o brasil dos tropeiros & estradas reais

28
O BRASIL DOS TROPEIROS & ESTRADAS REAIS [Das palestras para grupos de estudos e professorado, em Cotia, Araçariguama, Porto Feliz, Sorocaba, Viamão, Curitiba, Santos, São Paulo, Rio de Janeiro e Paraty, entre 1991 e 2012. Inclui anexo “Cotia & Tropeirismo Na Odisséia Nipo-Cotiana”, de 2006.] João Barcellos

Upload: joao-barcellos

Post on 28-Mar-2016

217 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

[Das palestras para grupos de estudos e professorado, em Cotia, Araçariguama, Porto Feliz, Sorocaba, Viamão, Curitiba, Santos, São Paulo, Rio de Janeiro e Paraty, entre 1991 e 2012. Inclui anexo “Cotia & Tropeirismo Na Odisséia Nipo-Cotiana”, de 2006.]

TRANSCRIPT

O BRASIL DOS TROPEIROS

& ESTRADAS REAIS

[Das palestras para grupos de estudos e professorado,

em Cotia, Araçariguama, Porto Feliz, Sorocaba, Viamão, Curitiba, Santos,

São Paulo, Rio de Janeiro e Paraty, entre 1991 e 2012.

Inclui anexo “Cotia & Tropeirismo Na Odisséia Nipo-Cotiana”, de 2006.]

João Barcellos

O BRASIL DOS TROPEIROS

& ESTRADAS REAIS

João Barcellos

PARTE PRIMEIRA

1 Mercado Estancieiro

Isto aqui é “a passagem de Laguna para a Colônia de

Sacramento”, diz-se no início do Século 18, lá no que pode se

afirmar ser “o rancho fundo da capitania da paulista”.

A afirmação deve-se ao amplo mercado estancieiro montado

pelos padres da Sociedade de Jesus [SJ], ao longo do Século 17,

tanto nas partes do Uruguai quanto nas da Argentina, e mais

particularmente nas grandes fazendas além de Buenos Aires, onde

criam de tudo e se fazem especialistas na reprodução de

muares... o animal de carga mais adequado aos duros caminhos

da malha guarani do Piabiyu e de outros em picadas abertas

pelos próprios jesuítas de braço dado com colonos portugueses e,

em alguns casos ao longo do Rio da Prata, com castelhanos.

[Mapa desenhado pelo engº-militar José Custódio de Sá e Faria]

Para a Coroa portuguesa torna-se importante anotar e levar em

conta a percepção política e administrativa de vários governadores,

que diz da necessidade urgente de povoar a região da Laguna e

das imediações de Sacramento; e, por volta de 1670, a Coroa faz

recrutamento no arquipélago dos Açores com a promessa de “dar a

Casais Açorianos que vão a povoar o sul do Brasil terras e outras

facilidades”.

Ilha do Faial, vila da Horta. Corre o ano 1677. No alvorecer do dia

20 de Março acontece o marco histórico que remata a ligação entre

Portugal e o Brasil: casais, num total de 219 pessoas, embarcam no

navio “Jesus, Maria e José” com destino ao Grão Pará. A tentação é

grande para os casais açorianos que vivem apertados com pouca

terra. A visão de grandes terras oficialmente dadas é a mola que

catapulta a gente habituada à árdua azáfama insular. E depois, no

período de um século, a partir de 1748, chegam ao sul do Brasil

cerca de 2300 pessoas, e, entretanto, das promessas de terras e

facilidades, nada, o que obriga a gente açoriana a lutar

bravamente para se estabelecer entre a gente gaúcha e as

propriedades jesuíticas.

O assentamento agropecuário da gente açoriana cria uma

dificuldade mercantil para os padres jesuítas, habituados a ser a

voz única no mando da região, e é quando novas estâncias

surgem a partir dos fogos açorianos para formarem um

cinturão português diante das Missões [aldeias-estâncias

formadas e administradas pelos padres], que são o eixo das

negociações jesuíticas e das pretensões políticas da Coroa

castelhana, de olho, principalmente, na estratégica Colônia de

Sacramento. Por isto, entre Laguna e Sacramento tem início uma

atividade que, se ainda não é tropeira, indicia a prática da utilização

de muares no transporte de cargas e gentes pelos difíceis

caminhos. Como primeiros fregueses na praça de muares, os

casais açorianos estabelecem uma atividade que mobiliza todo

o sul e em distâncias curtas.

2 Estâncias, Charqueada & Muares.

São várias as fazendas jesuíticas que produzem muares na

Argentina. É uma produção que industrializa, de imediato, ambas as

margens do Rio da Prata, e os muares já trotam entre a mobilidade

econômica que alavanca o progresso sulista da Capitania paulista,

da mesma maneira que os caixeiros-viajantes de Affonso Sardinha

[o Velho] e do padre-banqueiro Pompeo de Almeida faziam

negócio, a pé e em canoas, entre Piratininga, Buenos Aires e

Asunción.

E agora, são várias a fazendas açorianas que progridem entre as

velhas trilhas sulistas.

Os muares enchem a pança jesuítica e, com os casais açorianos,

favorecem o abastecimento de várias vilas. O que para os padres é

um rendimento entre os próprios negócios passa a ser uma fonte de

renda para o novo Portugal que se ergue no sul do Brasil. Agora, os

casais açorianos e os muares são parte da ocupação na Linha

de Tordesilhas que vai impedir o avanço castelhano em terras

lusas.

Os muitos galpões abertos nas pradarias para salgar a carne

exposta para desidratação [´charque´] recebem muares, o veículo

ideal para enfrentar longas e penosas jornadas de ligação terrestre.

3 O sul do Brasil antes dos Casais Açorianos

Um dos personagens que marcam a vida cotidiana no Brasil-

colônia é o carroceiro, importante no papel logístico da atividade

doméstica e comercial, entre cariocas, paulistas, nortistas e sulistas.

As juntas de bois e cangas, o cochicho [lampião] e o chiado das

rodas do carro, são imagem perpetuada na memória dos

portugueses que fazem o assentamento colonial na Insulla Brasil.

Os castelhanos incorporam o cavalo à cena sul-americana, mas é

o boi que puxa a carroça e faz movimentar o engenho d´açúcar

nas unidades rudimentares da roça familiar.

O cavalo não é adestrado para a dura tarefa de carregar e

transportar, e só passa a ter esta função no início do Século 18... O

famoso poeta Baptista Cepellos, também bacharel de Direito e

capitão da Força Pública de São Paulo [2º Regimento], no final do

Século 19, exerce a função de carroceiro no trecho de Cotia a

São Paulo, levando principalmente casais em lua de mel. Assim

como sapateiro e alfaiate, o carroceiro é ofício muito respeitado na

sociedade.

Os ´comboios´ de carroças passam a ser uma imagem mais

visível em toda a colônia durante o setecentos e o cavalo, então,

além de ser o animal ´chic´ da tourada e da cavalgada, é também o

animal de carga e do manejo [vaqueirada] do gado.

A demanda de entradas que levem às riquezas do Potosí

desloca centenas de aventureiros de Portugal e de Espanha para o

Rio da Prata, e, ao mesmo tempo, urge estabelecer outras vilas.

Assim, Buenos Aires surge em 1580, e como eixo de defesa

estratégica na ótica castelhana. É no entorno de Buenos Aires que

os jesuítas castelhanos expandem a sua genialidade mercantil e

agropecuária. Os portugueses não podem atrasar o passo e

erguem a Colônia do Sacramento, em 1680, e, logo, as vilas de

Paranaguá [1648], São Francisco [1658], Desterro [1675] e Laguna

[1676], bases fortificadas de apoio logístico a ações diversas.

Este é o ambiente de guerra luso-castelhana e de aventuras

quiméricas que os Casais Açorianos encontram no entorno

dos seus fogos precários e, apesar de oficiais, a perigo.

O esforço de adaptação das gentes açorianas entre os vários

conflitos dos interesses das coroas ibéricas leva-as a uma jornada

gloriosa de resistência e de assentamento. Da ocupação açoriana

do solo ao sul da Capitania paulista é que o Brasil-colônia ganha

fôlego político para reivindicar o que de seu é, pois, “o que está

povoado pela gente lusa está demarcado por ela mesma, e isto é

Portugal”, afirmam. Aos castelhanos restam as arruaças e elas

continuam.

No meio de tanto alvoroço beligerante e político os Casais

Açorianos passam a ser a estância que mata a fome à gente

sulista. Antigos marinheiros tornam-se agricultores e aprendem ´na

marra´ como curtir uma boa carne, maturar um bom queijo e como

levar ao forno uma massa para o pão nosso de cada dia. As

tradições açorianas são visíveis já nas festas populares sulistas e a

sua fé religiosa também se faz notar. É a presença portuguesa em

nova maresia nas pradarias e estâncias sulistas.

4 Os Muares ao Deus-Dará

Nas suas idas e vindas pelo território de ambos os lados do Rio

da Prata, os padres jesuítas deixam muitos muares soltos nas

pradarias. A produção dos muares é tal que nem as estâncias

jesuíticas têm capacidade para guardá-los. É preciso evacuar. É

preciso vender. E há mais escambo [troca de bens] do que venda

propriamente dita, o que para os padres dá na mesma.

Em muitos fogos açorianos os muares [mulas, burros] já são parte

da paisagem familiar, de sorte que a maioria das cabeças são

arreadas ainda a-volante e guardadas quase como troféus da caça.

Sem o saberem, os padres jesuítas dão uma contribuição notável

para o progresso econômico sulista que tem base no fácil transporte

de víveres no lombo dos muares... Deixados “ao deus-dará”,

segundo a velha expressão portuguesa, os muares tornam-se vitais

para a sobrevivência portuguesa e, em particular, dos Casais

Açorianos.

5 Viamão: o corredor que une o Brasil.

1725. O açoriano Cosme da Silveira embarca na frota de João de

Magalhães. Destino: Viamão. Entre muitos outros, eis um açoriano

que se integra notavelmente ao embiente humano e físico do sul

brasileiro e, aqui, estabelece pouso, produção agricola, enquanto

lança um olhar aos caminhos possíveis para alargar a atividade.

Então, a localidade de Viamão é uma vila portuguesa com

gentes também da província do Alentejo e, diz-se, por isto, que

Viamão é um nome abrasileirado de Viamonte [região alentejana].

Enquanto isso, o ambiente bélico entre ibéricos continua em ponto

de bala, e de tal sorte que Viamão recebe o governo da Capitania

quando o governador portenho Pedro de Ceballos invade, em 1766,

a cidade de Rio Grande. A municipalidade de Viamão é ´capital´

até 1773, quando o governo sulista se transfere para Porto dos

Casais, que ora conhecemos como Porto Alegre.

Dessa circunstância inusitada ganha Viamão uma estrutura

urbana e comercial que lhe permite ser o eixo político e progressivo

da região. E torna-se uma feira quase permanente nas idas e

vindas dos muares carregados de charque e também de couro,

um dos produtos bem em conta na região e na comercialização feita

entre as gentes de Laguna e os velhos fregueses de São Paulo.

A comercialização indica e registra rotas diversas que, sendo

umas trilhas da malha piabiyuana e outras jesuíticas e

bandeirísticas, fazem desencadear uma espécie de eldorado

mercantil no lombo dos muares. Ao que se pode chamar de rotas

da vida que sobrevive em cada pessoa aventureira ou tropeira.

Tropeiro é gente forte. A carne salgada e desfiada [charque] vai

muito bem com arroz e feijão e, logo, com uns goles de chimarrão.

Assim se alimenta o tropeiro que, às vezes, imita o bandeirante e

tira do alforge um virado paulista – aquele feijão cozido e refogado

na gordura e deppois embolado com farinha de mandioca, linguiça,

torresmo, costela de porco, couve e ovo frito – o mais ´caipira´ dos

pratos de campanha sertaneja, porque tem o ´toque´ da mandioca.

E isto está e é vivido nos caminhos que sae de Viamão.

Eis o Caminho de Viamão... até Vacari, e depois por Lages,

Curitibanos, Papanduva, Rio Negro, Campo do Tenente, Lapa,

Palmeira, Ponta Grossa, Castro, Piraí do Sul, Jaguaraíva e Itararé

com chegada à feira de Sorocaba.

O percurso fica a ser conhecido como Rota dos Tropeiros a partir

da Bacia do Paraná e logo se populariza entre os brasileiros do sul

e do sudeste. Além de Caminho de Viamão, o percurso també é

conhecido por Estrada da Mata e Caminho do Sul.

PARTE SEGUNDA

5 A fé que arrancha portugueses

e faz o Brasil.

Muito além dos propósitos imperiais e mercantis da Igreja católica,

a fé dos povos portugueses instala na colônia tropical uma alma

abnegada e a lutar por direitos à terra e à vida.

A determinação que já fizera surgir as comunidades da Madeira e

dos Açores manifesta-se no sul brasileiro, com a mesma

intensidade, entre rendas de bilro e tapeçarias de tear sob o cheiro

bom da comida à base de peixe, ou a dança de pau de fita, e,

ainda, na ousadia de pegar o boi solto nos campos e ruas. A grande

Festa do Divino ecoa rapidamente por todo o sul e sudeste e alegra

as comunidades cristãs.

Em cada família arranchada, em fogos ou em estâncias, é forte a

tradição das raízes sociais e culturais, e se faz presente nas

cavalgadas e nas rotas tropeiras: a fé não é apenas um íntimo

altar que em cada pessoa se ergue a Deus, é o ato solidário

dos Casais Açorianos que incorpora o espírito português de

fazer no Brasil outro Portugal, e assim vai, e assim é.

6 Entre a Viamão e a Estrada Real

[as distâncias entre Viamão e o mundo]

Com a chegada da Corte portuguesa ao Brasil, em fuga diante

das ameaças de Napoleão Bonaparte, o Rio de Janeiro aperalta-se

e conquista uma urbanidade ao estilo lisboeta.

Entretanto, é preciso ligar o Rio de Janeiro aos pontos principais

da produção das riquezas; para solucionar o caso, a Coroa luso-

brasileira manda que se abram Estradas Reais, já agora a

aproveitar as trilhas de escoamento de víveres e de pedras

preciosas, do centro-oeste ao sudeste e sul.

[as malhas do Piabiyu/Peabiru aproveitas na Rota da Viamão

e na Estrada Real]

Deste aproveitamento logístico, ganha mais uma vez Viamão. A

principal Estrada Real desemboca na capital tropeira depois de

1.400 km a cortar os sertões.

Das velhas trilhas nomeia-se o Caminho Velho e das novas o

Caminho Novo.

Os caminhos ligam os sertões dos aventureiros, tropeiros e

bandeirantes, ao Rio da Prata e ao Rio Paraguai, com parte da

ligação pelo Rio Anhambi, que também deságua no próprio sertão,

e aqueles que do centro-oeste vão dar a Paraty.

7 Estrada Real

Toda e qualquer via terrestre a ligar as vilas principais do Brasil-

colônia e disponível para o negócio político e mercantil, local e

internacional, é Caminho Oficial, i.e., autorizado prla Coroa. É a

Estrada Real. E fora dela só existe atividade: de roubo e de

contrabando. A utilização de vias não oficiais é chamada

descaminho. Assim, as Ordenações do Reino determinam, assim

é feito.

No reaproveitamento logístico dos povos nativos são fundados, ou

refundados, o Caminho da Bahia [chamado Caminho da Bahia ou

Caminho dos Currais do Sertão e suas variantes, a ligar a

Capitamia da Bahia às Minas]. O Caminho do Rio de Janeiro [ou

Caminho Velho do Rio de Janeiro e, logo, Estrada Real e suas

variantes, a ligar a Capitania do Rio de Janeiro às Minas]. O

Caminho dos Diamantes [com a descoberta de diamantes no

cerro, entre 1725 e 1735, é aberto novo caminho, ai qual se unem a

picada de Goyaz e, depois, a do Mato Grosso]. O Caminho de São

Paulo [das expedições ditas bandeiras. Os paulistas, mais

mamelucos (mestiços de portugueses com indígenas), têm o

conhecimento, não apenas das velhas trilhas (o Piabiyu), mas

também das técnicas de sobrevivência nos sertões].

O Caminho dos Paulistas [ou Caminho Geral do Sertão, a ligar

a capitania às Minas. Percorrem a trilha dos Goyanazes a partir do

vale do Rio Paraíba do Sul pela passagem da Garganta do Embaú,

na Serra da Mantiqueira, e dirigem-se ao sertão das minas].

Os Caminhos do Rio de Janeiro [malha de caminhos

denominada Estrada Real.

Eis as variantes: o Caminho Velho [de Paraty a Vila Rica (Ouro

Preto), por cerca de 1.200 quilômetros, percorridos em 95 dias de

viagem]; o Caminho Novo [da baía da Guanabara ao Caminho

Velho em Ouro Branco (Vila Rica / Ouro Preto. É aberto por Grcia

Rodrigues Pais, em 1707, como alternativa ao Caminho Velho

evitando a rota marítima entre Paraty e o Rio de Janeiro. Tem início

nos portinhos do Rio Iguaçu (ou do rio Pilar / Duque de Caxias),

segue pelos portos fluviais até a vila de Xerém, Tinguá, Santana

das Palmeiras até Paty do Alferes, para logo descer ao Paraíba do

Sul e logo passar a Ouro Branco (Vale do Paraíba). Uma variante

do Caminho Novo é o Caminho do Proença [por Petrópolis e

Santana de Cebolas].

Estrada Real [une as freguesias de Santo Antônio de Jacutinga e

Nossa Senhora Conceição de Mariapicú, a ligar com a Estrada Real

na baixada fluminense].

E é preciso controlar, fiscalizar a Estrada Real...

As riquezas que se extraem das minas do centro-oeste levam a

Coroa a apertar a vigilância e impedir o roubo e o contrabando, de

que fazem parte civis, militares e religiosos, e mesmo fidalgos, pois,

a ganância, não escolhe ofícios nem brasão. E em pontos

estratégicos da Estrada Real instalam-se as Casas da Fundição

para o Registro das peças, sob a guarda dos destacamentos de

cavalaria denominados Dragões das Minas.

ANEXO

Cotia & Tropeirismo

Na Odisséia Nipo-Cotiana

desenvolvimento agro-pecuário & hortifrutigranjeiro

João Barcellos

A historiografia registra Cotia como um dos pontos de encontro de

Tropas e, antes das Tropas, de colonos portugueses e castelhanos

que na região dão continuidade ao ciclo agro-pecuário aberto por

Afonso Sardinha [o Velho] na via oeste do Piabiyu, entre Butantã e

Carapicuíba, ainda no Séc. XVI – e a região passa a ser, entre os

sertões carapicuibano e itapecericano, com o Rio Cotia e a

exuberante Floresta de Morro Grande pelo meio, um dos mais

importantes celeiros de abastecimento à Villa piratininga, como no-

lo diz o Morgado de Matheus, capitão-general da Capitania no Séc.

XVIII.

Já no Séc. XX, e a aproveitar os erros técnicos de agronomia

daquele ciclo agro-pecuário colonial, os japoneses da Cooperativa

Agrícola transformam Cotia na trilha hotifrutigranjeira de maior porte

no Brasil e o primeiro grande ponto de agronegócio da América.

1

A Bússola Aquífera

Os colonos portugueses e castelhanos dos Sécs XVI e XVII não

prestam atenção na sinalização aqüífera que o Piabiyu [Caminho do

Peru // Caminho do Sul – trilha ancestral e continental da Nação

guarani] lhes oferece, e raramente analisam os quês da ramificação

do próprio Piabiyu entre o planalto da Villa piratininga e o resto da

América do Sul. O que os nativos guaranis escondem? Nada. São

os colonos que não entendem a sua sobrevivência: o Piabiyu

assenta sobre um lençol d´água subterrânea continental – o

Aqüífero Guarani é a bússola natural dos povos nativos que

percorrem o caminho ancestral.

2

Entre a Tropa & o Tropeirismo

A atenção dos colonos, do ´500´ e do ´600´, está voltada não para

a riqueza agronômica da terra, mas para a riqueza das pedras

preciosas [ouro, prata, diamante...], e a sua ação agro-pecuária é,

então, de subsistência e de apoio aos comboios que fazem as

entradas sertão adentro, ou como bandeira [terra firme] ou como

monção [fluvial].

Na época, utiliza-se a denominação portuguesa combóio para

sinalizar um grupo de pessoas que parte em busca de algo. A

designação tropa surge com a logística castelhana que vai buscar

esse nome ao vocábulo germânico trupp, e só no final do Séc. XVII

é que, e com os castelhanos

[é o súdito de Castela que domina a

arte da criação de cavalos e de muares

a partir de Buenos Aires, depois que os jesuítas

iniciaram tal tarefa fundamental nessa região]

homens, cavalos e mulas, enfrentam os caminhos das ramificações

do Piabiyu, do Rio Grande até Sorocaba e daqui para a Villa

piratininga, para depois alcançar o traçado do Rio de Janeiro,

quando o negócio assim o exige.

Os portugueses aprendem rápido com os castelhanos. O primeiro

grande tropeiro é Cristóvão Pereira que, 1731, sai do sul e conduz

tropa de 800 animais passando por São Paulo com destino a Minas.

A meio caminho entre o norte e o sul, Sorocaba vem a ser escolhida

como ponto de registro ideal para as tropas e aí inicia-se a grande

feira tropeira, a primeira bolsa de valores do agronegócio.

Também a meio caminho entre Sorocaba e São Paulo, a velha

Koty guarani fica como ponto de apoio logístico às tropas que

sobem e descem o Piabiyu. A velha aldeia faz jus à sua destinação

nativa: ponto de encontro.

Ainda com os castelhanos, os portugueses aprendem que não

basta “deixar gado cavalar e bovino ao deus-dará”, pois, “animais e

peões exigem o mínimo de conforto”. Daí surgem os grandes

ranchos à semelhança das estâncias estabelecidas na Argentina,

no Paraguai, em Santa Catarina e no Rio Grande – uma tradição

milenar do Povo Basco, que vem a tornar-se, nos Pampas, a

tradição gaúcha. Assim, grandes ranchos são estabelecidos, por

exemplo, em Cubatão, em Cotia, em São Roque, no Una e em

Araçariguama.

3

Tropeiros de Cotia

[Koty, Cuty, Cutia, Cotia]

A historiografia registra que em Cotia existem agropecuários que

não ficam só no “a ver passar a tropa”... Aprendem o que é a Tropa,

vão à feira tropeira sorocabana e aí observam como se desenvolve

o negócio.

Lá por 1807, o cutiano [natural da Cutia] Antônio Manuel Borba

inclui numa tropa alheia, na qual aluga espaço, três bestas para

serem negociadas. Anos depois, em 1828, o cotiano [Cutia passa a

ser designada por Cotia] José Maria Oliveira César possui tropa no

caminho de Santos e ganha 400 mil-réis por ano. No mesmo ano,

1828, o cotiano José Joaquim, “exposto na casa do vigário João

Gonçalves de Lima, 32 anos, é negociante tropeiro de animais do

sul”.

É em tal registro da Cotia do Séc. XIX que surge pela primeira vez

escrita, oficialmente, a designação tropeiro de animais.

4

do ciclo agropecuário-tropeiro

ao agronegócio nipo-brasileiro

Com o grande ciclo tropeiro-mineração (Sécs. XVI a XIX)

esgotado economicamente, os ciclos cafeeiro e industrial passam a

dominar a Sociedade brasileira; mas um grande acontecimento,

ainda no Séc. XIX, no ano 1888, determina uma alteração estrutural

e mental na antiga colônia portuguesa: a Abolição da Escravatura.

Com isso, o ciclo cafeeiro-industrial precisa de mão-de-obra sob

contrato com direitos assegurados, e, principalmente, de pessoas

qualificadas tecnicamente, tanto na área rural quanto na industrial.

O novo evento sócio-profissional proporciona a contratação de

pessoas de outros países: do Japão, no início do Séc. XX [ano

1906], a Companhia Imperial de Emigração nipônica envia ao Brasil

os técnicos Ryu Myzuno e Teijiro Suzuki para verificarem as áreas

rurais de fixação dos novos colonos em São Paulo. E logo, em

1907, o Estado paulista assina acordo para receber 3.000

emigrantes do Japão até 1910. Uma das regiões incluídas no roteiro

daqueles técnicos é Cotia, a oeste da Capital e entrada do velho

sertão do Piabiyu, de tradição agro-piscatória do Povo Guarani.

A Mina De Ouro Verde

Entre 1908 e 1910, japoneses reúnem-se na região de Cotia e

iniciam a plantação de horti-granjeiros, mas com especial atenção

para a batata.

Desde os tempos das Entradas e Bandeiras, a região de Cotia é

considerada “de terra fraca para a lavoura”, mas os japoneses

descobrem que a terra foi mal tratada nos tempos coloniais e fazem

do velho Piabiyu (que o Império português havia fechado à

circulação de bens e de pessoas, no Séc. XVI) uma mina de ouro

verde... Daqui vai surgir a primeira cooperativa agrícola das

Américas – a CAC.

Cinturão Verde & Cooperativismo

Com as atividades rurais dos japoneses, forma-se entre Cotia [e

as suas regiões de Caucaia do Alto e Vargem Grande] e Ibiuna o

primeiro Cinturão Verde da Grande São Paulo, popularizado como

Cinturão Caipira, tendo a CAC como polo centralizador.

1927

[20 de Dezembro]

Decididos a tomarem conta dos próprios negócios, os agricultores

japoneses do Bairro Moinho Velho, em Cotia, organizam-se e

fundam a Cooperativa Agrícola Cotia [CAC].

Desde a fundação da CAC o Brasil não é mais o mesmo: respira o

progresso através da própria terra. O povo brasileiro aprende, com

os japoneses, que a terra é um bem natural que deve ser

acarinhado e preservado.

O que os japoneses, e já agora, os nipo-brasileiros, têm a ver com

o velho tropeirismo?

Tudo.

Isso mesmo: tudo.

A saber:

habituado a uma sobrevivência de agricultura arcaica, mas com

técnicas de adaptação sofisticadas, o japonês vê no traçado do

Piabiyu aquilo que portugueses e castelhanos acharam por ´bem´

ignorar: a raiz aqüífera de veio continental que levava os guaranis

aos extremos sul-americanos tendo sempre como se alimentar e

orientar.

Então, frutas-raizes podem ser plantadas e puxarem outras

culturas no traçado sudeste das tropas de muares, e onde os

bandeirantes aproveitaram para formar locais de abrigo, que, em

alguns casos, viraram aldeias enquanto as aldeias nativas viraram

vilas.

O japonês vê a terra como um diamante bruto a ser lapidado e,

aprofundando-se na sua luminosidade de húmus e água, encontra

nos velhos locais o traçado ideal para estabelecer a vida – a vida

que só o alimento bem cultivado assegura ao ser humano.

Tal sabedoria coloca o japonês na rota dos guaranis, por isso, a

CAC estabelece pontos de agronegócio em toda a linha que serviu

o tropeirismo, de São Paulo a Sorocaba passando pelo Paraná e o

Rio Grande do Sul.

O sucesso da CAC só se entende quando se percebe a

importância fundamental que o Piabiyu volta a ter na economia do

Brasil, e aqui se acha, também de novo, a velha Cotia.

5

A Finalizar

A primeira terra americana a receber o cavalo foi Cuba, em 1493.

Já o Brasil vem a receber esse animal de extrema importância para

o desenvolvimento econômico, em geral, quase um século depois

com o castelhano Cabeça de Vaca: em 1541 desembarca com 26

cavalos e éguas. E, mais de um século depois, e porque a mula é o

animal de carga que melhor se adapta aos acidentes geográficos

brasileiros, principalmente no percurso do Piabiyu, é que o cavalo

ganha espaço econômico entre as estâncias sulistas e os ranchos

paulistas, paranaenses e mineiros.

Além da Araçariguama do ouro e do algodão, Cotia é uma das

regiões que se adapta ao ciclo econômico do tropeirismo e dá,

assim, continuidade à sua vocação para entroncamento de serviços

agropecuários e logísticos, sempre na rota das comitivas.

Na trajetória agropecuária e tropeira de Cotia no traçado do

Piabiyu está a essência histórica que a coloca entre as regiões que

ajudaram a formar o Brasil a partir do oeste da Villa piratininga.

E depois, com os japoneses, o Brasil conquista a sua primeira

modernidade econômica através da CAC tendo o nome Cotia

projeção nacional e mundial

Bibliografia

ALMEIDA, Aluízio [ou: Pe. Luiz Castanho de Almeida] – ACHEGAS À HISTÓRIA DE SOROCABA. São

Paulo, 1939.

– VIDA E MORTE DO TROPEIRO. Ed Martins & EDUSP, São Paulo / Br., 1981.

ANTONIL, André João – CULTURA E OPULÊNCIA DO BRASIL POR SUAS DROGAS E MINAS...

Officina Real Deslandesiana, Lisboa, 1711.

BACH, Arnoldo Monteiro – PORCADEIROS. Gráfica Editora Palloti.

BARCELLOS João – DAS TROPAS DE MUARES À ESTRADA REAL. Palestra. Sorocaba/Br., 1994.

– A IMPORTÂNCIA TROPEIRA NO ASSENTAMENTO DO IMPÉRIO BRASILEIRO

DEPOIS DO PIABIYU. Palestra. Cotia, Araçariguama e Sant´Anna de Parnaíba / Br., 2001.

– OS CASAIS AÇORIANOS ENTRE JESUÍTAS ESTANCIEIROS E OS CAMINHOS

DOS GUARANIS. O FOCO TROPEIRO. Palestra. Lisboa/Pt., 2001.

– PIABIYU / o caminho ancestral dos guaranis. São Paulo, 2006. Ed Edicon &

TerraNova Comunic.

– FEIJÓ & CEPELLOS / CIDADÃOS BRASILEIROS DE COTIA. Organização de

BARCELLOS, João e CASTRO, Walter Soares de. Ed Edicon, São Paulo / Br., 2008.

CALAES, Gilberto Dias & FERREIRA, Gilson Ezequiel – A ESTRADA REAL E A TRANSFERÊNCIA DA

CORTE PORTUGUESA. Ediç CETEM, MCT, CNPq, CYTED, 2009.

FLORES, Moacyr – TROPEIRISMO NO BRASIL. Ed Nova Dimensão, Porto Alegre / Br., 1998.

FORTES, João Borges [general] – OS CASAIS AÇORIANOS / PRESENÇA LUSA NA FORMAÇÃO

SULRIOGRANDENSE. Martins Ribeiro Editor, 1978.

GIL, Tiago Luis – COISAS DO CAMINHO / TROPEIROS E SEUS NEGÓCIOS DO VIAMÃO À

SOROCABA [1780-1810]. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Br., 2009.

HOLANDA, Sérgio Buarque de – MONÇÕES. Ediç Casa do Estudante do Brasil, 1945.

MACEDO, J. C. – OS CASAIS AÇORIANOS NA FORMAÇÃO SULISTA DO BRASIL. Palestra.

Florianopolis/Br., 1991.

– JOSÉ CUSTÓDIO DE SÁ E FARIA / ENGENHEIRO-MILITAR E DESBRAVADOR DA

URBANIDADE COM O MORGADO DE MATHEUS & GOVERNADOR DE RIO GRANDE DE SÃO

PEDRO. Palestra. Embu e Sant´Anna de Parnaíba / Br., 1994.

– UMA ANÁLISE AO FILME ´A MISSÃO´ [ROLAND JOFFÉ, 1986] NA ÓPTICA DO

GENIO MERCANTIL JESUÍTICO. Artigo. Jornal ´Treze Listras´, Cotia/Br., 1991.

MARCONDES, Renato Leite, & SUPRINYAK, Carlos Eduardo – MOVIMENTO DE TROPAS NO CENTRO-SUL DA COLÔNIA: ASPECTOS ESTRUTURAIS DO MERCADO DE ANIMAIS NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII. Estudos Históricos, Vol. 40, pp.47-69. Rio de Janeiro / Br., 2005.

MOREIRA, Sando César – O LEGADO DA CULTURA TROPEIRA. 2010.

RIBEIRO, José Hamilton – OS TROPEIROS. 2006.

TOLEDO, Francisco Sodero – ASPEREZA DO CAMINHO DO OURO. Revista UNIVAP, v. 1, p. 1-78.

São José dos Campos / Br., 2005.

Instituições Consultadas p/ Dados & Mapas Arquivo da Torre do Tombo [ATT], Ofícios da

Chancelaria. Lisboa/Pt.; Arquivo Histórico Ultramarino / Projeto Resgate [Doc´s da Capitania de São

Paulo. Vários e Coleção Mendes Gouveia; Doc´s da Capitania de Santa Catarina; Doc´s da Capitania do

Rio Grande de São Pedro. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro [consultas eletrônicas].

Alguns dos mapas foram pinçados da importante tese acadêmica COISAS DO CAMINHO /

TROPEIROS E SEUS NEGÓCIOS DO VIAMÃO À SOROCABA [1780-1810], de Tiago Luis Gil,

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Br., 2009; outros mapas e fotos são do Arquivo Particular de

João Barcellos, ou pinçados em fontes eletrônicas [Web] de consulta pública.

João Barcellos Escritor/Conferencista