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07/05/2015 O Brasil virou o país do fanatismo? - Galileu | Revista chrome-extension://iooicodkiihhpojmmeghjclgihfjdjhj/front/in_isolation/reformat.html 1/14 O Brasil virou o país do fanatismo? 2014, CURITIBA: Segundo pesquisas, apenas 7% das pessoas que fazem parte de uma torcida organizada participam de conflitos violentos no futebol (Foto: Heuler Andrey/ AGIF) s eleições presidenciais acabaram em outubro, com a legítima eleição da presidente Dilma Rousseff. Desde o começo do ano, à medida que cada vez mais pessoas aprenderam a escrever “impeachment”, a reação dos partidários de ambos os lados ganhou contornos ainda mais radicais. Em meados de março, duas manifestações tomaram conta das ruas das principais cidades brasileiras: uma a favor do governo, e a outra, maior em número, contra. Os protestos não registraram confusões, mas foram palco de cenas preocupantes: faixas com a suástica nazista pedindo a volta da ditadura militar em plena avenida Paulista, pessoas hostilizando jornalistas ideologicamente contrários ao movimento e acusações de golpismo para quem é contra o

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O Brasil Fanático

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    O Brasil virou o pas do fanatismo?

    2014, CURITIBA: Segundo pesquisas, apenas 7% das pessoas que fazem parte de umatorcida organizada participam de conflitos violentos no futebol (Foto: Heuler Andrey/AGIF)

    s eleies presidenciais acabaram em outubro, com a legtima eleio da presidenteDilma Rousseff.

    Desde o comeo do ano, medida que cada vez mais pessoas aprenderam a escreverimpeachment, a reao dos partidrios de ambos os lados ganhou contornos aindamais radicais. Em meados de maro, duas manifestaes tomaram conta das ruas dasprincipais cidades brasileiras: uma a favor do governo, e a outra, maior em nmero,contra. Os protestos no registraram confuses, mas foram palco de cenaspreocupantes: faixas com a sustica nazista pedindo a volta da ditadura militarem plena avenida Paulista, pessoas hostilizando jornalistas ideologicamentecontrrios ao movimento e acusaes de golpismo para quem contra o

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    governo.

    Durante os pronunciamentos da presidente e de dois de seus ministros na televiso,milhares de pessoas saram na janela de casa para promover um panelao obarulho foi to alto que abafou qualquer possibilidade de ao menos tentar ouvir o quediziam. Nada contra manifestaes, claro. O problema que, ao ignorar opiniescontrrias, as pessoas tendem a aderir cegamente a uma posio, doutrina ousistema e a caminhar numa direo perigosa: a do fanatismo.

    H alguns anos a cincia tenta explicar por que, afinal, to fcil alinhar-se a umconjunto de pessoas que encontrou um Judas particular e culp-lo por todo o caos douniverso. Uma prova disso o paradigma dos grupos mnimos, elaborado nos anos1970 pelo psiclogo Henri Tajfel, da Universidade de Bristol, na Inglaterra. Ao seremaleatoriamente agrupados de acordo com critrios irrelevantes, como o pintorfavorito, os participantes do experimento criaram forte ligao entre aqueles quedividiam a mesma turma, exaltando suas qualidades e hostilizando os rivais. Ao finaldo experimento, formou-se o ns contra eles ser que algum a ouviu algoparecido com isso no que ficou convencionado chamar de protestos de maro?

    Ainda no sculo 19, o pensador francs Gustave le Bon j havia atentado para ocomportamento bizarro das pessoas ao se unirem em grupos, formando uma espciede mentalidade nica irracional ou o que o escritor Nelson Rodrigues chamaria deunanimidade burra. Na obra Psicologia das multides (WMF Martins Fontes), de1895, Le Bon escreveu: Nas grandes multides, acumula-se a estupidez, em vez dainteligncia. Na mentalidade coletiva, as aptides intelectuais dos indivduos e,consequentemente, suas personalidades se enfraquecem. como se, ao se unir aosseus pares, as pessoas deixassem de usar a razo e passassem a deixar a emootomar conta, tornando-se presas fceis de manipuladores. Segundo o historiadorJaime Pinsky, autor do livro Faces do fanatismo (Contexto), o grande perigo dasdevoes extremas a convico inabalvel. A certeza da verdade do fantico no resultante de uma reflexo ou de uma deduo intelectual, diz o escritor.

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    1936, BERLIM: alemes realizam a tpica saudao nazista para receber o lder adolfhitler durante os jogos olmpicos realizados na cidade (Foto: Bettmann/CORBIS)

    A isso se junta o experimento do psiclogo Philip Zimbardo, da UniversidadeStanford. H mais de 40 anos, ele resolveu simular o comportamento dentro de umapriso, atribuindo aleatoriamente o papel de guardas e prisioneiros a estudantes.No entanto, o que deveria seguir por duas semanas durou apenas seis dias. Ningumali era Meryl Streep, mas os participantes do estudo interpretaram to bem seuspapis que os guardas se revelaram verdadeiros sdicos, humilhando e causandotraumas entre os prisioneiros. Em grupo somos capazes de realizar aes queindividualmente no seramos, diz Ligia Mendona, participante do convnio dolaboratrio de psicopatologia clnica e psicanlise da Universidade de Toulouse.

    Alm de inspirar o filme The Stanford Prison Experiment (O experimento da prisode Stanford, em traduo livre), lanado em janeiro nos Estados Unidos, o estudo deZimbardo tambm ajudou na formulao da teoria da identidade social, dospsiclogos John Turner e Henri Tajfel o mesmo dos grupos mnimos. Segundo aideia, quanto mais inserido em um conjunto, mais o participante acata seus valores.Quando uma pessoa pertence convictamente a um grupo, ela adquire uma identidadesocial: valores, objetivos, memrias etc. Essa identidade contrape o participante aosque no fazem parte do seu grupo, diz o psiclogo Geraldo Jos de Paiva, daUniversidade de So Paulo.

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    Seja um cicloativista que v um inimigo em qualquer objeto de quatro rodas, umextremista religioso que no concorda com a linha editorial de um jornal francs emata os responsveis, um torcedor de um time que no consegue conviver comalgum vestindo a camisa do time adversrio ou um f da Apple que olha com desdmpara qualquer aparelho Android, a no aceitao de ideias diferentes e a cegueiracausada pela crena absoluta em verdades reveladas ainda insistem em aparecer nasmais diferentes esferas da sociedade, ameaando a liberdade e o conceito bsico dedemocracia.

    2014, SRIA: com discurso religioso, os extremistas do Estado Islmico tornaram-seum dos grupos mais violentos da atualidade (Foto: Medyan Dairieh/ZUMA Wire)

    Como explicar que a nao de Johann Wolfgang Goethe, Ludwig van Beethoven eAlbert Einstein tambm tenha se tornado o local onde se realizou uma das maioresatrocidades da histria? Para especialistas, o fenmeno nazista na Alemanha vaialm da ideia de um aparente surto psictico coletivo. Um lder carismticocomo Hitler, que promete felicidade a qualquer preo, passa a ser uma figura sedutorapara uma massa desacreditada que vive o desemprego, a fome e a escassez dealimentos, afirma Ana Maria Dietrich, professora do programa de ps-graduao daUniversidade Federal do ABC. Em momentos de crise, tende-se a eleger um lder etambm a escolher bodes expiatrios.

    Quando Hitler chegou ao poder, em 1933, a Alemanha passava por um momento de

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    instabilidade poltica e econmica: as lembranas da derrota na Primeira GuerraMundial ainda eram muito recentes e se refletiam em diferentes problemas, comodesemprego, inflao e fragilidade do sistema poltico. A ascenso de um lder capazde resgatar o sentimento de orgulho alemo e conclamar a revanche pelashumilhaes sofridas no conflito mundial teve alta aceitao entre as massas. Sfaltava encontrar um inimigo comum e responsabiliz-lo. Spoiler para quem noviveu na Terra nos ltimos 80 anos: os judeus foram os escolhidos, assim comooutras minorias, como negros e homossexuais.

    Para dar conta das aspiraes nazistas, criou-se uma verdadeira indstria da morte,comandada por homens como Adolf Eichmann, que foi capturado em Buenos Airesem 1960. No livro Eichmann em Jerusalm (Companhia das Letras), a filsofa polticaHannah Arendt conta a histria do julgamento do oficial, e o descreve no como ummanaco assassino, mas como um burocrata a servio do partido, que tinhaobrigao de obedecer ordens. Quem disser que este o conceito do termobanalidade do mal, cunhado pela autora, ganha pontos no vestibular da vida.

    Vemos o ser humano que j perdeu todos os laos de solidariedade. Isolado e semconscincia de classe ou de famlia, ele se torna um nmero na massa e capaz deperpetrar as maiores atrocidades como quem carimba um papel, afirma Ana MariaDietrich. O extremismo poltico no respeita as contradies do jogo democrtico erejeita a ideia de saber lidar com o outro. No caso do nazismo, a lei de que s o ldertinha razo e os judeus eram os culpados de todas as mazelas fazia que as reflexessobre os problemas perdessem o sentido, completa.

    Apesar de parecerem historicamente distantes, algumas das premissas tota-litrias do episdio ainda no foram completamente resolvidas pela sociedade.O argumento racional faz parte do gnero humano, e o debate entre ideias diferentes importante para que as coisas se esclaream, diz Jaime Pinsky. Mas o limiar dissoest na racionalidade: quando passa a ter dogmas, voc extrapola a racionalidade e setorna um fantico. Qualquer semelhana com o extremismo de discursos entrecoxinhas e petralhas observado nos ltimos meses no mera coincidncia.

    O racha entre militantes do PT e do PSDB teve incio antes mesmo das eleies doano passado, marcadas por discusses interminveis nas redes sociais, com o fim atde certas amizades. Este ano, essas discusses entre pessoas pr e contra o governoganharam um novo palco: as ruas.

    No dia 15 de maro, manifestaes tomaram conta de 153 cidades do Brasil.Independentemente do lado, o que se v em alguns casos o dio tomar o lugar dodebate: como se gritar Dilma vagabunda ou desqualificar uma manifestao

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    por causa da classe social de quem participa fosse argumento. Como lembrou ofilsofo Vladimir Safatle em sua coluna do jornal Folha de S.Paulo, o discurso deconciliao no funciona na poltica porque exatamente ela que coloca ascontradies mostra. Para ele, a rachadura do Brasil sempre existiu, com a ajudada concentrao de renda, da disparidade regional e de preconceitos. Essa polaridadeapenas permitiu que a diviso se expressasse, escreveu ele.

    A psicologia ajuda a entender por que grupos como o Estado Islmico, o BokoHaram e a Al-Qaeda so to implacveis com aqueles que consideram infiis. Aocoordenar as primeiras pesquisas com homens-bomba frustrados (que no explodirampor problemas tcnicos ou por terem sido pegos pela polcia), o psiclogo Ariel Merari,da Universidade de Tel-Aviv, constatou que os principais fatores que motivavam osterroristas a tirar o pino de uma granada no eram a religio nem o desejo devingana, mas sim a vontade de ser admirado pelo grupo, compensando sua falta dehabilidade social. Ou seja, corresponder s expectativas do meio um fator maisdominante que a ideologia. Eles eram jovens fracos e dependentes, no o tipo depessoa ideolgica, afirmou Merari a GALILEU.

    Para a tristeza dos conservadores, o islamismo no detm o monoplio dofundamentalismo religioso. Em maior ou menor grau, grande parte das religies jultrapassou a linha do extremismo. Como lembra a professora Maria de LourdesCorra Lima, do departamento de teologia da PUC-Rio, o conceito dofundamentalismo tem incio no sculo 20, quando a American Bible League lanouem 12 volumes a obra The Fundamentals: a Testimony to the Truth (Os pontosfundamentais: um testemunho para a f, em traduo livre). A ideia era defender oscristos das ameaas do liberalismo e do modernismo, que iam de encontro asuas convices. O fundamentalismo se baseia numa viso dualista, segundo a qualtudo o que no est de acordo com o que o grupo defende considerado mau. Noentram mais em jogo nem a reflexo nem a tolerncia, mas somente a afirmaocategrica de certos princpios, explica ela.

    Vale lembrar que o fanatismo religioso j despertava o interesse de filsofos, como oingls John Locke, no sculo 17, quando a reforma luterana esquentou o clima naEuropa. Para Locke ele prprio um religioso , ao povo era necessrio dar as-sistncia moral, e no dogmas teolgicos. Ele acreditava que representantes dereligies diferentes pudessem conviver em paz, e que garantir o respeito entreopinies divergentes ficaria a cargo do Estado. Mas, para o filsofo, at a tolernciatinha limite. Por responder a um lder estrangeiro (o papa romano), os catlicos, quej haviam usado os tribunais da Inquisio para queimar desafetos na fogueira, nodeveriam ser contemplados com esse benefcio, assim como os ateus. Os que negama existncia de Deus no podem ser tolerados de modo algum, afirmava ele.

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    No preciso viajar no tempo para observar a ironia teolgica. Parte da militncialigada a religies no Brasil atravanca a ampliao de direitos individuais equestes de sade pblica, como a unio civil homossexual e o aborto. No foi toa que, no incio de maro, um vdeo que mostra fiis da Igreja Universal do Reino deDeus uniformizados como militares, marchando e gritando frases de efeito assustoumuita gente. Por parecer, de fato, um exrcito, no faltaram comparaes com osregistros de Leni Riefenstahl da ascenso do regime fascista.

    No era para tanto. Segundo a Universal, a nica atividade regular dos 4,3 mil jovensque compem o projeto Guardies do Altar assistir a aulas que estimulam odebate e a reflexo sobre aspectos do texto bblico e do trabalho missionrio.Procurada por GALILEU, a Universal enviou um texto disponvel no seu site erespondeu s perguntas solicitadas por e-mail com a prola: Se restarem dvidassobre o acima explicado [no texto], ficar claro que a pergunta no temsentido.

    Eles acham que vocs so uma ameaa, afirma Fbio Marton, autor de mpio: oevangelho de um ateu (Leya). Criado em um ambiente religioso, o jornalista foi pastormirim e ajudou a exorcizar a prpria me quando fazia parte de uma igreja pentecostalconhecida como Igreja Evanglica Exrcito Celestial. Foram quatro anos deintrospeco, at que notei uma coisa estranha em ser um rob de Cristo, umaautoaniquilao, afirma. Para Marton, um ponto-chave para entender osevanglicos no Brasil compreender sua relao com as religies africanas. Para osevanglicos, os orixs so demnios, eles acreditam mais nisso do que em Deus. Esseclima de batalha eles tm em comum com o fanatismo islmico, diz ele.

    Para o psiclogo Ariel Merari, apesar de certos tipos de pessoas serem mais fceis deinfluenciar do que outros, os mecanismos de convencimento usados por algumasigrejas so semelhantes aos utilizados por muulmanos extremistas o que muda ainfluncia cultural e social. So processos psicolgicos universais que resultam dapresso ou da vontade de ser apreciado pelo grupo.

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    2013, JOINVILLE: no jogo entre atltico paranaense e vasco, as atenes deixaram ocampo e se voltaram para a violncia nas arquibancadas (Foto: Pedro Kirillos/AgnciaO Globo)

    Em 2013, Atltico Paranaense e Vasco disputavam uma partida decisiva pela ltimarodada do Campeonato Brasileiro. Se perdesse, a equipe carioca enfrentaria o segundorebaixamento de sua histria. Logo aps o incio do jogo, os olhos concentrados nocampo voltaram-se para as arquibancadas. Torcedores organizados dos dois times,rivais de longa data, comearam uma briga que no conseguiu ser contida pelosseguranas da Arena Joinville. O placar final de 5 a 1 para o Atltico Paranaense foimero detalhe frente imagem de um pai vascano que protegia seu filho em meio aocombate.

    Apesar de os torcedores organizados estarem associados a atos de violncia, suasorigens so polticas. As primeiras organizadas surgiram na dcada de 1960 e foraminfluenciadas pelo esprito da poca, como um movimento de resistncia efiscalizao dentro do futebol, afirma Felipe Lopes, que defendeu tese de doutoradono Instituto de Psicologia da USP sobre o assunto. Mas, enquanto algumas torcidasse organizavam como fiscalizadoras, o sentimento de militarizao, reflexo dapoca, tambm crescia.

    Certos grupos eram organizados em pelotes, e seus dirigentes eram chamados decapites. Essa se tornou uma face mais ligada guerra, machista e militarizada, e a

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    partir dos anos 1980 essas torcidas deixaram as pginas esportivas para ocupar aspginas policiais, afirma o socilogo Mauricio Murad, autor do livro Para entender aviolncia no futebol (Benvir).

    A perda da fora de instituies que eram fontes de identidade, como sindicatose partidos, explica a escalada da violncia. Isso fez que as torcidas acabassem setornando um dos poucos espaos de reconhecimento social, ainda mais entre osjovens carentes de lazer e cultura. Nesse caso, a devoo pelo time de futebol semistura lealdade para com a torcida organizada. O futebol um dos maiorespatrimnios da cultura coletiva brasileira e fruto de identidade social. Quando essapaixo excede os padres de sociabilidade, isso se torna fanatismo, deixando deexistir a diferena entre adversrio e inimigo, diz Murad. Segundo o pesquisador, oBrasil o pas mais violento do mundo em relao a conflitos entreorganizadas: de 2012 a 2014, 71 mortes foram registradas por aqui.

    Ainda assim, apenas 7% dos torcedores que pertencem a um grupo uniformizadoparticipam dos conflitos. Quem rouba a bandeira de uma torcida rival, porexemplo, ganha reconhecimento, diz Lopes. Outra explicao para a violncia sedeve a fatores mais racionais, como a disputa pelo poder no comando da prpriaorganizao, algo que acontece de maneira recorrente nas barras bravas, as torcidasargentinas. Existe a venda de drogas e lcool, o apoio financeiro de dirigentes, olucro com a revenda de ingressos... Ento vemos mortes de pessoas mais velhas queesto implicadas numa disputa pelo poder, afirma Andr Luiz Nery, autor deViolncia no futebol: mortes de torcedores na Argentina e no Brasil (Multifoco).

    Seguindo os conceitos de Le Bon, Murad destaca a ideia do sentimento deinvisibilidade no meio das massas como causa da violncia. Quando vemostorcedores dizendo que vo morrer pelo seu time e quando agridem outro torcedor,vemos esse lado irracional, diz ele. J para Felipe Lopes, preciso tomar cuidado aoafirmar que as manifestaes violentas esto ligadas ao comportamento das massas.Se a massa potencialmente violenta e irracional, voc legitima a represso, eleafirma. Mas isso no quer dizer que a pessoa no aja de modo mais intenso quandoest em grupo: esse contgio que faz o futebol ser to interessante de ver de dentrodo estdio.

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    2014, HAMBURGO: As filas dos lanamentos da apple so uma atrao parte. aeuforia para adquirir os aparelhos tanta que, na china, um jovem vendeu o rim paracomprar um iphone e um iPad (Foto: Axel Heimken/DPA/ZUMA Wire)

    Proporcionais ao aumento do tamanho do iPhone so as filas de consumidores vidospor adquirir as novidades da Apple. As aglomeraes j so uma atrao aguardadano s por consumidores, mas tambm por empreendedores do acaso, que chegam acobrar R$ 400 por um lugar na fila. J para viabilizar o dinheiro necessrio, a China amais inovadora. Em 2012, um jovem chins de 17 anos transformou em realidadeuma metfora ao vender um rim para comprar um iPhone e um iPad. claro que aeuforia pela marca no se deve somente a seu charme irresistvel o marketingeficiente tambm tem seus mritos.

    A campanha de 2006 Im a Mac, Im a PC deixa evidente a diferena do perfil dosconsumidores da companhia e aumenta o sentimento de pertencer a um grupoexclusivo. Nos anncios, o usurio de Mac retratado como um jovem descolado,enquanto os usurios de PC so burocratas engravatados. Num artigo para o site LiveScience, Albert Muniz Jr., professor de marketing da Universidade DePaul, em Chicago,lembra que, nos anos 1980, os applemanacos j buscavam se diferenciar. Elesdiziam que, naquela poca, era evidente que o pessoal da IBM tinha um jeito:vestia terno e votava no presidente Reagan. J o pessoal do Mac tinha outro:vestia jeans e no votava no Reagan.

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    Segundo Carlos Augusto Costa, diretor do laboratrio de neuromarketing da FGVProjetos, 92% dos consumidores mudam de ideia na hora das compras. O desafio dasmarcas, portanto, evitar que isso acontea. Uma das formas mais tradicionais aassociao com os trend setters, pessoas que ditam tendncias. Ao vermos algumrenomado ou um dolo usando determinada marca de desodorante, por exemplo,tendemos a querer copiar a ao. Culpa dos neurnios espelhos, que fazem que nossapercepo visual inicie um tipo de simulao interna dos atos dos outros. Voltandoum pouco s propagandas da Johnson & Johnson, por exemplo, as mes podiam noter bebs to bonitos como aqueles, mas poderiam fazer seus filhos usarem fraldasiguais; o mesmo raciocnio serve para as propagandas de cuecas, e assim por diante,explica Costa.

    Isso funciona bem quando temos uma relao emocional acima da mdia com oproduto. por isso que para entender o sucesso de uma marca como a Apple preciso conhecer os mecanismos da religio. Para Costa, as marcas que causameuforia tm smbolos fortes e pessoas inspiradoras que disseminam suas filosofias,como o caso de Jesus Cristo na Igreja catlica. Nosso crebro tambm gosta de umanovela. Como Buda, Maom e Cristo, as marcas precisam criar envolvimento, afirmaele. Nada que o messias Steve Jobs no tenha feito durante suas pregaes.

    A incapacidade de compreender opinies diferentes uma ameaa democracia, masexiste uma forma de combater isso? A liberdade deve ser sempre a maiorpossvel, mas isso significa colocar certos limites para garantir os direitos e aintegridade de outros, afirma Ricardo Bins di Napoli, professor de filosofia daUniversidade Federal de Santa Maria e especialista em temas ligados tica poltica.Para que isso seja possvel, necessrio construir uma cultura de tolerncia que passepor todos os elementos que compem uma sociedade. a capacidade de se abster deintervir na opinio do outro, mesmo que se desaprove ou se tenha o poder para cal-la, cerce-la ou at prend-la, diz o professor.

    A aceitao de valores diferentes um exerccio de autocrtica. Ela cria ascondies necessrias para construir um dilogo positivo para o desenvolvimento deuma sociedade sem rachaduras, na qual a palavra respeito no seja apenas umaestampa de camiseta. Afinal, qual seria a graa do futebol se o rival fosse extinto?Conflitos nos fazem questionar e evoluir. Antes de xingar a me dos desafetos,talvez seja melhor iniciar um dilogo capaz de conter o maior nmero possvelde opinies. E isso inclui adicionar novamente aquele amigo excludo do seuFacebook durante as eleies e os protestos de maro. Mais amor e menos dio,por favor.

    1099 - CERCO DE JERUSALM > Exrcitos cristos da Europa iniciaram a tomada de

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    Jerusalm, que culminou com o massacre de muulmanos, judeus e cristos ortodoxos

    1478 - INQUISIO ESPANHOLA > O Tribunal do Santo Ofcio da Inquisio foicriado para combater muulmanos que dominavam parte da Espanha. Milhares depessoas de outras religies foram mortas sob a superviso da Igreja catlica

    1572 - NOITE DE SO BARTOLOMEU > Organizados pela monarquia catlicafrancesa, cristos protestantes foram mortos durante a madrugada do dia 24 de agosto

    1792 - TERROR JACOBINO > Mais de 17 mil opositores polticos foramguilhotinados por ordem do grupo jacobino que liderava a Revoluo Francesa

    1871 - O FIM DA COMUNA DE PARIS > Primeiro governo operrio da histria, aComuna de Paris foi dissolvida aps um massacre que resultou em priso, tortura emorte de quase 100 mil trabalhadores

    1936 - PROCESSOS DE MOSCOU > Para manter a hegemonia no Partido Comunistada Unio Sovitica, Josef Stlin inicia a perseguio e o fuzilamento de antigoscamaradas contrrios a suas decises polticas

    1938 - NOITE DOS CRISTAIS > O governo nazista instaura uma poltica de priso,assassinato e destruio de propriedades de judeus, sob a coordenao das tropas deassalto do exrcito alemo

    1965 - GOLPE DE ESTADO NA INDONSIA > Aps a tomada do poder pelo generalSuharto, o Partido Comunista da Indonsia foi extinto depois do massacre de quasemeio milho de militantes

    1975 - O KHMER VERMELHO > O regime comunista liderado por Pol Pot obrigou osmoradores das cidades do Camboja a migrar para o campo, fazendo cerca de 1,5milho de vtimas

    2001 - 11 DE SETEMBRO > A organizao terrorista Al-Qaeda, alegando agir emnome da religio islmica, realiza o maior atentado da histria em solo norte-americano, causando a morte de 2996 pessoas

    2014 - ESTADO ISLMICO > Grupo fundamentalista proclama a independncia deregies da Sria e do Iraque, as quais passariam a ser regidas por sua prpriainterpretao da lei sagrada islmica

    1. Ao separarmos o mundo em categorias como cristo ou f da Apple, nos

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    inclumos em grupos que correspondem a nossas necessidades

    2. Em um coletivo, somos sugestionados a exaltar pontos que o beneficiam,ignorando as fragilidades e tudo o que vai contra suas ideias e criando assim uminimigo a ser combatido

    3. Esse sentimento de conexo aumentado pelo poder das narrativas. Nosso crebroprecisa de histrias, como a de Jesus Cristo, por exemplo, para criar relao emocional

    4. Quando o grupo uniforme, ele cria uma mentalidade coletiva, com os mesmosvalores e objetivos. Sentir-se parte do grupo o que psiclogos chamam de identidadesocial

    5. Os que tm identidade social intensa abrem mo de outras referncias, estreitandosua percepo e reforando as emoes que os ligam ao grupo

    6. Sob influncia do meio (e, em muitos casos, de um lder carismtico), multidespodem lutar por benefcios comuns, como direitos civis, ou por catstrofes, como aascenso do nazismo

    7. Com o devido incentivo, as pessoas so capazes de fazer em grupo coisas que nofariam sozinhas

    Como essa pesquisa foi desenvolvida?Medimos movimentos musculares, padres cardiovasculares e estmulos cerebrais,correlacionando essas anlises biolgicas s opinies de cada pessoa a respeito de umamplo nmero de temas polticos controversos. Indivduos que apresentavam umaforte ativao na regio cerebral da amgdala quando expostos a estmulos negativosou nojentos tendiam a adotar posies polticas conservadoras, relacionadas asegurana e tradio.

    Ento possvel dizer que o crebro pode determinar nossa viso poltica?No, determinar um termo muito forte neste caso, mas os padres de ativaocerebral esto relacionados a nossa orientao poltica. Temos certas predisposiesinconscientes que se espreitam em ns, e geralmente elas ajudam a determinarpreferncias polticas particulares em temas sociais, como nossa opinio a respeito deimigrao. Quando apresentvamos imagens desagradveis, como casas pegando fogo,pessoas usando o banheiro ou um homem comendo minhocas, o estmulo na regioda amgdala era maior em pessoas com opinies conservadoras. Essas mediesbiolgicas se corresponderam bem em relao a opinies polticas, porm menos nasquestes econmicas.

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    O fanatismo poltico potencializado por condies predeterminadas do crebro?Pessoas que tm sentimentos polticos intensos possuem uma assinatura biolgicadiferente e identificvel. Em nosso trabalho, focalizamos as diferenas entre pessoasde esquerda e de direita, mas tambm estamos interessados nas diferenas entre osque so politicamente apticos e aqueles to envolvidos que podem cometer algumtipo de violncia com motivos polticos.

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