o autor na modernidade - marco antonio (tese)
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O Autor Na Modernidade - Marco Antonio (Tese)TRANSCRIPT
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Marco Antnio Sousa Alves
O AUTOR EM CENA:
Uma investigao sobre a autoria e seu funcionamento na
modernidade
Belo Horizonte
Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas FAFICH/UFMG
2013
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Marco Antnio Sousa Alves
O AUTOR EM CENA:
Uma investigao sobre a autoria e seu funcionamento na
modernidade
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em
Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais
como requisito parcial para a obteno do ttulo de
Doutor em Filosofia.
Linha de Pesquisa: Filosofia Social e Poltica
Orientador: Rodrigo Antnio de Paiva Duarte
Co-orientador: Helton Machado Adverse
Belo Horizonte
Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas FAFICH/UFMG
2013
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Tese defendida e ____________________, com nota _________________ pela Banca
Examinadora constituda pelos Professores:
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Rodrigo Antnio de Paiva Duarte Filosofia/UFMG (orientador)
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Helton Machado Adverse Filosofia/UFMG (co-orientador)
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Guilherme Castelo Branco Filosofia/UFRJ
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Csar Candiotto Filosofia/PUC-PR
___________________________________________________________________________
Profa. Dra. Eliana Regina de Freitas Dutra Histria/UFMG
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Fabio Roberto Rodrigues Belo Psicologia/UFMG
Suplentes:
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Romero Alves Freitas Filosofia/UFOP
___________________________________________________________________________
Profa. Dra. Virginia de Arajo Figueiredo Filosofia/UFMG
Ps-Graduao em Filosofia da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte, 27 de janeiro de 2014.
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AGRADECIMENTOS
No sei como, nem por quem comear. So tantos A tantos
Ao Tales, meu filho que me acompanhou neste ltimo ano. Fez-me entender muitas
coisas, embora ele ainda, talvez, no entenda por que estive to absorto.
Carol, minha mulher amada, que fiz tanto penar em razo deste quase infindvel
trabalho. Agradeo, sobretudo, o apoio e a presena em minha vida, ao meu lado (de verdade)
desde h tanto tempo. Te amo!
Ao meu irmo quase-eu, Marco Aurlio, que de to prximo nem consigo assumir a
distncia necessria para agradecer. E qualquer palavra seria pouca e superficial.
minha me, que me ensinou o b--b, e ao meu pai, como agradecer? Sempre
presentes, sempre prontos, sempre apoiando e encorajando. Assim como meus irmos:
Marcelo, Mnica e Mrian. E meus sobrinhos. Tambm aos meus avs, tios, primos... Enfim,
famlia grande e prxima, que s me traz alegrias. E uma lembrana especial de meu av, que
me deu desde pequeno o gosto pelas palavras, cruzadas ou impressas nos livros.
Ao Prof. Rodrigo Duarte, meu orientador, meu muito obrigado pela abertura,
acolhendo meu projeto e permitindo-me realizar tantas mudanas de rumo (encorajando-me
sempre a seguir meu caminho). Obrigado tambm pela incrvel disponibilidade e pelo
profissionalismo exemplar.
Ao Prof. Helton Adverse, meu co-orientador, obrigado pela prestimosidade e,
sobretudo, por aceitar entrar em um barco j em pleno mar, oferecendo-me uma rica e
agradvel interlocuo.
Au Prof. Roger Chartier, mes plus vifs remerciements pour mavoir accueilli en
France de faon tellement chaleureuse et attentive, malgr ses nombreuses charges. Sa
comptence, sa rigueur et sa lucidit mont beaucoup appris. Sans aucun doute, ses
observations, dune rare acuit, ont chang lorientation de ma recherche.
Aos membros da banca, Professores Guilherme Castelo Branco, Csar Candiotto,
Eliana Dutra, Fbio, Romero e Virgnia, eu agradeo a disponibilidade que tiveram de
assumir a ingrata tarefa de ler e avaliar, durante as merecidas frias, tantas e tantas pginas
escrevinhadas. Peo desculpa por no ter tido o tempo, nem ter sido capaz, de ser mais breve.
Ao Prof. Eduardo, que contribuiu muito para este trabalho com suas consideraes
perspicazes e certeiras, um agradecimento especial. Sua estadia na Alemanha poupou-lhe da
penosa tarefa de ler essas quase quinhentas pginas (infelizmente, para mim).
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Aos professores do departamento de filosofia da UFMG, Verlaine, Giorgia, Rogrio,
Carlo, Alice, Ablio, Ernesto, Ester, Telma, Mauro, Patrcia, e todos os demais, deixo meu
muito obrigado por fazerem de minha experincia acadmica algo to rico e prazeroso.
Estendo esse agradecimento, de modo muito especial, aos professores, hoje j aposentados,
mas sempre em atividade, que tiveram um papel inestimvel em minha formao: Margutti,
Calvet, Maral e Miracy.
Andrea, funcionria exemplar, competente e compreensiva, obrigado por estar
sempre ao meu lado no enfrentamento dos meandros burocrticos.
Aos professores Ana Clark, Maria Ins e Teodoro Renn, da Faculdade de Letras da
UFMG, agradeo por me introduzirem nos estudos sobre a autoria na literatura, dos tempos
homricos ps-modernidade.
toutes les personnes formidables que jai eu la chance de faire connaissance Paris,
je remercie lattention et laide prcieuse. Je pense particulirement Jean-Yves Mollier,
Philippe Artires et Valrie Tesnire. Jadresse encore toute ma gratitude aux institutions,
notamment la Bibliothque nationale de France, qui mont permis de travailler dans daussi
bonnes conditions.
Aos meus amigos de sempre, David, Chico, Franck, agradeo a amizade sempre
enriquecedora e revigorante.
Ao tambm velho amigo Tiago, que se perdeu por a, agradeo por me ter feito parar
para pensar sobre esta e tambm muitas outras questes.
Aos amigos mais novos (alguns j bastante antigos), da Filosofia, Lincoln, Daniel de
Luca, Thiago Chaves, Guilherme, Mnica Herrera, Maria Jos, Joo Gabriel, Slvia,
Lenidas, Lcio, Arthur, Flvio Loque, Luiz Henrique, Cntia, Rodrigo Cssio, Felcio, Anna,
Rachel, Lucas, William, Peter, e da vida afora, Decat, T, Roberta, J, Alexandro, Anderson,
Lucas, Andr Rubio, Guga, Lo Pontes, Kirlian, Pompeu e tantos outros, que no poderia
nomear todos, meu muito obrigado, fico feliz simplesmente pelo fato de serem como so.
Cada um, sua maneira, contribuiu para meu trabalho e para minha formao como
acadmico e como pessoa.
CAPES e ao CNPq, agradeo pelas bolsas recebidas, respectivamente, no Brasil e
na Frana.
A todos aqueles que de alguma forma contriburam para este trabalho e que minha
memria me trai neste momento, meu muito obrigado. Perdoem-me e saibam que o fato de
permanecerem na sombra no diminui em nada a importncia de vocs.
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Lmergence, cest donc lentre en scne des forces, cest leur irruption [] lmergence dsigne un lieu daffrontement
M. Foucault, Nietzsche, la gnalogie,
lhistoire, 1971.
[] mes livres sont pour moi des expriences, dans un sens que je voudrais le plus plein
possible. Une exprience est quelque chose
dont on sort soi-mme transform.
M. Foucault, Conversazione con Michel
Foucault (Entretien avec Michel Foucault),
1980.
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RESUMO
Pensemos na seguinte figura: o autor proprietrio de sua obra. De to trivial que ela , tendemos a
pensar que sempre existiu, ainda que assumindo diferentes roupagens. Mas o autor e sua obra so
muito mais contingentes e instveis do que parecem. Convm assim se perguntar: quando emergiu
essa figura e como ela funciona? Como o sujeito se relaciona com o discurso, conferindo a este
uma unidade autoral? E desde quando passou a ser concebvel que um discurso pudesse ser
atribudo a um indivduo e apropriado por algum? Em certa medida, pretendo responder essas
perguntas nesta tese, partindo de uma perspectiva foucaultiana, segundo a qual o autor moderno
concebido como uma maneira de organizar o discurso, uma determinada especificao da funo-
sujeito e um complexo mecanismo de poder. A tese est estruturada em trs partes: (1) um estudo
inicial da noo de autor no pensamento de Foucault, visando fornecer elementos para a
investigao que se segue; (2) uma breve anlise da funo-autor e das relaes estabelecidas
entre autor, discurso, sujeito e poder, seguida de um estudo metodolgico visando fixar as linhas
bsicas de uma abordagem genealgica; (3) uma pequena genealogia do autor na modernidade.
Nesta ltima parte, embora o foco da pesquisa seja a emergncia do autor proprietrio de sua obra,
entendo ser preciso levar em considerao um perodo histrico mais amplo para podermos
analisar como a complexa e multiforme funo-autor passou a operar na modernidade, como o
autor ganhou autoridade e assumiu responsabilidades para, por fim, tornar-se dono de sua obra.
Em suma, sero consideradas trs camadas histricas. Primeiro, o aparecimento do autor como
auctoritas nos sculos XIV e XV, em associao com as mutaes da cultura escrita. Em segundo
lugar, o surgimento do autor como transgressor, responsvel por sua criao, nos sculos XVI e
XVII, em associao com o desenvolvimento da imprensa, da censura e de novas formas de
controle e consagrao social do autor. E, por fim, a emergncia do autor como proprietrio no
sculo XVIII, em associao com as mudanas no direito, no regime literrio, no mercado livreiro
e nos discursos estticos e morais. Embora esta tese possa parecer, primeira vista, um longo
estudo histrico bem distante das questes atuais, creio que essa volta ao passado se justifica em
razo de algumas urgncias de nosso tempo. Estamos vendo emergir novas tecnologias de poder
e novas posies-sujeito, que parecem apontar para novas formas de unificao e apropriao dos
discursos, agora tomados como informaes em uma grande rede compartilhada e mutante. A
tese, de certa forma, pretende ser um trabalho histrico-filosfico que assume uma postura
propriamente crtica, como um exerccio de transformao, de mudana de nosso modo de ser,
que nos permite pensar e agir diferentemente.
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ABSTRACT
Consider the following picture: the author as the owner of her work. It is so trivial that we tend to
think of it as having always existed, perhaps under different disguises. But the author and her
work are much more contingent and unstable than they seem to be. The following questions then
come forth: when did this figure emerge, and how does it work? How is the subject related to the
discourse, so that it is given an authorial unit? And since when has it become conceivable that a
discourse can be attributed to an individual and it can be owned by someone? To a certain extent,
my aim here is to answer these questions from a Foucauldian perspective, according to which the
modern author is conceived, at the same time, as a way of organizing the discourse, a certain
specification of the subject-function, and a complex mechanism of power. This dissertation is
structured in three parts: (1) an initial study of Foucault's notion of author that aims at providing
the needed elements for the investigation to come; (2) a short analysis of the author-function and
of the relationship between author, discourse, subject, and power, which is then followed by a
methodological survey that aims to establish the basic guidelines of a genealogical approach; (3) a
short genealogy of the author in modernity. In this last part, even though the main focus of my
dissertation is the emergence of the author as the owner of her work, I find it necessary to take
into account a broader historical period, so that I can analyze how the complex and multifaceted
author-function has operated in modernity, and how the author has acquired authority and
assumed responsibilities until she could finally become the owner of her work. In short, I consider
three historical stages. First, the emergence of the author as auctoritas, in association with some
changes in the writing culture, in the fourteenth and fifteenth centuries. Secondly, the emergence
of the author as a transgressor, who is responsible for her creations, in association with the
development of the press, the censorship, and the new forms of controlling and consecrating the
author, which occurred in the sixteenth and seventeenth centuries. Finally, the emergence of the
author as the owner, in association with some changes in the law, the literary system, the book
market, and in aesthetic and moral discourses, in the eighteenth century. Even though this
dissertation may seem, at a first glance, a long and distant historical study, far removed from
current issues, I believe that this "return to the past" is called for by the urgencies of the present".
We witness now the emergence of new subject-positions and new technologies of power, which
seem to indicate new forms of unifying and appropriating discourses, which are now understood
as a huge, shared and ever-changing information network. This dissertation, to some extent, is
intended to be a historical and philosophical analysis that encompasses a critical attitude,
understood here as a transforming exercise, i.e., an activity that changes our way of being and
allows us to think and act differently.
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RSUM
Envisageons limage suivante : lauteur propritaire de son uvre. Si trivial quil est, on a
tendance penser quil a toujours exist, quoique avec diffrents habillements. Mais l'auteur et
son uvre sont beaucoup plus contingents et instables qu'ils donnent limpression de ltre. Il
convient donc de se poser les questions suivantes : quand cette figure a merg et comment
fonctionne-elle ? Comment sujet et discours se relient-ils ? Et depuis quand est devenu concevable
qu'un discours puisse tre attribu un individu et appropri par quelqu'un ? Dans une certaine
mesure, je compte rpondre ces questions partir d'une perspective foucaldienne, selon laquelle
l'auteur moderne est conu comme un principe dorganisation du discours, une spcification
particulire de la fonction-sujet et un mcanisme complexe de pouvoir. La thse est structure en
trois parties : (1) une tude prliminaire de la notion d'auteur chez Foucault, visant fournir des
lments pour linvestigation qui suit, (2) une courte analyse de la fonction-auteur et des relations
tablies entre l'auteur, le discours, le sujet et le pouvoir, suivie d'une tude mthodologique dans
le but de fixer les lignes fondamentales d'une approche gnalogique, (3) une petite gnalogie de
l'auteur dans la modernit. Dans cette dernire partie, bien que l'accent de la recherche soit
l'mergence de lauteur propritaire de son uvre, je crois qu'il faut tenir en compte une priode
historique plus large en vue d'analyser comment la complexe et multiforme fonction-auteur a
fonctionn dans la modernit, comment l'auteur a acquis autorit, comment il a assum des
responsabilits et, enfin, comment il est devenu propritaire de son uvre. En bref, trois couches
historiques seront prises en considration. Tout d'abord, l'mergence de l'auteur comme auctoritas
dans les XIVe et XVe sicles, en association avec les mutations de la culture crite.
Deuximement, l'apparition de l'auteur comme un transgresseur, responsable par sa cration, dans
les XVIe et XVIIe sicles, en liaison avec le dveloppement de la presse, de la censure, et des
nouvelles formes de contrle et de conscration sociale de l'auteur. Et finalement, l'mergence de
l'auteur en tant que propritaire au XVIIIe sicle, en liaison avec les transformations dans le droit,
le rgime littraire, le march du livre et les discours esthtiques et moraux. Bien que ce travail
puisse paratre, premire vue, une longue recherche historique loigne des questions actuelles,
je crois que ce retour au pass se justifie en raison de certaines urgences de notre temps .
Nous assistons prsent lmergence de technologies de pouvoir et de positions-sujet indites,
qui semblent indiquer larrive des nouvelles formes dunification et d'appropriation des discours,
pris maintenant comme des informations dans un grand rseau partage et en constante mutation.
La thse, en quelque sorte, se prtend un travail historique et philosophique qui revendique une
attitude proprement critique, comme un exercice de transformation, de changement de notre
manire d'tre, qui nous permet de penser et d'agir diffremment.
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LISTA DE ABREVIATURAS 1
AN Os anormais (Les Anormaux: cours au Collge de France, 1974-1975).
AS A arqueologia do saber (Larchologie du savoir, 1969).
CV A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II (Le Courage de la
vrit: le Gouvernement de soi et des autres II - cours au Collge de France,
1983-1984)
DE1 Ditos e Escritos (Dits et crits, vol. 1, 1954-1975)
DE2 Ditos e Escritos (Dits et crits, vol. 2, 1976-1988)
GSA O governo de si e dos outros (Le Gouvernement de soi et des autres I: cours au
Collge de France, 1982-1983)
GV Do governo dos vivos (Du gouvernement des vivants: cours au Collge de
France, 1979-1980)
HF Histria da loucura na idade clssica (Histoire de la Folie lge classique,
1961)
HS A hermenutica do sujeito (L'Hermneutique du sujet: cours au Collge de
France, 1981-1982)
HS1 Histria da sexualidade 1: a vontade de saber (Histoire de la sexualit I: la
volont de savoir, 1976)
HS2 Histria da sexualidade 2: o uso dos prazeres (Histoire de la sexualit II:
lusage des plaisirs, 1984)
1 Esta lista refere-se aos livros de Michel Foucault citados na tese, que so os nicos referidos de forma
abreviada. Informa-se, aqui, apenas o ttulo das obras (em portugus e francs) e o ano da primeira publicao
(ou da apresentao pblica). Os demais dados dessas obras consultadas encontram-se ao final, juntamente com
outras observaes pertinentes ao modelo adotado especialmente para se referir aos textos foucaultianos
(seguindo um procedimento comumente usado por seus comentadores). Quanto aos demais autores, suas obras
aparecem nas referncias bibliogrficas, conforme prescreve as regras da ABNT.
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HS3 Histria da sexualidade 3: o cuidado de si (Histoire de la sexualit III: le souci
de soi, 1984)
IDS Em defesa da sociedade ( Il faut dfendre la socit : cours au Collge de
France, 1975-1976)
LVS Aulas sobre a vontade de saber (Leons sur la volont de savoir: cours au
Collge de France, 1970-1971)
MC As palavras e as coisas: uma arqueologia das cincias humanas (Les mots et les
choses: une archologie des sciences humaines, 1966)
NB Nascimento da biopoltica (Naissance de la biopolitique: cours au Collge de
France, 1978-1979)
NC Nascimento da clnica (Naissance de la clinique, 1963)
OD A ordem do discurso (Lordre du discours: leon inaugurale au Collge de
France, 1970)
PP O poder psiquitrico (Le Pouvoir psychiatrique: cours au Collge de France,
1970-1971)
RR Raymond Roussel (Raymond Roussel, 1963)
SP Vigiar e punir: nascimento da priso (Surveiller et punir: naissance de la
prison, 1975)
STP Segurana, territrio, populao (Scurit, territoire, population: cours au
Collge de France, 1977-1978)
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SUMRIO
INTRODUO 1
1. O AUTOR (EM) FOUCAULT: UM COMENTRIO INTRODUTRIO 4
1.1. Os anos sessenta: autoria, linguagem e experincias transgressoras de pensamento
1.2. O autor em foco na virada da dcada (1969-1970)
a. O autor em A arqueologia do saber
b. O autor na conferncia O que um autor?
c. O autor em A ordem do discurso
1.3. Os anos setenta e oitenta: autoria, poltica e tica
1.4. O riso de Foucault: do comentrio utilizao
7
51
55
71
91
102
119
2. O AUTOR EM QUESTO: ABRINDO A CAIXA DE FERRAMENTAS 150
2.1. O funcionamento do autor: discurso, sujeito e poder
2.2. Diagnosticar o autor: uma experincia crtico-filosfica
153
173
2.3. Para uma genealogia do autor na modernidade
a. Uma histria do autor
b. Uma anlise dos mecanismos do poder autoral
c. Domnios estratgicos: o dispositivo da autoria e a construo do autor
185
191
206
231
3. O AUTOR EM CONSTRUO: UMA GENEALOGIA DO AUTOR NA MODERNIDADE 244
3.1. O autor como autoridade: mutaes na ordem dos livros e as novas auctoritates
3.2. O autor como transgressor: impresso, censura e privilgios reais
3.3. O autor como proprietrio no sculo XVIII
a. O mercado do livro: a emergncia do autor comercial e do editor moderno
b. O direito autoral: o nascimento do copyright, do droit dauteur e o debate alemo
c. A esttica autoral: a elevao do gnio criador e o advento da crtica biografista
254
300
338
343
368
396
CONCLUSO 433
Ilustraes 437
Referncias a Michel Foucault: observaes e dados bibliogrficos 447
Referncias bibliogrficas 452
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1
INTRODUO
Pensemos na seguinte figura: o autor proprietrio de sua obra. De to trivial que ela ,
tendemos a pensar que sempre existiu, ainda que assumindo diferentes roupagens. Somos
inclinados a crer, em suma, que haveria algo a de invarivel e universal. Mas o autor e sua
obra so muito mais contingentes e instveis do que parecem. A figura do autor foi
naturalizada, tornada evidente ao longo da modernidade por uma srie de fatores que
envolvem sua consagrao jurdica, econmica, social e crtica. Convm assim se perguntar:
como emergiu essa figura e como ela funciona? Desde quando passou a ser concebvel que
um discurso pudesse ser atribudo a um indivduo e apropriado por algum? Como o sujeito se
relaciona com o discurso, conferindo a este uma unidade autoral? Para responder essas
perguntas, no basta analisar apenas as mudanas legais, os discursos tericos ou a
mentalidade de uma poca, pois estamos diante de algo que emerge de uma complexa
articulao dos discursos mais heterogneos com diversas prticas. A relao entre autoria e
propriedade, estabelecida claramente no sculo XVIII, encontra suas condies de apario
em mltiplos fatores, que exigiram da presente tese uma extenso temporal da anlise e
tambm um aumento do escopo da pesquisa. De certa forma, vemos no autor moderno uma
maneira de organizar o discurso, uma determinada especificao da funo-sujeito e um
complexo mecanismo de poder.
Para enfrentar esse desafio, que constitui o objetivo desta tese, terei um guia principal:
Michel Foucault. Este guia ser til ao menos de trs maneiras diferentes. Primeiro, ele
fornecer uma reflexo de base sobre o tema, ou seja, uma abordagem sobre o que um autor.
Em segundo lugar, fornecer as linhas fundamentais da metodologia empregada, que podemos
nomear de genealgica, e um pano de fundo filosfico, que permitir situar este trabalho
como um estudo histrico-crtico regional. Em terceiro lugar, partirei de algumas de suas
consideraes na tentativa de delinear uma genealogia do autor na modernidade.
Apesar da importncia desse guia, este trabalho no pretende ser apenas um
comentrio ou uma interpretao de sua obra. Apenas em um primeiro momento recorrerei a
esse artifcio, quando do estudo da noo de autor no pensamento de Foucault. Esse estudo
encontra sua justificativa uma vez que entendo que no foi ainda realizada uma leitura mais
aprofundada e completa dessa noo em Foucault (embora exista uma infinidade de leituras
parciais, geralmente focalizando a questo literria ou metodolgica). Esse comentrio inicial
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2
visa fornecer instrumentos para as anlises que se seguem. Como na metfora apresentada por
Wittgenstein no aforismo 6.54 do Tractatus logico-philosophicus, trata-se de uma escada que,
aps ter-se subido por ela, deve ser jogada fora (cf. WITTGENSTEIN, 2001, p. 281). Em
suma, no pretendo fazer de meu guia um guru. Gostaria de evitar a mania do texto, o simples
recurso a uma referncia que autentica e legitima. Respondendo a um pedido do prprio
Foucault, procurarei tomar seus textos, idias e anlises como ferramentas, que empregarei na
medida em que se mostrarem teis para meus fins. Ao invs de leitor, pretendo ser, sobretudo,
um utilizador de Foucault. Sendo assim, meu guia ser, em certo sentido, deformado em cada
uso (e aos meus leitores cabe a tarefa de avaliar a fidelidade ou legitimidade desses usos). Em
suma, partindo da abordagem foucaultiana da noo de autor, de seus projetos metodolgicos
(em particular de suas pesquisas genealgicas) e de suas rpidas consideraes sobre a
emergncia do autor na modernidade, pretendo desenvolver uma anlise do autor e delinear
uma pequena genealogia.
A tese est estruturada em trs partes. A primeira (Captulo 1) mais propriamente um
excurso inicial dedicado ao estudo da noo de autor no pensamento de Foucault, visando
fornecer elementos para uma anlise do autor a ser desenvolvida para alm de Foucault. A
segunda parte (captulo 2) situa a proposta da tese no interior de uma abordagem genealgica
e desenvolve uma pequena anlise da funo-autor e das relaes estabelecidas entre autor,
discurso, sujeito e poder. Alm disso, realiza-se nela um estudo metodolgico na tentativa de
estabelecer as linhas bsicas da abordagem genealgica do autor na modernidade. A terceira e
ltima parte da tese (captulo 3) procura levar adiante uma pequena anlise genealgica da
figura do autor. Embora o foco desta tese seja a emergncia do autor proprietrio de sua obra,
entendo ser preciso levar em considerao um perodo histrico mais amplo para podermos
analisar como a complexa e multiforme funo-autor passou a operar na modernidade, como
o autor ganhou autoridade e assumiu responsabilidades para, por fim, tornar-se dono de sua
obra. Sua emergncia ser analisada, ento, a partir de trs camadas histricas: o
aparecimento do autor como auctoritas nos sculos XIV e XV (em associao com as
mutaes da cultura escrita), o surgimento do autor como transgressor, responsvel por sua
criao, nos sculos XVI e XVII (em associao com o desenvolvimento da imprensa, da
censura e de novas formas de controle e consagrao do autor), e, por fim, a emergncia do
autor como proprietrio no sculo XVIII (em associao com as mudanas no direito, nos
discursos estticos e morais, no regime literrio, no mercado livreiro e nas prticas de
produo, circulao e recepo).
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3
Embora esta tese possa parecer, primeira vista, um longo estudo histrico bem
distante das questes atuais, creio que essa volta ao passado justifica-se em razo de
algumas urgncias de nosso tempo. Entendo que o autor, tomado como um construto
moderno, est sofrendo uma profunda transformao. Estamos diante de uma radical
reformulao da ordem dos discursos, que coloca em questo a forma-livro e a autoridade
autoral, alm de subverter as formas de controle e os modelos comerciais estabelecidos desde
o sculo XVIII. Estamos vendo emergir novas tecnologias de poder e novas posies-sujeito,
que parecem apontar para o anonimato do murmrio ou para novas formas de unificao e
apropriao dos discursos, agora tomados como informaes em uma grande rede
compartilhada e mutante. Embora no enfrente esses temas diretamente neste trabalho (o que
poderia ser e desejaria que fosse objeto de um estudo futuro), espero que as consideraes
aqui realizadas sejam capazes de jogar alguma luz sobre as questes atuais e que elas possam
preparar-nos melhor para as novas batalhas que se apresentam, alterando nossa percepo e
provocando a estranheza indispensvel para o exerccio crtico.
Para alm de um trabalho acadmico, realizado por um filsofo profissional dentro
de sua disciplina ou especialidade, que contribui para a hermenutica de uma obra ou
desenvolve um estudo histrico e conceitual de seu objeto (tomado como algo externo,
distante de sua experincia), gostaria de reivindicar para este trabalho uma outra dimenso,
algo como uma atitude crtico-filosfica que se volta sobre ns mesmos e visa levar adiante
uma experincia transformadora de pensamento. Ao problematizar a noo moderna de autor
e procurar analisar sua emergncia e seu funcionamento, a presente tese possui um carter
claramente reflexivo, que tem por objeto nossa prpria posio no discurso e o estatuto
mesmo desta obra. Ao produzir esta tese, erijo-me como autor: exero uma autoridade,
assumo responsabilidades e detenho sobre este texto certos direitos de ordem moral e
patrimonial. Em certo sentido, este trabalho procura analisar essa posio mesma que assumo
no discurso ao produzir esta tese. Trata-se, nesses termos, de uma crtica de ns mesmos, das
maneiras de pensar e agir que so ainda, em grande medida, as nossas. Em suma, a nossa
prpria ordem do discurso, com suas posies-sujeito e seus mecanismos de poder, que est
em questo. Sendo assim, este trabalho histrico-filosfico assume uma postura propriamente
crtica, como um exerccio de transformao, de mudana de nosso modo de ser, que nos
permite pensar e agir diferentemente.
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CAPTULO 1
O AUTOR (EM) FOUCAULT:
UM COMENTRIO INTRODUTRIO
Mon travail personnel [] sera anonyme, le Texte y parlant de lui-mme et sans voix dauteur.
S. Mallarm, Autobiographie: Lettre Verlaine,
1885.
Il ny a plus doriginal, mais une ternelle scintillation o se disperse, dans lclat du dtour et du retour, labsence dorigine.
M. Blanchot, Le rire des dieux, 1965.
O que um autor? Que sujeito esse e qual sua funo no discurso? Como ele se
relaciona com o ato da escrita e com a constituio de uma obra? Essas e outras questes
relativas ao problema da autoria esto presentes de diferentes maneiras no pensamento de
Foucault, sobretudo ao longo dos anos sessenta do sculo passado. Verifica-se a presena
dessas questes em diversos textos dedicados experincia literria, assim como em reflexes
mais propriamente metodolgicas a partir de meados dos anos sessenta, sem esquecer, por
bvio, a clebre conferncia intitulada O que um autor?, pronunciada em 1969. Trata-se,
como pretendo mostrar, de um tema recorrentemente trabalhado por Foucault e que assume
grande importncia em seu pensamento. Ao todo, se levarmos em considerao o
levantamento feito por Edgardo Castro em seu estudo do vocabulrio de Foucault, so quase
trezentas referncias noo de autor que encontramos nos trabalhos foucaultianos, embora,
em alguns casos, de forma trivial e sem rigor conceitual (cf. CASTRO, 2009, p. 47-8).
Muito j foi escrito sobre o tema do autor em Foucault. De maneira geral, as leituras
feitas nesse domnio tendem a privilegiar a questo do desaparecimento do autor na escrita
literria. Embora seja um ponto importante, entendo que a reflexo foucaultiana sobre o autor
diverge substancialmente da tese da morte do autor la Blanchot ou Barthes. Alm disso, ela
no se restringe a um problema de teoria literria, possuindo uma dimenso eminentemente
filosfica. Mesmo no incio dos anos sessenta, quando Foucault demonstrava um grande
fascnio por certas escritas literrias, entendo que seu interesse foi voltado primordialmente
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para as experincias de pensamento ali presentes e no exatamente para a linguagem literria
por si mesma (tema que, alis, tende a desaparecer de seus estudos posteriores). Dentro desse
vis mais propriamente literrio, a maior parte das leituras de Foucault no suficientemente
atenta riqueza dessa noo, que est associada a uma anlise dos modos de existncia dos
discursos e tambm a uma crtica filosfica mais geral noo de sujeito.
Alm dessa abordagem de vis literrio (ps-nietzschiana ou estruturalista), tambm
comum encontrarmos leituras do tema do autor em Foucault que tendem a limitar-se questo
metodolgica, ou seja, s crticas que Foucault dirigiu s categorias de autor, obra e
disciplina, tomadas como princpios que permitiriam conferir unidade aos discursos. Nesse
sentido, a crtica ao autor est associada proposta da anlise arqueolgica, que no faz (ou
no pretende fazer) referncia psicologia ou biografia pessoal de um indivduo como meio
de organizao discursiva e de atribuio de sentido. Mais uma vez, entendo que tratar o
problema do autor por uma chave apenas metodolgica uma reduo, ainda que no seja,
por bvio, um engano.
Acredito que, em grande medida, essas leituras comumente realizadas no levam em
conta o desenvolvimento dessa questo no pensamento de Foucault como um todo, o que
exige o recurso aos demais livros publicados nos anos sessenta e, sobretudo, a um vasto
material contido nos Ditos e escritos. Embora muitas interpretaes dessa fase do pensamento
foucaultiano j tenham sido feitas, normalmente no se dedicou uma ateno especial
questo do autor, ainda que seja impressionante observar o quanto o tema recorrente nos
textos e entrevistas de Foucault da poca.
O objetivo desta primeira parte da tese, que consiste justamente em seguir o percurso
foucaultiano na tentativa de explicitar como a noo de autor abordada, pode ser, portanto,
caracterizado como um comentrio da obra foucaultiana. A estruturao bsica desse
comentrio ser construda sobre trs blocos temporais: o pensamento de Foucault dos anos
sessenta, a virada dos anos sessenta para os setenta, e os desenvolvimentos realizados nas
dcadas seguintes at sua morte, em 1984. Embora a estrutura adotada procure seguir a
cronologia dos textos de Foucault, importante ressaltar que a anlise a ser empreendida
privilegiar um tratamento temtico, sendo os temas apenas situados em certos momentos
genericamente considerados do percurso foucaultiano. Ainda que veja em Foucault um
pensador que conferiu maior ou menor importncia a determinados temas em certos
momentos de seu itinerrio intelectual, a descrio desse percurso no deve ser feita de forma
estanque e linear. Em outras palavras, a opo adotada da forma de apresentao temtico-
cronolgica no deve conduzir ilusria imagem de um mito Foucault, para empregar o
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termo utilizado por Hasumi em uma entrevista concedida por Foucault no Japo (cf.
FOUCAULT, 1977, DE2, 216, p. 399). O que se entende por mito Foucault so os vrios
Foucault devidamente classificados e situados no tempo: o Foucault contestador, que
passeou pelo domnio suspeito da loucura e da literatura, o Foucault estruturalista, metdico e
srio, o Foucault engajado e poltico dos anos setenta e, poderamos acrescentar, o Foucault
helenfilo e latinfilo dos anos oitenta, voltado para questes ticas. Contrariamente a essa
viso linear simplista, gostaria de ressaltar como o pensamento de Foucault marcado,
tambm no que diz respeito ao tema do autor, por vrias idas e vindas, por importantes
retomadas, por inmeros deslocamentos e por significativas mudanas de foco.
A exposio que se segue ser dividida em quatro partes. Primeiramente (1.1.), ser
feita uma anlise do aparecimento do tema do autor no pensamento de Foucault dos anos
sessenta, ligado questo das experincias transgressoras de pensamento e da reflexo sobre
a linguagem e a escrita literria. Nesse momento, pretendo apresentar algumas anlises
realizadas por Foucault que colocaram em questo as noes de autor e de obra, juntamente
com a crtica literria, e gostaria tambm de tratar da relao dessas questes com o
pensamento estruturalista corrente em Paris na poca. Em seguida (1.2.), realizarei uma
leitura mais detalhada da idia de funo-autor, tal como ela desenvolvida no final dos anos
sessenta e incio dos setenta, tendo por base trs textos: A arqueologia do saber (1969), a
conferncia intitulada O que um autor? (1969) e a aula inaugural no Collge de France que
tem como ttulo A ordem do discurso (1970). Em um terceiro momento (1.3.), gostaria de
traar alguns apontamentos de como a noo de autor aparece (e desaparece ou modifica-se)
no pensamento de Foucault dos anos setenta at sua morte, em 1984, perodo no qual as
questes literrias e epistemolgicas cederam espao aos problemas mais propriamente
polticos e, posteriormente, ticos. Por fim (1.4.), analisarei a postura assumida pelo prprio
Foucault diante de sua obra, o que nos convida a problematizar a prpria prtica do
comentrio (que caracteriza esse percurso inicial da tese) e incita-nos a realizar uma mudana:
ao invs da obra, voltarei meu olhar para as experincias de pensamento.
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1.1. Os anos sessenta: autoria, linguagem e experincias transgressoras de pensamento
Woher nehme ich den Begriff Denken? Warum glaube ich an Ursache und Wirkung? Was giebt
mir das Recht, von einem Ich, und gar von einem
Ich als Ursache, und endlich noch von einem Ich
als Gedanken-Ursache zu reden?
F. Nietzsche, Jenseits von Gut und Bse, 16,
1886.
Quest-ce que cest que penser, quest-ce que cest que cette exprience extraordinaire de la pense?
M. Foucault, Dbat sur le roman, 1964.
inegvel que a linguagem literria um tema recorrente nos primeiros textos de
Foucault. Entre 1961 e 1970, ou seja, entre Histria da loucura e A ordem do discurso, h
mais de vinte textos de Foucault sobre escritores ou entrevistas que abordam temas literrios.
Esses textos tenderam a despertar pouco interesse entre os filsofos comentadores de
Foucault, que foram tentados, em sua maior parte, a pensar que se tratava apenas de uma
produo lateral e anedtica. Embora seja indiscutvel que o interesse de Foucault pelas
questes literrias no perdurar a partir dos anos setenta (pelo menos no da mesma
maneira), entendo que dessa alterao de rota no devemos simplesmente retirar a concluso
de que esse era um interesse secundrio e menor de um Foucault ainda jovem (cf. ADORNO
F.P., 1996, p. 27-8). Nesse sentido, concordo quando Roberto Machado ressalta a importncia
desses textos e do tema literrio no percurso foucaultiano, afirmando que os estudos de
Foucault sobre Blanchot, Roussel e Bataille no so simples ornamentos sua produo
histrico-filosfica, e que o fato de ele no ter desenvolvido uma arqueologia da literatura de
forma mais sistemtica no significa que seu interesse pela literatura tenha sido passageiro,
espordico ou marginal, como se poderia pensar, considerando o carter disperso e
desordenado de seus textos sobre o tema (MACHADO, 2005, p. 11).
preciso reconhecer que a questo da literatura aparece em diferentes momentos nos
textos de Foucault, com mltiplos significados e servindo a fins diversos. Como
caracterstico em Foucault, ele est sempre redimensionando suas anlises, sua metodologia,
seus objetos de investigao e seus pressupostos. No incio dos anos sessenta, momento de
maior proximidade com a literatura, o tema do autor aparecer no pensamento de Foucault
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associado a diversas questes, como a loucura, a morte, a experincia trgica, a transgresso
literria, as novas formas de pensamento, ou ainda o problema do ser da linguagem. Assim, o
autor insere-se em uma complexa rede de questes, que dizem respeito, direta ou
indiretamente, escrita literria. O objetivo inicial desta tese pode ser assim resumido:
mostrar como o tema do autor foi tratado no seio desse emaranhado de problemas.
Em uma conferncia intitulada Literatura e linguagem, proferida em Bruxelas em
1964 (que s veio a ser publicada postumamente), Foucault deixou claro que a transgresso
ou a fala transgressiva (parole transgressive) uma figura exemplar e paradigmtica daquilo
que a literatura (cf. FOUCAULT, 1964, p. 86, 104). Apesar de ser visvel nos textos de
Foucault do incio dos anos sessenta uma grande atrao pela experincia literria, preciso
deixar mais claro o que exatamente interessa Foucault. Mais do que a literatura, como gnero
ou forma de expresso artstica, o que atrai Foucault a experincia de linguagem, ou, em
outras palavras, as experincias radicais de pensamento que transitam pelos limites da
linguagem. No a literatura enquanto tal, mas o gesto que se vale dela como estratgia de
batalha contra a hegemonia do sentido (cf. ARTIRES; BERT; POTTE-BONNEVILLE;
REVEL, 2013, p. 15).
Essas experincias no remetem a algo pessoal e privado, inscrito no domnio da
interioridade, mas, ao contrrio, colocam a prpria unidade do sujeito em questo e o
pressionam para fora de si mesmo. Sendo assim, j nesse perodo, vemos em Foucault um
interesse pelas experincias de pensamento que colocam em questo a linguagem e a posio
do sujeito. O autor e a obra so, j nessa poca, vistos como princpios ordenadores, que
caracterizam uma forma de pensar determinada e que podem ser superados, como acreditava
Foucault no incio dos anos sessenta, por outra forma transgressiva ou subversiva de pensar.1
Esse interesse por outras formas de pensar acompanha, de certa maneira, todo
percurso foucaultiano. Ele se manifesta, nesse primeiro momento, como um grande
entusiasmo pela escrita literria contempornea, assim como por alguns temas tradicionais,
quando se trata de pensar o limite do pensamento, como a loucura e a morte. Comecemos
ento analisando essas duas experincias-limite.
1 Essa forma de pensar transgressiva no deve ser compreendida em termos poltico-partidrios. importante
ressaltar que o carter subversivo ou transgressor que Foucault, nos anos sessenta, acredita encontrar na
literatura, no est associado a uma escrita engajada, comprometida diretamente com uma causa revolucionria.
O ato de escrever (lacte dcrire), como uma fora de contestao, nada tem a ver com a posio poltica daquele que escreve. Tal possibilidade seria visvel, por exemplo, em Blanchot, cuja postura mais conservadora
(por vezes de extrema direita) nada teria diminudo da fora transgressora de sua escrita. Em suma, a escrita
que mantm, em si mesma, a funo subversiva (cf. FOUCAULT, 1970, DE1, 82, p. 982-3).
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A loucura claramente uma experincia arrebatadora que parece apontar para os
limites da linguagem e da razo. O interesse de Foucault pela loucura no incio dos anos
sessenta pode ser aproximado e inserido no bojo de uma pesquisa mais geral acerca das
experincias transgressivas de pensamento. Nesse sentido, observa Roberto Machado que
tanto a anlise arqueolgica da loucura quanto a reflexo sobre loucura e literatura esto
ordenadas pelas noes de limite e de transgresso (MACHADO, 2005, p. 36). O louco pode
ser tido por um transgressor, algum que desafia os princpios ordenadores do discurso e,
dessa maneira, transita perigosamente para alm do universo do sentido, em uma espcie de
no-linguagem. Tambm a literatura moderna flerta, em grande medida, com o lado de fora
(dehors), questionando os princpios ordenadores, como as noes de autor e de obra, e
transgredindo os limites estabelecidos. Essa transgresso, que tanto interessou o Foucault
desse perodo, embora tambm tenha uma dimenso poltica, mais propriamente vista como
algo excessivo, descontrolado, que caminha para o inslito, para alm dos limites da
normalidade.
Na Histria da loucura, publicado originalmente em 1961 e considerado por muitos o
primeiro grande livro de Foucault (resultante de sua tese de doutorado), h vrias passagens
nas quais Foucault aproxima a loucura de certas experincias literrias.
Escritores/artistas/transgressores (como Nietzsche, Hlderlin, Van Gogh, Artaud, Roussel,
Sade ou Goya) teriam feito emergir a surda conscincia trgica da loucura que a tradio
humanista e seu inevitvel cortejo da razo tendeu a mascarar na forma da stira social,
sendo a loucura vista apenas de longe, como ocorre no riso de Erasmo (cf. FOUCAULT, HF,
p. 36, 53). Como na desordem trgica, o murmrio confuso da loucura misturaria sombra e
luz no interior do furor da demncia, com a diferena de que o louco, ao contrrio do heri
trgico, no mais portador da verdade, mas sim excludo do ser e obscurecido pelas iluses
do sonho (cf. FOUCAULT, HF, p. 264).
A loucura, tomada como uma experincia trgica, encontra na literatura a partir do
sculo XIX seu local privilegiado de manifestao, renascendo ento como exploso lrica
(clatement lyrique) (cf. FOUCAULT, HF, p. 537). A imagem da nau dos loucos
(Narrenschiff) analisada por Foucault, que ilustra bem a situao limiar do louco e de sua
experincia trgica, tomada como uma viagem para outro mundo, a Passagem absoluta
(labsolut Passage), pode ser aproximada da experincia literria transgressora, que se situa
tambm no limiar (cf. FOUCAULT, HF, p. 22). A loucura reaparece assim no domnio da
linguagem, mas de uma linguagem do fim ltimo e do recomeo absoluto, do homem que
encontra na noite mais sombria a luz do recomeo, deparando-se, no fundo de si mesmo, com
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os sonhos mais incompreensveis (cf. FOUCAULT, HF, p. 369, 535-6). Em suma, o que atrai
Foucault na relao literatura/loucura a possibilidade de uma experincia trgica da
linguagem, que permitiria transgredir a ordem instituda do discurso.2
A influncia de Nietzsche j se faz sentir claramente nessa leitura de Foucault, o que
permite situar a Histria da loucura no interior de um movimento de redescoberta de outro
Nietzsche na Frana.3 Segundo Foucault, a crtica nietzschiana testemunha que a conscincia
da loucura permanece viva no corao de nossa cultura, preservando seu poder de
contestao, ainda que ela possa receber apenas uma formulao lrica (cf. FOUCAULT, HF,
p. 188). Em sua leitura, Roberto Machado sustenta que h uma homologia estrutural
surpreendente entre O nascimento da tragdia e a Histria da loucura, no sendo sem razo
que Foucault declarou no prefcio que seu livro foi escrito sob o sol da grande pesquisa
nietzschiana. Nesse sentido, Foucault teria concebido a relao entre literatura e loucura a
partir da tragdia, entendida como a transfigurao de um fenmeno dionisaco puro,
selvagem, brbaro e titnico em uma arte trgica, apolnea/dionisaca, que realiza a unio
conjugal das duas pulses estticas. Em suma, traa-se a seguinte analogia: a literatura
2 Alm da Histria da loucura, a questo da relao entre literatura e loucura abordada em diversas entrevistas,
ensaios e em obras posteriores de Foucault. Em uma entrevista intitulada A loucura existe apenas no interior de
uma sociedade, realizada no mesmo ano da publicao da Histria da loucura, Foucault afirma que suas
influncias principais viriam da literatura (Blanchot e Roussel) e que seu interesse maior teria sido analisar a
presena da loucura na literatura (cf. FOUCAULT, 1961, DE1, 5, p. 196). Poucos anos depois, no texto
intitulado A loucura, a ausncia de obra, Foucault volta a sustentar a existncia de uma estranha vizinhana da loucura e da literatura e afirma que o ser da literatura (ltre de la littrature), tal como se produziu desde Mallarm e chegou at ns, atingiu a regio onde ocorria, desde Freud, a experincia da loucura (cf.
FOUCAULT, 1964, DE1, 25, p. 447). Em As Palavras e as coisas, publicada em 1966, encontramos tambm
passagens nessa direo: Esse novo modo de ser da literatura (nouveau mode dtre de la littrature), foi preciso que ele fosse desvelado em obras como as de Artaud ou Roussel [...], no interior da loucura que ela [a
literatura] se manifestou (FOUCAULT, MC, p. 395). Por fim, ainda nesse mesmo sentido, diz Foucault em uma entrevista intitulada Loucura, literatura, sociedade, publicada originalmente no Japo anos depois (quando ele j
tomava a literatura por algo assimilado e sem poder transgressivo), que seu interesse pela literatura estava ligado
ao fato de ele ter visto nela a irrupo do mundo festivo da loucura (monde festif de la folie), afirmando: Poderamos dizer que, no momento em que o escritor escreve, o que ele conta, o que ele produz no ato mesmo de escrever, nada mais que a loucura (FOUCAULT, 1970, DE1, 82, p. 982).
3 No final dos anos 1930 e nos anos da Segunda Guerra Mundial, um segundo momento nietzschiano teria se
produzido na Frana, uma redescoberta que teria sido obra, sobretudo, de literatos marginais como Bataille,
Blanchot e Klossowski. Bataille, em vrios textos publicados no final dos anos trinta na revista Acphale, afasta
o pensamento de Nietzsche do fascismo e o toma como uma revoluo que permitiria romper com Hegel.
Blanchot, nessa direo, v no estilo nietzschiano uma busca por uma linguagem no-dialtica e no-
fenomenolgica, que introduziria uma forma trgica e transgressora de pensar. J Klossowski, importante
tradutor de Nietzsche para o francs, ressaltava o conflito entre o nietzschianismo e o ensino filosfico,
mostrando como Nietzsche rejeitava e ironizava a figura do filsofo professor de Universidade e como sua
maneira de pensar exigia uma redefinio da atividade filosfica. Essas leituras nietzschianas influenciaram
muito o pensamento de Foucault, sobretudo no incio dos anos sessenta. Alguns desses temas sero uma
constante no percurso foucaultiano, como a necessidade de se redefinir a atividade filosfica. Alm desses
autores e desse segundo momento nietzschiano na Frana, convm ressaltar o novo interesse que a gerao de Foucault nutrir por Nietzsche, o que se verifica na realizao do Colloque de Royaumont de 1964 e, em particular, na publicao de Nietzsche e a filosofia de Deleuze em 1962, que destaca novamente a ruptura que
Nietzsche operou com a dialtica (e com a tradio hegeliana) (cf. LE RIDER, 1993, p. lxix-xcvi).
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estaria para a loucura em Foucault assim como a tragdia est para o culto dionisaco em
Nietzsche (cf. MACHADO, 2005, p. 24-5, 45).
No prefcio da edio original da Histria da loucura, Foucault introduz algumas
idias que permitem situar a questo do autor nessa relao entre loucura e literatura. Pode-se
dizer que nem o louco nem o escritor transgressor produzem obras e assumem, de forma
aproblemtica, a posio de sujeito ou autor de seus discursos. Foucault esboa nesse prefcio
um primeiro tratamento da idia de ausncia da obra (labsence de luvre), que ser
analisada a seguir, e contrape a linguagem da razo (langage de la raison) ao murmrio
de insetos sombrios (murmure dinsectes sombres) (cf. FOUCAULT, 1961, DE1, 4, p. 192).
Esse murmrio compreendido como uma espcie de barulho surdo que atravessa a histria
sem assumir a forma ordenada e controlada de uma obra, como um rudo que se propaga sem
um princpio ordenador. Segundo Foucault:
O murmrio obstinado de uma linguagem que falaria sozinha sem sujeito falante e sem interlocutor, amontoada sobre si mesma, como um n feito na
garganta, desfazendo-se antes mesmo de atingir qualquer formulao e
retornando sem brilho ao silncio do qual ela nunca se desatou
(FOUCAULT, 1961, DE1, 4, p. 191). [Grifo meu].4
Esse murmrio, esse sussurro que nem sequer se realiza como obra, essa figura
desconcertante que no tem direito sequer a assumir um lugar na histria, ele reflete, em certa
medida, o carter descontrolado da experincia-limite. A loucura ausncia de obra, ela no
se organiza de forma ordenada e compreensvel, ela no tem sentido, ela um murmrio. E o
escritor/artista/transgressor, na medida em que flerta com o limite e realiza uma experincia
transgressiva (na qual linguagem e delrio entrelaam-se e obra e loucura ligam-se
profundamente), ele tambm, de certa forma, murmura, problematizando, em sua prpria
experincia, o carter de obra de sua produo e seu papel mesmo de autor ou sujeito, dado
que a linguagem parece falar por conta prpria (cf. FOUCAULT, HF, p. 554).
Foucault chega a sugerir um deslizamento do problema da loucura para a questo da
linguagem. Em um texto intitulado Debate sobre a poesia, publicado na revista Tel quel em
1964, Foucault sustentou a tese de que teria havido um deslocamento no jogo do limite, da
contestao e da transgresso, que no estaria mais presente na relao razo/desrazo para,
ao invs, aparecer com mais vivacidade no domnio da linguagem. Segundo Foucault, toda
cultura estabelece seus prprios limites (procedimentos de excluso, controle e proibio), e
4 No original: le murmure obstin dun langage qui parlerait tout seul sans sujet parlant et sans interlocuteur,
tass sur lui-mme, nou la gorge, seffondrant avant davoir atteint toute formulation et retournant sans clat au silence dont il ne sest jamais dfait.
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quanto mais vivos e marcados eles so, mais violenta e espetacular tende a ser a transgresso.
Assim teria ocorrido com o problema da loucura na idade clssica e, a partir do sculo XIX,
com o problema da linguagem (cf. FOUCAULT, 1964, DE1, 23, p. 426). Nessa linha, diz
Foucault em A loucura, ausncia de obra que a loucura foi durante sculos a face visvel da
forma geral de transgresso. Voltando a dizer que no existe uma nica cultura no mundo na
qual tudo seja permitido, Foucault chega a sugerir um estudo da organizao dos interditos
de linguagem, em um claro prenncio daquilo que foi posteriormente analisado em A ordem
do discurso (como veremos a seguir) (cf. FOUCAULT, 1964, DE1, 25, p.443).
Mas, apesar de ressaltar essa aproximao entre loucura e literatura, Foucault acentua
tambm algumas importantes diferenas. A literatura, ao contrrio da loucura, no uma
experincia completamente demolidora e negativa. Pode-se dizer que a literatura flerta com a
loucura sem, contudo, transpor por completo a passagem absoluta. Ela joga com o lado de
fora sem, contudo, tornar-se pura exterioridade, sem saltar da turbulncia para o turbilho (cf.
PELBART, 1989, p. 183). A literatura permanece na borda, nos limites, sem negar por
completo a obra e os princpios que conferem ordem ao discurso. Nesse sentido, em O no
do pai, texto publicado em 1962 na revista Critique, Foucault coloca a seguinte questo:
onde termina a obra e onde comea a loucura?. Na resposta, Foucault sugere que, ao invs
de ver no evento patolgico o crepsculo no qual a obra se desfaz, devemos seguir o
movimento pelo qual a obra se abre pouco a pouco sobre o espao no qual o ser
esquizofrnico adquire seu volume, revelando assim, no limite, aquilo que nenhuma
linguagem pode dizer (cf. FOUCAULT, 1962, DE1, 8, p. 219). Ou seja, a obra literria
explora as margens da linguagem e constitui-se como uma verdadeira experincia-limite
produtiva (e no puramente negativa como a loucura, tomada como ausncia de obra).
Essa diferena entre a loucura e a literatura, e esse lado mais controlado da experincia
literria, aparece tambm claramente em uma entrevista intitulada Loucura, literatura,
sociedade, publicada no Japo anos depois, na qual Foucault traa uma distino entre a
loucura real (folie relle), que constantemente transgressiva e envolve uma excluso
radical, e a literatura, que apenas flertou com o outro lado (lautre ct) no sculo XIX, mas
que, posteriormente, teria recuperado sua funo social normal, passando a ser assimilada pela
burguesia (o que explica em parte o desinteresse posterior de Foucault pela experincia
literria, como veremos a seguir) (cf. FOUCAULT, 1970, DE1, 82, p. 987).
Para finalizar essa anlise da relao entre literatura e loucura e de como o problema
do autor aparece aqui, resta examinar um pouco mais a idia da loucura como ausncia de
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obra. Afinal, o que significa exatamente dizer que a loucura absoluta ruptura de obra ou
que onde h obra, no h loucura (cf. FOUCAULT, HF, p. 556-7)?
Em um sentido mais elementar, significa dizer que no devemos nunca tentar explicar
uma obra pela loucura de seu autor. O interesse de Foucault pela loucura no significa, de
maneira alguma, uma atrao pela explicao psicolgica da escrita literria, vista ento como
sintoma. Ele sempre deixa claro que, embora analise escritores famosos por suas loucuras,
como Roussel, Artaud e Nietzsche, a possvel patologia deles em nenhum momento levada
em considerao (cf. FOUCAULT, 1968, p. 50, 53). Em vez de uma expresso de uma
mente doentia, a obra literria vista como algo que estabelece suas regras e cuja fora
transgressora depende no da inteno do autor (fruto ou no da loucura), mas do
funcionamento mesmo da linguagem. Foucault reconhece que vrios escritores, pintores e
msicos perambularam pela loucura, havendo entre a loucura e a obra um perigoso
afrontamento. Mas, apesar disso, a loucura no invade a obra, posto que ela justamente a
ausncia de obra, o ponto a partir do qual preciso calar-se (cf. FOUCAULT, HF, p.555-6).
Nesse sentido, para exemplificar esse ponto, convm recordar que Foucault valorizou, na
leitura feita sobre Raymond Roussel, seu modo de ser literrio (mode dtre littraire) e no
as possveis significaes patolgicas de sua obra. Segundo Foucault: era-me indiferente
estabelecer se a obra de Roussel era ou no obra de um neurtico. Eu queria ver, ao contrrio,
como o funcionamento da linguagem de Roussel poderia, a partir de ento, ter lugar no
interior do funcionamento geral da linguagem literria contempornea (FOUCAULT, 1967,
DE1, 50, p. 633).5
Para alm dessa acepo mais superficial, a idia da loucura como ausncia de obra
possui um sentido mais profundo, no qual a loucura tomada como uma negatividade
absoluta de sentido, uma experincia transgressiva da linguagem que escapa a qualquer
perspectiva racional (por exemplo, da psicologia ou da crtica literria). Embora a loucura
possa ser considerada, em certo sentido, uma linguagem, ela uma linguagem de tipo
murmurante, que transgride as leis da linguagem a ponto de ser considerada no-linguagem,
insensatez, mero rudo sem sentido (MACHADO, 2005, p. 41-2). Foucault desenvolveu esse
tema em uma emisso radiofnica que foi ao ar no dia 4 de fevereiro de 1963 com o ttulo de
A linguagem enlouquecida (Le langage en folie) (que permaneceu indita e no foi
publicada nos Ditos e escritos), ressaltando a complexidade da relao entre loucura e
5 Em francs: Il mtait indiffrent dtablir si luvre de Roussel tait ou non luvre dun nvros. Je voulais
voir, linverse, comment le fonctionnement du langage de Roussel pouvait dsormais prendre place lintrieur du fonctionnement gnral du langage littraire contemporain.
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linguagem e o fato de que a loucura passa sempre pela linguagem ou, mais exatamente, por
um estranho universo fechado da linguagem (cf. FOUCAULT, 1963, p. 51 et seq.).
Por outro lado, contrapondo-se a essa radicalizao transgressiva da loucura, a
literatura assume a forma de obra de razo, limitando a linguagem e conferindo-lhe uma
forma slida e estvel. Apesar disso, ainda possvel uma experincia literria transgressora
em relao obra, que a conteste e subverta, indo alm dos limites estabelecidos, transitando
assim na dobra (pli) da linguagem. Mas, diferentemente da loucura, a linguagem literria
ser sempre uma construo a partir desse desmoronamento total que a loucura. A literatura
s existe como obra, ela expressa paradoxalmente o desejo de destruio da obra pela
realizao dela, instituindo assim um novo limite (transgredindo e fixando novas fronteiras).
Para designar essa oscilao inconclusa da realizao da obra para sua ausncia, esse
movimento de constituio e destruio permanentes, cunhou-se o termo desobramento
(dsuvrement) (cf. PELBART, 1989, p. 177). nesse sentido demolidor e, ao mesmo
tempo, produtivo, que a experincia literria radical deve ser compreendida (cf. LEVY, 2003,
p. 24-5).
Em uma conferncia intitulada Linguagem e literatura, realizada em 1964 em
Bruxelas (texto que tambm permaneceu indito e no foi publicado nos Ditos e escritos),
Foucault abordou diretamente esse tema e distinguiu claramente a linguagem da obra. A
linguagem definida como aquilo a partir do qual se fala: o murmrio de tudo que
pronunciado, as palavras acumuladas na histria, o prprio sistema da lngua. Ela
ultrapassagem primeira e situa-se aqum das categorias do normal e do patolgico. J a obra,
por sua vez, definida como uma coisa estranha no interior da linguagem, uma
configurao de linguagem que se detm em si prpria, que se imobiliza e constitui um
espao que lhe prprio, retendo nesse espao o fluxo do murmrio, ela vista como um
volume opaco, provavelmente enigmtico (cf. FOUCAULT, 1964, p. 77). como se a
experincia murmurante e desordenada da linguagem encontrasse na obra um princpio
ordenador. Pensando nesses termos, Foucault situou claramente a loucura como uma
linguagem que no constitui obra. J a literatura, por outro lado, transita entre a obra e a
linguagem murmurante da loucura. Nesse sentido, em seu livro sobre Raymond Roussel,
Foucault considera que a linguagem de Roussel envolve a excluso mtua da loucura e da
obra (negao da loucura pela obra e da obra pela loucura), sendo comparada ao sol, cuja
visibilidade to resplandecente que esconde aquilo que mostra. Esse vazio solar (creux
solaire) associado ao espao soberano da linguagem, no qual a obra e a loucura se
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comunicam e se excluem mutuamente (cf. FOUCAULT, RR, p. 205-7; PELBART, 1989, p.
175).
E como fica o autor nessa experincia literria? Assim como a obra problematizada
(transgredida e preservada), tambm o autor ou sujeito do discurso literrio problematizado
(sendo igualmente transgredido e preservado). A escrita transgressiva de figuras como Sade,
Hlderlin, Nietzsche ou Artaud no deve ser compreendida como uma experincia subjetiva,
expresso de uma interioridade demente. O autor, como a obra, tomado como um ser de
razo, um princpio ordenador que confere unidade e sentido ao discurso. Assim como no h
obra na loucura, tambm no se pode falar em autor, dado que a experincia-limite da loucura
rompe com a ordem estabelecida e desrespeita seus princpios ordenadores. Nesse sentido, os
autores transgressores contestam no apenas a obra (estabelecendo novos limites) como
tambm sua prpria posio como autores ou sujeitos do discurso, conferindo s suas
experincias literrias uma dimenso aparentemente mecnica e no-intencional, como no
murmrio ou na linguagem que fala por si mesma. nesse sentido que Foucault afirma que
a literatura, desde Mallarm, deixou de ser uma fala inscrita no interior de uma lngua dada
para se tornar uma fala que inscreve nela mesma seu princpio de decifrao (uma linguagem
que diz e diz como diz), fazendo com que a crtica se situe no mais no enigma psicolgico
de sua criao, mas no corao da literatura, do vazio que ela instaura em sua prpria
linguagem (cf. FOUCAULT, 1964, DE1, 25, p. 446-7).6
Outro tema que tambm interessou Foucault no incio dos anos sessenta, juntamente
com a loucura, foi a morte. Mais do que a loucura, a morte constitui a grande experincia-
limite para o ser humano, tradicionalmente vista como uma passagem para o alm. Nos
escritos de Foucault da poca, o tema da morte recorrente e pode tambm (como a loucura)
ser associado ao interesse pelos limites da linguagem e das experincias de pensamento. Na
Histria da loucura, Foucault relaciona loucura e morte dizendo que a primeira uma espcie
de j-a da morte (le dj- l de la mort), de modo que, ao invs de ruptura, a substituio
6 Alm da experincia literria, Foucault, em uma emisso radiofnica que foi ao ar em 1963, observa tambm
como o teatro vira as costas para a loucura e tenta atenuar seus poderes e controlar sua violncia subversiva no esforo de realizar uma bela representao, que acaba com a festa e separa seus participantes em atores ou espectadores (cf. FOUCAULT, 1963, p. 28). Essa relao entre loucura, obra e autoria no teatro tambm foi
explorada por Derrida mais ou menos no mesmo perodo, em A escritura e a diferena (1967), sobretudo na
anlise realizada do teatro da crueldade de Artaud, que se contrape ao imperialismo da letra, ao teatro das palavras, ditadura do escritor ou ainda superstio teatral do texto, na qual a cena pr-determinada pelo Autor-Deus. Artaud teria defendido a emancipao do teatro em relao ao texto, fazendo-o confundir-se
com a prpria vida (naquilo que ela tem de irrepresentvel), expulsando Deus do palco e produzindo um espao no-teolgico (sem um autor/criador comandando a representao). Assim, segundo Derrida, a arte em Artaud no d ocasio para obras e nem se realiza no espao do palco (como o teatro clssico ou do espetculo) ou no
luxuoso livro (como as belles lettres). A obra, alis, comparada a um excremento, uma matria informe, sem
fora nem vida, separada do esprito (cf. DERRIDA, 2005, p. 115, 127 et seq.).
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do tema da loucura pelo da morte vista como uma toro no interior de uma mesma
inquietude, que diz respeito ao nada da existncia. Mas esse nada (nant) a chave para
desvendar o segredo da razo (no caso da loucura) e da vida (no caso da morte) (cf.
FOUCAULT, HF, p. 26-7).
Essa aproximao entre loucura e morte permite entender melhor o desenvolvimento
conjunto no incio dos anos sessenta dos projetos da Histria da loucura (1961) e do
Nascimento da clnica (1963). Em sua idade positivista, a loucura passou a ser vista como
algo que revelava a verdade elementar do homem, como se fosse a infncia do homem,
reveladora de seus desejos primitivos e mecanismos simples, e o mesmo processo ocorre com
a anatomoclnica, que buscou na morte o segredo para compreender a vida. Para conhecer o
homem verdadeiro (lhomme vrai), o caminho passa pelo homem louco (lhomme fou), de
modo que o homo psychologicus, descrito pela psicologia, um descendente do homo mente
captus (cf. FOUCAULT, HF, p. 544, 549, 538). Da mesma forma, a morte tambm teria
deixado de ser a grande ameaa sombria, abandonando seu velho cu trgico para se
transformar no segredo visvel da prpria vida, de modo que a vida do homem se manifesta a
partir do homem morto. A medicina, libertada do medo da morte, abre o cadver em busca da
verdade sobre a vida, sendo assim um dos primeiros saberes a relacionar o homem com sua
finitude originria (cf. FOUCAULT, NC, p. 161, 176, 192, 201).
Mas e a literatura, onde se situa nessa relao? Assim como a loucura teria encontrado
na experincia literria, aps o sculo XIX, seu locus privilegiado de manifestao, da mesma
maneira a experincia da finitude (relao homem/morte) teria emergido na medicina e na
literatura do sculo XIX. Ou seja, Foucault v na finitude um solo comum que se manifesta
tanto no lirismo do sculo XIX, quanto no conhecimento positivo da medicina. Na concluso
do Nascimento da clnica, Foucault estende sua anlise para alm do domnio mdico (que
dominou o corpo do livro) e afirma claramente o parentesco entre a experincia mdica e a
lrica, estando ambas ligadas emergncia das formas da finitude (cf. FOUCAULT, NC, p.
202). Na experincia literria, assim como na experincia mdica, o n da experincia (esse
ponto que rene vida e morte) parece tornar-se visvel ou legvel (cf. MACHEREY, 1999, p.
xiii). Em suma, assim como a literatura teria flertado com a loucura, transitando pelo outro
lado da no-linguagem, da mesma forma a literatura tambm percorreria perigosamente a
fronteira com a morte, expondo como ela a experincia da finitude. O exemplo de Roussel
muitas vezes evocado por Foucault justamente para ilustrar esse isomorfismo entre a
linguagem e a morte, pois, assim como a abertura do cadver foi a condio para a
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anatomoclnica conhecer a vida, o limiar da morte a chave para dar conta dos mecanismos
da linguagem de Roussel, de natureza pstuma (cf. FOUCAULT, RR, p. 12, 71, 202).
Quanto ao problema do autor, Foucault, no texto intitulado A linguagem ao infinito,
publicado em 1963 na revista Tel quel, trata da relao da escrita com a morte e, nessa
anlise, inverte o famoso topos da imortalidade baseado na idia de perpetuao que a obra de
arte poderia conferir a seus realizadores e heris: ao invs de adquirir vida eterna, o sujeito
que escreve no pra de morrer. O autor, portanto, no vive em sua obra, mas morre
incessantemente no gesto mesmo de escrever. A obra de linguagem compreendida como
algo atravessado pela morte, que constitui seu limite e seu centro. Citando Foucault:
No dia que se falou para a morte e contra ela, para tom-la e det-la, algo
nasceu, um murmrio que se retoma, desenvolve-se e desdobra-se sem fim,
segundo uma multiplicao e uma densificao fantsticas, nas quais se situa
e se esconde nossa linguagem atual (FOUCAULT, 1963, DE1, 14, p. 280).7
Essa inverso do topos da imortalidade, que v na escrita um processo no mais de
eternizao, mas de mortificao, associa-se emergncia de uma linguagem murmurante e
produtora de si mesma. Em uma entrevista concedida em 1968, diz Foucault: a escrita para
mim a deriva do ps-morte e no um caminhar em direo fonte da vida (FOUCAULT,
1968, p. 39).8 Essa tese, que j estava presente em Blanchot (talvez a principal influncia
sobre Foucault nessa poca), afirma que a obra no uma morada segura na qual o eu do
autor pode residir tranqilamente, mas, ao contrrio, a obra exige que o homem que a
escreve sacrifique-se por ela, de modo que ilusrio crer que a arte e a literatura teriam por
vocao eternizar o homem (cf. BLANCHOT, 1959, p. 293, 333). Para Blanchot, o poeta s
recebe sua realidade no poema, mas no sobrevive criao da obra, vivendo ao morrer
nela (cf. BLANCHOT, 1987, p. 228-9). Foucault chega a afirma que nem ousaria tratar da
relao entre escrita e morte, pois Blanchot j teria dito sobre esse assunto coisas muito mais
essenciais, gerais, profundas e decisivas (cf. FOUCAULT, 1968, p. 36). Essa idia, de um
contnuo desaparecimento do autor no ato da escrita e de uma linguagem sem sujeito
fundador, um ponto importante tambm na aproximao entre Foucault e as teses
estruturalistas de Barthes sobre a morte do autor e a intransitividade da linguagem, como
veremos mais adiante.
7 No original: du jour o on a parl vers la mort et contre elle, pour la tenir et la dtenir, quelque chose est n,
murmure qui se reprend et se raconte et se redouble sans fin, selon une multiplication et un paississement
fantastiques o se loge et se cache notre langage daujourdhui.
8 No original: Lcriture est pour moi la drive de laprs-mort et non pas le cheminement vers la source de
vie.
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Mas e o discurso filosfico? Seria ele tambm, como a escrita literria, capaz de
transitar nas fronteiras da linguagem, transgredindo e produzindo novas e radicais
experincias de pensamento? Como foi visto, o interesse de Foucault pelas experincias-
limite da literatura, da loucura e da morte pode ser inserido no conjunto de uma mesma
questo, acerca dos limites da linguagem e dos possveis meios de transgresso, que instauram
outras formas de pensamento, nas margens e para alm da ordem instituda. Mas como a
filosofia, que pode ser considerada, na tradio ocidental, o local privilegiado para as
experincias radicais de pensamento, abordada por Foucault?
J se encontra no Foucault do incio dos anos sessenta uma postura que ir
acompanh-lo ao longo de sua trajetria e que se caracteriza por uma desiluso em relao
grande Filosofia e uma reticncia de se considerar um filsofo. Essa desiluso e reticncia,
contudo, no devem ser interpretadas como uma recusa ou uma ausncia de filosofia, mas
sim como uma busca por outra filosofia, ou ainda como um interesse pela dimenso crtica da
atividade filosfica. Trata-se, mais propriamente, de uma espcie de guerra filosfica contra a
Filosofia, seguindo uma senda aberta por Nietzsche e Heidegger.
O que incomoda Foucault a assimilao da filosofia a uma disciplina universitria
que deixa de realizar novas experincias de pensamento, perdendo assim sua atitude crtica.
Foucault acusa a reflexo filosfica de seu tempo de permanecer presa a uma linguagem
dialtica, fenomenolgica e antropocntrica, de modo a perder sua capacidade contestatria e
transgressora. Esse desapontamento a principal razo que fez com que Foucault fosse buscar
fora da filosofia, especialmente na literatura, outras e novas experincias de pensamento.
Nessa postura, mais uma vez, a influncia nietzschiana claramente sentida. Segundo
Foucault, Nietzsche serviria de inspirao para essa nova atividade filosfica, posto que ele
teria multiplicado os gestos filosficos, indo buscar a filosofia na literatura, na histria, na
poltica, etc. (cf. FOUCAULT, 1966, DE1, 41, p. 580).
Em certo sentido, o interesse pela literatura no deve ser entendido como um
desinteresse pela filosofia, posto que essas atividades so (para alm de qualquer arbitrria
distino institucional) intrinsecamente misturadas. O que est no centro do debate o uso
transgressivo da linguagem, o que pode encontrar seu lugar em uma filosofia literria ou
em uma literatura que pensa (cf. MACHEREY, 1990; FORTIER, 1997, p. 139-42). Levar a
literatura a srio, como teria feito Blanchot e Bataille, faz-la sair da esfera da arte, das
belles lettres, qual ela est tradicionalmente vinculada, fazendo dela uma forma de pensar.
Nesses termos, o interesse de Foucault, quando olha para a experincia literria, permanece
sendo propriamente filosfico.
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Pode-se dizer que h em Foucault uma espcie de jogo entre a literatura e a filosofia.
Nesse jogo, ele se diz, por vezes, filsofo (tomando a filosofia em sentido mais amplo, como
uma experincia de pensamento), e, outras vezes, ele marca sua distncia com relao
filosofia (tomada em sentido estrito, como uma disciplina universitria marcada pela forma
historicista hegemnica na Frana da poca). Ao se relacionar com o grupo Tel quel,
Foucault, embora ressaltasse freqentemente a extraordinria convergncia e ressonncia
existente entre eles, no deixava tambm de observar a especificidade de sua empreitada, que
ele qualificava, ironicamente, de sem talento (sans talent), e que consistia, basicamente, em
buscar na experincia da linguagem novas maneiras de pensar (cf. FOUCAULT, 1964, DE1,
23, p. 423; ADORNO F.P., 1996, p. 33). Diante desse grupo de literatos e crticos, Foucault
mostrava-se um pouco sem jeito e assumia, geralmente, uma posio de filsofo, mas sempre
com certa ironia, dizendo, por exemplo, que era um homem ingnuo e desajeitado com sua
botina pesada de filsofo (gros sabots de philosophe) (cf. FOUCAULT, 1964, DE1, 22, p.
366-7). Em uma entrevista realizada alguns anos depois no Japo, intitulada Loucura,
literatura, sociedade, Foucault volta a insistir no fato de que seu interesse estaria localizado
na prtica do filosofar, que ele qualifica ento como a realizao de certas escolhas
originais (choix originels), entendidas como um pensamento mais fundamental em nossa
cultura. Tais escolhas, segundo Foucault, seriam mais visveis, em seu tempo, fora da
filosofia, sobretudo na literatura, na cincia ou na poltica, o que explica a extenso de seus
gestos filosficos para alm dos muros tradicionais da disciplina-filosofia (cf. FOUCAULT,
1970, DE1, 82, p. 975).9
Sobre essa relao entre filosofia e literatura, convm destacar a anlise que Foucault
realizou de Bataille em um texto intitulado Prefcio transgresso, publicado em 1963 na
revista Critique. Mais do que um escrito sobre literatura, o ensaio apresenta uma singular
interpretao de Bataille como filsofo. Segundo Foucault, Bataille teria pretendido, com sua
escrita fragmentria (que transita pelo ensaio, novela, poesia e aforismos), fundar uma
heterologia, ou seja, uma cincia da experincia-limite, da transgresso dos limites. Em sua
leitura, Foucault situa a linguagem filosfica de Bataille na noite ensurdecedora, no vazio 9 Esse interesse filosfico pelas experincias-limite da linguagem literria reafirmado por Foucault em diversos
momentos, mesmo depois dos anos setenta, quando j depositava pouca esperana na escrita institucionalizada
da literatura. Em uma entrevista intitulada Da arqueologia dinstica, publicada em 1973, Foucault afirma que
Blanchot, Bataille, Klossowski e Artaud teriam feito emergir a linguagem mesma do pensamento, que no seria
nem filosofia, nem literatura, nem ensaio, mas um pensamento sempre aqum ou alm da linguagem (cf.
FOUCAULT, 1973, DE1, 119, p. 1280). Por fim, em outra entrevista, publicada em 1980 com o ttulo de
Entrevista com Michel Foucault, ele afirma que no se considera um filsofo e que suas principais referncias
foram escritores e ensastas como Bataille e Blanchot, que o teriam despertado para a questo da experincia-
limite, libertado-o da formao filosfica universitria francesa da poca (baseada em Hegel e restrita a uma
histria da filosofia) (cf. FOUCAULT, 1980, DE2, 281, p. 862).
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deixado pela experincia da finitude e da morte de Deus. nesse vazio que a linguagem de
Bataille se expande e se perde sem nunca cessar de falar. Contrariamente filosofia dos
nossos dias, que descrita por Foucault como um deserto e uma fala embaraada, a
linguagem de Bataille seria no-dialtica, no-fenomenolgica e no-antropocntrica,
responsvel por um desmoronamento do sujeito, que, ao invs de se expressar, vai ao
encontro de sua prpria finitude, de sua morte. nesse contexto de desmoronamento e de
morte que a experincia singular da transgresso encontra seu lugar, como um gesto que
concerne o limite e que regido por uma obstinao, indo em direo a uma linha que recua
sempre, um horizonte inalcanvel (cf. FOUCAULT, 1963, DE1, 13, p. 263-5, 269, 277).
Sintetizando, cito Foucault:
O desmoronamento da subjetividade filosfica, sua disperso no interior de
uma linguagem que a despossui, mas que a multiplica no espao de sua
lacuna, provavelmente uma das estruturas fundamentais do pensamento
contemporneo. No se trata aqui ainda de um fim da filosofia. E talvez, a
todos aqueles que se esforam para manter antes de tudo a unidade da funo
gramatical do filsofo ao preo da coerncia e da existncia mesma da linguagem filosfica ns poderamos opor o empreendimento exemplar de Bataille, que nunca cessou de romper nele, obstinadamente, a soberania do
sujeito filosofante [...]. Esquartejamento primeiro e refletido daquele que fala
na linguagem filosfica (FOUCAULT, 1963, DE1, 13, p. 270-1). [Grifo
meu].10
Ou seja, o que o interesse pela experincia literria e, em particular, por Bataille,
revela, uma busca por uma maneira de pensar que no mais se baseie na soberania do
sujeito filosofante, desse sujeito que fala e se expressa, como se o pensamento tivesse sua
origem em uma misteriosa interioridade e no no jogo mesmo da linguagem. Vemos assim, na
desiluso de Foucault pela linguagem da filosofia de nossos dias, uma crtica posio do
sujeito e, em certo sentido, ao autor. Pode-se dizer que a possibilidade de uma experincia
transgressora da linguagem exige rever, antes de qualquer coisa, o lugar de onde se fala. O
pensar radical problematiza a figura do sujeito soberano que expressa seus pensamentos,
permanecendo, assim, prisioneiro de seu sono antropolgico. Nesse sentido, preciso operar
o esquartejamento primeiro e refletido daquele que fala na linguagem filosfica, ou seja,
10
No original: Leffondrement de la subjectivit philosophique, sa dispersion lintrieur dun langage qui la dpossde, mais la multiplie dans lespace de sa lacune, est probablement une des structures fondamentales de la pense contemporaine. L encore il ne sagit pas dune fin de la philosophie. Plutt de la fin du philosophe comme forme souveraine et premire du langage philosophique. Et peut-tre tous ceux qui sefforcent de maintenir avant tout lunit de la fonction grammaticale du philosophe au prix de la cohrence, de lexistence mme du langage philosophique on pourrait opposer lexemplaire entreprise de Bataille qui na cess de rompre en lui, avec acharnement, la souverainet du sujet philosophant. [] cartlement premier et rflchi de ce qui parle dans le langage philosophique.
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teramos de pensar em um filosofar que se realiza sem a figura ordenadora do autor ou
sujeito filosofante soberano, assim como a experincia literria transgressora teria abdicado
da escrita autoral e do ideal de expresso de uma interioridade.
Em suma, Foucault, partindo de Bataille, aponta para algo como uma filosofia
annima, uma espcie de experincia de pensamento na qual no encontra mais lugar a figura
fundadora do filsofo/sujeito/autor. nesses termos que Foucault chega a associar o aspecto
subversivo da escrita e seu poder de transgresso com o tema do carter intransitivo da
linguagem, do qual fala Barthes (o que ser analisado mais adiante). Alm disso, a idia de
uma filosofia sem autor e de um pensamento liberto do sono antropolgico (sem sujeito
fundador), que, nesse momento do percurso foucaultiano, esto associados afirmao do
valor soberano da linguagem, anunciam tambm um novo ethos filosfico (cf. LE BLANC,
2006, p. 56). Essa outra maneira de filosofar, como tambm ser visto mais frente, envolve
uma atitude de problematizao que faz da filosofia uma experimentao, um esforo de
pensar o presente de forma sempre parcial e provisria, sem a unidade e completude de uma
obra e tambm sem a coerncia e a originalidade de uma escrita autoral.
Por fim, convm lembrar que, muitos anos depois dessa homenagem prestada a
Bataille, em seu primeiro curso no Collge de France (1970-1971), Foucault observa como a
figura do filsofo est associada experincia aristotlica, que afastou o discurso filosfico da
fala potica e mtica, assim como da discusso retrica e poltica (que caracterizava ainda, em
grande medida, a experincia platnica). Teria nascido com Aristteles o modo de existncia
histrico da filosofia, que se caracteriza por ser ordenado segundo o jogo da obra individual
(jeu de luvre individuelle), uma histria organizada em unidades que podem ser designadas
por nomes prprios e concebida em termos de uma disperso de individualidades
(dispersion dindividualits). Partindo da, a tradio da histria da filosofia seria ento
marcada pela repetio e pelo comentrio, de modo que cada filsofo busca pensar o
impensado por outros e procura estabelecer assim sua relao com a verdade (cf.
FOUCAULT, LVS, p. 36-7). Em suma, enquanto o filsofo funciona, no seio da tradio
filosfica, como um autor, que ordena e unifica o discurso (como seu pensamento e sua obra),
a experincia da transgresso exemplificada por Bataille aponta justamente para um
pensamento sem sujeito fundador, para uma filosofia sem autoria.
Para finalizar essa anlise do autor nas experincias radicais de pensamento, resta
aprofundar um ltimo ponto, relacionado escrita literria: o desaparecimento do autor no ser
da linguagem. A questo do ser da linguagem, pode-se dizer, o corao da reflexo
foucaultiana do incio dos anos sessenta acerca da experincia literria. A expresso ser da
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linguagem (tre du langage) apareceu pela primeira vez no texto analisado acima, sobre
Bataille (cf. FOUCAULT, 1963, DE1, 13, p. 269), e teve seu apogeu em As palavras e as
coisas e no famoso artigo de Foucault sobre Blanchot, publicado na revista Critique com o
ttulo de O pensamento do lado de fora (La pense du dehors), ambos de 1966.
O problema do ser da linguagem, ou seja, da linguagem colocada em questo por si
mesma, emerge no seio da reflexo sobre o pensamento transgressivo, entendido como aquele
que transita perigosamente nos limites da linguagem. De acordo com Foucault, as formas
extremas de linguagem que surgem, por exemplo, em Bataille e Blanchot, atingindo os
pontos mais altos do pensamento (les sommets de la pense), devem ser reconhecidas em
sua soberania e acolhidas de modo a permitir a libertao de nossa linguagem (cf.
FOUCAULT, 1963, DE1, 13, p. 268, 276). Vemos, nesse momento, um Foucault
extremamente entusiasmado pelo potencial transgressor da experincia literria e por sua
capacidade privilegiada de atingir o ser da linguagem.
Mas que ser da linguagem esse? No se trata, em absoluto, de algo fixo, estvel, tido
como uma essncia invarivel que a literatura teria sido capaz de captar. Ao invs disso, o ser
da linguagem deve ser pensado como um espao vazio que nunca ser preenchido e
objetivado, estando sempre em devir. No artigo dedicado a Blanchot, Foucault ressalta que o
ser da linguagem, que se mostra no pensamento do lado de fora (pense du dehors), no
revela jamais sua essncia e nem pode ser tratado como uma presena positiva, iluminadora
(cf. FOUCAULT, 1966, DE1, 38