o caminho das pedras

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rollingstone.com.br | Rolling Stone Brasil | 41 Setembro, 2011 O Caminho das Pedras Após anos batendo cabeça, o Governo Federal ainda luta para encontrar alternativas na guerra contra a incontestável epidemia do crack H Por Cristiano Bastos H Ilustração Lézio Júnior H B rasília, 19h. no horário de pico, mais de um milhão de pessoas circu- lam diariamente pela rodoviária da capital federal. A Praça dos Três Po- deres repousa metros à frente, emol- durada pela visão dos monumentais edifícios que guardam o Executivo, o Judiciário e o Legislativo – Palácio do Planalto, Supremo Tribunal Federal e Congresso Nacional, respectivamente. Os arredo- res refugiam, também, a cracolândia mais movi- mentada do Plano Piloto. O conjunto arquitetônico projetado por Oscar Niemeyer, Patrimônio Cultu- ral da Humanidade, não tombou imune à presença deste que hoje é, possivelmente, o mais agudo dos flagelos sociais brasileiros. Valdeir Carlos Neves é mais uma dessas “almas quí- micas” cujas mãos brandem um cachimbo nos quatro cantos do Brasil. Na concretista paisagem, o rapaz baiano de 25 anos fuma crack escondido nas reentrân- cias do Teatro Nacional, cara a cara com o poder. Con- some mais de 20 gramas por dia. “Em qualquer canto ‘nóis’ fuma”, conta, parecendo atribulado. Ele tem a companhia de Juliana Soares da Silva, 18 anos, que saiu do interior de Goiás para perambular por Brasília atrás da pedra. Ela queima, literalmente, R$ 100 todos os dias, dinheiro que ganha à custa de programas, mas diz sonhar com um emprego. “Quando a gente ocupa a cabeça com alguma coisa, não pensa em droga”, diz. O vício, porém, tem apelo maior. Inquieta, a jovem avista um traficante e, sem paciência para a entrevista, corre ao seu encontro, aos gritos: “Dá um oxi aí! Um real?” O flagrante cenário, que não é exclusividade de Brasília, carrega simbologias preocupantes. A mais marcante delas é a inconcebível miopia do poder pú- blico diante de tão gritante problema social. Outra, de ordem econômica, escancara a facilidade de acesso que usuários de todas as idades e classes sociais têm ao devastador veneno. Correndo paralelo à onda de corrupção que assolou o Brasil nos últimos meses, o crack também é uma “pedra no sapato” do Governo Federal. E não é de hoje. A epidemia vem anunciando- -se há mais de duas décadas. Começou no governo de Collor (o primeiro registro oficial de uso da droga no Brasil data de 1989), instalou-se no período de FHC e consolidou-se nos anos Lula.

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Após anos batendo cabeça, o Governo Federal ainda luta para encontrar alternativas na guerra contra a incontestável epidemia do crack POR CRISTIANO BASTOS - ROLLING STONE ILUSTRAÇÃO: LÉZIO JÚNIOR

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rollingstone.com.br | Rol l i ng St on e Br a si l | 41Se t e m bro, 2011

O Caminho das PedrasApós anos batendo cabeça, o Governo Federal ainda luta para encontrar

alternativas na guerra contra a incontestável epidemia do crackH Por Cristiano Bastos H Ilustração Lézio Júnior H

Brasília, 19h. no horário de pico, mais de um milhão de pessoas circu-lam diariamente pela rodoviária da capital federal. A Praça dos Três Po-deres repousa metros à frente, emol-

durada pela visão dos monumentais edifícios que guardam o Executivo, o Judiciário e o Legislativo – Palácio do Planalto, Supremo Tribunal Federal e Congresso Nacional, respectivamente. Os arredo-res refugiam, também, a cracolândia mais movi-mentada do Plano Piloto. O conjunto arquitetônico projetado por Oscar Niemeyer, Patrimônio Cultu-ral da Humanidade, não tombou imune à presença deste que hoje é, possivelmente, o mais agudo dos flagelos sociais brasileiros.

Valdeir Carlos Neves é mais uma dessas “almas quí-micas” cujas mãos brandem um cachimbo nos quatro cantos do Brasil. Na concretista paisagem, o rapaz baiano de 25 anos fuma crack escondido nas reentrân-cias do Teatro Nacional, cara a cara com o poder. Con-some mais de 20 gramas por dia. “Em qualquer canto ‘nóis’ fuma”, conta, parecendo atribulado. Ele tem a companhia de Juliana Soares da Silva, 18 anos, que saiu do interior de Goiás para perambular por Brasília atrás da pedra. Ela queima, literalmente, R$ 100 todos os dias, dinheiro que ganha à custa de programas, mas diz sonhar com um emprego. “Quando a gente ocupa a cabeça com alguma coisa, não pensa em droga”, diz. O vício, porém, tem apelo maior. Inquieta, a jovem avista um traficante e, sem paciência para a entrevista, corre

ao seu encontro, aos gritos: “Dá um oxi aí! Um real?” O flagrante cenário, que não é exclusividade de

Brasília, carrega simbologias preocupantes. A mais marcante delas é a inconcebível miopia do poder pú-blico diante de tão gritante problema social. Outra, de ordem econômica, escancara a facilidade de acesso que usuários de todas as idades e classes sociais têm ao devastador veneno. Correndo paralelo à onda de corrupção que assolou o Brasil nos últimos meses, o crack também é uma “pedra no sapato” do Governo Federal. E não é de hoje. A epidemia vem anunciando--se há mais de duas décadas. Começou no governo de Collor (o primeiro registro oficial de uso da droga no Brasil data de 1989), instalou-se no período de FHC e consolidou-se nos anos Lula.

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Cabe lembrar que, nas eleições presidenciais de 2010, o combate ao crack foi uma das grandes plata-formas alardeadas durante a candidatura de Dilma Rousseff. “Será uma luta sem quartel”, a então candi-data garantiu. Em maio do ano passado, a promessa ganhou reforço fundamental do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que, próximo ao fim de seu mandato, decretou o Plano Integrado para Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas. Os R$ 410 milhões destina-dos ao plano foram repartidos entre os ministérios da Saúde, Justiça e Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Interministerial, a ação coliga três frentes: com-bate, prevenção e tratamento. Mais de um ano depois, todavia, os resultados ainda são timidamente visíveis. Até o presente momento, para utilizar um jargão do meio, a estratégia não “decolou”.

Vinculada ao Ministério da Justiça, a Secretaria Nacional Antidrogas (Senad), criada em 2004, desde abril vem anunciando a divulgação daquele que deverá ser o “maior estudo sobre usuários de crack do mundo”. Postergado, o levantamento deveria sair em junho, mas voltou a ser adiado. Agora sem data específica, a Senad promete sua publicação ainda para este ano. Realiza-do com 25 mil usuários de crack em todo o território nacional, o estudo vai traçar o mapa das principais cracolândias brasileiras. A pesquisa custou R$ 6,9 milhões financiados pelo Plano Integrado e está sendo

elaborada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em parceria com a Princeton University. De acordo com a médica Paulina do Carmo Duarte, diretora da Senad, o objetivo é colher dados estatísticos reais das grandes cidades à zona rural. “Não temos, neste momento, ne-nhum número exato sobre o consumo de crack no país. O que há, até agora, são meras especulações”, ela admite. À época do lançamento do plano, Lula ainda observou a importância de se contar com números fidedignos sobre a epidemia: “Precisamos acabar com o ‘achismo’ e entender com precisão o problema do crack”, declarou.

A inda que órfãos de números ofi-ciais, fato é que o consumo da pedra cresce desabaladamente no Brasil. So-bram, entretanto, dados e estatísticas

alarmantes. Realizada em 2005, a última pesquisa consolidada pela Senad revelava que cerca de 380 mil pessoas fumavam crack. Atualmente, o governo trabalha com a hipótese (também de 2005) de 0,7% da população já ter feito uso, pelo menos uma vez, de cocaína ou derivados. Menos otimista, a Organiza-ção Mundial de Saúde (OMS) estima que até 3% dos brasileiros sejam usuários do crack – seriam, por-tanto, seis milhões de viciados. Nos Estados Unidos, onde a pedra já circula há mais tempo, em momen-tos críticos essa percentagem chegou a 4%. Embora altos, os números nacionais divergem. Especializado

no tratamento de dependentes químicos, o psiquiatra Pablo Roig apresentou novas estimativas durante a instalação da Frente Parlamentar Mista de Comba-te ao Crack na Câmara dos Deputados, em 2010. O psiquiatra baseou seus dados no censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) e con-cluiu que o Brasil tem, hoje, por volta de 1,2 milhão de “craqueiros”. O estudo também mostra que a idade média para a introdução à pedra dá-se aos 13 anos.

Instituído pelo Decreto Presidencial 7.179, o Plano de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas atua em duas linhas estratégicas: as ações “imediatas” e “estru-turantes”. Direcionadas para o combate ao tráfico, as imediatas são executadas, principalmente, nos municí-pios situados em região de fronteira. As estruturantes, por sua vez, agem no tripé “prevenção, tratamento e reinserção social”. A esta altura, contudo, o Plano Integrado corre o risco eminente de sofrer uma dura abstinência de recursos federais. A ameaça maior – a qual põe em jogo a continuidade do esforço gasto pela Senad – é a possível tesourada que deverá encurtar as verbas previstas no Plano Plurianual (2012-2015). O corte contraria o plano de ampliar o Plano Integrado, um compromisso assumido por Dilma antes de ser eleita. Inicialmente, previa-se que, até 2015, a Senad receberia anualmente R$ 100 milhões para cumprir as metas estabelecidas. No total, seriam R$ 400 milhões.

Porém, a atual probabilidade, conforme alerta Paulina Duarte, é que a secretaria embolse somente metade do dinheiro. Ou seja: R$ 200 milhões.

O “alerta vermelho” foi dado pela própria titular da Senad, em audiência pública no Congresso Nacional, em agosto. Os grandes prejudicados com o arrocho, preveniu Paulina, serão os programas de prevenção e tratamento. Resta a esperança de sensibilizar a base do governo na Câmara, no sentido de impedir o retalhe financeiro na votação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Relator da Comissão Especial de Políticas Públicas de Combate ao Crack, o deputado Givaldo Carimbão (PSB-AL) joga duro contra o Plano Integrado, para o qual dá “nota zero”. “Foi feito [o plano] para não funcionar”, condena. Na visão de Carimbão, a melhor saída seria extinguir a Senad e criar uma secre-taria com status de ministério. “Uma secretaria com a responsabilidade da Senad não pode ficar à mercê do Ministério da Justiça”, diz o deputado.

Integrante da Comissão Especial de Políticas Pú-blicas de Combate às Drogas, a psicóloga e deputada federal Érika Kokai (PT-DF) entende a drogadição co-mo “a grande psicopatologia da atual etapa da história”. Segundo ela, há uma busca frenética e irreflexiva por prazer, cuja origem seria o consumismo desenfreado. Tal fenômeno deve ser confrontado, antes, com uma “linha de prevenção”. “Não é possível lutar contra a pro-blemática do crack tendo somente um plano em mãos. É

urgente, também, integrar políticas”, ela defende. O que não pode haver é contingenciamento de recursos – os quais, ela pressupõe, trarão resultados a serem colhidos mais à frente. “No frigir dos ovos, uma política sólida de enfrentamento às drogas vai gerar enorme economia ao Estado. Seja através da saúde ou do sistema carcerário ou da política de segurança e de combate à violência, o impacto no orçamento será grande”, afirma. “Não se pode reduzir o problema a uma planilha de custos.”

No Congresso, acalorados debates são travados a respeito de possíveis fontes para financiar a luta contra o crack. Uma das propostas mais discutidas seria a criação de uma contribuição social sobre o rótulo de bebidas e tabaco, a fim de capitalizar o Fundo Nacional Antidrogas (Funad). Subordinado à Senad, o órgão é responsável por estabelecer critérios para “uma justa reversão do patrimônio obtido ilicitamente por meio da produção ilegal e tráfico de drogas em favor da sociedade”. Mas a sugestão de taxar, por meio de me-dida provisória, em 1% a venda desses itens foi vetada pela presidente Dilma Rousseff. O deputado Reginaldo Lopes (PT-MG), presidente da Comissão Especial de Políticas Públicas de Combate às Drogas da Câmara dos Deputados, é favorável à intervenção tributária, alegando que a Funad precisa ter recursos próprios. “É uma maneira de investir fortemente no tratamento, combate e prevenção das drogas ilícitas e, igualmente,

das lícitas. A porta de entrada das ilícitas são as lícitas, o cigarro e o álcool.” A ideia é aumentar o imposto na forma de uma Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide). Politicamente, segundo o parlamen-tar, o convencimento já existe: “Trabalhamos neste mo-mento para que haja massa crítica favorável à proposta”.

Na publicação de seu último relatório, em junho, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc), alertou quanto ao crescimento do mercado de substâncias sintéticas, como o ecstasy e a metanfetami-na, as quais têm desembarcado com preocupante fre-quência em solo brasileiro. O estudo também revela que a maconha continua sendo a substância mais consumi-da em todo o planeta. Bo Mathiensen, representante do Unodc no Brasil, reforça a dimensão internacional que o “desafio do crack” impõe. Ele confia que a pesquisa prometida pela Senad será valiosa para se enxergar a real dimensão do caso, situação que é mais delicada em virtude de o Brasil fazer fronteira com três países pro-dutores da folha de coca: Peru, Colômbia e Bolívia. “O Brasil precisa estabelecer um diálogo construtivo nos dois lados da fronteira. É um problema compartilha-do, que apresenta desafios dinâmicos e relativamente novos. São soluções que também baseiam-se muito nos sistemas de saúde e educação”, analisa Mathiensen.

Se as fronteiras padecem à mercê dos traficantes, são os municípios que realmente sofrem com a en-trada do crack. No começo do ano, uma pesquisa da

Entidades e especialistas divergem constantemente sobre as maneiras mais adequadas de atender e tratar os dependentes químicos, mas existe uma opinião unânime: a de que as ações do Governo Federal na questão

do combate ao crack permanecem muito aquém do esperadoH

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Confederação Nacional de Municípios (CNM) realizada em 3.950 cidades (correspondente a 71% dos municí-pios) constatou que a droga está disseminada em 98% delas. Destas, mais de 91% não possuem programa de combate ao crack e nenhum tipo de auxílio federal ou estadual. “O Plano Integrado ainda não trouxe nada de real aos municípios pequenos. É hora de buscarmos medida concretas”, critica Paulo Ziulkoski, presidente da CNM. Chega a ser irônico o fato de o Plano Integrado ter sido lançado justamente na 15ª Marcha Nacional dos Prefeitos, encontro organizado pela CNM. Nessa “guerra interminável”, como classifica Ziukoski, não existe articulação entre União, estados e municípios. “O Brasil possui 588 municípios de fronteira, o que nos deixa muito vulneráveis à entrada da pasta de cocaína. É competência da União fiscalizar as fronteiras, não dos municípios, infelizmente.”

O deputado federal Osmar Terra (PMDB-RS), ex--secretário de Saúde do Rio Grande do Sul, é autor de um Projeto de Lei (7663/2010), em tramitação na Câmara, que de-termina a internação involuntária de dependentes químicos quando solicitada pela família e decidida pelo médico. Conforme o deputado, o custo do programa de combate ao crack criado no Rio Grande do Sul – voltado ao atendimento preventi-vo (o qual compreendia ampliação do atendimento médico-psicológi-co e foco na repressão) – custava, anualmente, R$ 80 milhões. O esta-do, ele contabiliza, tem menos de 6% da população brasileira. Pelas suas contas, portanto, o Brasil deveria injetar, no mínimo, R$ 1,3 bilhão no Plano Integrado. “Sem contar outro tanto só para ampliar a vigilância nas fronteiras”, completa.

Em março, sob polêmi-ca, a Secretaria Municipal de Assistência Social do Rio de Janeiro (SMAS)

implantou um novo “Protocolo de Abordagem So-cial”, mais conhecido como abrigamento compulsório de crianças e adolescentes com alto grau de depen-dência química. Até o fechamento desta edição, 1.121 adultos e 260 crianças e adolescentes foram retirados dos principais pontos de consumo de crack da capital carioca. Os adultos, após processo de identificação na polícia, são encaminhados aos abrigos da rede socio-assistencial do município, enquanto os menores são levados às Casas de Acolhida mantidas pela secreta-ria. Controversa, a iniciativa gera opiniões divididas. Rodrigo Bethlem, secretário de assistência social do Rio, diz que o único objetivo da intervenção é “sal-var vidas”. “O crack é uma droga diferente das outras. Impacta não somente a saúde, mas a capacidade de discernimento. Em se tratando de crianças e adoles-centes, o estrago é muito maior”, argumenta Bethlem, para o qual, na ausência da família, é obrigação do poder público cuidar desses indivíduos. “Esse método é 100% efetivo? Tenho certeza de que não. Mas, sem o acolhimento compulsório, é certeza do fracasso.”

Jaime Asfora, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), opina que o recolhimento compulsório, além de ine-ficaz, é inconstitucional e fere os direitos humanos. Crianças e adolescentes, segundo denunciou a entidade, têm sido abordados de forma truculenta por policiais militares, civis e pela guarda municipal. Os abrigos para os quais são recolhidos também seriam desprovidos de infraestrutura. Para agravar, o viciado muitas vezes está envolvido com o tráfico: “Para tratar a dependência, é necessária a vontade do paciente. As pessoas precisam exercer o livre arbítrio. Ninguém deve ser submetido a nada que vá contra a sua vontade”, diz Asfora. Para Bethlem, o posicionamento da OAB é uma “grande bo-bagem”. “Vã filosofia. Chega a ser surreal. Ferir direitos humanos é a criança estar largada numa cracolândia. Existe preconceito ao inverso. Discute-se o direito de ir e vir das crianças e dos adolescentes viciados, quando, na verdade, eles não possuem mais direito nem à vida.”

A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), em nota pública sobre o re-colhimento compulsório, avaliou que o procedimento adotado pelo Rio não contraria o Estatuto da Criança e do Adolescente – a medida está prevista no artigo 98 da Constituição. A SDH, no entanto, manifestou preocupação pelo fato de a abordagem aos menores ser realizada por educadores sociais acompanhados de policiais. Em certos casos, mesmo sem flagrante delito, os usuários têm sido encaminhados à delegacia. Apesar disso, se os devidos ajustes forem realizados, o abrigamento compulsório poderá se tornar um “exem-plo positivo” para o país, nas palavras da ministra Maria do Rosário: “O crack é uma forma de prisão e essas crianças precisam recuperar o direito de viver”.

A medida abraçada pelo Rio tem merecido simpatia de gestores públicos em todo o Brasil. Em São Paulo, estado que convive com a maior cracolândia do país, há 15 anos, a experiência carioca poderá ser repetida em breve. A Procuradoria-Geral da cidade já deu parecer favorável à internação compulsória, e agora a decisão

encontra-se nas mãos do prefeito Gilberto Kassab. Publicamente, ele reconheceu que a iniciativa “poderá ser uma resposta ao histórico problema enfrentado pela metrópole”. Também circula no Congresso Nacional um Projeto de Lei de autoria do senador Demóstenes Torres (DEM/GO), o qual prevê a institucionalização da internação compulsória em todo o Brasil: “Precisamos de uma solução imediata”, sentencia.

Já o Ministério da Saúde (MS) compreende o aco-lhimento compulsório como uma “forma de proteção à vida”, desde que haja, conforme recomenda a OMS, acompanhamento de profissionais de saúde e de assis-tência social. A posição, porém, destoa no interior da pró-pria pasta. Helvécio Magalhães, secretário de Atenção à Saúde do MS, afirma que o ministério nada pode impor a estados e municípios, “nem para fazer ou deixar de fazer”. “Para tanto existe o Estatuto da Criança e do Adolescente e a legislação da reforma psiquiátrica e, também, uma lei que rege o Sistema Único de Saúde”, diz, adicionando que

o ministério, por princípio, não é favo-rável ao recolhimento compulsório. “Mas não é um debate simples. Existe, antes, o direito à vida. Em situações de risco de morte, o sistema de saúde precisa tomar medidas.”

Entre as alternativas oferecidas pelo MS, Magalhães destaca a rede pública de abrigamento, “acolhedora e humanizada”, criada para tratar e proteger dependentes químicos. No Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas, uma das atuações mais “visíveis” do governo são os chamados “Consultórios de Rua do SUS”, modalidade que atende dependentes em condições de extre-ma vulnerabilidade social. “É uma postura de ir às ruas, sair das nossas unidades e captar os seres humanos que estão necessitando serem acolhi-dos. Sempre na lógica de conduzi-los ao caminho do tratamento, que, aliás, é dificílimo”, afirma o secretário, que acredita que a internação compulsó-

ria apresenta pouca efetividade. “Se não houver uma re-de de cuidados envolvendo o usuário, ele volta às ruas.”

Coordenador da Unidade de Pesquisas em Álcool e Drogas (Uniad) e especialista no tratamento de de-pendentes químicos, o psiquiatra Ronaldo Laranjeiras opõe-se implacavelmente à política antidrogas brasilei-ra. Além de não crer na eficácia do Plano Integrado, ele afirma que os Centros de Atenção Psicossocial de Álcool e Outras Drogas (CAPS/AD) – os quais são um dos pilares da atuação governamental – não estão su-ficientemente preparados para reabilitar a altíssima demanda de viciados em crack. “A recaída é o grande desafio. Não é um tratamento simples ou para ama-dores”, critica. Na opinião de Laranjeiras, a equipe que atualmente está na Senad – desde os tempos de FHC, ele reforça – deixou, “por incompetência e falta de respaldo político”, a pedra se instalar no Brasil.

“Criamos, de norte a sul, o maior varejo de drogas do mundo”, diz. “As cracolândias são uma ‘experiência de legalização’. Um país sério jamais permitiria algo semelhante.”

livre arbítrio?Viatura da Polícia Militar circula entre viciados e traficantes de crack e oxi na região da Cracolândia, em São Paulo