o brasil na omc: as lições do contencioso do algodão e da ... · em grande medida, podemos...
TRANSCRIPT
1
3º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI)
São Paulo 20, 21 e 22 de julho de 2011
O Brasil na OMC: as lições do contencioso do algodão
e da participação no G-20
Marcelo Passini Mariano e Haroldo Ramanzini Júnior
Colaborador: Rafael A. R. de Almeida
TEXTO PARA DISCUSSÃO
Resumo
O texto busca compreender melhor como a participação do Brasil na OMC influenciou o
processo formulador de sua política externa. Para tanto, a análise está centrada na atuação
brasileira na OMC, a partir das experiências vividas na coalizão G-20 e no contencioso
com os EUA sobre o comércio internacional de algodão. Os dois casos fornecem
elementos empíricos importantes para compreender as possibilidades e limitações que o
ambiente de negociação multilateral propiciou aos negociadores brasileiros. O enfoque
teórico utilizado procura explorar melhor esse processo de "aprendizagem",
contemplando instrumentos analíticos advindos de abordagens racionalistas, como as
institucionalistas e as intergovernamentalistas, com preocupações construtivistas a
respeito do processo de internalização de procedimentos e valores originados a partir das
interações que ocorrem nos espaços de cooperação internacional.
Palavras chave: Política Externa Brasileira, Processo Decisório de Política Externa,
Negociações Internacionais, OMC, Instituições Internacionais.
2
Introdução
Em geral, os estudos realizados sobre a atuação brasileira na OMC abordam
questões como a dinâmica negociadora, os interesses que estão em jogo, a capacidade de
barganha dos atores estatais, as assimetrias de poder existentes e o padrão de
comportamento dos atores. Em grande medida, podemos afirmar que o processo de
aprendizado resultante dessas experiências de negociação internacional tem sido
explicado pela ótica racionalista e pouca atenção tem sido dada às mudanças de
comportamento que refletem a internalização de normas e regras das instituições
internacionais. A aceitação de normas tende a ser explicada em virtude das limitações e
constrangimentos propiciados pelas instituições internacionais, sejam estas tomadas
enquanto atores no sistema internacional ou entendidas como ambientes de interação.
Não é nova a preocupação sobre a importância das instituições internacionais e as
influências no comportamento dos seus membros, e vice-versa. Há uma grande
diversidade de trabalhos teóricos e pesquisa empírica sobre o tema, com destaque para os
estudos que apresentam abordagens institucionalistas e intergovernamentalistas.
O presente texto não escapa dessa dinâmica, pois fundamenta-se em pesquisas
orientadas por concepções e conceitos racionalistas com foco nas decisões dos atores, em
suas preferências e nas possibilidades fornecidas pelo ambiente negociador. Ao mesmo
tempo, buscamos discutir e, mesmo que de forma limitada, incorporar preocupações
construtivistas que possam se adequar aos conceitos racionalistas comumente utilizados
na análise do comportamento brasileiro na OMC, com o objetivo de aprimorar os
instrumentais analíticos utilizados. Ressaltamos, contudo, que não buscamos retomar o
debate entre positivistas e pós-positivistas ou mesmo abordar a discussão teórica em
torno da relação agente/estrutura, apesar destas questões estarem presentes.
Quando mencionamos sobre algumas possibilidades advindas deste debate
estamos nos referindo ao texto de Michael Zürn e Jeffrey T. Checkel (2005) que busca
sintetizar os resultados de uma séria de pesquisas empíricas que utilizaram instrumentais
analíticos priorizados tanto por racionalistas quanto por construtivistas. O objetivo deste
esforço foi o de construir “pontes” entre as duas concepções teóricas. Por um lado, esse
tipo de trabalho é realizado com base no estudo dos processos de socialização que
3
ocorrem na União Européia e, portanto, procuram entender melhor a realidade européia,
mas por outro lado, procuram extrair conclusões que possam melhorar o desenvolvimento
teórico da área de Relações Internacionais, em especial sobre o papel das instituições
internacionais na socialização de agentes estatais e de Estados.
Mesmo que persista limitações teóricas e críticas quanto às conclusões ou à
metodologia utilizada nos estudos realizados, entendemos que estes acabam por ressaltar
questionamentos que podem melhorar o entendimento sobre as negociações comerciais
multilaterais. Como exemplo, podemos citar a necessidade de conhecer melhor como a
influência social é operada no âmbito das instituições da OMC ou como as identidades
dos negociadores se alteram a partir da experiência de negociação. Variáveis que muitas
vezes são colocadas em um segundo plano, como a persuasão ou o desempenho de papéis
comportamentais por parte dos agentes estatais, são valorizadas neste tipo de análise.
O simples fato de atentarmos para questões que se colocam no campo das
identidades dos agentes e na internalização de normas e procedimentos, permite-nos
mudar o olhar que se dá em torno da dinâmica das negociações, mesmo que de forma
muito limitada. Isso explica, neste momento, salientarmos mais a necessidade de
incorporar preocupações construtivistas do que operacionalizar seus conceitos centrais.
Empiricamente, buscamos compreender um pouco melhor como a participação do Brasil
na OMC pode influenciar o seu padrão de comportamento histórico e, no sentido
contrário, como o envolvimento brasileiro em torno das questões agrícolas na OMC
influencia a estrutura negociadora. Em particular, nos concentramos no contencioso do
algodão com os EUA e na construção e manutenção da coalizão G-20. As instituições da
OMC são tratadas enquanto ambiente favorável de aprendizado para os negociadores
brasileiros e para os atores domésticos.
Considerações Conceituais
A proposta de construir pontes entre as abordagens racionalistas e construtivistas
(Zürn e Checkel, 2005; Checkel 2005, 2007) tem como questão central o conceito de
socialização internacional, que pode ser resumido como o processo no qual os agentes em
interação em uma dada instituição internacional são levados à internalização de suas
normas, regras e padrões de comportamento. Como forma de tornar o conceito de
4
socialização mais preciso os autores procuram determinar quais os mecanismos causais
que podem disparar o processo de socialização e quais as condições mais propícias para
que isso ocorra. Entender esses mecanismos significa entender a conexão entre uma
causa e uma conseqüência e, no caso das instituições internacionais, a atenção está
concentrada na compreensão da lacuna entre as instituições, tomadas enquanto origem ou
causa, e portanto é a variável independente, e a socialização de Estados e agentes estatais,
tomados como resultados ou efeitos, ou variáveis dependentes.
Zurn e Checkel (2005) ressaltam três mecanismos principais de socialização que
permitem analisar as ligações entre as instituições internacionais e as mudanças nos
interesses e identidades dos agentes: o cálculo estratégico, o desempenho de papéis e a
persuasão normativa.
O cálculo estratégico se dá em torno dos incentivos e recompensas, que podem ser
materiais, como oportunidades de negócio, possibilidade de empréstimo financeiro,
ressarcimento de perdas econômicas, ou podem ser sociais, como a possibilidade de
reconhecimento, status, constrangimentos sociais (Checkel, 2005).
Neste caso os agentes são entendidos como seres capazes de escolher
racionalmente as melhores alternativas existentes em um ambiente de interação. O
comportamento é adaptado às normas e regras das instituições internacionais de forma a
ter acesso a uma estrutura de incentivos e recompensas. O problema está em saber
quando e como estes incentivos ou recompensas forçam uma mudança de comportamento
sustentada através do tempo. A adaptação comportamental se dá em termos de
constrangimentos propiciados por mecanismos institucionais que são operacionalizados
no âmbito institucional. Trata-se de um fenômeno tipico das instituições financeiras
internacionais, como o Banco Mundial e o FMI.
Schimmelfennig (2005) chama de reforço intergovernamental por recompensa
quando as instituições internacionais propiciam aos governos incentivos positivos para
que estes adotem as normas da instituição. Os governos adaptam seu comportamento
tendo em vista uma expectativa de recompensa maior que os custos da aceitação das
normas. A mesma coisa acontece com relação ao reforço transnacional por recompensa,
mas neste caso os incentivos são direcionados aos atores não-governamentais com
capacidade de pressão sobre os Estados para que estes adotem um comportamento
5
alinhado às instituições internacionais.
Nos casos trabalhados neste texto podemos dizer que as recompensas concentram-
se principalmente nas possibilidades oferecidas pelo Sistema de Solução de
Controvérsias, onde o julgamento das reclamações pode fazer com que os Estados mais
poderosos sejam constrangidos a adotar uma determinada norma de conduta. O caso do
algodão demonstra a participação do setor privado interessado e de outros atores
domésticos no sentido de reforçar a ação negociadora brasileira para utilizar os
mecanismos institucionais existentes a fim de obter recompensas materiais, como o
direito à retalização enquanto forma de aumentar sua capacidade de barganha, mas
também sociais, como o reconhecimento do status dos negociadores estatais ou o
reconhecimento da importância do Brasil pela comunidade internacional.
O método colocado em prática por Zürn e Checkel (2005), mesmo quando
referem-se a instrumentos típicos das abordagens racionalistas, enfatizam o momento em
que ações estrategicamente calculadas podem criar condições para a internalização de
normas. Essa preocupação constante em entender o processo de
socialização/internalização resultante da tentativa de diminuir as lacunas entre as
abordagens construtivistas e racionalistas, acaba forçando um maior detalhamento dos
conceitos que trabalham com os incentivos e constrangimentos presentes nas negociações
internacionais.
O desempenho de papel é outro mecanismo de solicialização que consideramos
relevante na teorização realizada pelos autores (Zürn e Checkel, 2005). No entanto, para
os casos que estamos trabalhando, correspondem às variáveis mais difíceis de serem
empiricamente verificadas.
Segundo Checkel (2005), os agentes são entendidos como seres racionais, mas
estes, em geral, encontram-se em condições limitadas para o exercício dessa
racionalidade. Para que o agente consiga avaliar todas as informações necessárias à sua
escolha é necessário que o faça em uma condição de grande atenção, que não é tão
freqüente quanto se poderia supor. Vale dizer que pressupõe-se uma certa passividade dos
agentes a fim de internalizar papéis de forma não calculada.
O desempenho de papéis permite aos agentes simplificar a quantidade de
informação que será analisada ao assumir padrões de comportamento que indicam
6
determinadas possibilidades de escolha. Ao mesmo tempo em que ameniza o problema da
escassez de atenção, também orienta a expectativa dos demais agentes por adotar um
comportamento que é socialmente esperado.
Sendo assim, esse mecanismo adapta-se muito bem às microanálises sobre a
adaptação comportamental não calculada de agentes estatais em condições
organizacionais bem delimitadas. O problema, neste caso, é saber quando um papel se
torna interessante para ser adotado e quais os mecanismos ambientais necessários para
que esse processo se inicie.
Isso sugere a necessidade de avançar em pesquisas que consigam coletar e
analisar informações necessárias para a verificação desse mecanismo com relação aos
negociadores brasileiros na OMC. A atuação brasileira nas negociações comerciais pode
ser um caso singular em virtude do padrão de comportamento e das identidades
consolidadas dos negociadores brasileiros. Estamos nos referindo ao Itamaraty e sua
capacidade de arregimentação, formação e transmissão de valores aos seus membros.
Estudos detalhados sobre esse assunto ainda são muito escassos.
A persuasão normativa também é um mecanismo de socialização que se apresenta
promissor para o entendimento dos casos selecionados nesse texto, apesar de também não
serem priorizados na bibliografia especializada sobre o tema. O caso do G-20, como
poderá ser visto mais adiante, exemplifica a necessidade de avançar nesse sentido, pois
indica diversos momentos que poderiam ser melhor estudados a partir da
operacionalização dos conceitos relacionados a esse mecanismo.
Persuasão, de forma geral, é entendida enquanto um processo social de
comunicação que se dá através da atividade argumentativa e da promoção do debate a fim
de modificar crenças, atitudes e comportamentos em um dado ambiente de interação
(Checkel, 2007). A abordagem realizada por Zürn e Checkel (2005) sobre a persuasão
normativa indica possibilidades para o estabelecimento de relações com o conceito de
cálculo estratégico descrito anteriormente, o que reforça sua utilidade para os casos
trabalhados neste texto.
Esse mecanismo de socialização pode ser analiticamente subdividido em dois. Por
um lado a argumentação, que se refere às proposições normativas que buscam defender
ou demonstrar uma “verdade” com o objetivo de promover mudanças de crenças dos
7
agentes. Por outro lado, temos a barganha, que consiste em atividades que envolvem
ameaças e promessas. A credibilidade é um fator adicional importante no processo de
barganha, pois, influencia as expectativas que os agentes têm sobre a capacidade de
ameaçar ou prometer. Trata-se, portando, da busca de uma adaptação comportamental em
ambientes de interação através do gerenciamento de constrangimentos.
Resta saber quando a mudança de preferência resultante da persuasão pode ser
mais duradora e quais condições são necessárias para que esses mecanismos se tornem
mais eficientes para a internalização de normas.
A influência social, apesar de amplamente mencionada nos estudos relacionados
pelos autores acima citados, ainda é um ponto que apresenta certa indefinição quanto ao
seu uso. Zürn e Checkel (2005) expõe essa dificuldade e questionam se a influência
social seria um quarto mecanismo a ser priorizado nos estudos sobre a
socialização/internalização nas instituições internacionais. A influência social é tomada
enquanto uma diversidade de processos que promovem adequação do comportamento dos
agentes às normas das instituições. Esses processos são realizados através da distribuição
de recompensas sociais e punições.
É importante enfatizar que os autores, mesmo reconhecendo a imprecisão da
utilização do termo, acabam por incluí-la na definição de instituição internacional
adotada. Instituições internacionais podem ser entendidas enquanto atores e, neste caso,
utilizam-se predominantemente de táticas de persuasão, ou também podem ser entendidas
enquanto ambientes sociais, que mantém canais de influência disponíveis e induz os
agentes a certos papéis comportamentais. Tanto no caso do contencioso do algodão
quanto no da coalizão G-20 é possível visualizar momentos onde a influência social é
trabalhada pelos negociadores brasileiros no âmbito das instituições da OMC.
Resumindo, podemos dizer que para efeito de análise dos casos escolhidos para
esse texto entendemos que os achados mais interessantes do esforço para a construção de
pontes entre as abordagens racionalistas e construtivistas podem ser concentrados em ao
menos três conclusões:
a) a primeira é a mais óbvia, diante do esforço empreendido pelos autores citados,
e se refere à demonstração feita pelos diversos estudos empíricos utilizados de que os três
8
principais mecanismos de socialização já mencionados, e também a influência social,
foram relevantes enquanto acionadores dos processos de socialização/internalização. A
forma como cada um desses mecanismos se processa, e, a intensidade com que provocam
a internalização de normas depende das condições nas quais estes são operados, ou
também das chamadas de condições de escopo.
b) a segunda afirma que a argumentação foi o mecanismo de socialização mais
importante para atores individuais em instituições internacionais;
c) e a terceira refere-se à socialização de Estados e os mecanismos centrais para
isso foram a argumentação e a barganha, mesmo que em muitos casos coincidam com
elementos de influência social, o que mostra a dificuldade de trabalhar esta última noção.
O contencioso do Algodão entre o Brasil e os EUA
Esse caso foi selecionado por demonstrar o aprendizado social de atores
governamentais e não-governamentais interessados nas possibilidades e
constrangimentos colocados, tanto pelos mecanismos institucionais da OMC quanto pelas
interações do Brasil com um Estado muito poderoso, os EUA, em torno do acesso à
estrutura de incentivos proporcionados pela negociação. O contencioso do algodão
demonstra não só a importância dos incentivos materiais, mas também os sociais, mesmo
que estes últimos estejam mais visíveis ao abordarmos a atuação brasileira no G-20. Um
outro fator relevante para a escolha do caso foi o longo período de negociação, sendo que
a continuidade das interações tem sido reconhecida pelos estudos citados como um
elemento fundamental para entender as possibilidade de adaptação comportamental e
internalização de normas.
Os subsídios agrícolas aos produtores norte-americanos de algodão mantidos pelos
EUA1 são o foco deste contencioso iniciado em 2002
2 e que até o momento não foi
concluído.
Cabe ressaltar que a partir da Rodada Uruguai (1986-1994), que da origem à OMC,
1 Segundo Habka (2010) os subsídios do governos dos EUA chegaram, em 2002, a U$ 6 bilhões
(1/4 do valor total da produção).
2 As consultas se iniciaram em 27/09/2002 e o painel foi estabelecido em 18/03/2003 (OLIVEIRA,
2010).
9
inicia-se um processo mais sólido de debates sobre restrições aos subsídios agrícolas
através do Acordo Sobre Subsídios e Medidas Compensatórias e do Acordo sobre
Agricultura. Com o advento da OMC é instaurado o chamado Entendimento de Solução
de Controvérsias no qual temos a institucionalização de um Sistema de Soluções de
Controvérsias que se baseia no consenso negativo (facilita a abertura de litígios), na
existência de um órgão de apelação e na possibilidade da participação de terceiros nos
contenciosos (OLIVEIRA,2010; LIMA,2008).
Além da ligação com a Rodada Doha, o contencioso, mesmo que de forma indireta,
se conecta com a criação, em 2004, do Subcomitê Sobre Algodão proposto por países
africanos3 e, portanto, acaba por contestar não um setor específico, mas a política agrícola
dos EUA como um todo.
A participação da sociedade civil dos dois países e de organizações civis
internacionais também é intensa. Oliveira (2007) destaca, além da Abrapa4 e do lobby
congressual norte-americano, a participação de organizações como Oxfam,
Environmental Working Group, Institute for Agriculture and Trade Policy, International
Cotton Advisory Committee, Action Aid .
O algodão se mostra como uma questão sensível tanto para as partes diretamente
envolvidas como para as indiretamente relacionadas. Este contencioso já dura 9 anos e
como afirma Lima (2008), ao tratar da dificuldade de resolução de contenciosos entre
EUA e União Europeia (UE):
os principais casos desse tipo ocorrem quando o nível de poder é similar e o
tema é sensível. Nesses casos, há uma tendência maior de que o
contencioso vá ao final do procedimento no SSC e que a adequação
seja lenta e problemática, quando houver (...) O contencioso do algodão
parece encaixar-se parcialmente no padrão de casos (...) nos quais os
Estados Unidos não se adequam, nem conseguem negociar uma solução.
É possível perceber a construção de um ambiente de interação capaz de servir de
espaço de aprendizagem para as partes envolvidas, assim como fica clara a necessidade
de adaptação comportamental no sentido de adequar-se às normas da OMC.
A organização, ao mesmo tempo em que promove adaptações de comportamento
3 Ver:http://www.wto.org/english/tratop_e/agric_e/cotton_subcommittee_e.htm. Acesso em:
10.06.2011.
4 Associação Brasileira de Produtores de Algodão.
10
também se ajusta às pressões destes, mesmo que de forma limitada, pois lida com a
reivindicação de um país em desenvolvimento e trata de um tema central nos debates
comerciais das últimas décadas (subsídios agrícolas). Contudo, isso não significa que as
desigualdades entre os atores esteja sendo resolvida, pois, como afirma Lima (2008), “a
reprodução da assimetria garante a adesão dos poderosos ao Sistema de Solução de
Controvérsias” e, deste modo, mantém o caráter universal da instituição.
Estes aspectos são vistos no caso do algodão quando a OMC, por um lado, adota
duas medidas inéditas, a primeira foi corroborar com a diplomacia brasileira que
apontava que a reivindicação do Brasil não violava a Cláusula de Paz (1995-2004)5 e a
segunda foi autorizar uma retaliação cruzada6 aos norte-americanos.
Por outro lado, o relatório de implementação da OMC, fase próxima a possibilidade
de retaliações, “concluiu, a despeito da acusação brasileira, que os dois programas [de
subsídios domésticos] não causaram grave prejuízo aos interesses brasileiros em termos
de desvio de comércio, isto é, não houve aumento do market share norte-americano em
decorrência das subvenções” (LIMA, 2008). Com esta postura o SSC, não inviabilizou as
pretensões brasileiras, mas concordou com os argumentos dos EUA que afirmaram ter
feito outras concessões e readequações de subsídios que tornaram a reivindicação
brasileira em torno destes dois programas invalidas. Assim, podemos observar a OMC
tanto como um ambiente de aprendizado dos negociadores do Brasil e dos EUA como um
ator que ajusta seus argumentos e comportamento para melhor se adaptar ao contexto
vigente e melhor influir nas negociações internacionais. Afinal, é fundamental à
instituição que o litígio tenha um andamento e um término a contento, pois caso contrário
sua credibilidade e legitimidade como principal instância do comércio mundial poderão
5 A Cláusula da Paz estabeleceu que, entre 1995 e 2004, os países signatários do Acordo Agrícola da
Rodada do Uruguai não poderiam “questionar nem aplicar medidas compensatórias aos subsídios agrícolas
doméstico ou de exportação (...), a não ser em condições específicas: para questionar os subsídios
domésticos distorcivos, era preciso demonstrar que eles foram concedidos em valores superiores aos níveis
de 1992; para os subsídios à exportação era preciso demonstrar que eles superavam os valores notificados à
OMC. O Brasil teve sucesso em ambas demonstrações”(LIMA, 2008). Com isso, vemos que os
negociadores brasileiro procuram agir dentro das normas da organização.
6 Segundo OLIVEIRA (2010), “ A retaliação cruzada permite o uso de medidas de suspensão de
concessões em bens, serviços e direitos que não aqueles aos quais o contencioso encontra-se vinculado”.
11
ser questionadas.
Ao longo de toda a controvérsia temos os extremos ou limites testados, ou seja,
tanto os EUA como Brasil, apesar da assimetria de poder, colocam constantemente em
pauta a questão de retaliar/contra-retaliar e/ou negociar. O Brasil reivindicou, com
sucesso, além da já referida não transgressão da Cláusula da Paz de seu pleito,
basicamente, os subsídios a exportação (garantia de crédito à exportação e Step 27) e os
apoios internos a produção e aos preços concedidos pelo governo dos EUA8.
A atuação do setor privado nacional para o início da controvérsia e para o
financiamento do painel foram fundamentais, tendo em vista o receio do Itamaraty em se
envolver em um terreno ainda não tão bem reconhecido (OLIVEIRA, 2007). Já no inicio
dos anos de 1990 o setor cotonicultor, via Grupo Maeda, importante produtor nacional de
algodão, levantou a questão e dois anos depois inicia uma ação antidumping e a outra de
direitos compensatórios (HABKA, 2010).
Jorge Maeda, ex-presidente da Abrapa e do grupo que leva seu sobrenome,
declarou que “eles não contavam ainda com uma adequada representatividade do setor,
além de não estarem devidamente amparados por bons profissionais; logo, a iniciativa
foi frustrada”9.
O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), principalmente, na
figura do seu secretário de produção e comercialização no governo Cardoso, Pedro
Camargo Neto, que acompanha o caso desde a época do Grupo Maeda, também foi
importante nos primórdios do caso devido ao temor inicial do Ministério da Relações
Exteriores (MRE) de romper “um bom padrão de relacionamento alcançado entre ambos
os países [Brasil e EUA] durante os anos 1990” e/ou ser derrotado no contencioso,
legitimando, assim, a política de subsídios dos EUA (OLIVEIRA, 2007).
7 O Step 2, chamado oficialmente de Upland Cotton User Marketing Certificates,foi criado na Farm Bill
de 1990 para incentivar a compra doméstica por processadores têxteis e para estimular a exportação de
algodão norte-americano quando o preço deste for maior do que o dos competidores estrangeiros” (LIMA,
2008).
8 Para um maior detalhamento sobre os subsídios norte-americanos questionados pelo Brasil
consultar: Lima (2008).
9 HABKA, Bruna D. O caso do algodão na OMC (2002-2010). Especialização em Relações
Internacionais. Brasília: UNB, 2010.
12
Em relação ao receio inicial do Itamaraty, Habka (2010) aponta uma fala simbólica
deste momento, proferida pelo então diplomata responsável pelo setor de contenciosos do
MRE, Roberto Azevêdo:
Do ponto de vista estratégico, havia a clara percepção de que o pior cenário
possível – pior ainda do que a inação – seria levar o caso à OMC e perder. Se
perdêssemos, estaríamos legitimando a política agrícola norte-americana,
porque, independentemente dos motivos de nossa eventual derrota, o discurso
norte-americano seria: 'Vocês estão reclamando dos nossos subsídios, mas foi
constatado na OMC que nossa lei agrícola não tem nenhum problema, não
temos de mudar nada'. Nós tínhamos, portanto, a devida preocupação com a
possibilidade de perder um caso que achávamos bom, mas que apresentava
várias incertezas10
.
Habka (2010) cita, ainda, um depoimento do então diretor-executivo da Abrapa,
Hélio Tollini, em relação a um encontro com o diplomata Roberto Azevêdo, que
demonstra a busca do Itamaraty em identificar o grau de interesse do setor privado por
esta questão:
Ele queria ter a segurança de que a Abrapa não iria esmorecer. A ação não
podia começar e, de repente, o setor decidir parar, por julgar que estava
custando caro. Ele lembrou que não seria bom, para o Brasil, começar e
desistir. Disse ainda que seria difícil para o Brasil dar a partida na causa
sem o apoio do setor, em termos de análise jurídica, legal e econômica.
Eles não têm gente para fazer todos os estudos e análises que seriam
necessários para termos sucesso. Naquele momento, a Abrapa comunicou
ao Roberto Azevêdo que iria até o fim. Essa era a decisão, levar a questão
adiante pelo menos até o fim do painel11
.
Segundo a Abrapa o setor cotonicultor despendeu mais de U$ 2 milhões no
processo (HABKA, 2010), o que demonstra o mecanismo de cálculo estratégico e o
processo de reforço transnacional por recompensa (Schimmelfennig, 2005), pois atores
não-governamentais com significativa capacidade de barganha exercem pressão sobre o
governo brasileiro no sentido de adaptar seu comportamento a fim de utilizar-se dos
mecanismos institucionais existentes. Se por um lado, o Estado brasileiro buscava obter
incentivos sociais ao questionar um ponto sensível do comércio mundial diante da
principal potência global, por outro, os produtores de algodão buscavam incentivos
materias para atender os seus interesses econômicos.
Após este distanciamento inicial, a diplomacia governamental se engaja e conduz o
processo. Oliveira (2007) afirma que o sucesso do Brasil está “(...) na capacidade de o
10
Ibid. 11
Ibid.
13
governo articular as agências públicas coordenadas pelo MRE bem como parceiros
internacionais e nacionais, sobretudo da sociedade civil, para a formulação e
implementação da política exterior (...)”. O Itamaraty procurou se respaldar dos possíveis
ataques norte-americanos caminhando dentro das regras da OMC, como vimos na
Cláusula de Paz, para isso, solicitou que a Abrapa contratasse um escritório de advocacia
especializado e reunisse provas que evidenciassem os subsídios e os prejuízos do setor12
.
A chancelaria brasileira ao longo do processo e mesmo após o concessão do direito
de retaliação tendeu a buscar uma solução negociada, aproveitando-se do aumento de sua
capacidade de barganha e também de argumentação, já que o respaldo da decisão obtida
na OMC garantiu, além da possibilidade de incentivos materiais positivos para a parte
vitoriosa, coerência argumentativa aos negociadores brasileiros no sentido de cobrar os
EUA para que ajustem seu comportamento às normas da instituição multilateral.
Antes da autorização de retaliação, isso fica evidente em dois momentos.
Primeiramente, em 21 de setembro de 2005, que foi o fim do prazo para os EUA
retirarem os subsídios que causam danos graves ao Brasil ou eliminar seus efeitos
adversos, porém os estadunidenses não se adequaram a contento e cabia ao Brasil a
possibilidade de dar entrada imediata em uma fase de implementação que iria
desembocar mais adiante em retaliações. O Itamaraty somente deu entrada no painel de
implementação em 28 de setembro de 2006, ou seja, depois de mais de um ano. O
segundo momento é logo após a circulação do relatório do Órgão de Apelação, em 2 de
junho de 2008, que autorizou as retaliações aos EUA. Logo após a autorização, em 25 de
agosto de 2008, o Brasil prossegue com o contencioso pedindo a formação de arbitragem
que estabeleça as formas e o valor das retaliações (OLIVEIRA, 2010).
No primeiro momento destacado, em 2005, os negociadores brasileiros se
declaravam abertos ao diálogo e argumentavam que as negociações internas da Farm Bill
de 2007 poderiam atender às suas reivindicações. Já no segundo momento, em 2008, a
chancelaria brasileira se mantém aberta ao diálogo, porém, em vista da lentidão norte-
americana demonstrada até então, aumenta suas pressões lastreadas no momento
12
Daniel Sumner, professor da Universidade da Califórnia e ex-secretário assistente do
Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA), foi contratado para fazer um modelo
econométrico que espaldasse as reivindicações brasileiras.
14
desfavorável a Rodada Doha e no apoio dado pelo Sistema de Solução de Controvérsias
ao litígio brasileiro.
Com a permissão de retaliação cruzada, obtida em 31 de agosto de 2009, o
Itamaraty divulga a adoção de um procedimento interno a fim de dar legitimidade e
credibilidade a este inédito tipo de retaliação13
. O Jornal Valor Econômico, de 11 de
fevereiro de 2010, destaca que tal processo interno “não trata especificamente dos EUA
ou do caso de algodão. [Ele] cria as condições legais para que o Brasil adote a chamada
'retaliação cruzada', atingindo interesses de empresas estrangeiras no campo dos direitos
de marcas, patentes e similares sempre que quiser punir países que, como os EUA,
desrespeitarem as regras da OMC”14
. O jornal também divulga um afirmação do então
chanceler Celso Amorim sobre a possibilidade de retaliação do Brasil:
O Brasil tem um caso na OMC que dura sete anos contra os subsídios ao
algodão nos EUA. Quando ganhamos na primeira instância, jornais americanos
disseram: „sabíamos que subsídios eram imorais, hoje sabemos que são
ilegais‟(...). O que o Brasil está fazendo é dando todos os passos internos para
poder aplicar essas retaliações (…). Mantemos a esperança de que, daqui até o
momento da aplicação das retaliações, surja uma proposta que nos convença
que há outra saída15
As ações envolvidas no mecanismo de barganha requerem um certo grau de
credibilidade por parte dos atores envolvidos na negociação, pois lida diretamente com
ameaças e possíveis recompensas (Zürn e Checkel, 2005). Assim, fica evidente a
preocupação brasileira em respalda internamente a permissão de retaliação cruzada com o
objetivo de persuadir os EUA a modificar o seu comportamento e negociar.
Apesar da declaração do embaixador norte-americano no Brasil, Thomas Shanon,
13
Em 11/02/2010 o governo brasileiro estabelece procedimentos a serem utilizados em caso de
suspensão de concessões na área de propriedade intelectual através da MP 482. Em fevereiro, MRE diz
estar aberto a negociações com os EUA para eventual acordo que evite a suspensão de concessões. Em
05/03/2010, a Camex/MDIC divulga lista de mercadorias objeto de suspensão de concessões assumidas
pelo Brasil em relação aos EUA no GATT 1994. Em março, o MRE sinaliza que o Brasil permanece aberto
ao diálogo com os EUA para que se facilite uma solução mutuamente satisfatória para o contencioso. E a
Camex/MDIC realiza chamada pública para definição de lista para suspensão de concessões em
propriedade intelectual (OLIVEIRA, 2010).
14 MP prevê retaliação em propriedade intelectual. Valor econômico. Brasília, 11.02.2010.
15 op. cit.
15
de que “retaliações sempre levam a contra-retaliações”16
os EUA interpretaram que era o
momento de ceder e negociar. Assim, no fim de março de 2010, Brasil e EUA fecharam
um acordo provisório para cancelar a possibilidade de retaliação para 201217
. Em relação
ao acordo, o embaixador Roberto Azevedo afirmou:
Não houve um recuo da nossa parte. (…) Nossa percepção é que a retaliação
não é o melhor resultado, mas sim um entendimento que leve à mudança e
compense o setor. (…) O Brasil não abre mão de aplicar as contra-medidas até
2012. Ambos os países podem denunciar o acordo a qualquer momento, caso
não haja cumprimento (…). Não sabemos responder se os americanos
continuarão engajados no processo se forem retaliados18
Esta declaração do embaixador Azevedo expõe a interpretação do MRE que
procura manter os EUA dialogando com o Brasil e, possivelmente, com isso, conseguir
ganhos para outros setores nacionais. Talvez o mecanismo de influência social
representado pelo painel e a Rodada Doha, conjuntamente, com assuntos internos, como
a questão da necessidade de fazer uma reforma estrutural fiscal nos EUA, gerem nos
negociadores do Brasil a percepção de que não retaliar, além de gerar os ganhos diretos
apontados também pode induzir os estadunidenses e cederem em outras esferas, o que
representaria um reforço intergovernamental por recompensa em virtude dos estímulos
positivos materiais e sociais, como colocado por Schimmelfennig (2005).
O Ex-secretário-geral da Unctad, Rubens Ricupero, aponta que o setor de carnes
pode se beneficiar com a suspensão da retaliação pois há “a promessa de reconhecer
Santa Catarina como livre de aftosa sem vacinação, o que possibilitaria a exportação de
carne suína aos EUA. É uma primeira brecha na muralha que até hoje impede o Brasil de
vender carnes ao mercado americano”19
. No dia 18 de junho de 2011, foi divulgado que
os EUA desistiram de apelar no Sistema de Solução de Controvérsias sobre a acusação
16
op. cit.
17 Segundo o acordo os EUA se comprometem a estabelecer um teto para as concessões de
subsídios, revisar semestralmente as garantias de exportação e financiar, com U$ 147,3 milhões anuais,
pesquisas para intensificar e qualificar a produção cotonicultora brasileira.
18 Pais suspende retaliação aos EUA até 2012. Folha de S.Paulo. São Paulo, 18.06.2010. Caderno
mercado.
19 RICUPERO, Rubens. É melhor negociar que retaliar. Folha de S.Paulo. São Paulo, 07.abril.2010.
Caderno Dinheiro.
16
brasileira de medidas anti-dumping contra o suco de laranja. O chanceler Antonio
Patriota afirmou “A decisão de não apelar torna a vitória brasileira definitiva e
consolidada. É uma vitória muito importante essa decisão do zeroing nas investigações
antidumping, que estava sendo questionada por vários países”20
. Além disso, no primeiro
semestre de 2011, o congresso americano vetou os subsídios ao etanol, alegando ajuste
fiscal, porém também sinaliza com cortes no financiamento de pesquisa para a
cotonicultura brasileira. Em relação a isso, o Ministro Patriota declarou: “(…) nossa
negociação é de Executivo com Executivo. Nós não negociamos com o Congresso
americano, evidentemente. Agora, a eventual suspensão dos pagamentos ao fundo do
algodão configurará um rompimento de um compromisso bilateral (...) Esperamos que
não chegue a esse ponto”.21
Esta declaração do atual chanceler brasileiro, além deixar claro a tática de
persuasão apelando para o cumprimento das normas internacionais, leva à tona uma
fundamental característica do processo decisório norte-americano que se mostra relevante
para compreendermos as possibilidades e contingências dos EUA neste aprendizado
social22
, qual seja, as limitações impostas aos negociadores estadunidenses pelo
legislativo e a força do lobby congressual.
Lima (2008) afirma que no contencioso há um relativo sucesso brasileiro em
induzir “um ator doméstico poderoso, o Executivo, em buscar deslocar o status quo,
em alguma medida, na direção liberalizante. Na verdade, em perspectiva histórica,
há uma certa tendência do Executivo em buscar diminuir o protecionismo, tanto
para minimizar os custos orçamentários quanto para utilizá-lo como elemento de
barganha em negociações internacionais”. Deste modo, os EUA de forma lenta e
incompleta se adaptam aos pareceres da OMC. Lima (2008) destaca dois aspectos para
20
EUA encerram briga da laranja na OMC. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 18.jun.2011. Caderno
Internacional.
21 op. cit.
22 O poder executivo estadunidense tem poderes limitados nas negociações internacionais,
basicamente, o executivo tem liberdade para ajustar medidas administrativas dependendo do legislativo
conceder autorizações de negociações e tendo que cumprir a chamada Farm Bill (editada a cada 5 anos).
Por sua vez, o legislativo sofre forte influência do lobby dos grupos de pressão que devido ao formato
eleitoral distrital fazem com que pequenos grupos tenham grande força política, como é o caso do setor do
algodão.
17
esta adequação, mesmo que parcial: “o Sistema de Solução de Controvérsias da OMC
permite que acusações e defesas sejam avaliadas por procedimentos, técnicas e
padrões aceitos, e grande parte moldados, pelos próprios Estados Unidos.(...); e este
sistema é peça fundamental do regime comercial representado pela OMC, o qual dá
sustentação ao sistema capitalista e dirime disputas que de outro modo poderiam levar
a tensões política mais sérias”.
No inicio das consultas, em 2002, os EUA ameaçavam retirar o Brasil do Sistema
Geral de Preferências23
, questão que em determinados momentos da controvérsia é
retomada pelos norte-americanos, porém, até hoje o Brasil não sofreu tal represália. Após
os Estados Unidos recorrerem ao órgão de apelação e perderem, o poder executivo, como
já dito, moveu-se para rever os subsídios, mesmo que lentamente. A maior adequação
estadunidense se deu com o subsídio à exportação denominado Step2, que foi
considerado proibitivo e na data limite dada pela OMC foi eliminado por completo. Lima
(2008) destaca que, além do parecer da OMC e dos compromissos assumidos na reunião
Ministerial de Hong Kong, tal fato foi possível por se tratar de um subsídio específico ao
algodão, não prejudicando outros grupos de interesse e, também, porque “os trabalhos
não foram concentrados nos Comitês de Agricultura da Câmara e do Senado, nem
considerados sob a lógica da política agrícola. O mais adequado para o congressista
passou a ser não a proteção do setor agrícola, mas sim a do bom manejo dos recursos
federais para a redução do déficit orçamentário”. O autor aponta ainda que “Leis
agrícolas e emendas podem ser votadas nos intervalos de reedição da Farm Bill,
mas não é comum alterar programas estruturais fora de época [como foi o caso do
Step2]. Nas palavras de Woods Eastland, presidente do [National Cotton Council of
America] NCC, a 'decisão de eliminar completamente um programa agrícola norte-
americano no meio de uma Farm Bill é virtualmente sem precedentes'”. Os programas
de crédito à exportação, outro tipo de subsídio considerado proibitivo, foi eliminado
parcialmente, com certa pressão do executivo. Já os subsídios domésticos, como vimos
acima, não foram modificados ou banidos e contaram, em certa medida, com a
compreensão do Sistema de Solução de Controvércias, mesmo declarando que tais
23
Este sistema, segundo Oliveira (2010), abrange acerca de 10% do total exportado pelo Brasil para
os EUA em 2009.
18
aportes geram graves prejuízos ao Brasil.
Um aspecto importante é que os subsídios não eliminados sustentam múltiplas
commodity agrícolas sejam elas de alto valor agregado ou não. Deste modo:
a decisão do painel extrapola o alvo inicial, o algodão, atingindo uma
política pública agrícola de alcance nacional e diversificado (…). O
contencioso do algodão tornou-se mais do que um desafio a um produto
subsidiado específico para ser um questionamento de políticas públicas
agrícolas de alcance nacional. (...) [Assim] para que haja adequação efetiva, é
preciso que o Legislativo norte-americano modifique a Farm Bill, considerada
uma das esferas políticas mais paroquialistas daquele país (LIMA, 2008).
O Brasil e a Coalizão G-20
A participação do Brasil na Rodada Doha através da coalizão G-20 foi escolhido
como caso a ser revisto por demonstrar a importância do ambiente negociador da OMC
enquanto espaço de aprendizado que foi sendo consolidado ao longo do tempo. Se no
caso do algodão é possível perceber o início desse processo, no caso do G20 é possível
visualizar um ambiente de interação mais maduro. A convergência de expectativas quanto
ao comportamento dos atores apresenta-se mais consolidada e o uso da persuasão por
parte dos negociadores brasileiros, enquanto instrumento importante para a manutenção
da coalizão e da estrutura de incentivos disponíveis na OMC é intensificado. O aumento
da capacidade de barganha dos negociadores brasileiros depende, fundamentalmente, da
manutenção e do uso dos canais institucionais de influência social que a OMC propicia.
Desta forma, o G-20 assume um papel importante para que isso seja possível.
A formação oficial do G-20, na fase final de preparação da Reunião Ministerial de
Cancún da OMC, de setembro de 2003, foi uma resposta imediata à proposta de
negociação agrícola, estruturada e pré-determinada pelos Estados Unidos e União
Européia. A aceitação do documento, por parte do uruguaio Carlos Perez de Castillo,
então presidente do Conselho Geral da OMC, como documento framework, para as
negociações, foi o estopim para o alinhamento dos países em desenvolvimento em torno
do G-20. Essa proposta era pouco ambiciosa, quanto às metas de liberalização e acesso a
mercados agrícolas.
O G-20 está ligado à idéia da ampliação da influência dos países em
19
desenvolvimento no processo decisório da OMC, e da busca de redução dos subsídios e
maior acesso aos mercados agrícolas dos países desenvolvidos. Na avaliação do Ministro
Celso Amorim24
: “a conferência de Cancún marca um ponto de inflexão na dinâmica
interna da OMC – onde, tradicionalmente, o que era decidido pelas grandes potências
comerciais era visto como o consenso inevitável. Graças a um esforço conjunto de 22
países em desenvolvimento, coordenados pelo Brasil, do qual participaram países grandes
e pequenos de três continentes, as postulações da maior parte da humanidade não
puderam ser ignoradas”. Desde o seu surgimento, a coalizão não se opunha à OMC. A
coalizão se opunha ao rumo que estava sendo dado à Rodada Doha e buscava manter o
objetivo (presente no mandato negociador) de tratar da questão do desenvolvimento
enfatizando a necessidade de eliminação dos subsídios à exportação e maior acesso ao
mercado agrícola dos países desenvolvidos.
Deste ponto de vista, podemos dizer que a atuação brasileira junto ao G-20, no
momento da sua criação, se fundamenta em argumentos que apelam para os aspectos
centrais formalmente proclamados pela OMC. As normas da instituição são colocadas
como parâmetro a ser seguido por seus membros e uma mudança nos objetivos
previamente estabelecidos para a Rodada Doha, a “Rodada do Desenvolvimento”, seriam
vistos não como uma adaptação organizacional frente às preferências dos seus membros,
mas como uma distorção dos fundamentos da própria OMC.
De acordo com comunicado do Grupo “the negoatiations on agriculture are
central to move the Doha Round to a sucessful and timely conclusion. Trade in
agricultural products continues to be hindered by all sorts of barriers and distortions. True
liberalization in agricultural trade and reform that address these barriers and distortions
would be a major contribution to the development objectives of the Round25
”.
O fortalecimento da coalizão ao longo do tempo pode ser explicado: a) pela
importância dos seus membros na produção e no conjunto do comércio agrícola,
representando quase 60% da população mundial, 70% da população rural do mundo e
26% das exportações agrícolas internacionais, b) por sua capacidade de traduzir os
24
Discurso do Ministro Celso Amorim, “Dia do Diplomata”. Brasília, 18 de setembro de 2003.
25 G-20 Ministerial Communiqué Brasília, 12 December, 2003.
20
interesses dos países em desenvolvimento em propostas concretas e consistentes c) por
sua habilidade em coordenar seus membros e interagir26
com outros grupos e coalizões
presentes na OMC. Além disso, cabe destacar que a participação dos membros da
coalizão na produção mundial das dez principais commodities agrícolas é maior que a da
UE e dos EUA juntos. Em arroz, o G-20 responde por 72% da produção mundial; em
tabaco, representa 70%; em soja, 62%; em açúcar, detém uma participação de 61%. O G-
20 produz 56% da carne suína no mundo, e em algodão, a participação é de 54%. E ainda
é responsável por 47% do café produzido no planeta e pela produção de 43% da carne de
frango e 40% da carne bovina27
.
Na dinâmica de construção da sua identidade perante os demais atores da
negociação o G-20 procurou apresentar a sua demanda o mais próximo possível das
normas da organização onde a negociação se processa. O embaixador Roberto Azevedo28
,
então subsecretário de Assuntos Econômicos e Tecnológicos do Itamaraty, afirmou que
“O G-20 procura que essa Rodada faça jus ao nome “Rodada do Desenvolvimento”. Quer
que os países ricos parem de distorcer o comércio agrícola. Não é justo que um agricultor
de um país em desenvolvimento esteja competindo com o Tesouro de um país rico. Quer
que o protecionismo deixe de ter barreiras intransponíveis, para que eles tenham
capacidade de acesso a mercados. E em bens indústrias e em serviços querem resultados
equilibrados. Estão dispostos a liberalizar ai também e querem ver liberalização em
muitos bens industriais nos países ricos. A Índia, por exemplo, quer concessões para
entrar com seus serviços em países industrializados.”
Após a Reunião Ministerial de Cancun, o G-20 foi gradualmente recebendo
26
É interessante notar esse esforço de intercâmbio de informações e propostas com outras coalizões.
No encontro do G-20, no Rio de Janeiro entre os dias 9 e 19 de setembro de 2005, além dos ministros dos
países membros do G-20 também estavam presentes representantes do G-33, do grupo das economias
menores e mais vulneráveis (SVE), do bloco dos países menos desenvolvidos (LDC), dos países do ACP e
o grupo dos produtores de algodão.
27 Dados retirados do Instituto de Comércio e Negociações Internacionais, ICONE site:
www.iconebrasil.org.br, consultado em 05/09/08.
28 Entrevista à Folha de São Paulo 05/02/2007
21
reconhecimento internacional. A participação do Brasil e da Índia no “Non-Group” of 5
que teve papel decisivo na configuração do acordo quadro de julho de 2004 e é uma
prova concreta do peso do G-20 (Baracuhy, 2011). Parte desse reconhecimento se deve à
capacidade que o grupo demonstrou de apresentar uma postura coesa em relação às
negociações agrícolas, deve-se também ao fato de a coalizão, em diferentes momentos do
processo negociador, ligar as propostas do grupo com os princípios e questões
norteadoras da Rodada Doha. A atuação do Brasil no G-20 buscou utilizar os princípios
da OMC, como a noção de livre-comércio, de forma a acoplar a demanda da coalizão G-
20 aos objetivos gerais da organização onde a negociação ocorre. Isso não quer dizer que
a preferência brasileira seja sempre pela liberalização comercial, mas, uma vez que o
ambiente social onde a negociação ocorre é fortemente permeado por essa noção, busca-
se utilizá-la em benefício próprio enquanto argumento central que sustenta o processo de
persuasão.
Já no primeiro comunicado do Grupo, de 9 de setembro de 2003, essa idéia já ficava
clara: “there is an undeniable link between agriculture and development. Most of the poor
people in the developing countries live in rural areas. In order to translate the Doha
Development Agenda into reality, agriculture should be fully incorporated into the rules
of the multilateral trading system with a view to eliminating the distortions prevailing in
agricultural trade and production29
”.
Com a formação do G-20, a estratégia brasileira buscou contrastar os interesses
comerciais dos países ricos e atingir maior equilíbrio nas negociações. Equilibrou a
atenção aos interesses dos países em desenvolvimento com forte agronegócio como
Brasil e Argentina, aos com agricultura familiar de subsistência, como Índia e China. A
articulação da coalizão e o papel de destaque no grupo colocaram o Brasil no núcleo
decisório da OMC. O então Ministro das Relações Exteriores do governo Lula da Silva,
Celso Amorim, afirmou: “Diria sem falsa modéstia que o Brasil mudou a dinâmica das
negociações da OMC. Não foi o Brasil sozinho. Mas o Brasil lidera o G-20 e é procurado
– e diria que quase cortejado – por Estados Unidos, União Européia e Japão, entre outros
países” (Gazeta Mercantil, 19/10/2006).
29
G-20 Ministerial Communiqué Cancún, 9 September 2003.
22
Podemos afirmar, portanto, que o G-20 permitiu a criação de canais adicionais de
influência social no ambiente de interação multilateral, aumentando a capacidade de
barganha dos seus membros no sentido de cobrar dos países desenvolvidos um
comportamento adequado ao mandato da Rodada Doha.
Diferentemente das coalizões anteriores, que contavam com a participação dos
países em desenvolvimento, o G-20 não apresentava uma agenda de veto e, sim, uma
agenda pró-ativa, integrativa, que ficou caracterizada nas suas propostas substantivas que
incorporavam o espírito do ambiente social da negociação. Essa questão é relevante, pois,
a estrutura onde a negociação ocorre conta com mecanismos institucionais em torno do
valor de se negociar. O grupo, em todos os momentos, se apresentou como uma coalizão
que tinha a lógica da negociação como um elemento fundante da sua ação. Uma
declaração do Grupo indica que “G-20 Ministers called on all WTO members to approach
upcoming negoatiations with an open spirit and readiness to reach consensus that will
pave the way for an effective liberalization of agricultural trade capable of reflecting the
needs and sensitivities of developing countries and the interests of the international
community as a whole30
”.
Narlikar e Tussie (2004) entendem que o sucesso do G-20 está relacionado a uma
experiência passada dos países em desenvolvimento com coalizões e processos de
negociações na esfera da OMC. A gênese do G-20, na percepção das autoras, estaria mais
diretamente ligada a um processo de adaptação social dos países em desenvolvimento,
com os procedimentos e métodos das negociações no âmbito da OMC. Exemplos desse
aprendizado seriam as propostas concretas e estruturadas apresentadas pelo Grupo, que
em nada lembrariam as estratégias anteriores de negociação dos países em
desenvolvimento, que, na visão das autoras, eram pautadas, ora pelo imobilismo, ora pela
tendência ao bloqueio. As autoras sugerem que o G-20 decorre de quase duas décadas de
aprendizado dos países em desenvolvimento.
Antes do surgimento do G-20 comercial, Brasil, África do Sul, Índia e China não
atuavam em conjunto nas negociações agrícolas. Mas, a partir de meados de 2003,
quando os negociadores brasileiros perceberam que havia a possibilidade da Índia aceitar
a forma como a UE sugeria o direcionamento da negociação, houve um amplo esforço do
30
G-20 Ministerial Communiqué Brasília, 12 December, 2003.
23
Brasil no sentido de trazer a Índia para o seu lado da negociação. Ao atuar conjuntamente
com países que não tinham interesses ofensivos nas negociações agrícolas o Brasil teve
que relativizar parte de suas propostas. A Índia, por exemplo, não se propõe a abrir o seu
mercado agrícola e, por isso, defende o direito dos países em desenvolvimento não
assumirem compromissos de redução tarifária ou de ajuda interna31
, China e África do
Sul têm posições similares. Por conta disso, no G-20, o Brasil buscou aproximar-se da
perspectiva original da Índia, que solicitava atenção especial para a questão da segurança
alimentar e tratamento especial e diferenciado. Para manter a coalizão, fazia-se necessária
a defesa de instrumentos como salvaguardas e a definição de produtos especiais para
países em desenvolvimento. De acordo com Celso Amorim (2004) “o G-20 está
igualmente comprometido a apoiar os conceitos de produtos especiais e o mecanismo
especial de salvaguardas. Esses conceitos foram reafirmados na proposta recentemente
circulada pelo G-20 sobre acesso a mercados agrícolas”.
Mas, a posição efetiva do Brasil, desde antes da Conferência da Cancun, de
setembro de 2003, sobre o tema de tratamento especial e diferenciado e salvaguardas
especiais para países em desenvolvimento era que “o Brasil manteria postura equilibrada
a esse respeito, assinalando apenas a conveniência de que a salvaguarda especial
funcionasse como um estímulo à liberalização, associada, portanto, à redução tarifária
dos produtos cobertos”32
. Esta parece ter sido, inclusive, a posição do país cinco anos
depois, na reunião ministerial de julho de 2008, já num estágio final da negociação,
quando o G-20 não apresentou proposta conjunta sobre o tema, e o Brasil não aderiu à
proposta da Índia, da China e da Indonésia e aceitou um acordo que não previa as
31
G/AG/NG/W/114
32 Telegramas 650 e 651 de Delbrasgen para Exteriores de 26/03/2003. Telegrama 670 de
Delbrasgen para Exteriores 27/03/2003. A percepção brasileira durante o estágio intermediário da
negociação era que não se podia ignorar, em particular, o risco de desviar o debate sobre a reforma agrícola
do eixo Norte – Sul, onde se concentrariam as questões centrais e suscetíveis de propiciar maiores ganhos,
nos três pilares da negociação, para um acirramento de divergências Sul – Sul, entre países em
desenvolvimento “exportadores” e “defensivos”, que só prejudicaria os interesses maiores de reforma das
regras da agricultura.
24
proteções demandadas pelos indianos. Carvalho (2010) argumenta que os interesses
domésticos dos membros do G-20, na reunião de julho de 2008, foram mais fortes que as
motivações iniciais que levaram à formação da coalizão. Na visão da autora as posições
do Brasil em julho de 2008, quando o país aceitou as propostas da OMC como base das
negociações, foram resultados de dois fatores: os constrangimentos domésticos e as ideias
realistas da política externa que ajudaram a justificar a decisão do abandono da
“solidariedade” ao G-20. Nas negociações internacionais as possibilidades oferecidas por
algumas afinidades entre os países parecem encontrar limites lógicos, sobretudo nos
momentos decisivos ou críticos, nos interesses políticos e econômicos de atores
domésticos relevantes. As afinidades abrem alguns caminhos, promovem certa
compreensão, mas não superam o papel dos interesses. O então Ministro Celso Amorim
argumentou que “esse grupo (o G-20) não era um fim em si mesmo. O objetivo é a
conclusão da Rodada33
”.
A construção de coalizões na OMC é uma forma de realizar interesses e de definir
padrões de relacionamentos com países nas negociações. No momento em que havia uma
chance concreta de encerramento da Rodada Doha, onde as ameaças aos interesses
brasileiros que estimularam a formação da coalizão não estavam mais presentes e o
acordo que estava sobre a mesa era entendido como favorável às preferências do país,
tendo o Brasil e o G-20 contribuído, significativamente, na sua configuração optou-se por
ter uma posição que, para determinados analistas e observadores, foi entendida como de
não solidariedade ao G-20. Ou seja, na reunião ministerial de Genebra de julho de 2008, a
percepção brasileira era que a atuação em conjunto, sobretudo, com a Índia e com a
China, no caso das negociações agrícolas, importante para a manutenção do G-20, já teria
cumprido o seu objetivo. O que não equivale a dizer que os esforços buscando maior
aproximação com os países asiáticos em outros temas e agendas da política externa
tenham se arrefecido, mesmo o fato de serem considerados aliados estratégicos. Na
OMC, a atuação em conjunto quando os interesses não são totalmente convergentes é
possível principalmente nos estágios iniciais e intermediários da negociação. Nas fases
finais, de assinatura de compromissos, os países tendem a seguir mais diretamente as suas
33
O Estado de São Paulo (27/07/2008) “Argentina não se dobra a Amorim”.
25
preferências ótimas e as demandas dos seus atores domésticos. Isso tem relação com a
atuação de coalizões. Nas fases finais da negociação se torna mais difícil atuar em
conjunto com os parceiros.
A experiência de negociação no caso do contencioso do algodão demonstrou que
é possível obter incentivos positivos que levam à adaptação comportamental em direção à
incorporação de normas promovidas pelas instituições internacionais. Da mesma forma, a
experiência do G-20 nos indica claramente que incentivos sociais foram alcançados,
principalmente o aumento do poder de barganha dentro da instituição e o reconhecimento
por parte da comunidade internacional de que o Brasil é um ator relevante. A proposta
para se chegar a um acordo na Rodada Doha sinalizava com incentivos materiais e,
simultaneamente, com a manutenção dos incentivos sociais já obtidos, estando de acordo,
mais uma vez, com a idéia de reforço intergovernamental por recompensas colocada por
Schimmelfennig (2005). O aumento da capacidade de barganha, desta vez, seria oriundo
da institucionalização de um acordo no âmbito da OMC e não mais fundamentado na
manutenção da coalizão, o que explicaria a aceitação, por parte dos negociadores
brasileiros, da relativa perda de credibilidade para com os demais membros do G-20.
De certa forma, com acordo ou sem acordo, o fato é que o Brasil teve seu poder
de barganha ampliado e, hoje, é um dos países com poder de veto na OMC e está presente
em todas as reuniões do green room (NARLIKAR, 2010). Portanto, sai fortalecida a
escolha do multilateralismo comercial como instância estratégica de definição das
posições do país nas negociações comerciais internacionais. A construção de parcerias
estratégicas com outros países emergentes, viabilizando a formação de coalizões com
densidade política e econômica é um dos elementos que, impulsionado por um contexto
internacional em transformação, viabilizou o objetivo de “ser parte ativa da produção de
regras, isto é, das estruturas hegemônicas do capitalismo” (CERVO, 2008:103).
Conclusão
O caso do contencioso do algodão demonstrou que mudar o comportamento de um
ator tão poderoso como os EUA é uma tarefa monumental. Mesmo havendo mecanismos
institucionais claramente delimitados e tratando de questões que indicam clara distorção
do comércio mundial.
26
Vale ressaltar que o Estado brasileiro, desde a formação da OMC, iniciou 25 casos
como reclamante, sendo um dos países em desenvolvimento com maior destaque no
Sistema de Solução de Controvérsias. Destes casos 10 tem os EUA como demandado.
Além disso, dos 424 casos abertos no SSC somente em 4 deles os relatórios dos painéis
autorizaram retaliações, sendo o Brasil demandante em três deles (caso das aeronaves, da
emenda Byrd34
e do algodão)35
.
Essa experiência permitiu a construção de um ambiente de aprendizado para ações
mais ambiciosas e a atuação do Brasil na construção e manutenção do G-20 parece
demonstrar isso.
Verificou-se também uma tendência de valorização do ato de negociar, mesmo em
situações de desvantagem. No entanto, os dados empíricos indicam que valores fundantes
da organização, como a idéia de que o livre-comércio promove o desenvolvimento e que
justificam a própria existência da OMC perante a comunidade internacional, são tomados
por seus membros essencialmente como elemento de persuasão que objetiva a melhoria
das condições de barganha. O foco no mecanismo de cálculo estratégico nos permitiu
compreender como esse tipo de argumento é instrumentalizado a fim de criar canais de
influência social e, portanto, resulta na adaptação de comportamento condicionada à
obtenção de incentivos, sejam materiais ou sociais,
O comportamento brasileiro nos dois casos estudados indica a tentativa de testar os
limites institucionais da OMC e expor as preferências dos atores no ambiente de
interação.
Ao fazer isso, o Brasil adapta seu comportamento às normas e em troca procura
obter recompensas. Como conseqüência, acaba estimulando o processo de legitimação de
34
A emenda Byrd foi feita pelo governo norte-americano e “destinava os recursos provenientes da
cobrança de tarifas anti-dumping e de medidas compensatórias às empresas [estadunidenses] que haviam
solicitado investigação de práticas desleais de comércio” por parte de produtores estrangeiros (LIMA,
2008). O contencioso que questionou esta emenda dos EUA foi feito em conjunto por: Austrália, Brasil,
Chile, Coreia do Sul, Índia, Indonésia, Japão, União Europeia (UE) e Tailândia. Com a autorização do SSC
alguns países deste grupo, Japão, México, Canadá e UE retaliaram os EUA.
35 Todos os dados citados foram coletados no sitio da OMC:
http://www.wto.org/english/thewto_e/countries_e/brazil_e.htm e
http://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/dispu_current_status_e.htm. Acesso em 10.06.2011.
27
determinados dispositivos institucionais desta organização internacional, como é o caso
do Sistema de Solução de Controvérsias.
Sendo assim, o desafio está em saber se este tipo de legitimação é suficiente para
que os seus membros, ao modificarem seu comportamento, internalizem normas da
organização que transcenda a lógica orientada pela obtenção de recompensas e, portanto,
iniciando um processo mais profundo de socialização/internalização.
28
Referências
BARACUHY, Braz. Rising powers, Reforming Challenges: negotiating agriculture in the
WTO Doha Round from a Brazilian perspective. Working Paper no. 1, Centre for Rising
Powers. University of Cambridge, 2011.
CARVALHO, Maria Izabel Valladão de. Condicionantes internacionais e domésticos: O
Brasil e o G-20 nas negociações agrícolas da Rodada Doha. Dados, Rio de Janeiro, v.
53, n. 2, 2010.
CERVO, Amado L. Inserção Internacional: formação dos conceitos brasileiros. São
Paulo, Editora Saraiva, 2008.
CHECKEL, Jeffrey. International Institutions and Socialization in Europe: Introduction
and Framework. International Organization, vol. 59, no. 4, 2005, pp. 801-826.
CHECKEL. Jeffrey. It‟s the process stupid! Tracing causal mechanisms in European and
International Politics. In: KLOTZ, Audie (ed). Qualitative Methods in International
Relations. (NY: Palgrave Macmillan), 2007.
HABKA, Bruna D. O caso do algodão na OMC (2002-2010). Especialização em
Relações Internacionais. Brasília: UNB, 2010.
LIMA, Thiago. Desafios internacionais à política agrícola dos Estados Unidos:
O contencioso do algodão e o CAFTA-DR. Dissertação de Mestrado. São Paulo:
Programa San Tiago Dantas de Pós-Graduação em Relações Internacionais (Unesp,
Unicamp, Puc-SP), 2008.
NARLIKAR, Amrita. International Trade and Developing Countries: bargaining
coalitions in the GATT & WTO. London: Routledge, 2003.
NARLIKAR, Amrita; TUSSIE, Diana. Bargaining together in Cancún: developing
countries and their evolving coalitions. The World Economy, vol. 27, no. 7, 2004.
NARLIKAR, Amrita. New powers: how to become one and how to manage them.
Columbia University Press, 2010.
OLIVEIRA, Ivan T. M. A atuação do Brasil no sistema desolução de controvésias da
OMC: o caso do contencioso do algodão contra os EUA. Boletim de economia e política
29
internacional. Brasília, nº2, 2010.
OLIVEIRA, Marcelo F. Multilateralismo, Democracia e Política Externa no Brasil:
contenciosos das patentes e do algodão na Organização Mundial do Comércio (OMC).
Contexto Internacional. Rio de Janeiro, vol. 29, nº1, 2007.
SCHIMMELFENNIG, Frank. Strategic Calculation and International Socialization:
Membership Incentives, Party Constellations, and Sustained Compliance in Central and
Eastern Europe. International Organization, vol. 59, 2005, pp. 827-860.
ZURN, Michael; CHECKEL, Jeffrey. Getting Socialized to Build Bridges:
Constructivism and Rationalism, Europe and the Nation – State. International
Organization, vol. 59, 2005, pp. 1045-1079.