histórico nos dias de hoje. São discutidos aspectos diversos, incluindo os objetos, fontes e abordagens mais comuns a cada um destes campos. O artigo apresenta como principal referência o livro O campo da história , publicado pelo autor recentemente. Palavras-chave: campos da História, metodologia da história; escrita da história. Abstract.  This article attempts to clarify and discuss some aspects related to the modalities of history, organizing a panoramic view of the various fields in which historical knowledge is presently divided. The aspects discussed and include the most common objects, sources and approaches in each one of these fields. The article’s main reference is the book The Field of History , recently published by the author. Key words: fields of history, methodology of history;  writing of history. Um dos fenômenos mais interessantes da historiografia no século XX se refere à profusão de domíni- os em que está partilhado hoje o saber historiográfico. Fala- se, por exemplo, em uma História Demográfica  ou em uma História Política , noções que se referem a “dimensões” ou a fatores que ajudam a definir a realidade social (a popula- ção, o poder); fala-se de uma História Oral  ou de uma His- tória Serial , que são classificações da História que remetem ao tipo de fontes com as quais elas lidam ou às “aborda- gens” que os historiadores utilizam para tratar estas fontes (a entrevista, a serialização de dados); fala-se da  Micro- História  ou da História Quantitativa , que são classificações relativas aos campos de observação abordados pelo histori- ador (a microrrealidade, o número); fala-se em uma Histó- ria das Mulheres  ou em uma História dos Marginais , que são classificações relacionadas aos “sujeitos” que fazem a História (a mulher, o marginal); fala-se em uma História Rural  ou em uma História Urbana , que são subdivisões relativas aos “ambientes sociais” examinados pelo historia- dor (o campo, a cidade); fala-se de uma História da Arte  ou de uma História da Sexualidade , que são âmbitos associa- dos aos “objetos” considerados na pesquisa histórica (a cri- ação artística, o sexo). Poder-se-ia falar ainda em uma His- tória Vista de Baixo, para simbolizar uma inversão de perspec- 10_Art09_JBarros.pmd 21/12/2005, 17:58 230

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  • Histria Unisinos9(3):230-242, Setembro/Dezembro 2005 2005 by Unisinos

    1 Doutor em Histria Social pelaUniversidade Federal Flumi-nense (UFF), professor da Uni-versidade Severino Sombra(USS), de Vassouras, nos Cursosde Mestrado e Graduao emHistria, onde leciona discipli-nas ligadas ao campo da Teoriae Metodologia da Histria.

    O campo histrico consideraes sobre as especialidadesna historiografia contempornea

    The field of history considerations about specialties in contemporaryhistoriography

    Jos DAssuno [email protected]

    Resumo. Este artigo busca esclarecer e discutir alguns aspectos relacionados s diversasmodalidades da Histria, organizando uma viso panormica dos vrios campos em que sedivide o conhecimento histrico nos dias de hoje. So discutidos aspectos diversos, incluindoos objetos, fontes e abordagens mais comuns a cada um destes campos. O artigo apresentacomo principal referncia o livro O campo da histria, publicado pelo autor recentemente.

    Palavras-chave: campos da Histria, metodologia da histria; escrita da histria.

    Abstract. This article attempts to clarify and discuss some aspects related to the modalitiesof history, organizing a panoramic view of the various fields in which historical knowledgeis presently divided. The aspects discussed and include the most common objects, sourcesand approaches in each one of these fields. The articles main reference is the book The Fieldof History, recently published by the author.

    Key words: fields of history, methodology of history; writing of history.

    Um dos fenmenos mais interessantes dahistoriografia no sculo XX se refere profuso de domni-os em que est partilhado hoje o saber historiogrfico. Fala-se, por exemplo, em uma Histria Demogrfica ou em umaHistria Poltica, noes que se referem a dimenses ou afatores que ajudam a definir a realidade social (a popula-o, o poder); fala-se de uma Histria Oral ou de uma His-tria Serial, que so classificaes da Histria que remetemao tipo de fontes com as quais elas lidam ou s aborda-gens que os historiadores utilizam para tratar estas fontes(a entrevista, a serializao de dados); fala-se da Micro-Histria ou da Histria Quantitativa, que so classificaes

    relativas aos campos de observao abordados pelo histori-ador (a microrrealidade, o nmero); fala-se em uma Hist-ria das Mulheres ou em uma Histria dos Marginais, queso classificaes relacionadas aos sujeitos que fazem aHistria (a mulher, o marginal); fala-se em uma HistriaRural ou em uma Histria Urbana, que so subdivisesrelativas aos ambientes sociais examinados pelo historia-dor (o campo, a cidade); fala-se de uma Histria da Arte oude uma Histria da Sexualidade, que so mbitos associa-dos aos objetos considerados na pesquisa histrica (a cri-ao artstica, o sexo). Poder-se-ia falar ainda em uma His-tria Vista de Baixo, para simbolizar uma inverso de perspec-

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    tiva em relao tradicional historiografia que partia do poderdominante, e at em uma Histria Imediata, modalidadehistoriogrfica em que o autor , ao mesmo tempo, historiadore personagem dos acontecimentos que descreve ou analisa.Todos estes exemplos so legtimas especialidades da Hist-ria. Mas as dificuldades comeam a se mostrar quando estasvrias classificaes, oriundas de critrios bem diferentes e es-tranhos entre si, so misturadas indiscriminadamente para or-ganizar os vrios lotes da Histria.

    O Quadro 1 foi elaborado com o intuito de organi-zar esses critrios distribuindo-os em dimenses, abor-dagens e domnios da Histria e buscando esclareceras vrias divises que esses critrios podem gerar. De certomodo, as trs ordens de critrios correspondem a divisesda Histria respectivamente relacionadas a teorias (ouenfoques), mtodos e temas.

    Por aqui veremos que uma primeira ordem de clas-sificaes relativas ao Campo Histrico gerada pelas vri-as dimenses da vida humana, embora na realidade socialefetiva estas nunca apaream desligadas entre si. Teremosento uma Histria Demogrfica, uma Histria da CulturaMaterial, uma Histria Econmica, uma Histria Poltica,uma Histria Cultural e assim por diante.

    A maior parte dessas dimenses evidente por sis, mas em todo caso faremos alguns comentrios ainda deordem geral sobre estes campos. Apenas para dar a partidanesta busca de maior transparncia classificatria, podere-mos comear citando a Histria Demogrfica, que enfatizao estudo de tudo aquilo que se refere mais ou menosdiretamente populao: as suas variaes quantitativase qualitativas, o crescimento e declnio populacional, osmovimentos migratrios e assim por diante. medida quevai conectando os aspectos mais especificamente relacio-nados s categorias populacionais (como a mortalidade ou anatalidade), muito freqentemente obtidos atravs de m-todos quantitativos, para depois relacionar estes aspectosde modo a dar a perceber a vida social de uma determinadacomunidade, a Histria Demogrfica estabelece interfacescom a Histria Social. Para utilizar uma imagem maiseloqente, a Histria Demogrfica vai se tornando muitoclaramente um tipo de Histria Social na razo direta emque a histria da mortalidade vai derivando para uma his-tria da morte, mostrando-se neste particular uma interfacemais especfica com a Histria das Mentalidades.

    A Histria da Cultura Material estuda os objetosmateriais em sua interao com os aspectos mais concretosda vida humana, desdobrando-se por domnios histricosque vo do estudo dos utenslios ao estudo da alimentao,do vesturio, da moradia e das condies materiais do tra-balho humano. Trata-se de uma especificidade da Histriaque est intimamente associada Arqueologia, mas estadesignao se refere preferencialmente a uma abordagem

    relacionada ao levantamento e decifrao de fontes dacultura material, e no tanto dimenso de vida socialque trazida por estas fontes. Deste modo, ao se mostrarrelacionada a um modo de desvendar vestgios materiaise de conect-los para reconstruir a Histria, a Arqueologiavincula-se mais coerentemente com a segunda ordem decritrios indicada no Quadro 1 (abordagens). Neste sen-tido, para um historiador, a Arqueologia remete sobretudoaos mtodos arqueolgicos que eventualmente sero em-pregados para levantar fontes e dados empricos no decor-rer da pesquisa fontes e dados sobre os quais o historia-dor far incidir depois um determinado enfoque que podeou no ser o da Histria da Cultura Material.

    Mas, de qualquer maneira, a Histria da CulturaMaterial e a Arqueologia andam juntas (Pesez, 1990). Umbom exemplo de Histria da Cultura Material foi concreti-zado por Fernand Braudel, em um dos volumes de Civili-zao material, economia e capitalismo (Braudel, 1997). Poroutro lado, Marc Bloch pode ser considerado um precursor,considerando-se que teria empreendido uma modalidadede Histria da Cultura Material ao analisar a paisagemrural na medievalidade francesa (Bloch, 1952).

    A Geo-Histria estuda a vida humana no seu rela-cionamento com o ambiente natural e com o espao conce-bido geograficamente. ainda com Fernand Braudel queeste campo comea a se destacar, passando a se definir e ase encaixar nos estudos histricos de longa durao(Braudel, 1984). Por outro lado, a Geo-Histria pode sededicar mais especificamente ao estudo de um aspecto trans-versal no decurso de uma durao mais longa, como fez LeRoy Ladurie ao realizar uma Histria do Clima (Le RoyLadurie, 1971). Nestes casos, ocorre muito freqentementeque o geo-historiador tome para fontes, alm da documen-tao mais tradicional, os prprios vestgios da natureza(Ladurie esteve atento aos anis que se formam nos cau-les das rvores de vida longa, considerando que, de acordocom concluses j estabelecidas pelos botnicos, um anelestreito significa um ano de seca, e um anel largo um anobeneficiado por chuvas abundantes). Conforme se v, aGeo-Histria deve dialogar necessariamente no s com aGeografia, como tambm com outras cincias da natureza(a exemplo da Botnica ou da Ecologia).

    Bastante polmica desde os seus primrdios, a His-tria das Mentalidades enfoca a dimenso da sociedade re-lacionada ao mundo mental e aos modos de sentir, ficandosob a rubrica de uma designao que tem dado margem agrandes debates que no podero ser pormenorizados aqui.Apenas para registrar alguns dos problemas pertinentes aeste campo historiogrfico que se consolida a partir da d-cada de 1960, ficam aqui as questes fundamentais quedevem ser refletidas pelo historiador que ambiciona trilharestes caminhos de investigao. Existir efetivamente uma

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    mentalidade coletiva? Ser possvel identificar uma basecomum presente nos modos de pensar e de sentir doshomens de determinada sociedade algo que una Csare o ltimo soldado de suas legies, So Lus e o camponsque cultivava as suas terras, Cristvo Colombo e o mari-nheiro de suas caravelas? Estas imagens, bastante oportu-nas, foram celebrizadas por Lucien Febvre.

    Abraando esta perspectiva terica, o historiador deveampliar necessariamente a sua concepo documental. Con-forme assinala Franois Furet (1991), se o historiador dasmentalidades procura alcanar nveis mdios de comporta-mento, no pode se satisfazer com a literatura tradicional dotestemunho histrico, que inevitavelmente subjetiva, norepresentativa, ambgua. Assim, como veremos adiante, ocor-reu um casamento feliz entre a Histria das Mentalidades(dimenso) e a Histria Serial (abordagem).

    Lucien Febvre, precursor distante dos estudos dementalidade, havia tentado precisamente uma outra via,mais atenta a fontes de natureza qualitativa (mesmo por-que a Histria Serial somente se consolidaria a partir demeados do sculo XX). Em sua famosa obra sobre Rabelais,o historiador francs se prope a partir da investigao deum nico indivduo identificar as coordenadas de toda

    uma era (Febvre, 1962). A abordagem criticada pelo his-toriador italiano Carlo Ginzburg historiador mais habitu-almente classificado na interconexo de uma Histria Cul-tural (dimenso) com uma Micro-Histria (abordagem). Aocontrrio de Febvre, o micro-historiador italiano CarloGinzburg opta por instrumentalizar o conceito de mentali-dade de classe em sua obra O queijo e os vermes (Ginzburg,1989). Neste ltimo caso onde toma como documentaoprincipal os registros inquisitoriais do processo de ummoleiro italiano perseguido pela Inquisio no sculo XVI ,Ginzburg mantm-se atento questo daintertextualidade, isto , ao dilogo que o discurso domoleiro Menocchio estabelece implicitamente com outrostextos e discursos.

    Desta forma, embora ambos os historiadores par-tam de um estudo de caso individual, a abordagem tornou-se distinta. Ressalte-se na abordagem de Ginzburg a pre-ocupao em identificar os vrios registros dialgicos pre-sentes em uma mesma fonte preocupao que se coadu-na muito intimamente com um dos setores da chamadaHistria Cultural. Assim, alm do discurso externo do pr-prio Menocchio, visvel na superfcie de suas fontes, o his-toriador italiano toma por objeto a multiplicidade de discur-

    Quadro 1: O Campo Histrico.

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    sos que o constituem; alm disso, evita a pretenso dereconstituir uma mentalidade de poca. Seu enfoque, comoressaltamos, mais propriamente cultural; sua metodologiase funda na anlise intensiva de suas fontes, dialogandocom a famosa descrio densa proposta por antroplogoscomo Clifford Geertz (1989).

    A Histria Cultural, campo historiogrfico que setorna mais preciso a partir da dcada de 1980, suficiente-mente rica para abrigar no seu seio diferentes possibilida-des internas de tratamento, por vezes antagnicas. Apenaspara resumir algumas possibilidades, ela abre-se a estudosda cultura popular, da cultura letrada, das representa-es, se bem que em alguns destes casos j entremos nombito dos domnios da Histria, dos quais j falaremos.

    Para alm das variedades de Histria Cultural, aHistria Antropolgica tambm enfoca a cultura, mas maisparticularmente nos seus sentidos antropolgicos. Privilegiaproblemas relacionados alteridade e se interessa especi-almente pelos povos grafos, pelas minorias, pelos modos decomportamento no-convencionais, pela organizao famili-ar, pelas estruturas de parentesco. Em alguns de seus inte-resses, irmana-se com a Etno-Histria, por vezes assimilan-do esta ltima categoria histrica aos seus quadros.

    Ainda explorando os caminhos da cultura, e tam-bm o universo mental das sociedades, teramos uma His-tria do Imaginrio tentativa de abrir mais uma alternati-va investigao daqueles objetos historiogrficos que atento haviam sido seara exclusiva da Histria das Menta-lidades. A Histria do Imaginrio estuda essencialmenteas imagens produzidas por uma sociedade, mas no apenasas imagens visuais, como tambm as imagens verbais e, emltima instncia, as imagens mentais. O imaginrio seraqui visto como uma realidade to presente quanto aquiloque poderamos chamar de vida concreta. Na Idade M-dia, muitos se engajaram nas Cruzadas menos por razeseconmicas ou polticas (embora estas sejam sempre evi-dentes) do que em virtude de um imaginrio cristo ecavaleiresco. A elaborao de um conceito de imaginriopara as cincias humanas deve muito a Castoriadis, cujaobra de referncia A instituio imaginria da sociedade(Castoriadis, 1982) e a historiadores como Jacques Le Goffe Georges Duby.

    Embora existam alguns objetos em comum, a Hist-ria do Imaginrio marca alguma distncia em relao His-tria das Mentalidades. Esta ltima est muito associada idia de que existe em qualquer sociedade algo como umamentalidade coletiva, que grosso modo seria uma espcie deestrutura mental que s se transforma muito lentamente, svezes dando origem a permanncias que se incorporam aoshbitos mentais de todos os que participam da formaosocial (apesar de transformaes que podem estar se operan-do rapidamente nos planos econmico e poltico). A Histria

    do Imaginrio no se ocupa propriamente destas longas du-raes nos modos de pensar e de sentir, mas sim da articula-o das imagens visuais, verbais e mentais com a prpria vidaque flui em uma determinada sociedade.

    Cada sociedade desenvolve, por exemplo, o seuimaginrio poltico, como aquele que Ernst Kantorowiczestudou em Os dois corpos do rei (Kantorowicz , 1998). Aidia de que o rei no morre jamais, ou de que a prpriasociedade constitui um segundo corpo do rei, pode estarinterconectada com um imaginrio cristo. Os modos comoo poder representado por exemplo, em termos de cen-tro e de periferia ou como a estratificao social se ma-terializa em imagens como a de um espectro de alturas emque as classes sociais mais favorecidas so chamadas declasses altas... eis aqui algumas imagens sociais e polticasque podem passar a fazer parte da vida de uma sociedade.

    Existe, por outro lado, o estudo mais direto das ima-gens visuais, perceptveis, por exemplo, nas iconografias, oudas imagens empregadas na literatura. Neste ponto, a His-tria do Imaginrio partilha seus objetos com uma histriadas imagens propriamente dita, ou com uma histria dasrepresentaes, que so, na verdade, domnios da hist-ria (ou seja, campos temticos disposio do historiador).So domnios que, naturalmente, tambm podem ser parti-lhados por uma Histria Cultural.

    A dimenso da cultura, conforme se v, suficien-temente diversificada para gerar um grande nmero demodalidades historiogrficas (basta lembrar que o prprioconceito de cultura polissmico e que cada um de seussentidos pode se abrir a um enfoque distinto). De igualmaneira, a Histria Poltica outra das dimenses comple-xas, abrindo eventualmente campos antagnicos dentro desi. Ser suficiente lembrar aqui o contraste radical entre aVelha Histria Poltica e a Nova Histria Poltica. O queautoriza classificar um trabalho historiogrfico dentro daHistria Poltica naturalmente o enfoque no poder. Masque tipo de poder? Pode-se privilegiar desde o estudo dopoder estatal at o estudo dos micropoderes que aparecemna vida cotidiana.

    Assim, enquanto a Histria Poltica do sculo XIXmostrava uma preocupao praticamente exclusiva com apoltica dos grandes Estados (sob a conduo ou interfern-cia dos grandes homens), j a Nova Histria Poltica quecomea a se consolidar a partir dos anos 1980 passa a seinteressar tambm pelo poder nas suas outras modalida-des (que incluem tambm os micropoderes presentes na vidacotidiana, o uso poltico dos sistemas de representaes eassim por diante). Para alm disto, a Nova Histria Polticapassou a abrir um espao correspondente para uma Hist-ria Vista de Baixo, ora preocupada com as grandes massasannimas, ora com o indivduo comum que por isso mesmopode se mostrar como o portador de indcios que dizem res-

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    peito ao social mais amplo. Assim, mesmo quando a NovaHistria Poltica toma para seu objeto um indivduo, no visamais a excepcionalidade das grandes figuras polticas que,outrora, muitos dos historiadores do sculo XIX acreditavamser os grandes e nicos condutores da Histria.

    Objetos da Histria Poltica so todos aqueles queso atravessados pela noo de poder. Neste sentido, te-remos, de um lado, aqueles antigos enfoques da HistriaPoltica tradicional que, apesar de terem sido rejeitados pelahistoriografia mais moderna de a partir dos anos 1930, comas ltimas dcadas do sculo XX comearam a retornar comum novo sentido. A guerra, a diplomacia, as instituies ouat mesmo a trajetria poltica dos indivduos que ocupa-ram lugares privilegiados na organizao do poder tudoisto comea a retornar a partir do final do sculo com umnovo interesse.

    De outro lado, alm desses objetos que se referems relaes entre as grandes unidades polticas e aos modosde organizao dessas grandes unidades polticas que soos Estados e as instituies, ganham especial destaque asrelaes polticas entre os grupos sociais de diversos tipos.A rigor, as ideologias e os movimentos sociais e polticos(por exemplo, as revolues) sempre constituram pontosde especial interesse por parte da nova historiografia que seinicia com o sculo XX. Por outro lado, como j ressaltamos,hoje despertam um interesse anlogo as relaesinterindividuais (micropoderes, relaes de poder no interi-or da famlia, relacionamentos intergrupais), bem como ocampo das representaes polticas, dos smbolos, dos mitospolticos, do teatro do poder. Em muitos destes mbitos, soevidentes as interfaces da Histria Poltica com outros cam-pos historiogrficos, como a Histria Cultural, a HistriaEconmica ou, sobretudo, a Histria Social.

    A dimenso historiogrfica mais sujeita a oscilaesde significado precisamente a da Histria Social, categoriaque, por ocasio do surgimento da Revista dos Annales, foiconstruda ao lado da Histria Econmica por oposio Histria Poltica tradicional. Nesta esteira, houve ainda quemdirecionasse a expresso Histria Social para uma histriadas grandes massas ou para uma histria dos grupos sociaisde vrias espcies (em contraste com a biografia, com a His-tria das Instituies, etc...). Entre os objetos mais evidentesda Histria Social estariam as relaes sociais, as classes eestamentos, as ideologias, as formas de sociabilidade.

    Pode-se perceber que a maioria dos campos de in-teresse da Histria Social correspondem a recortes huma-nos (as classes e grupos sociais, as clulas familiares) ou arecortes de relaes humanas (os modos de organizao dasociedade, os sistemas que estruturam as diferenas e desi-gualdades). Em um caso, estudam-se fatias da sociedade;em outro caso, dimenses especficas e transversais queatravessam a sociedade como um todo. Contudo, duas das

    divises que relacionamos perdem este carter mais espe-cfico que procura examinar um problema ou uma dimen-so mais especfica: o estudo das comunidades (rurais eurbanas) e o estudo das populaes como um todo. Estesdois campos esto, na verdade, ligados a uma outra acepoda Histria Social que discutiremos a seguir.

    Se a Histria Social foi se constituindo desde o prin-cpio como uma subespecialidade da Histria, direcionadapara objetos bem especficos e que se distinguiam dosobjetos das outras histrias, por outro lado a noo de His-tria Social tambm foi vinculada por alguns pensadores ehistoriadores a uma histria total, encarregada de realizaruma grande sntese da diversidade de dimenses e enfoquespertinentes ao estudo de uma determinada comunidadeou formao social. Portanto, estaria a cargo da Histria So-cial criar as devidas conexes entre os campos poltico,econmico, mental e outros o que implica que, nestaacepo, a Histria Social deixa de ser uma modalidademais especfica, como qualquer outra, para se tornar o cam-po histrico mais abrangente que se abriria possibilidadeda sntese... Histria Social como Histria da Sociedade. ...

    Na verdade, esta ltima acepo adotada aindapela Escola dos Annales, mas a partir da dcada de 1940,de modo que acaba se contrapondo quela primeira acepoque procurava fixar a Histria Social como especialidade.Em uma conferncia de 1941, mais tarde publicada emCombates pela Histria, Lucien Febvre chega a afirmar queno h histria econmica e social; h somente histria, emsua unidade. Trata-se, portanto, de um programa que as-sume a perspectiva da chamada Histria Total, ou da His-tria-Sntese, que to bem caracterizaria a segunda faseda Escola dos Annales sobretudo com as monumentaisobras de Braudel sobre O Mediterrneo e sobre a Civiliza-o material, economia e capitalismo.

    Mas a designao anterior continuou existindo pa-ralelamente, de modo que a Histria Social assumiu umlugar especfico como sub-especialidade ao lado da Hist-ria Econmica, da Histria Poltica, da Histria Cultural ede todas as outras. Rigorosamente, depois da crise da His-tria Total (esperana de abarcar todos os aspectos de umasociedade em uma grande sntese coerente), esta designa-o mais especfica ganhou at mais fora a partir da dca-da de 1960. Mas a noo de Histria Social, enfim, conti-nuou sempre aberta a muitas possibilidades de sentidos.

    Os meios acadmicos brasileiros vieram contribuirum pouco para os usos amplificados da expresso HistriaSocial. Esta designao tem sido muito utilizada, ao mes-mo tempo em que tem se diludo bastante de um verdadei-ro contedo, no mbito das universidades brasileiras. Osprogramas de Ps-Graduao que so obrigados aexplicitar burocraticamente aos organismos governamen-tais uma rea de concentrao com as suas respectivas

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    linhas de pesquisa acabaram por adotar estrategica-mente esta designao tomada no seu sentido maisabrangente, conseguindo, assim, enquadrar em um mesmoplano de coerncia uma quantidade multidiversificada depesquisas. Em certo sentido, argumenta-se que toda a His-tria que hoje se escreve de alguma maneira uma HistriaSocial mesmo que direcionada para as dimenses poltica,econmica ou cultural.

    De fato, possvel incorporar uma preocupao so-cial a cada uma das demais dimenses antes citadas comosubespecialidades da Histria e tambm s vrias aborda-gens e domnios que veremos a seguir. Mas tambmverdade que nem toda Histria necessariamente social. Se possvel elaborar uma Histria Social das Idias ou umaHistria Social da Arte, possvel tambm elaborar umaHistria das Idias ou uma Histria da Arte que se restrin-jam a discutir obras do pensamento ou da criao artsticasem as reestruturar dentro do seu ambiente social maisamplo. Encontra-se quem fale em uma Histria da Cultura,preocupada em descrever produes culturais de vrios ti-pos, mas contrastando-a com a Histria Cultural propria-mente dita, que tem incorporado tradicionalmente uma pre-ocupao social muito definida (neste caso, uma HistriaSocial da Cultura).

    Uma ltima diviso historiogrfica relacionada ao tipode enfoque que canaliza as atenes do historiador a His-tria Econmica. Neste caso, dificilmente pode haver dvidasrelativas aos objetos da Histria Econmica. Estuda-se qual-quer um dos trs aspectos envolvidos pelas atividadeseconmicas: a produo, a circulao ou o consumo.

    O campo da produo foi objeto de interesse pri-mordial da historiografia marxista. Neste sentido, aqui en-contra o seu espao o conceito de modo de produo, queprocura dar conta de toda a produo da vida material deuma sociedade a partir da apropriao do trabalho humanoe da utilizao dos meios de produo (matrias-primas,instrumentos). Pode-se ainda falar em sistemas de produ-o, o que apenas uma outra maneira de se referir a estembito produtivo que constitui o ponto de partida da vidaeconmica de uma sociedade.

    natural que, notadamente com a historiografiamarxista e outras preocupadas com a dimenso social daHistria, considere-se que o sistema de produo est eminseparvel interface com a organizao social e poltica deuma sociedade. Da que, para este tipo de histriaeconmica, imprescindvel caminhar conjuntamente coma Histria Social e com a Histria Poltica. Qualquer gruposocial ocupa uma posio central ou perifrica, ativa ouparasitria, consciente ou alienada no sistema de produ-o de uma sociedade, e todos estabelecem entre si relaesque, alm de sociais, so relaes polticas. Para o materia-lismo histrico, por exemplo, a Histria a histria dos mo-

    dos de produo e tambm a histria das lutas de classe.Uma coisa est sobreposta outra, pois se os modos deproduo vo se desenvolvendo e derivando em outros nodecurso de uma durao mais longa, a luta de classes afloracotidiana e conjunturalmente sobre estas grandes estrutu-ras em mutao. Percebe-se, assim, que, nesta linha de pers-pectivas, a Histria Econmica est em permanenteinterface com uma Histria Poltica e uma Histria Social.

    Por outro lado, o enfoque do historiador econmicotambm pode se dirigir para a esfera da circulao (ou dadistribuio). Sero estudados aqui os ciclos econmicos, ospreos, as trocas, o sistema financeiro. O interesse no estu-do dos ciclos econmicos, por exemplo, tornou-se muitomarcante a partir da dcada de 1930, com historiadores daeconomia associados Escola dos Annales (mas neste casotambm ao marxismo), como Ernst Labrousse. Destaca-seuma interface evidente da nova Histria Econmica com osdiversos desenvolvimentos da cincia social da Economia.Na verdade, o estudo dos ciclos, das conjunturas, daflutuao de preos e salrios (e tantos outros aspectos)tornou-se possvel a partir do dilogo com a Estatstica. Estesnovos campos da Histria Econmica tornam-se possveiscom a quantificao com aquilo que logo passaria a serchamado de Histria Quantitativa.

    Fechando o circuito de interesses da HistriaEconmica aparece a esfera do consumo, com objetos quepodem ir desde os aspectos relativos aos salrios (poder decompra) at os hbitos de consumo dos vrios grupos soci-ais. Estudar o consumo estudar os modos como a riqueza apropriada pelos vrios grupos e foras sociais que seencontram em interao no interior de uma determinadasociedade. As tenses sociais, enfim, tambm se expressamnas relaes de consumo, nas ostentaes, nas carncias,nos contrastes que do a revelar a riqueza apropriada e acolocam em contraposio riqueza produzida. Esta pontado tringulo econmico, portanto, estabelece uma novainterface com a Histria Social.

    De uma maneira resumida, enfim, estas da Hist-ria da Cultura Material Histria das Mentalidades (oudo poro ao sto, para utilizar uma metfora conhecida) so algumas daquelas dimenses presentes na vida de umasociedade que tm gerado campos especficos daHistoriografia. Resta dizer, antes de passar ao prximo gru-po de critrios, que o historiador no precisa se fixar neces-sariamente em apenas uma destas dimenses. Conformevimos, ele pode atuar na interconexo de uma Histria Po-ltica com uma Histria Social, de uma Histria Demogrficacom uma Histria das Mentalidades, de uma Geo-Hist-ria com uma Histria Econmica, apenas para dar algunsexemplos. As combinaes possveis, a dois ou a trs, sointerminveis e dependem da natureza do objetohistoriogrfico que est sendo constitudo.

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    Do mbito das dimenses passaremos agora aombito das abordagens. Existem subdivises possveis daHistria que se referem ao campo de observao com queos historiadores trabalham. E existem outras subdivisesque se referem ao tipo de fontes ou ao modo de tratamentodas fontes empregado pelo historiador. Em cada um des-tes casos, estas divises da Histria referem-se mais aosmodos de fazer a pesquisa do que s dimenses sociaisque so enfocadas pelo historiador (modos de ver). Oscritrios envolvidos por estas subdivises so, portanto, di-vises que esto mais relacionadas com Metodologia doque com Teoria.

    o caso, por exemplo, da Histria Oral. Esta subdivi-so historiogrfica refere-se a um tipo de fontes com o qual ohistoriador trabalha, a saber, os testemunhos orais. Aqui, en-tramos em um outro tipo de critrio que no interfere com osdo primeiro grupo. Um historiador pode estabelecer comoenfoque a Histria Poltica ou a Histria Cultural e selecionarcomo abordagem a Histria Oral. Isto significa que ele irproduzir o essencial dos seus materiais de investigao ereflexo a partir da coleta de depoimentos, que depois deve-r analisar com os mtodos adequados. Suas preocupaesneste mbito estaro relacionadas ao tipo de entrevista queser utilizado na coleta de depoimentos, aos cuidados nadecodificao e anlise destes depoimentos, ao uso ou no dequestionrios e assim por diante. Todos estes aspectos sereferem mais a mtodos e tcnicas do que a aspectos te-ricos. A Histria Oral, enfim, remete a um dos caminhosmetodolgicos oferecidos pela Histria, e no a um caminhoterico ou a um caminho temtico.

    Tambm o campo da Histria Serial se refere a umtipo de fontes e a um modo de tratamento das fontes. Tra-ta-se de abordar fontes com algum nvel de homogeneidadee que se abram para a possibilidade de quantificar ou deserializar as informaes ali perceptveis no intuito de identi-ficar regularidades. Num outro sentido, a Histria Serial lidatambm com a serializao de eventos (e no apenas com aserializao de fontes), propondo-se a avaliar eventos hist-ricos de um certo tipo em sries ou unidades repetitivas pordeterminados perodos de tempo. Enquadram-se neste con-junto de possibilidades os estudos dos ciclos econmicos, apartir, por exemplo, da anlise das curvas de preos, e tam-bm as anlises das curvas demogrficas.

    A Histria Serial foi um campo que se abriu com aHistria Econmica e da se estendeu HistriaDemogrfica e Histria Social no sentido restrito, masque terminou por se difundir para muito alm destes limi-tes. o caso dos estudos de Histria das Mentalidades,quando se recorre anlise de sries de testamentos a fimde verificar quantas missas desejavam para depois de suamorte os homens de uma certa classe social em determina-da sociedade. Neste sentido, a srie pode trazer tona tes-

    temunhos involuntrios, permitindo estabelecer uma His-tria das Prticas Religiosas (rubrica que deve ser enqua-drada no mbito dos domnios da Histria). Da mesmaforma, possvel serializar estruturas de parentesco, e nestemomento a Histria Serial estar se articulando HistriaAntropolgica.

    A Histria Serial, relacionada a determinados pro-cedimentos metodolgicos, articula-se deste modo a outroscampos histricos, como a Histria Econmica, a HistriaDemogrfica ou a Histria das Mentalidades, aplicando-se a objetos vrios (como na Histria das Prticas Religio-sas ou na Histria da Famlia). Por outro lado, comfreqncia ela se encontra intimamente relacionada com achamada Histria Quantitativa, uma subdiviso da Hist-ria que se refere mais ao critrio campo de observao,neste caso associado ao universo numrico e s variaesquantitativas.

    Dentre as subdivises pertinentes ao critrio cam-po de observao, a confuso mais freqente que se fazest entre a Histria Regional e a Micro-Histria, apesar deserem campos radicalmente distintos. Valem aqui algunsesclarecimentos.

    Quando um historiador se prope a trabalhar den-tro do mbito da Histria Regional, ele se mostra interessa-do em estudar diretamente uma regio especfica. O espa-o regional, importante destacar, no estar necessaria-mente associado a um recorte administrativo ou geogrfico,podendo se referir a um recorte antropolgico, a um recortecultural ou a qualquer outro recorte proposto pelo historia-dor de acordo com o problema histrico que ir examinar.Mas, de qualquer maneira, o interesse central do historia-dor estudar especificamente este espao, ou as relaessociais que se estabelecem dentro deste espao, mesmoque eventualmente pretenda compar-lo com outros espa-os similares ou examinar, em algum momento de sua pes-quisa, a insero do espao regional em um universo maior(o espao nacional, uma rede comercial, etc.).

    A Micro-Histria no se relaciona necessariamenteao estudo de um espao fsico reduzido, embora isto possaat ocorrer. O que a Micro-Histria pretende uma redu-o na escala de observao do historiador com o intuito dese perceber aspectos que de outro modo passariam desa-percebidos. Quando um micro-historiador estuda uma pe-quena comunidade, ele no estuda propriamente a peque-na comunidade, mas estuda atravs da pequena comuni-dade (no , por exemplo, a perspectiva da Histria Local,que busca o estudo da realidade microlocalizada por elamesma). A comunidade examinada pela Micro-Histriapode aparecer, por exemplo, como um meio para atingir acompreenso de aspectos especficos relativos a uma socie-dade mais ampla. Da mesma forma, posso tomar para estu-do uma realidade micro com o intuito de compreender

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    O campo histrico consideraes sobre as especialidades na historiografia contempornea

    certos aspectos de um processo de centralizao estatal que,em um exame encaminhado do ponto de vista da macro-histria, certamente passariam desapercebidos.

    O objeto de estudo do micro-historiador no preci-sa ser, desta forma, o espao microrrecortado. Pode ser umaprtica social especfica, a trajetria de determinados atoressociais, um ncleo de representaes ou qualquer outro as-pecto que o historiador considere revelador em relao aosproblemas sociais que est se dispondo a examinar. Se eleelabora a biografia de um indivduo (e freqentemente es-colher um indivduo annimo), o que o estar interessan-do no propriamente biografar este indivduo, mas sim osaspectos que poder perceber atravs do examemicrolocalizado desta vida.

    Para utilizar uma metfora conhecida, a Micro-His-tria prope a utilizao do microscpio ao invs do telesc-pio. No se trata, neste caso, de depreciar o segundo emrelao ao primeiro. O que importa ter conscincia de quecada um destes instrumentos pode se mostrar mais apro-priado para conduzir percepo de certos aspectos douniverso (por exemplo, o espao sideral ou o espao intra-atmico). De igual maneira, a Micro-Histria procura en-xergar aquilo que escapa Macro-Histria tradicional,empreendendo para tal uma reduo da escala de obser-vao que no poupa os detalhes e o exame intensivo deuma documentao. Considerando os exemplos antes cita-dos, o que importa para a Micro-Histria no tanto aunidade de observao, mas a escala de observao uti-lizada pelo historiador, o modo intensivo como ele observa eo que observa.

    Com relao aos domnios da Histria (terceiro cam-po proposto pelo Quadro 1), eles so de nmero indefinido,uma vez que se referem aos agentes histricos que even-tualmente so examinados (a mulher, o marginal, o jovem,as massas annimas e qualquer outro), aos ambientes so-ciais (rural, urbano, vida privada) e aos objetos de estudo(arte, direito, religiosidade, sexualidade). Os exemplos su-geridos so apenas indicativos de uma quantidade de cam-pos que no teria fim.

    Como se v, os critrios de classificao que esta-belecem domnios da Histria referem-se primordialmen-te s temticas escolhidas pelos historiadores. So j cam-pos de estudo mais especficos, dentro dos quais se ins-crevero o objeto de estudo e a problemtica constitu-dos pelo historiador.

    Ser oportuno encerrar este artigo chamando a aten-o, mais uma vez, para o fato de que como qualquercampo de saber a Histria est fadada a permanentestransformaes no interior do seu espao disciplinar. Osrearranjos internos sero sempre possveis. E mais, o queest dentro da Histria um dia, como objeto de estudo pos-svel, pode se ver repelido para o seu exterior no outro dia.

    Ser eficaz, para retermos uma maior compreenso acercadas varincias da disciplina historiogrfica, retomar um c-lebre trecho de A ordem do discurso, onde Michel Foucaultesclarece como ningum o que uma disciplina (em geral):

    uma disciplina se define por um domnio de objetos,um conjunto de mtodos, um corpus de proposies con-sideradas verdadeiras, um jogo de regras e de defini-es, de tcnicas e de instrumentos: tudo isto constituiuma espcie de sistema annimo disposio de quemquer ou pode servir-se dele (Foucault, 1996).

    Esse sistema annimo, contudo, como faz notarFoucault logo adiante, est em permanente mutao por-que aberto a expanses na verdade, ele depende, paraexistir, de desencadear expanses. Conforme ressalta o fi-lsofo francs, para que haja disciplina preciso, pois, quehaja possibilidade de formular, e de formular indefinida-mente, proposies novas.

    E, no entanto, existe um incessante jogo entre o inte-rior e o exterior da disciplina, e entre um campo de estudos eo seu campo de objetos. A Histria (campo de conhecimen-to) jamais ser constituda por tudo o que se pode dizer deverdadeiro sobre a Histria (campo dos acontecimentos). Paraque uma proposio pertena disciplina Histria de umapoca, preciso que ela responda s condies desta discipli-na tal como a definem ou definiram os seus praticantes deento. A Histria, como qualquer outra disciplina, estar sem-pre repelindo para fora de suas margens determinado con-junto de saberes, proposies e domnios que, em momentoanterior, poderiam ter estado ali e que, em um momentosubseqente da histria dos saberes e dos discursos, j noesto. Ou, como registra Michel Foucault para todas as disci-plinas cientficas em geral:

    O exterior de uma cincia mais ou menos povoadodo que se cr: certamente, h a experincia imediata,os temas imaginrios que carregam e reconduzemsem cessar crenas sem memria; mas, talvez, nohaja erros, em sentido estrito, porque o erro s podesurgir e ser decidido no interior de uma prtica defi-nida; em contrapartida rondam monstros cuja formamuda com a histria do saber. Em resumo: uma pro-posio deve preencher exigncia complexas e pesa-das para poder pertencer ao conjunto de uma disci-plina [...] (Foucault, 1996).

    A disciplina Histria atrai e repele objetos, dom-nios, proposies, mtodos, prticas, representaes. Hou-ve um tempo em que a hagiografia caa dentro da Hist-ria, em que Deus conduzia a Histria. Depois, no sculoXVIII, a Histria tende a se tornar imanente entre os

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  • Jos DAssuno Barros

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    historiadores profissionais. Deus sai da Histria e a dei-xa aos homens ou, se ele permanece na Histria, comoocorre com vrios dos historiadores do sculo XIX, comouma grande sombra providencial que age atravs doshomens (mas no mais de milagres). Com o iluminismo,o mundo extrafsico ou sobrenatural parece ter sido defi-nitivamente repelido para fora da Histria. Voltar umdia? Atualmente, no se escreve uma histria dos fen-menos paranormais. Quem quer que queira historiar es-tes fenmenos ter de faz-lo do exterior histrico, jque este no um dos assuntos de que tratam os histo-riadores profissionais. Outros tantos exemplos poderiamser dados. Os historiadores escrevem a Histria das Ci-ncias, dos saberes jurdicos, da Medicina, da Psiquia-tria mas quem historia a Astrologia so os astrlogos(os historiadores s o fariam para avaliar social ou cultu-ralmente as suas representaes, para indagar pelas ide-ologias que se escondem por trs das representaes as-trolgicas e assim por diante).

    H os exemplos polticos. O nazismo entrou na his-tria como monstro quem quiser histori-lo com maiorsimpatia ter dificuldade em faz-lo no interior dos crculoshistoriogrficos ocidentais. Dever fazer isto do seu exteri-or, como simpatizante de uma doutrina. Isto porque, nahistoriografia ocidental, o nazismo estudado no corpo dosestudos dos autoritarismos, dos fanatismos, das patologiassociais, da violncia. No se estuda, por exemplo, a artenazista, a no ser ligada a um destes aspectos.

    Um exemplo no muito distante de proposies queat ento caam como luvas para o campo histrico e quehoje so repelidas enfaticamente se refere ao circuito daevoluo e do progresso. Com os desenvolvimentos an-tropolgicos e com o auto-reconhecido descentramento dohomem europeu, j no se admite falar, no campo dahistoriografia profissional, em evoluo de sociedades (comaquele sentido prximo ao darwiniano). Tambm j no sefala no esprito da nao, que teria animado as narrativasnacionalistas de historiadores como Ranke ou Jules Micheletnos idos do sculo XIX. Estas proposies esto atualmenteem baixa ou melhor, esto como que fora da rbita docampo histrico.

    Exemplo mais recente de idas e vindas, agora jrelativo a uma das antigas especialidades da Histria, ocampo da Histria das Civilizaes. Com Arnold Toynbee,este domnio parecia ter conhecido o seu ltimo grandeinvestimento (Toynbee, 1953). No final do segundo milnio,ele parece querer voltar com toda a fora, pelo menos ajulgar pelo impacto de O choque das civilizaes de Samuel P.Huntington (2000).

    Exemplo importante de resgate de um domnio oude uma prtica historiogrfica que, depois de ter sidoexpulsa da rbita da historiografia profissional pela ojeriza

    ao factual dos anos 1930, comea a ser atrada de novo pelasua gravidade este gnero que poderia ser descrito comohistria de acontecimento (a descrio de uma batalha,por exemplo). O primeiro sinal foi dado por Georges Duby,quando aceitou, em 1968, escrever um livro sobre o Do-mingo de Bouvines (famosa batalha na histria da IdadeMdia francesa). O seu prefcio para esta obra precisa-mente uma justificativa para a sua aceitao, como histori-ador profissional, em retomar este gnero (Duby, 1993).

    Para pontuar com um ltimo exemplo de domnioque veio tona, bastante lembrar que a Histria da Lou-cura s comeou a ser historiada recentemente. E, natural-mente, comeou a ser historiada do ponto de vista de umaracionalidade que desde j a imobiliza, com a exceo dotrabalho pioneiro de Foucault (1978). Mas, em todo caso, um tema que comea a entrar na moda a invadir a rbitado historicizvel. Desta forma, o que um dia esteve no exte-rior histrico hoje atrado, com menor ou maior fora, parao ncleo historiogrfico, tal como vimos acontecer com osvrios objetos desvendados pela Histria das Mentalida-des, pela Histria Vista de Baixo, pela Micro-Histria. Damesma forma, os assuntos mais amplamente tratados pelaHistria, hoje, podero, um dia, ser repelidos. Isto nova-mente produzir reviravoltas nos domnios histricos, nassuas dimenses, nas suas abordagens.

    Chegamos ao fim do esforo a que nos propusemosquando comeamos a percorrer sinteticamente as divisespossveis da Histria. Para alm dos domnios e camposaqui comentados, o leitor de Histria poder continuar con-tando cada vez mais com uma multido de novos objetos.Os domnios se multiplicam. Como mencionamos no inciodeste ensaio, a profuso de uma infinidade de domnios daHistria nos quais foram se especializando diversos histori-adores decorrente de um duplo processo. De um lado,lembramos que esta profuso se inscreve na tendncia dossaberes modernos hiperespecializao crescente. Por ou-tro lado, a chamada pulverizao da Histria a decor-rncia mais visvel da crise dos grandes modelos explicativose do declnio das ambies totalizadoras dos historiadoresocidentais que, notadamente na poca de Fernand Braudele em algumas das abordagens marxistas do incio do sculo,almejavam construir exclusivamente histrias-snteses.

    Atualmente, a historiografia ocidental mostra-secomo um grande vitral de possibilidades. Para retomar aimagem com que intitulamos o primeiro item deste texto,vivemos a poca de Clio Despedaada. A Histria partiu-se em muitos fragmentos; os editores recolhem as suas mi-galhas para vend-las a preo de ouro a uma multido deconsumidores que no cessam de se interessar pelos maisvariados objetos historiogrficos. H os que preferem sedeleitar nas sofisticadas tabelas de logaritmos que abun-dam nos ensaios de Histria Econmica, h os que prefe-

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    O campo histrico consideraes sobre as especialidades na historiografia contempornea

    rem as aventuras cavaleirescas que os conduziro aos cas-telos medievais. H os que se interessam pelo poder emtodas as suas formas, e existem os que, confortavelmentesentados em sales de luxo, tm alguma curiosidade a res-peito da histria dos marginalizados. Talvez existam os lei-tores do sexo masculino que ainda hoje destratem suasmulheres na alcova de seus casamentos e busquem, napoeira dos tempos, os seus pares na misoginia dos temposantigos; ou que, ao contrrio, achem-se perplexos diantedas conquistas femininas do ltimo sculo e, por isto, so-nhem secretamente com um tempo em que os homens do-minavam explicitamente as mulheres. E haver tambm osque buscaro nas pginas da historiografia profissional aaventura ou as razes de sua nacionalidade, a origem de seupessimismo ou de seu otimismo com relao aos seres hu-manos ou, quem sabe, um conforto para os seus medospresentes e futuros.

    Esses so os leitores comuns, que consomem Hist-ria como qualquer outro gnero literrio. J os historiadoresvivem seus temas por vocao ou por necessidade profissi-onal e se repartem naqueles que pretendem dar uma feiomais artstica ao seu trabalho e naqueles que buscaroaproxim-lo mais rigorosamente de um imaginrio da cin-cia concebida de acordo com os parmetros da racionalidadeda ltima hora, sem contar os que esperam transformar como saber histrico a prpria Histria. Entre os historiadoresprofissionais no h como evitar (nem talvez por queevit-lo) os compartimentos se multiplicam.

    Dimenses, domnios e abordagens so, fundamen-talmente, os critrios distintivos que podem ser emprega-dos para criar subdivises no interior do Campo Histrico.Critrios que no se misturam, mas que eventualmente secomplementam. O importante deixar claro que as di-menses, abordagens e domnios da Histria se articu-lam de mltiplas maneiras, e que no se trata de o historia-dor encontrar um compartimento para dali empreender umtrabalho isolado e hiper-especializado. Muito da confusoque tem sido estabelecida em torno destas classificaesdecorre daquelas grandes coletneas de artigos, escritas pordiversos autores, em que so apresentados desavisadamenteos diversos campos da Histria sem explicar que existemdiversos critrios imissos ali envolvidos.

    Outrossim, mesmo dentro das divises geradas porum mesmo critrio de coerncia, vimos que existem asinterfaces e interpenetraes, as combinaes de duas outrs dimenses historiogrficas, as convivncias de duas outrs abordagens, seja por alternncia ou porcomplementaridade, e, por fim, as ambigidades e objetoscomuns aos vrios domnios. Apenas para mencionar umaltima vez o problema das dimenses da realidade social,existem pelo menos trs delas que so extremamente com-plexas e, de certo modo, deixam suas marcas em todas as

    outras: a Poltica, a Cultural e a Social. De alguma maneira,tudo nas relaes humanas perpassado pelo poder nassuas mltiplas formas (macropoderes e micropoderes), tudoo que humano parte da cultura no seu sentido maisamplo, e o social pode estar identificado com a prpriasociedade. De qualquer modo, a historiografia ser sempreum campo complexo, que resiste s subdivises, o que noimpede que elas sejam pensadas como parmetros maisgerais de orientao.

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