o arquÉtipo da alteridade e a riqueza simbÓlica do futebol...

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O ARQUÉTIPO DA ALTERIDADE E A RIQUEZA SIMBÓLICA DO FUTEBOL 1 Uma contribuição da Psicologia Simbólica Junguiana Carlos Amadeu Botelho Byington 2 O futebol é a arte do corpo na escola das emoções. Para certo tipo de intelectual, o futebol não passa de um poderoso instrumento de alienação. Na verdade, o futebol é um grande ritual pedagógico da alma coletiva. Através dos jogadores, da bola, da vitória e, mais ainda, da derrota, cada torcedor vivencia de forma simbólica e altamente emocional uma maneira criativa de cultivar, educar e guiar as suas emoções. Para muitos, o futebol e o carnaval são dois grandes exemplos de alienação social no Brasil. Isso me parece uma visão superficial da cultura brasileira, e até mesmo do que seja Cultura. Um fenômeno só faz vibrar a alma individual e cultural de um povo na medida em que contém símbolos que expressem e alimentem a vida psíquica desse povo. Somente quando compreende o valor e a força destes símbolos é que a Psicologia se torna um instrumento de transformação cultural. Sem deixar de ser ciência, ela sai então dos consultórios e dos manicômios e passa a pertencer à educação, à arte, à política, mostrando aos educadores e governantes o quanto eles podem fazer pelo desenvolvimento da alma individual e coletiva. Os arquétipos, que são matrizes de comportamento psíquico descritas por Jung na sua descoberta do Inconsciente Coletivo, organizam o desenvolvimento psíquico através dos símbolos. Existem os arquétipos de Deus, do herói, da criança divina, da bruxa, do bufão, do político, do gênio, do médico, e incontáveis outros. Os arquétipos se expressam em tudo na vida, através de significados simbólicos que ultrapassam, de muito, as aparências. É exercitando símbolos que a pessoa realiza seu crescimento. Freud uma vez ficou observando uma criança brincar. Ela jogava longe um brinquedo amarrado num barbante e dizia: embora! Depois puxava para perto e dizia: aqui! Em sua argúcia clínica, Freud viu nisso a possibilidade de a criança, através de um jogo de perda e recuperação que ela mesma tinha inventado, estar ensaiando para aprender a ficar longe da mãe. 1 Artigo publicado na Revista Psicologia Atual, Ano 5 nº 25, São Paulo, julho de 1982. Última revisão em maio de 2006. 2 Médico Psiquiatra e Analista Junguiano. Membro fundador da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Membro da Associação Internacional de Psicologia Analítica. Educador e Historiador e criador da Psicologia Simbólica Junguiana. E-mail: [email protected] site: www.carlosbyington.com.br

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O ARQUÉTIPO DA ALTERIDADE E A RIQUEZA SIMBÓLICA DO FUTEBOL1

Uma contribuição da Psicologia Simbólica Junguiana

Carlos Amadeu Botelho Byington 2

O futebol é a arte do corpo na escola das emoções.

Para certo tipo de intelectual, o futebol não passa de um poderoso instrumento de

alienação. Na verdade, o futebol é um grande ritual pedagógico da alma coletiva. Através

dos jogadores, da bola, da vitória e, mais ainda, da derrota, cada torcedor vivencia de

forma simbólica e altamente emocional uma maneira criativa de cultivar, educar e guiar as

suas emoções.

Para muitos, o futebol e o carnaval são dois grandes exemplos de alienação social

no Brasil. Isso me parece uma visão superficial da cultura brasileira, e até mesmo do que

seja Cultura. Um fenômeno só faz vibrar a alma individual e cultural de um povo na

medida em que contém símbolos que expressem e alimentem a vida psíquica desse

povo. Somente quando compreende o valor e a força destes símbolos é que a Psicologia

se torna um instrumento de transformação cultural. Sem deixar de ser ciência, ela sai

então dos consultórios e dos manicômios e passa a pertencer à educação, à arte, à

política, mostrando aos educadores e governantes o quanto eles podem fazer pelo

desenvolvimento da alma individual e coletiva.

Os arquétipos, que são matrizes de comportamento psíquico descritas por Jung na

sua descoberta do Inconsciente Coletivo, organizam o desenvolvimento psíquico através

dos símbolos. Existem os arquétipos de Deus, do herói, da criança divina, da bruxa, do

bufão, do político, do gênio, do médico, e incontáveis outros. Os arquétipos se expressam

em tudo na vida, através de significados simbólicos que ultrapassam, de muito, as

aparências. É exercitando símbolos que a pessoa realiza seu crescimento. Freud uma vez

ficou observando uma criança brincar. Ela jogava longe um brinquedo amarrado num

barbante e dizia: embora! Depois puxava para perto e dizia: aqui! Em sua argúcia clínica,

Freud viu nisso a possibilidade de a criança, através de um jogo de perda e recuperação

que ela mesma tinha inventado, estar ensaiando para aprender a ficar longe da mãe.

1 Artigo publicado na Revista Psicologia Atual, Ano 5 nº 25, São Paulo, julho de 1982. Última revisão em maio de 2006. 2 Médico Psiquiatra e Analista Junguiano. Membro fundador da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Membro da Associação Internacional de Psicologia Analítica. Educador e Historiador e criador da Psicologia Simbólica Junguiana. E-mail: [email protected] site: www.carlosbyington.com.br

Winnicott também percebeu a grande função do brinquedo no desenvolvimento

criativo da personalidade. Ele descreveu o símbolo do ursinho, do paninho ou da chupeta,

como objetos transicionais que o bebê emprega para transcender o seio. Crianças que

dispõem de jogos vão brincar criativamente para se desenvolver. Podemos ampliar o

conceito de símbolo de transição para todos os símbolos, pois eles expressam sempre a

passagem da Consciência no seu desenvolvimento. Mas precisamos ir além e perceber

os jogos de massa, principalmente os esportes nacionais que atraem multidões, como um

exercício de desenvolvimento simbólico da alma coletiva, ou seja, da cultura. Para isso, é

importante tentar compreender o substrato psicológico profundo que dá origem a um

esporte capaz de fascinar as grandes massas.

Dentro de uma psicologia simbólica do esporte em geral, vemos que os jogos de

massa, canalizadores de intensas emoções coletivas, não são mero passatempo. Não

são, como muitos pensam, o mundo do superficial, do não sério. Os grandes rituais de

uma cultura fazem emergir, na superfície, aspectos profundos das nossas raízes

arquetípicas. Sua prática realimenta os indivíduos através da vivência de símbolos da

Psique coletiva. Assim, tanto mais rica será uma cultura quanto mais numerosos e

exuberantes forem os rituais que seus indivíduos tiverem à disposição.

As dicotomias maniqueístas tornaram-se um câncer que devora e fragiliza a

Cultura Ocidental, gerando categorias estáticas que aprisionam os símbolos. Assim é que

muitos só consideram cultura o que se aprende nas Universidades e relegam a um plano

irrelevante tudo o que é espontâneo e popular. Esse pensamento dicotômico e elitista é

incapaz de perceber os símbolos, pois separa o trabalho da arte, o sério do não sério, o

dever do prazer, e se esquece de que, muito antes de o homem ter começado a escrever,

já era capaz de expressar por mitos e rituais as suas vivências mais profundas e

significativas.

Popularizado cada vez mais pela globalização, o futebol é um jogo que emociona

multidões e ocupa no Brasil a função de esporte nacional, que já nos deu cinco copas do

mundo. Por tudo isso, ele é o nosso maior exercício coletivo simbólico de

desenvolvimento. Espero que este estudo resumido sobre os símbolos do futebol sirva

para ligar mais nossa Consciência Coletiva ao coração do nosso povo e coloque também

a serviço da nossa Cultura as ferramentas da Psicologia Simbólica Junguiana.

O Campo, uma Mandala: Símbolo de Totalidade

O futebol é um espetáculo coletivo que se torna ritualístico na medida em que

identifica os espectadores com o drama que se desenrola em campo. Os jogadores são

como personagens de teatro com os quais nos identificamos. O campo reúne dois

grandes teatros de arena, sendo por isto um anfiteatro (anfi=dois). O circo, o cinema, as

paradas, as corridas, os festivais de música e dança, as touradas e os demais esportes

coletivos são espetáculos dos quais o público participa através da identificação dramática.

Esta identificação é proporcional ao entusiasmo demonstrado pela assistência. A

comparação pode chocar, mas tais espetáculos têm simbolicamente a mesma função

psicológica que as religiões: ligar a Consciência às suas raízes, ou seja, ao Arquétipo

Central do Self, organizador do desenvolvimento psicológico da alma individual e coletiva.

Prova disso é que, em inúmeras culturas, estes espetáculos existiam como um ritual

propiciador dos deuses, como bem exemplificam os jogos olímpicos dedicados a Zeus. O

gesto do jogador vencedor, erguer a Copa no final, é um símbolo da Apoteose, comunhão

do indivíduo com o Todo.

A importância dos fenômenos ritualísticos revela-se de forma clara no espaço onde

eles ocorrem. A delimitação deste espaço consiste numa verdadeira sacralização, feita

freqüentemente através de mandalas, que são formas geométricas centralizadas, tais

como círculos, cruzes, quadrados e retângulos. Em sânscrito, mandala quer dizer círculo,

e dá origem às formas circulares ou quadráticas das Yantras, que servem para meditação

na Yoga e aí se tornam, por isso, imagens mágicas. Estudando a Tantra Yoga, Jung

achou que a função psicológica da mandala é religar a Consciência ao centro da

personalidade, estabelecendo a harmonia psíquica através da meditação. Ele assinalou

também que a presença de mandalas em fenômenos individuais e coletivos expressa

vivências de totalidade. A mandala aparece em desenhos espontâneos infantis com a

finalidade de estruturar o Ego ou nas crises psicóticas para manter a unidade da

consciência ameaçada de desestruturação. O diplomata brasileiro José Oswaldo Meira

Penna escreveu sobre a mandala como plano básico de organização de cidades e os

antropólogos as conhecem bem na organização do espaço tribal. A mandala está ligada

ao número 4 e aos fenômenos quaternários, que são expressão freqüente da ação

organizadora do Arquétipo Central na mente humana. A mandala é, pois, um símbolo

estruturante da totalidade do indivíduo e da coletividade que, por meio dela, se relacionam

com seu centro psíquico.

O Futebol, uma Grande Escola de Treinamento Emocion al

O campo de futebol é uma mandala contida em outra, que é o estádio, e numa

terceira, fora do estádio, que é a cidade, o país e, na Copa do Mundo, o Planeta. O fato

de o estádio ter a função prática de abrigar os torcedores não invalida em nada o seu

aspecto simbólico, como o fato de descobrir o papel do coração na circulação do sangue

não impede que ele seja um grande símbolo emocional. Os médicos cada vez mais se

dão conta de que, ao examinar uma pessoa que sofre do coração, seus sintomas podem

ser tanto uma expressão fisiológica como emocional, ou, freqüentemente, as duas. Corpo

e emoção, sujeito e objeto, são inseparáveis na formação dos símbolos que expressam

qualquer fenômeno humano. A vida humana é orientada pelos significados das

experiências e, por isso, nada do que é humano pode existir sem ser simbólico. O fato de

a bola ser redonda para melhor quicar e rolar não nos deve impedir de vê-la também

como símbolo. Platão já considerava a esfera a forma mais perfeita da geometria.

Inúmeras culturas expressam através da esfera e do círculo seus símbolos de totalidade,

por serem formas geométricas onde não se pode diferenciar o princípio do fim e nas quais

todos os pontos da periferia distam igualmente do centro. O controle da bola é um

exercício físico, mas também emocional, de busca de coordenação total do Ser.

A mandala do campo contém, delimita e propicia o desenvolvimento da tensão

necessária à ação dramática. Ela é, ao mesmo tempo, espacial, vivencial e emocional:

delimita os que jogam, os que torcem nas arquibancadas e em casa, separando-os

fisicamente para reuni-los emocionalmente como um todo durante o desenrolar dramático.

A identificação torcedor-jogador é muito estimulada pela cobertura da imprensa, que torna

o espetáculo mais íntimo de todos. Retratos e entrevistas de jogadores, acrescidas de

comentários, fofocas e desafios de dirigentes, aumentam a expectativa dramática e

favorecem a participação emocional. São os rituais emocionais de aquecimento

preparatório. Através deles, a identificação espectador-jogador é ativada de antemão.

Durante o jogo, esta identificação chega a tal ponto que precisa ser limitada e contida,

sem o que não seria possível a ação dramática e, por isso, entre o campo e a torcida há

um fosso e policiais prontos para conter a alma transbordante dos mais exaltados. Esta

delimitação física é necessária para favorecer a identificação emocional, que assim pode

atingir, com segurança, o grau intenso de empolgação necessária para que o povo se

torne também agente do drama que se desenrola.

Os Arquétipos e o Futebol

As vigas mestras da Consciência Individual e Coletiva são o Arquétipo Matriarcal,

da sensualidade, e o Arquétipo Patriarcal, da organização. Ambos estão fartamente

presentes no futebol. A sensualidade do Arquétipo Matriarcal esta expressa em cada

lance do jogo. Corridas, saltos, disputas de bola no corpo a corpo do drible. Coragem,

força, destreza, agressividade, competição, coração, raça, ambição, pura emoção. É a

alma guiando o corpo. E haja adrenalina! Mas a vida individual e coletiva não é apenas

sensualidade. E, por isso, o Arquétipo Patriarcal da organização não pode faltar. As

regras começam nas medidas do campo, das áreas e do gol. Na pequena área não se

pode encostar no goleiro. E, na grande área, uma falta cometida pelo time defensor é o

temido pênalti. O tempo é rigorosamente respeitado e corrigido pelas prorrogações. O

drama é finito. O que não aconteceu nos 90 minutos, nunca mais... a menos que as

regras imponham um jogo com prorrogação e, pior, uma decisão nos pênaltis! E tem o

escanteio e o impedimento, a banheira, que policia o atacante. Tudo fiscalizado por um

juiz e dois bandeirinhas. O famoso trio de arbitragem. Doa a quem doer, é a lei em

campo, expressa pelo apito que assinala a falta. Mantém-se a disciplina e o respeito às

regras. Para quem transgredi-las, cartão amarelo. Mas, se a falta for de má-fé, ou se o

jogador ofender o juiz, cartão vermelho! Desta maneira, o espírito da lei do Arquétipo

Patriarcal confronta as emoções da alma do Arquétipo Matriarcal. Que expressão mais

completa do embate entre os dois grandes arquétipos da civilização exercido num ritual

coletivo!

A interação da sensualidade (desejo) e da organização (lei) marca o dia-a-dia das

pessoas e também cada evento na vida dos povos. Este embate costuma ocorrer aos

trancos e barrancos, de forma imprevisível, intempestiva e, freqüentemente, em meio à

agressividade destrutiva e até na tragédia e na guerra. O desregramento entre estes dois

arquétipos fundamentais é marcado pelo transbordamento matriarcal ou pela repressão

patriarcal. Devido ao aumento progressivo do potencial genocida dos conflitos vivenciados

pelo fanatismo e pela repressão, a sobrevivência da espécie está ameaçada.

Nosso cérebro tem um bilhão de neurônios, a maioria ainda pouco usada. Quando

vemos a facilidade com que uma criança aprende quatro línguas, enquanto muitos adultos

mal falam seu próprio idioma, podemos imaginar a ociosidade do nosso potencial criativo.

Basta vermos a descoberta impressionante da existência de imensos campos energéticos

dos buracos negros e o crescimento do sistema de comunicações nos últimos cinqüenta

anos para termos uma pequena idéia do que ainda descobriremos.

Assim aconteceu que há 2500 anos, na Índia, e há 2000 anos, no Oriente Médio,

houve uma ativação do terceiro grande arquétipo que rege nossa Consciência. Trata-se

do Arquétipo da Alteridade. Ele nos torna capazes de encarar os conflitos relacionando as

polaridades na posição dialética, ou seja, com direitos iguais de expressão. O Mito do

Buda e o Mito Cristão são mitos de compaixão, que permitem a relação da sensualidade

matriarcal e do poder patriarcal em igualdade de condições na personalidade e na

Cultura. Apesar de muito deformados pelo poder durante sua implantação, que os tornou

duas das maiores religiões do mundo, sua mensagem central de criatividade nos conflitos

continua sendo transmitida para a civilização, propiciando o crescimento extraordinário

das ciências modernas,das artes, dos movimentos sociais das democracias e da

Consciência ecológica. O Arquétipo da Alteridade substituiu os exercícios guerreiros pelas

competições desportivas, que propõem um confronto de polaridades, dentre as quais

estão o desejo e o poder, a mente e o corpo, a razão e a emoção, a cabeça e o resto do

corpo, a grosseria e a destreza, a vitória e a derrota, a euforia e a depressão, a alegria e a

tristeza, a inteligência racional e o instinto, sem que um pólo destrua o outro . Junto com

a globalização, o futebol vem se tornando um esporte planetário porque vivencia a

alteridade na participação comunitária de dois times, que representam no campo partes

significativas de uma sociedade e, no jogo, que expressa, do começo ao fim, a dialética

dos opostos.

Superficialmente, a função do futebol é o exercício físico dos jogadores e o

divertimento dos assistentes. No entanto, visto nos seus significados simbólicos, o futebol

é um exercício de confrontação de opostos, durante o qual várias emoções são

experimentadas, isto é, soltas, exercidas, conhecidas, elaboradas e refinadas. Mais

eficiente que qualquer Universidade, o futebol é uma escola de treinamento emocional,

democrático e ético da alma coletiva, contendo alto potencial pedagógico civilizador.

Escócia X Inglaterra: Uma Guerra Resolvida com a Bo la

Como já descobrira Heráclito, o conflito é inerente ao desenvolvimento individual e

cultural. Na mentalidade patriarcal, os conflitos são resolvidos pela repressão e seu

clímax é a guerra. No padrão de alteridade, os conflitos são abordados pela interação da

tese com a antítese para renascerem ambas modificadas em cada nova síntese, como

formulou Hegel. Ao invés do homicídio, que rege a relação pai-filho do Mito de Édipo,

característico do Arquétipo Patriarcal, o Arquétipo da Alteridade coordena a relação pai-

filho através do confronto e da interação criativa. Um dos grandes símbolos deste novo

padrão é a cruz, uma mandala que representa a entrega do homem patriarcal para a

liberação das suas repressões e para seu renascimento no amor comunitário. Trata-se do

mito da morte e da ressurreição do homem patriarcal bitolado para o Anthropos, o homem

pleno capaz de conviver na alteridade. O Arquétipo da Alteridade foi expresso no

Cristianismo pela convivência dialética do Pai com o Filho através do Espírito Santo, no

Mistério da Trindade. O Arquétipo da Alteridade foi também expresso na pregação do

Buda sobre o caminho do meio, caminho da sabedoria que evita os radicalismos, e em

muitas outras religiões, obras de arte e filosofias.

No padrão do Arquétipo de Alteridade, percebe-se que o conflito com o outro é

também criativo. E esta é a grande mensagem da democracia, que propõe o resgate dos

pólos inferiorizados social e economicamente na Cultura, para que os vários setores e

funções da vida se confrontem, se transformem, cresçam e se multipliquem. O padrão de

alteridade permite ao Ego e ao Outro se relacionarem afirmando sua identidade junto com

as suas diferenças. Ele traz uma proposta de desenvolvimento individual e social tão

superior ao padrão repressivo patriarcal que, depois de 2000 anos de sua revelação no

Oriente Médio, sua implantação no processo civilizatório ainda está no seu início. A

própria história do futebol é a maior prova de ser ele praticado exatamente dentro desse

novo padrão da Cultura Ocidental, daí o seu fascínio no mundo moderno.

As origens do futebol se perdem na História. Ele começa na Inglaterra, talvez a

partir do harpastum, jogo de bola com as mãos, trazido da Grécia pelos romanos. Outra

hipótese é que o futebol se originou dos costumes primitivos de chutar a cabeça dos

inimigos para comemorar as vitórias. E desde muito se tem notícia do futebol jogado nas

terças-feiras de Carnaval em Chester, cidade inglesa fundada no tempo dos romanos.

Diante da repressão do padrão patriarcal, o futebol sempre foi um jogo

revolucionário por cinco grandes razões: por ser associado, desde o seu início, ao

Carnaval, festa sabidamente ligada à liberação das emoções e instintos; por ser jogado

com os pés, símbolos do irracional numa cultura que se tornava cada vez mais

racionalmente organizada e planejada através do padrão patriarcal usado sobretudo de

forma repressiva; por ser um esporte coletivo e, assim, contrariar os esportes

individualistas das elites patriarcais dominantes; por dirigir as emoções do novo para uma

disputa que acaba bem, contrariamente aos torneios patriarcais que terminam com a

queda, ferimento ou morte do adversário; e, finalmente, por ser uma atividade social que

subordina a agressividade ao esporte. Contrariamente aos torneios patriarcais, que

submetiam o esporte à agressividade, preparando o povo para a guerra, o futebol

conseguiu sobrepor o esporte à agressividade através da transformação da morte do

inimigo no símbolo do gol. Como disse poeticamente o cronista: “no calor da pugna,

Ronaldo venceu três adversários, e mandando um canhonaço de fora da área, decretou

inapelavelmente a queda da cidadela adversária. É GOOOOOOOL do BRASIIIIL!!!!”.

O futebol caracterizou-se, desde o seu início, como um encontro entre opostos, no

qual o conflito comunitário é admitido, exercido e subordinado prazerosa e

agressivamente a um fim pacífico. No princípio, o futebol era muito mais violento, mas sua

própria prática foi canalizando a agressividade de maneira cada vez mais adequada. Na

sua trajetória antipatriarcal, inúmeros foram seus símbolos anti-machistas como, por

exemplo, a existência de uma partida anual, à época muito famosa, realizada na cidade

de Midlothian, na Escócia, onde as mulheres casadas se defrontavam com as solteiras.

Tão antipatriarcal e antiguerreiro foi sempre o futebol que, já em 1297, uma guerra entre a

Inglaterra e a Escócia acabou desmoralizada porque os soldados de Lankshire,

tradicionais inimigos dos escoceses, desobedeceram seus comandantes e preferiram

disputar sua rivalidade no futebol e não no campo de batalha. Conta uma lenda que até o

Rei Eduardo I acabou participando. É importante frisar que, depois disso, os reis Eduardo

III, Ricardo II, Henrique IV, Henrique VIII e até Elizabeth I, já no século 16, legislaram

contra o futebol, porque ele desviava o povo dos torneios de lutas de arco e flecha,

enfraquecendo os exércitos. Tornou-se necessário reprimi-lo em nome da segurança

nacional do Império Inglês. Tudo em vão. O esporte floresceu e se espraiou em nossa

Cultura por vias diversas, mas com a mesma pujança do nosso Mito Messiânico, ambos

buscando implantar à sua maneira, na Cultura Ocidental, o padrão de alteridade, de

respeito pelo Outro.

Jung chamou a atenção fartamente para o poder prospectivo dos símbolos. Aos

quatro anos de idade, ele próprio sonhou com um phallus de carne sobre um altar

subterrâneo. Este phallus representativo da sexualidade espiritual, que transcende a

sexualidade fisiológica, foi um símbolo altamente prospectivo para ele, pois norteou sua

obra durante mais de oitenta anos. Minha tese é atribuir a evolução do futebol à atividade

simbólica prospectiva da Psique coletiva na transformação da Cultura.

É um fato sociológico extraordinário que o futebol tenha se implantado

revolucionariamente, sem qualquer catecismo ou proselitismo, só e exclusivamente a

partir da alma do povo, de baixo para cima. Hegel propôs uma teoria religiosa da História,

segundo a qual ela seria a encarnação progressiva do Espírito Divino. Podemos retomar

sua teoria no nível científico, afirmando que, dentro da transformação histórica trazida

pelo Mito Cristão, que ilustra uma Teoria Simbólica da História, o futebol é uma expressão

cultural da implantação do Arquétipo da Alteridade no Processo Civilizatório.

O futebol é uma atividade que mostra a criatividade do Self Cultural a partir de uma

necessidade histórica de transcender simbolicamente o padrão repressivo guerreiro. Ele

não surge nem de uma luta de classes econômicas e nem de uma sublimação seguida a

uma repressão. Pelo contrário, o futebol surge e se desenvolve a partir da inteligência

criativa da Psique para atender a uma necessidade histórica da Consciência Coletiva de

busca de alteridade e de democracia.

Uma abertura maior para a função criativa do símbolo na Cultura permite-nos

perceber a coincidência significativa entre a relação histórica do desenvolvimento do

futebol, a partir dos séculos 12 e 13, e o fascínio da lenda do Graal na literatura desse

período, que retrata os cavaleiros da Távola Redonda, inicialmente 12, e sua busca do

vaso com o sangue de Cristo para salvar o reino. Um dos ferimentos atribuídos ao Rei

incapacitado de governar é exatamente a paralisia das pernas. Será demais associar o

futebol com a busca do ser humano de se salvar da destruição, pela opressão e pela

guerra, através do resgate do corpo como expressão simbólica da redenção do oprimido?

Pode-se deixar de associar os 12 cavaleiros da Távola Redonda com os 11 jogadores,

mais o técnico?

É verdade que o futebol já foi muito mais violento na sua trajetória do padrão

patriarcal para a alteridade. No século 18, era comum um jogo terminar com muitas

fraturas. A direção progressiva de sua codificação e autopedagogia caminhou, no entanto,

para expressar um conflito de opostos que culminasse com uma solução criativa e não

repressiva, em função de sua relação com o centro através do gol, o que tornou as

fraturas cada vez mais raras.

Um Time em Busca do Gol é o Torcedor na Luta pela V ida

Não quero dizer que não haja agressividade e machismo no futebol. No entanto, a

finalidade do futebol não é a violência e o machismo, ao contrário dos padrões patriarcais

repressivos. Na ética patriarcal, o adversário tem que se opor radicalmente ao outro,

dominá-lo e até destruí-lo. Durante a dominância patriarcal da Cultura, no lugar do jogo,

tínhamos o torneio. O partido vencedor, representante de um feudo ou de uma nação,

derrotava, feria e freqüentemente matava o adversário. O futebol é um fenômeno cultural

extraordinariamente profundo, que prova a enorme evolução da Consciência coletiva.

Nele o ser humano aprende a ultrapassar o padrão repressivo e a exercer a relação

dialética dos opostos de forma criativa e não destrutiva. Lutar, competir com direitos

iguais de expressão para vencer sem destruir. O futebol é uma escola de participação

comunitária, de ética e de democracia.

O rugby americano, criado em 1823, introduziu o jogo com as mãos, perdendo

assim um dos aspectos mais revolucionários e simbólicos do futebol. Os pés representam

a base física do ser humano, como bem ilustra a figura mitológica do centauro. Eles

pertencem à metade inferior do corpo, associada aos processos inconscientes, instintivos

e vegetativos, pois aí se situam os intestinos, a excreção fecal e urinária e os órgãos

sexuais – tudo isso contraposto à cabeça e à boca, representantes da Consciência, da

comunicação, de quatro órgãos dos sentidos e da ingestão. A proposta do futebol é

revolucionária exatamente por resgatar e dar destaque à parte inferior do corpo, tão

reprimida na história do Ocidente. No futebol, a coordenação corporal readquire seu

heroísmo, seu brilho e sua integração numa competição agressiva. No futebol destacam-

se justo os pés.

Freud denunciou a repressão sexual, que é apenas uma parte da repressão do

Arquétipo Matriarcal que representa tudo o que é arcaico, sensual, instintivo e irracional

no ser humano. A habilidade dos pés é a habilidade do mundo arcaico. O oposto da

cabeça, do raciocínio claro, da Consciência abstrata. O homem ocidental se hipertrofiou

tremendamente em torno apenas da razão, da palavra, do arbítrio do Ego, separando-se

perigosamente de suas raízes instintivas. Já as nações latino-americanas, mais distantes

dessa cultura patriarcal acadêmica dissociada, se mostram, nesse particular, mais sábias,

devido a um componente sensual matriarcal ibérico miscigenado com as culturas índias e

negras. Isso lhes permite usufruir plenamente da expressão integradora do corpo no

futebol, na música e nas danças populares plenas de sensualidade. Por isso, o que o

poeta disse sobre o samba, aplica-se também ao futebol: “quem não gosta de samba,

bom sujeito não é. É ruim da cabeça, ou doente do pé.”

Durante a implantação do Arquétipo da Alteridade, que inclui o resgate da

sensibilidade masculina junto com o Arquétipo Matriarcal, o futebol trouxe “a dança dos

pés e a ginga do corpo” e, assim, vem devolvendo à identidade masculina a sua

sensibilidade perdida. A função desempenhada pelo futebol na identidade do homem é

equivalente àquela que a dança sempre teve para expressar a sensibilidade da mulher,

desde tempos imemoriais.

A finalidade do futebol é lidar com inúmeras emoções, principalmente a

agressividade, a ambição, a afetividade grupal, o espírito de equipe, a cooperação, a

competitividade, a esperança da vitória e a depressão da derrota. Seu objetivo é conviver

criativamente com elas, organizando-as em função do centro, isto é, do gol. O goleador é

o herói. Todo desenvolvimento profundo da Consciência é revolucionário e ativa o

Arquétipo do Herói. A diferença é que no futebol o desenvolvimento da Consciência se

expressa não pelo herói patriarcal que mata o dragão, e sim através do herói de

alteridade, que enfrenta o dragão e, sem matá-lo, resgata o tesouro. Os jogadores de

futebol são os heróis do povo, e o goleador é o maior de todos. Identificados com os

jogadores no ritual dramático, sentimos que eles realizam proezas físicas e psíquicas

tremendamente gratificantes. As proezas físicas são maravilhosas de ver e se tornam

símbolos psíquicos usufruídos pelo torcedor.

A meta do adversário é defendida por um time como o nosso. Para chegar a ele,

temos que nos defrontar com emoções e temores intensos, e atravessá-los através do

drible, do domínio da bola, da intuição, planejamento, ação, velocidade – tudo, enfim, que

há de mais humano contra tudo humanamente igual. Como todo jogo, o futebol é mistério,

e nele tudo pode acontecer. A imprevisibilidade do jogo faz com que toda sorte de

emoções surja entre o herói e o gol. Com isso, a ação dramática dos 90 minutos é um

símbolo pujante do processo de luta que uma pessoa tem na vida para atingir suas metas.

É interessante notar que o espaço ritualizado é representado pela mandala quaternária (o

campo), que é sempre associada a fenômenos humanos de totalidade, e o tempo de 90

minutos evoca o número 3 como indício do processo evolutivo da vida, cujo exemplo mais

ilustrativo é a duração da nossa gestação. É importante saber que, no seu início, o futebol

era jogado num espaço enorme, geralmente entre duas aldeias, com participação quase

ilimitada de pessoas e de tempo. Sua codificação, com a demarcação do campo e do

números de jogadores, exemplifica sua mudança progressiva rumo a um ritual de

transformação emocional coletiva. Nesse sentido, o campo é um temenos, um espaço

sagrado onde se realiza a transformação da Consciência.

A numerologia no futebol também é simbólica. O número 4 na estrutura e o 3 na

duração apontam para a dialética simbólica do 3 e do 4, que Jung tanto estudou (veja, por

exemplo, o Simbolismo do Dogma da Trindade, Ed. Vozes). Outro número que expressa a

totalidade é o número de 10 jogadores. O 11º é o goleiro, símbolo dos outros 10 e, por

defender a meta, pode inclusive tocar a bola com as mãos. A necessidade de um 11º, de

um jogador diferente da totalidade dos outros 10, está ligada à natureza especificamente

simbólica da meta. Ela está dentro e fora do campo, assim como o goleiro faz parte do

time, mas se situa fora das regras dos outros. É que a meta se acha associada ao centro

do espetáculo e, por isso, é a parte mais sagrada e íntima de todo o espaço dramático.

Sua característica de meta, de objetivo, o lugar onde o espetáculo chega ao êxtase,

outorga a quem a defende características de totalidade do corpo ao lidar com a bola. É

importante assinalar que o técnico do time é o 12º jogador, que planeja a estratégia da

luta e sofre com ela do começo ao fim. A estratégia, no entanto, é uma intenção racional

que permanece fora do campo e que deve ser posta em prática através da síntese

racional-emocional dos jogadores. Os torcedores não são o número 12 do time, pois o

número 12 é o técnico. Os torcedores são o time inteiro, inclusive o técnico, com o qual se

identificam, pois o vêem como parte inseparável do time. E também o juiz..., quando

concordam com ele... O juiz é o número 13, que também é inseparável de cada time,

pertencendo a ambos e a nenhum.

Um jogador de futebol é uma construção dramática. Nela, o ser humano se lança,

em meio às mais variadas peripécias emocionais, para marcar seu gol. E o espectador,

mesmo sem estar na mandala interna do campo, é açambarcado pela mandala externa

do estádio ou pela mandala mais distante ainda, formada pelos meios de comunicação e

que, ao se tornar viva pela emoção de torcer, faz a pessoa experimentar as mesmas

emoções que os jogadores, sempre catalisadas, é claro, pela clássica cervejinha. A

torcida anima os jogadores na medida em que empatiza com as emoções deles e é por

eles animada. Terminados os 90 minutos, a identificação ritual cumpriu seu papel, pois

uniram-se as três mandalas. Jogadores e torcidas deixam o estádio ou torcedores

desligam suas televisões para continuar elaborando nos dias subseqüentes os grandes

lances emocionais que juntos vivenciaram. Os pés, capazes de deflagrar emoções tão

arcaicas, evocam a imagem do centauro, reintegrando a unidade plena do ser humano,

da qual a nossa Cultura tanto se distanciou. Vale a pena lembrar que o sábio Chiron, que

conhecia os segredos das ervas curativas da natureza e foi o preceptor de Esculápio,

Deus da Medicina, era ele próprio um centauro. Através da Psicologia Simbólica

Junguiana podemos perceber o papel estruturante, pedagógico e curativo dos símbolos

do futebol.

A Grande Escola: Lidar Bem com as Emoções em Plena Luta

A razão de ser das instituições culturais é ritualizar as funções da vida social,

inclusive a vida emocional. Uma cultura é rica quando possui instituições capazes de

canalizar um grande número de funções humanas, permitindo que, no seu exercício,

possamos elaborar, educar e aprimorar essas funções para a sobrevivência e o

desenvolvimento da comunidade. A Cultura é, portanto, a oficina onde o homem aprimora

sua alma com as ferramentas desenvolvidas por seus antepassados. O futebol lida com

emoções fundamentais, como, por exemplo, a agressividade, a competição, a inveja, a

crueldade, a depressão, o orgulho, a vaidade, a humilhação, a amizade, o

companheirismo, a covardia, a rivalidade, o fingimento, a traição, a euforia da vitória ou a

depressão da derrota e muitas outras. Praticamente todas as emoções humanas podem

ser objeto de elaboração, aprendizado e controle durante um jogo. Vou agora exemplificar

com a agressividade o padrão de elaboração que se aplica a todas as outras emoções.

A identificação jogador-torcedor faz com que as emoções elaboradas pelo jogador

o sejam simultaneamente pelo torcedor. Um time que se lança ao ataque em conjunto,

estimula a coragem e a ambição do jogador-torcedor em busca do gol. Ativa sua

inteligência, argúcia, intuição, criatividade e agressividade. E o mesmo se passa com o

adversário. Este confronto de qualidades humanas a serviço da invasão, por um lado, e

da resistência, por outro, que logo vão se inverter num contra-ataque, desenvolvem

enorme agressividade pelo ímpeto de atingir o centro do outro time e marcar o gol. A

energia vital necessária para um jogador se lançar de corpo inteiro no ar para cabecear

um cruzamento só é possível diante de um enorme espírito de luta. As frustrações

inerentes à maioria das jogadas, não raro acompanhadas de dor física nas entradas mais

violentas, despertam também um intenso antagonismo e agressividade.

Exatamente pelo fato de o futebol ser jogado com os pés, o nível arcaico e

irracional da emoção ativada é muito maior. E o fato de o domínio da bola ter que ser feito

com os pés em momentos de tão grande tensão, torna o controle das emoções na hora

da jogada um feito extraordinário do ponto de vista psicológico e até existencial. Na vida,

quem consegue brigar com a mulher, confrontar um filho adolescente, levar uma fechada

de carro ou discutir política construtivamente é realmente uma pessoa evoluída, pois se

mostra capaz de lidar com suas emoções não só sem se descontrolar, como até se

posicionando de forma criativa diante delas.

A maior frustração que um jogador dá à sua torcida não é perder o jogo, e sim ser

expulso do campo por descontrole emocional. Psicologicamente, isso é significativo, pois

é, sobretudo diante das grandes frustrações que o jogador mais leva avante a sua obra de

educação emocional. Atravessar a vivência depressiva da derrota, jogando sem se

descontrolar, é emocionalmente uma proeza ainda maior que a vitória. Nada, porém, de

mais anti-heróico no jogo do que o cartão vermelho, símbolo do inferno como punição

pela possessão da Consciência pela agressividade e pelo descontrole emocional.

Quando Você Torce, Sofre, Quase Perde a Cabeça e De pois se Recompõe...

aí o Jogo foi Bom!

O que pode acontecer também é a ruptura da identificação jogador-espectador. É

quando o jogador se controla, mas o espectador perde o controle emocional. Nesses

momentos produz-se uma dissociação entre as mandalas campo-estádio que necessitam

do fosso e do policiamento para limitar a tensão a um nível produtivo.

A crise de identificação espectador-jogador põe em perigo todo o ritual e a própria

continuação do jogo. O jogador realiza um esforço heróico de contenção que o torcedor

nesses momentos não acompanha: ele berra, xinga, atira coisas no campo, ameaça,

agride pessoas na arquibancada. Outros torcedores podem entrar na briga ou invadir o

campo, violando a mandala interna. Vem a polícia. O jogo chega a ser interrompido ou até

mesmo suspenso. Venceu o caos. Acabou-se o futebol. É o cartão vermelho para o

torcedor.

Sem chegar a essas situações extremas, as reações que caracterizam a cisão

emocional jogador-torcedor são freqüentes e muito criativas pedagogicamente. Nesses

momentos, realiza-se intensamente no futebol a obra educacional que o torna uma das

grandes escolas da cultura. Ao romper-se a unidade jogador-espectador, o torcedor se

descontrola emocionalmente e se afasta do padrão de alteridade. Possuído pelo

Arquétipo Matriarcal ou pelo Patriarcal, o torcedor perde a dimensão simbólica do jogo e

quer agredir fisicamente o adversário. Tomado pelo Arquétipo Matriarcal, o torcedor

explode de raiva e, pelo Patriarcal, ataca para justiçar seus oponentes ou o próprio juiz.

O jogador, ao contrário do torcedor, na maioria das vezes resiste ao descontrole

emocional; ao se conter, ele se torna um verdadeiro professor do padrão de alteridade:

continua a disputar lealmente com o adversário em igualdade de condições e transforma

criativamente a enorme tensão das mandalas campo-estádio-cidade no seu avanço em

direção à meta. No afã de chegar lá também e de participar da luta, o espectador em

breve se recompõe e retoma a missão comum golear. E o êxtase do gol é algo tão

maravilhoso que, por estado emocional algum, o torcedor quer perdê-lo. É a própria

emoção da busca permanente do gol que refaz a identificação jogador-espectador.

Através do Arquétipo do Herói, esta emoção reforça o Ego do espectador e lhe permite

recuperar o controle de suas emoções. O exemplo do jogador permite ao espectador

mergulhar no âmago da agressividade e voltar à tona sem se afogar, ou seja, sem ficar

possuído por suas emoções. É assim que se faz um desportista, é assim que se

engrandece e amadurece a personalidade de uma pessoa. Ulisses teve que ser amarrado

no mastro para resistir ao canto das sereias. No futebol, um craque pode conduzir muitos

marinheiros através do mar revolto de emoções bravias de volta ao porto seguro, sem

precisar amarrar ninguém. Esta é uma universidade da cultura popular, onde quem vai de

arquibancada se forma mais depressa do que quem vai de cadeira, porque se expõe mais

ao ritual de iniciação da prova de campo. Confrontar, conviver e não se deixar dominar

por suas emoções mais inconfessáveis, isto é, por sua Sombra, é a tarefa básica da

simbiose jogador-espectador.

O aprendizado do futebol não se faz através do cognitivo, do racional, como

geralmente ocorre na Universidade. O futebol é uma pedagogia que vem dos pés e “pega

por baixo”. Sobe do irracional para o racional. O espectador não percebe quando está se

descontrolando ou quando está readquirindo o equilíbrio emocional. Não está consciente

de que começou a fazer o contrário do jogador e que este o levará de volta ao

autocontrole. Concebendo a personalidade dentro do Eixo Simbólico, entre a Consciência

e o Arquétipo Central, vemos que o Ego regula o consciente com suas ações voluntárias,

e o Arquétipo Central coordena os demais arquétipos para elaborar símbolos que

orientarão a personalidade. Assim, no futebol, é o Arquétipo Central que regula o

amadurecimento da personalidade do espectador através do Arquétipo do Herói e dos

Arquétipos Matriarcal e Patriarcal, inter-relacionados dialeticamente pelo Arquétipo da

Alteridade.

Compreende-se, então, por que tantos símbolos de totalidade estão presentes nas

mandalas do campo e do estádio: o número 4, associado à delimitação do espaço; o 3, à

duração do jogo, e o 10, aos jogadores. Tudo isso é para constelar, organizar o centro da

personalidade através da ação dramática, de forma que a totalidade do Self (consciente +

inconsciente), e não exclusivamente o Ego racional, participe a experiência. E nem pode

deixar de ser assim. Se o Ego do espectador se mantivesse absolutamente lúcido,

reflexivo e controlado, na mera observação fria do jogo, nunca ocorreria a identificação

espectador-jogador, fundamental para que a ação dramática e pedagógica aconteça. Uma

das finalidades do ritual é diminuir o poder controlador do consciente para que o Arquétipo

Central passe a comandar todo o processo através dos símbolos. Isso faz do futebol um

ritual para aficionados, o que lhe dá uma característica iniciática. Os que não sabem das

regras, dos significados das linhas de campo, dos gestos do juiz, ou das reações dos

jogadores, dificilmente atingirão o estado de fusão emocional jogador-espectador, a partir

do qual o drama será vivenciado. Esse aspecto exclusivo dos iniciados, que o futebol tem,

é muito favorecido em nossa cultura, pois desde pequenos aprendemos a jogar e a torcer.

Lembro-me que no início da minha adolescência, ia com um primo torcer pelo Flamengo

todos os domingos nos mais variados campos de futebol do Rio de Janeiro. Quando o

Flamengo ganhava, voltávamos para cada geralmente roucos e triunfantes. Quando

perdia, quantas e quantas vezes, ficávamos chorando e olhando o campo até o último

torcedor sair do estádio. Parece que sentíamos como se o Flamengo fosse magicamente

voltar ao campo para retomar a luta e vencer.

Juiz, Jogadores, Torcida: na Hora, todo Mundo Julga

Num estudo comparativo de pedagogia, pode-se dizer que os métodos de ensino

exclusivamente cognitivos são cansativos porque se revelam repetitivos e pouco criativos,

enquanto que aqueles realizados levando em conta também as emoções são

empolgantes. O ensino sem emoção, unicamente racionalista e não simbólico

desequilibra o Ser porque sobrecarrega o consciente e a memória com ensinamentos dos

quais não compartilham as vivências emocionais mais profundas e significativas. Basta

terminarem as provas para nos livrarmos e nos esquecermos de tudo o que aprendemos.

Já o ensino através do Self, do Todo, é simbólico, é existencial e cansa muito menos, pois

os próprios símbolos constelados ajudam a memória a preservar o saber. Assim é o

método da Pedagogia Simbólica Junguiana por mim descrito em meu livro A Construção

Amorosa do Saber (editora W11, 2004). É o ensino simbólico, racional e emocional que

amadurece a personalidade harmonicamente e por igual, e que faz com que um jogador

de futebol, mesmo sem ter nível universitário, seja capaz de confrontar um adversário e

expor em público toda a sua capacidade de luta, habilidade e equilíbrio emocional.

Vencedor ou derrotado, ele termina o jogo com a mesma disposição para enfrentar tudo

de novo.

Parece pouco? No entanto, nos relacionamentos entre as pessoas, qual o político,

o cônjuge, o pai, a mãe, o cientista ou o homem público capaz de fazer isso? Poucos. Ao

primeiro ataque, trememos com a vaidade ferida. No segundo, ficamos possuídos pela

raiva e pelo espírito de vingança expressos freqüentemente no desligamento emocional,

que aparentemente representa autocontrole, mas que indica simbolicamente a morte do

outro para nós. No terceiro, somos capazes de fugir assustados e furibundos do campo

de confronto para nunca mais voltar. Passamos daí a culpar o adversário e a cultivar

mesquinha e covardemente o veneno da nossa mágoa por nossa imaturidade e

incapacidade de conviver criativamente com nossas emoções em conflito. Na verdade, de

que é que os países latino-americanos mais precisam para enfrentar e atravessar a

enorme crise social em que vivemos? Mais do que explicações brilhantes, precisamos de

coragem emocional para entrar num verdadeiro campeonato nacional e confrontar as

várias tendências do nosso povo e para realizá-las concretamente. Para inventar

armamentos, soluções numéricas e sem alma, intelectualizadas, dissociadas do Todo,

elitistas ou repressivas, o futebol não serve de modelo. Mas, para instaurar, exercer e

agüentar a dialética prática e criativa dos conflitos emocionais em função do Todo, que é

o que engrandece uma nação e a transforma em democracia, para isso não há melhor

escola do que o futebol. O torcedor sabe que cartola e demagogia nunca botaram a bola

na rede de ninguém. E os políticos, será que sabem que se permanecerem legislando nos

gabinetes jamais saberão das necessidades reais do seu povo? Ser Secretário dos

Transportes sem nunca ter andado de ônibus às 5 horas da manhã. Ser presidente do

Banco Nacional de Habitação sem nunca ter visto um favelado construir sua casa.

Analisar as estatísticas de atendimento do Serviço Público de Saúde sem saber a que

horas da madrugada o doente saiu de casa e quantas horas esperou para ser atendido.

Será difícil perceber a dissociação desta maneira de governar?

A Função Ética do Futebol

Um dos maiores tesouros culturais do futebol é o exercício vivo e emocional da

função ética, indispensável ao crescimento da consciência coletiva. A meta representa o

centro, nosso e do adversário, e a finalidade do futebol é atingi-la. Ora, o centro é o maior

símbolo de totalidade. Portanto, todas as regras do futebol, que codificam o certo e o

errado, o fazem em função da dialética do jogador-espectador com o centro. E o certo e o

errado estão enraizados em última instância na relação entre o Bem e o Mal, que formam

a polaridade ética da alma individual e coletiva. As regras do futebol limitam e propiciam a

dialética do certo e do errado, do Bem e do Mal e subordinam dramaticamente o exercício

desta ética à tarefa de marcar o gol, ou seja, de relacionar a Consciência com o centro. É,

portanto, uma ética vivida em meio a um conflito entre opostos numa relação consciente

com o centro organizador. O exercício da ética no futebol é realizado por todos. É

emergente, dinâmico, criativo e por isso tão fascinante como o próprio jogo. Os jogadores

e os torcedores, todos se tornam juízes e aperfeiçoam sua capacidade de julgar o certo e

o errado, guiados pelo trio de arbitragem.

Na vida diária, ninguém julga as situações emocionais de cabeça fria, após

consultar tratados de jurisprudência. É durante o jogo e no calor das emoções que o

futebol ensina a ética, na medida em que o certo e o errado são identificados e

diferenciados através dos gestos e apitos do juiz. A ética não é sabida apenas pelo juiz e

imposta ao drama de fora para dentro do jogo. Ela emerge no próprio espetáculo, onde o

juiz, espectadores e jogadores formam um Todo. É importantíssimo, do ponto de vista

simbólico, o fato de o juiz acompanhar o jogo no meio dos jogadores o tempo todo, pois

isso torna a função ética viva dentro do campo. A decisão ética é bastante criativa e

vivenciada profundamente porque ela emerge junto com os lances mais emocionais antes

do jogo. Todos os jogadores e torcedores participam da discriminação do certo e do

errado nas decisões reveladas para a Consciência coletiva dramática e criativamente pelo

juiz durante o jogo. Os discernimentos éticos mais difíceis acompanham muitas vezes os

lances mais emocionantes do jogo, o que torna o julgamento tão fascinante quanto a

jogada. A identidade do torcedor-jogador com o juiz para o aprendizado ético,

pedagogicamente falando, é muito produtiva. Todos julgam no estádio e o julgamento é

tão rápido quanto a ação. O juiz expressa o julgamento e é imediatamente julgado pela

comparação da sua marcação com aquela que os jogadores e espectadores também

fazem. No caso de discordância, exacerbam-se as emoções, e a revolta é expressa com

palavrões, que chegam a ser codificados para melhor expressão conjunta da torcida.

Os torcedores continuarão a exercitar e aprimorar a ética depois do jogo, pelas

esquinas e bares da cidade e, durante a semana, pelos meios de comunicação. A função

ética organiza e delimita a ação, permitindo que as emoções se elevem a grandes

temperaturas, fundamentais para a vivência simbólica que, quando elaborada, leva ao

crescimento da Consciência, que culmina com o amadurecimento da personalidade.

As várias marcações de faltas abordam infrações diferentes, que permitem a

discriminação ética das mais diversas emoções. A regra do impedimento, por exemplo,

proíbe receber a bola por trás da defesa, delimitando física e dramaticamente situações

de lealdade, no confronto direto, e de traição, no atacar por trás.

Outra discriminação ética muito importante no futebol é a que distingue entre culpa

e dolo, entre boa e má-fé nas jogadas mais violentas, onde a má intenção costuma ser

punida com o cartão vermelho. A distinção entre culpa e dolo na catalogação do Mal é tão

importante que dela o Direito Penal se ocupa extensivamente, há muitos séculos, para

julgar e punir os crimes. Psicologicamente, ela se baseia na diferenciação da intenção a

serviço da criatividade e da vida ou da destrutividade e da morte. Sendo um jogo que

aborda o próprio drama da vida, o futebol lida dialeticamente com a polaridade da vida e

da morte, do Bem e do Mal. A finalidade do futebol é a dialética dos opostos para marcar

o gol, isto é, atingir o centro através da ação social conjunta.

O exercício da ética no futebol é tão evoluído que trouxe até mesmo a codificação

de não se marcar uma falta que beneficie o infrator. Ora, julgar assim é extremamente

sábio, pois significa não subordinar a lei a um princípio abstrato e aplicá-lo

separadamente do aqui-e-agora. É preciso quase um dom jurídico para perceber a

sabedoria ética que o povo aplica e desenvolve minuciosamente em cada jogo.

O Símbolo da Meta

A meta é espacial e emocionalmente o âmago do time. A pequena área tem

características especiais, pois dentro dela ninguém pode encostar no goleiro. À volta dela

está a grande área, onde só o goleiro pode pegar a bola, sem, no entanto, poder sair da

área com ela nas mãos. Outra grande característica é que qualquer falta feita pela defesa

dentro da grande área é uma falta máxima (pênalti) para a defesa, mas não para o

ataque. A meta é o altar. É o espaço sacralizado para a vivência do êxtase.

A meta é um símbolo muito diferenciado por ser o único espaço delimitado em três

dimensões, enquanto que o campo o é apenas em duas. Ela é o espaço mais íntimo e

especial do campo e, no entanto, o transcende, pois está no campo e, ao mesmo tempo,

fora dele. Isso dá à meta o caráter de símbolo do centro que, na personalidade, é

ocupado pelo Arquétipo Central, que controla a Consciência, ao mesmo tempo em que a

transcende. O Arquétipo Central controla todos os demais arquétipos, cujos símbolos de

totalidade representam o sagrado, o tesouro buscado pelo herói nas lendas e mitos.

Como ele, a meta é atingível pelo esforço do Ego, mas ao mesmo tempo não pode ser

por ele controlado, porque o transcende. A meta em tudo nos lembra o temenos, o espaço

sacralizado onde, através da vivência sacrificial, o indivíduo se relaciona com o Todo nas

religiões. A intermediação do atacante com o gol é feita pela bola, e as jogadas são os

símbolos da nossa busca permanente de auto-realização.

O Gol Simboliza a Morte e a Ressurreição

O gol é o maior símbolo do futebol. Ele representa a morte simbólica do adversário

e atinge intensa profundidade porque a mandala do campo permite que, através do

centro, tudo recomece e o time que “morreu” na derrota renasça e volte a lutar. Neste

símbolo a morte é vivenciada como agente de transformação, exatamente como em

nosso Mito Messiânico. A vivência de sofrer o gol e de fazer o gol se complementam e

formam um todo emocional.

Alegria e tristeza, euforia e depressão, realização e frustração são vivenciadas

como pólos inseparáveis do processo existencial. Esta lição de grande profundidade

emocional é das mais sábias e difíceis para um ser humano aprender durante seu longo

processo existencial. É interessante verificar, na prática, que quando um time marca um

gol, geralmente há uma reação intensa do adversário para empatar. O jogador e a torcida

sabem que o gol não é um acontecimento lógico. Ele depende sempre da chance, do

destino, de algo ligado ao mistério da criatividade e da vida, e que transcende as leis da

causa e efeito. O jogador celebra, pelo fenômeno que Jung denominou sincronicidade, a

conjunção plena da intenção, da ação e da realização. Às vezes, o jogador tem tudo para

marcar e não marca. Fala-se em magia, em feitiço, em gol fechado. Ou então é dia do

artilheiro estar com a “cachorra”. E entra tudo. É a superstição querendo dar forma ao

indescritível e explicar o incompreensível. Mas todos sabem que o gol surge como uma

revelação, exatamente como as soluções nos misteriosos caminhos da vida. Às vezes,

temos a premonição de que o gol vai ser feito antes mesmo de o jogador chutar. É a

vivência intuitiva e profética tão comum no futebol. Por isso, todo chute em gol é um ato

de inspiração, de fé, diante do qual o jogador e a torcida sabem que será “o que Deus

quiser”. Se não tiver que entrar, não entra mesmo. Nesse sentido, acontecem gols

inacreditáveis que trazem vitórias impossíveis e que dão ao jogador-torcedor a sensação

de milagre, típica das vivências místicas, que enaltecem a criatividade extraordinária do

Arquétipo Central do Self.

Outro grande símbolo que liga o gol à experiência de totalidade é o fato de ele

reunir em si próprio o início e o fim. O que é um paradoxo. Contudo, os símbolos da

totalidade se expressam freqüentemente por paradoxos, pois se trata de uma situação na

qual os opostos estão contidos e operantes. No caso do tempo, a união do princípio e do

fim torna-se um sinal de totalidade que tudo abrange. Isto ocorre na marcação do gol,

única situação em que, no meio da partida, a bola deve voltar ao centro do campo, como

no seu início. Tudo acaba e tudo recomeça e, por isso, existe um círculo, a quarta

mandala, a mandala íntima do temenos, do centro do campo.

O gesto do juiz apontando o centro depois do gol é a validação ética mais simbólica

e emocionante de todo o jogo, sendo complementada pela beleza do salto consagrador

do artilheiro diante da torcida. É como se cada gol contivesse todo mistério do jogo no

êxtase de sua marcação. O simbolismo da morte e ressurreição ligado ao centro e à

totalidade são aqui inegáveis.

Futebol, Alteridade e Democracia

Os times entram em campo, sociologicamente falando, em absoluta igualdade de

condições. Não há o menor elitismo ou privilégio. Trata-se de uma manifestação ideal do

fenômeno social democrático de alteridade. Mas os times também são opostos e tudo

fazem para golear e, assim, se tornam um fenômeno exemplar da dialética das diferenças

dos opostos numa ação comunitária. Uma equipe ataca, outra se defende. Ao atravessar

o time adversário, ao senti-lo batido, resta o goleiro, que se defende com tudo. Ao vencê-

lo também, o goleador decreta a queda da sua cidadela. É o confronto máximo de uma

polaridade onde o vencido foi atingido no âmago mais íntimo do seu centro e o vencedor

consagrou o poder penetrante do seu ataque. A criatividade popular costuma expressar o

gol através de diversos símbolos da conjunção dos opostos, inclusive da união sexual

entre o homem e a mulher. O gol é então saudado como expressão de orgasmo, êxtase e

fecundação: “Meteu um golaço e balançou o véu da noiva”!

Mas é bom não confundir as coisas. Este simbolismo é usado não porque o futebol

seja a prática sublimada de uma relação sexual, como muitos poderiam redutivamente

explicar, mas apenas porque o futebol, como o sexo, pode expressar o que há de mais

profundo na vida. O gol é êxtase porque é o momento da expressão dramática da reunião

dos opostos, momento significativo da expressão do Self Comunitário. Para o jogador-

torcedor, identificado com a sorte do seu time, ser goleado dói no fundo do Ser, enquanto

que para o time-torcedor-goleador acontece a consagração de todo esforço desenvolvido.

Encontram-se os opostos do sucesso e do fracasso, da vitória e da derrota, do ataque e

da defesa, do ativo e do passivo. O juiz levar a bola ao centro do espaço dramático e

recomeçar o jogo é o maior ensinamento existencial do futebol, pois os acontecimentos

centrais da vida envolvem sempre os opostos. É importante notar que quem recomeça o

jogo é quem sofreu o gol. Quem morreu é quem deve renascer.

É assim que o futebol nos traz a grande vivência da alteridade na democracia

contida no na idéia de que quando o governo e a oposição se reúnem para legislar, seu

resultado expressa a alma da Nação.

Com um Futebol Solto, o Brasil foi Pentacampeão

Do jeito que é praticado no Brasil, o futebol traz uma mensagem de arte e

desenvolvimento para toda a nossa Cultura. Ele ajuda a implantar entre nós, através dos

pés, irracionalmente, de baixo para cima, o mesmo padrão dialético e criativo, ligado ao

centro e ao Todo, que o Mito Messiânico vem implantando no mundo. Tão ao contrário do

padrão patriarcal, repressivo, armamentista, que parte de cima para baixo, suprimindo

adversários.

O futebol integra também nossas raízes européia, africana e indígena, contribuindo

imensamente para a formação de nossa identidade pluricultural. Em seu exercício está a

criatividade e o gozo do corpo, presentes nas culturas índias e negras. E também o

planejamento, cultivado pelos colonizadores. Através do samba, da dança, do uso total do

corpo, as culturas africanas e indígenas vêm complementar a européia, que nos trouxe

muito conhecimento, mas também muita repressão. Samba e futebol são formas

extrovertidas de demonstrar a criatividade do corpo, ao contrário do ballet clássico, por

exemplo, uma codificação patriarcal deformadora da linguagem dos pés, bem ao gosto

europeu.

A América Latina é uma civilização de grande pujança matriarcal, a qual podemos

usar para entrar em uma fase do mundo moderno que não passe pelas disfunções

patriarcais européias, geradoras das mais sangrentas guerras da humanidade. Mas o Mito

Messiânico e o sentido do futebol serão esforços do Self Cultural não correspondidos se a

nossa Consciência Coletiva não se esforçar para compreender seus símbolos e exercê-

los em todos os espaços institucionais onde se manifestem. A grande função social da

Psicologia Simbólica Junguiana é ver os acontecimentos como símbolos e perceber sua

função histórica no amadurecimento cultural. Graças ao negro e ao índio, ao seu

sacrifício, à sua força de trabalho e à mestiçagem, adquirimos uma identidade

pluricultural, infelizmente ainda latente, que muito pode nos ajudar a ultrapassar as

limitações de nossas raízes patriarcais européias. A América Latina, portanto, tem muito

para crescer de forma integrada, se conseguir absorver e vivenciar em suas instituições

os símbolos que já vive no Mito Messiânico, na música, na dança e no futebol.

O Futebol, a Atividade Comunitária e a Violência Ur bana

A pregação capitalista do livre mercado e da individualidade competitiva de

dominância patriarcal podem até aumentar o produto interno bruto, mas quando não

levam em conta a pobreza e as diferenças sociais, acabam enriquecendo mais os que já

são ricos. A concentração de renda e a miséria na América Latina são assustadores e

vergonhosas quando falamos em alteridade e democracia. Somente a vontade política

pode reunir as classes sociais para enfrentarem juntas os grandes problemas nacionais

dentro da atividade comunitária.

Essa vontade política pode reunir o Arquétipo Patriarcal da organização

empresarial competitiva e o Arquétipo Matriarcal do ritual amoroso grupal pela melhoria

social, dentro do Arquétipo de Alteridade, tão bem conhecido do povo pelo financiamento

atual de grandes empresas aos clubes de futebol, financiamento este protegido por uma

legislação fiscal incentivadora.

As Torcidas Organizadas

É um grande erro cultural achar que a violência das torcidas organizadas do futebol

deve ser evitada pela proibição legal destas torcidas, como está acontecendo em São

Paulo. É como fechar uma escola importante porque os alunos se comportaram mal.

Incendeia-se uma floresta para os tigres não terem onde morar, sem perceber que esta é

a melhor maneira de eles ocuparem as ruas das grandes cidades.

A violência das grandes cidades advém de muitos fatores, mas um deles é a

pulverização social, com a perda da identidade das pessoas. As grandes cidades, como

São Paulo, cresceram de forma desordenada e engolfaram as pequenas cidades a sua

volta. Assim, desapareceu a cidade pequena, um importante referencial de identidade das

pessoas. A agressividade humana é desencadeada pela frustração e a identidade das

pessoas ajuda a controlá-la. O desamparo e o sofrimento de quem tem pouca identidade

descamba muito mais facilmente para a violência quando as pessoas não têm um

respaldo comunitário para acolher e encaminhar criativamente suas frustrações.

A torcida organizada é um precioso referencial de identidade nos diferentes bairros

da cidade. A fidelidade e a devoção aos clubes é impressionante. As pessoas se separam

no casamento, mudam de cidade e até emigram do país, mas, lá de longe, continuam

acompanhando e torcendo pelo seu clube. Conversando um dia com um mendigo,

perguntei-lhe o que ele faria se tirasse a sorte grande. Ele não titubeou: - “Metade eu

daria para o ‘Framengo’ “, respondeu. - “Mas, por quê?”, tornei a perguntar. - “Porque o

Mengão já me deu muitas alegrias na minha triste vida”, abrindo um sorriso saudoso de

dentes.

A essência da vida comunitária saudável é o amor. Quando somente ambição,

status e poder dirigem a vida individual, profissional e social, a sociedade é pulverizada no

egoísmo de cada um por si. Essa atmosfera de selvageria da competição e do consumo

foge do sofrimento humano, e as frustrações não acolhidas fluem naturalmente para a

violência e para a destrutividade.

A antítese da pulverização e da perda da identidade é a ajuda comunitária

inspirada por um ideal amoroso, seja ele qual for. A torcida organizada no futebol é

exatamente este tipo de comunidade. Dissolvê-la, quando alguns de seus membros se

comportam delinqüencialmente, é derrubar uma árvore porque alguns de seus galhos têm

parasitas. Ao invés da dissolução, as torcidas deveriam ser apoiadas e instruídas para

prestar serviços comunitários os mais diversos, no que podem ser de grande utilidade.

Extingui-las tem um efeito imediato de evitar arruaças durante os jogos, mas a

conseqüência mutiladora de se desperdiçar uma entidade de grande potencial na

participação amorosa comunitária é deixar seus membros desagregados e sujeitos à

violência desregrada para canalizar frustrações.

A devoção ao clube e a força da torcida organizada podem ser direcionadas para o

desafio do engajamento nas atividades coletivas aliadas às instituições públicas e

privadas. Assim, o Arquétipo de Alteridade, que se expressa de forma tão exuberante no

futebol, reunindo de maneira criativa o Arquétipo Matriarcal do time, do suor, do prazer,

inclusive da cervejinha gelada e o Arquétipo Patriarcal da organização, do orgulho, da

honra, da ambição e da responsabilidade, pode ser expresso também no reforço da

identidade das pessoas através da humanização pela sua participação amorosa na vida

comunitária, por meio das torcidas organizadas.