o açúcar de cana na ilha da madeira: do mediterrâneo ao ... · com orientação científica do...
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Naidea Nunes Nunes
O acar de cana na ilha da Madeira: do Mediterrneo ao Atlntico
Terminologia e tecnologia histricas e actuais
da cultura aucareira
UNIVERSIDADE DA MADEIRA
2002 Dissertao apresentada Universidade da Madeira
para obteno do grau de Doutoramento em Lingustica Romnica, com orientao cientfica do Professor Doutor Ivo Castro, Professor
Catedrtico da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
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Cest par les mots que la langue est en contact avec toute la realit, et faire une tude complte des mots, cest tudier comment toute la realit se traduit dans lesprit des divers sujets parlants, et par suite dans leur langage.
Antoine Meillet (1921), Linguistique Historique et Linguistique Gnrale, p. 68.
Ltude des mots ne saurait se faire sans ltude des choses.
Karl Jaberg (1946), Gographie linguistique et expressivisme phontique: les noms de la balanoire en portugais, Revista Portuguesa de Filologia, vol. I, t. I, p. 3.
() colocar a lngua no seu verdadeiro lugar: expresso da sociedade,
inseparvel da histria da civilizao.
Serafim da Silva Neto (1986), Introduo ao Estudo da Lngua Portuguesa no Brasil, p.13.
O lxico a parte da lngua que primeiramente configura a realidade extralingustica e arquiva o saber lingustico duma comunidade. Avanos e recuos civilizacionais, descobertas e inventos, encontros entre povos e culturas, mitos e crenas, afinal quase tudo, antes de passar para a lngua e para a cultura dos povos, tem um nome e esse nome faz parte do lxico. O lxico o repositrio do saber lingustico e ainda a janela atravs da qual um povo v o mundo. Um saber partilhado que apenas existe na conscincia dos falantes duma comunidade.
Mrio Vilela (1994), Estudos de Lexicologia do Portugus, p. 6.
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Agradecimentos
Agradeo, em primeiro lugar, ao Professor Doutor Ivo Castro, Professor
Catedrtico da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, orientador cientfico desta dissertao, por todo o apoio, incentivo e pelo seu rigoroso esprito crtico.
Ao Professor Doutor Dieter Kremer, da Universidade de Trier (Alemanha), pelo interesse e entusiasmo demonstrados na sua realizao.
Ao Centro de Lingustica da Universidade de Lisboa, especialmente aos investigadores Gabriela Vitorino, Joo Saramago, Lusa Cruz e Manuela Barros, atravs do Atlas Lingustico-Etnogrfico de Portugal e da Galiza, pelos ensinamentos e conhecimentos feitos de experincia, que orientaram a realizao dos questionrios e inquritos lingustico-etnogrficos sobre a produo aucareira actual na ilha da Madeira e em Cabo Verde.
Ao Doutor Alberto Vieira, historiador e coordenador do Centro de Estudos de Histria do Atlntico, que gentilmente nos apoiou, cedendo-nos documentao e informaes preciosas.
Ao Professor Doutor Adriano Ribeiro, historiador e nosso colega na Universidade da Madeira, pelo apoio, documentao e informaes fornecidas.
Ao Centro di Studi Filologici e Linguistici Siciliani, em Palermo (Itlia), pelo apoio e hospitalidade, em especial ao seu director, Professor Doutor Giovanni Ruffino, que muito nos ajudou na nossa investigao na Siclia, onde tivemos oportunidade de conhecer de perto o trabalho do Atlas Etnolingustico desta regio.
Ao historiador siciliano Antonino Morreale, pela ajuda na transcrio de documentao histrica indita do Archivio di Stato di Palermo sobre a produo aucareira desta regio.
Ao Professor Doutor Joo Lopes Filho, etnlogo caboverdiano da Universidade Nova de Lisboa, pela ajuda na preparao do questionrio etno-lingustico sobre a produo aucareira aplicado em Cabo Verde.
Ao Ministrio da Cultura da Repblica de Cabo Verde, na pessoa do Doutor Mrio Alberto Fonseca, e s Cmaras Municipais das ilhas de Santiago e de Santo Anto, por todo o apoio concedido na deslocao a este arquiplago com o objectivo de realizar os inquritos etnolingusticos sobre a produo aucareira.
Professora Doutora Maria Manuel Torro, investigadora do Centro de Estudos de Histria e Cartografia Antiga e conhecedora da documentao histrica de Cabo Verde sobre a produo aucareira, que nos ajudou a reunir e transcrever essa documentao.
Ao Arquivo Histrico de Motril, sua directora, Encarnacion Escanhuela, e ao Professor Doutor Antonio Malpica da Universidade de Granada, que connosco colaboraram na recolha de importante documentao sobre o acar nesta regio andaluza.
Ao Doutor Carlos Rebolo, pelo apoio tcnico e disponibilidade na elaborao da nossa base de dados, que permitiu registar e manipular toda a documentao histrica das regies aucareiras estudadas.
Ao Professor Doutor Michel Maillard, conhecedor da lngua rabe, pelo apoio e preciosas informaes que contriburam para a discusso de possveis arabismos na terminologia aucareira.
Aos agricultores da cana-de-acar, trabalhadores dos engenhos e trapiches e seus proprietrios madeirenses e cabo-verdianos, nossos informantes, que nos forneceram o material etnolingustico da documentao oral contempornea.
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Resumo O estudo da terminologia e da tecnologia do acar de cana enquadra-se na
abordagem do mtodo alemo tradicional Wrter und Sachen (Palavras e Coisas) e tambm na abordagem da Teoria Comunicativa da Terminologia de Teresa Cabr, pretendendo, fundamentalmente, comparar, descrever e interpretar os termos da cultura aucareira do Mediterrneo ao Atlntico, no mbito da lingustica romnica.
Na primeira parte deste trabalho, estudamos a terminologia e tecnologia histricas da produo aucareira agro-industrial e os vrios tipos de acar, subprodutos e doaria derivada desta indstria, atravs da documentao histrica da Siclia, Valncia, Granada, Madeira, Aores, Canrias, Cabo Verde, S. Tom e Brasil, procurando mostrar a continuidade e evoluo da terminologia aucareira do Mediterrneo para o Atlntico, tendo como foco central a Madeira, regio do Mediterrneo atlntico, que, juntamente com as Canrias, serve de ponte de transmisso da cultura aucareira do antigo para o novo mundo.
Na segunda parte, referimos a evoluo da tecnologia e terminologia histricas do acar de cana at actualidade, centrando mais uma vez a nossa ateno na ilha da Madeira: a tecnologia mediterrnica da Siclia, Valncia e Granada, a tecnologia desenvolvida na ilha da Madeira e transplantada para as ilhas atlnticas e Brasil e a situao actual das regies aucareiras de lngua portuguesa (ilha da Madeira, Cabo Verde e Brasil). A realizao de inquritos lingustico-etnogrficos sobre a produo aucareira na ilha da Madeira e em Cabo Verde (ilhas de Santiago e Santo Anto) fornece-nos material oral para um estudo comparativo da terminologia e tecnologia actuais destas duas regies aucareiras, permitindo observar tambm a vitalidade dos termos e tcnicas histricas do acar madeirense nas duas regies.
A terceira parte deste trabalho constituda por um glossrio principal das terminologias histrica e actual da produo aucareira madeirense, registando na mesma entrada lexical as formas mediterrnicas da Siclia, de Valncia e de Granada e as formas correspondentes que surgem nas ilhas atlnticas (Madeira, Aores, Canrias, Cabo Verde, S. Tom) e Brasil, bem como os neologismos terminolgicos desenvolvidos na ilha da Madeira ou madeirensismos. Apresentamos tambm um glossrio de formas mediterrnicas, onde inclumos termos registados nas Canrias, que no encontramos na documentao madeirense; um glossrio de termos relacionados com a indstria de doces e conservas de frutas e ainda um glossrio de termos gerais, ou seja, termos no especficos da produo aucareira.
Conclumos que a terminologia e a tecnologia da cultura aucareira viajam, juntamente com a planta da cana-de-acar e com os tcnicos aucareiros, do Mediterrneo para a ilha da Madeira e, a partir desta, para as ilhas atlnticas e para a Amrica, sobretudo para o Brasil. Os termos e as tcnicas aucareiras pouco se modificam, alterados apenas pelo uso da mquina a vapor, no sculo XIX, sendo os processos de produo aucareira basicamente os mesmos, embora mecanizados, e, a par de novos termos, muitos termos antigos adaptam-se s novas tecnologias.
O estudo da terminologia da cultura aucareira evidencia a importncia da ilha da Madeira, como epicentro entre o Mediterrneo e o Atlntico, deste patrimnio lingustico-cultural madeirense e do prprio acar como produto de encontro entre lnguas e culturas.
Palavras-Chave: Acar de cana, Terminologia aucareira, Tecnologia
aucareira, Histria da lngua portuguesa, Lingustica romnica, Madeira (Portugal)
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ndice Introduo 1. O acar de cana: enquadramento histrico-geogrfico e cultural 9 2. Estrutura do trabalho 17 3. O tema 17 4. Fontes 20 4.1. Documentao histrica 22 4.1.1. Madeira (Aores, Cabo Verde, S. Tom e Brasil) 23 4.1.2. Siclia 26 4.1.3. Valncia 26 4.1.4. Granada 27 4.1.5. Canrias 27 4.2. Documentao contempornea 28 4.3. Documentao oral contempornea 29 5. Metodologia 29 6. Enquadramento terico: mtodo Wrter und Sachen 32 7. Terminologia 39 Parte I Terminologia e tecnologia histricas da produo aucareira Captulo I. Terminologia agrcola e pr-industrial da produo aucareira 1. Tcnicas e profisses agrcolas 72
1.1. A cana-de-acar 72 1.2. Cultivo da cana-de-acar 76 1.3. Colheita e transporte da cana para o engenho 81
2. Tcnicas e profisses pr-industriais 85 2.1. A casa da moenda e da prensa 85
2.1.1. Trapiches e engenhos 87 2.1.2. A moenda e a prensa 91 2.1.3. O sumo da cana e o bagao 94 2.1.4. Arteses, trabalhadores e oficiais do engenho 96 2.2. A casa das caldeiras 98 2.2.1. Limpeza do sumo da cana 100 2.2.2. As caldeiras 102
2.2.3. As tachas 105 2.2.4. As fornalhas 108 2.2.5. Cozimento, filtrao e concentrao do sumo da cana 109 2.3. A casa de purgar 113 2.3.1. As formas do acar 113 2.3.2. A cristalizao e purga do acar 117 2.4. A casa de encaixar, embalagens e pesos dos produtos aucareiros 119 2.5. Ofcios administrativos e impostos do acar 123 2.6. Concluso 129
Captulo II. Terminologia dos produtos, subprodutos e derivados da
indstria aucareira 1. Tipos e qualidades de acar 132 1.1. Acar candi 135
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1.2. Acar principal e acar branco 135 1.3. Acar de uma cozedura e acar de duas cozeduras ou refinado 137 1.4. Acar mascavado 139 1.5. Acar de mel, acar de panela e retame 142 1.6. Acar de escumas e acar de rescumas 143 1.7. Acar quebrado 144 1.8. Acar de refugo e outros termos obscuros 144 2. Subprodutos do acar 145 2.1. O mel, o remel e o melao 145 2.2. As escumas, as rescumas e as netas 148 2.3. As rapaduras 149 3. Indstria de confeitos e conservas derivada da produo aucareira 150 3.1. Confeitos 151
3.1.1. Tipos de confeitos 152 3.1.2. Alfenim, diagargante e alfloa 154
3.2. Conservas 155 3.2.1. Tipos e qualidades de conservas 157 3.2.2. Marmelada 158 3.2.3. Casquinha 159 4. Aguardente de cana 160 5. Concluso 160
Parte II Terminologia e tecnologia actuais da produo aucareira Captulo III. Da tecnologia histrica do acar de cana actualidade 1. A tecnologia mediterrnica: Siclia, Valncia e Granada 164 2. A tecnologia desenvolvida na ilha da Madeira 170 3. A tecnologia transplantada da Madeira para as ilhas atlnticas: Aores, Canrias, Cabo Verde e S. Tom 177 4. A importncia do Brasil na discusso da tecnologia histrica do acar da Madeira 180 5. A situao tecnolgica actual na ilha da Madeira, em Cabo Verde e no Brasil 191 6. Concluso 194 Captulo IV. Terminologia e tecnologia actuais da produo aucareira na
ilha da Madeira e em Cabo Verde: estudo comparativo 0. Terminologia e tecnologia actuais da produo aucareira na ilha da Madeira e em Cabo Verde: estudo comparativo 198 1. Inquritos etnolingusticos sobre a produao aucareira na ilha da Madeira e em Cabo Verde 199 1.1. Objectivos 199
1.2. Estudos com referncias ao lxico da produo aucareira madeirense 200
1.3. Elaborao e estrutura dos questionrios 201 1.4. Rede dos pontos de inqurito 203 1.4.1. Rede dos pontos de inqurito na ilha da Madeira 205 1.4.2. Rede dos pontos de inqurito de Cabo Verde 205 1.5. Informantes 205 1.5.1. Informantes da ilha da Madeira 208
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1.5.2. Informantes secundrios referidos (inquritos incompletos) 211 1.5.3. Informantes de Cabo Verde 212 1.6. Portugus e crioulo 213 2. Tcnicas e profisses agrcolas 214 2.1. Variedades de cana 214 2.2. Cultivo e colheita da cana 217 3. Tcnicas e profisses industriais 225 3.1. Extraco do sumo da cana 225 3.2. Fabrico de mel de cana 237 3.3. Fabrico de acar de cana 246 3.4. Fabrico de aguardente de cana 253 4. Vitalidade da terminologia histrica do acar 263 5. Concluso 270
Parte III Glossrio da terminologia histrica e actual do acar de cana
na ilha da Madeira: do Mediterrneo ao Atlntico 1. Estrutura do glossrio e dos seus artigos 272 2. Abreviaturas 281 2.1. Gerais 281 2.2. Dicionrios citados 282 2.3. Monografias e glossrios referidos 284 3. Glossrio da terminologia aucareira 286 4. Glossrio de termos mediterrnicos 525 5. Glossrio de doces 566 6. Glossrio de termos gerais 600
Concluso 700 Bibliografia 1. Fontes documentais 710 1.1. Madeira 710 1.1.1. Documentao histrica 710 1.1.2. Documentao anexa 712 1.1.3. Documentao contempornea 714 1.2. Siclia 715 1.3. Valncia 716 1.4. Granada 717 1.5. Canrias 719 2. Estudos histricos 720 3. Estudos lingusticos 732 3.1. Dicionrios e glossrios 746 3.2. Atlas lingusticos 749
Apndices I. Questionrio lingustico-etnogrfico sobre a produo aucareira actual na ilha da Madeira 751 II. Questionrio lingustico-etnogrfico sobre a produo aucareira actual em Cabo Verde 758 III. Fichas modelo sobre os inquritos e os informantes 766
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IV. Material iconogrfico (desenhos e fotografias) utilizado nos inquritos lingustico-etnogrficos de Cabo Verde 768 V. Mapa da ilha da Madeira e das ilhas de Santiago e de Santo Anto 777
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Introduo
1. O acar de cana: enquadramento histrico-geogrfico e cultural
A cana-de-acar originria da Papua Nova Guin, inicialmente, era
conhecida pelo sumo ou gua de cana. Foram os chineses que fizeram as
primeiras tentativas para fabricar acar slido. A planta e as tcnicas de
fabrico deste precioso produto, que era considerado uma especiaria extica e
rara e um componente medicinal e farmacutico, foram trazidas do Oriente
pelos rabes e por eles difundidas na sia Menor e na Bacia Mediterrnica:
Sria, Palestina, Egipto, Chipre, Norte de frica, Siclia, Andaluzia, Levante
Espanhol e Marrocos.
A Siclia e a Andaluzia foram reas privilegiadas da presena da cultura
muulmana e de contactos comerciais com os rabes, constituindo dois
centros de difuso da terminologia e tecnologia rabes do acar, tal como
muitos termos tcnicos da agricultura, hidrulica, navegao, ttulos e
profisses, que em alguns casos sofrem um processo de degradao
semntica, pois muitos termos tcnicos foram banalizados com a decadncia
da civilizao islmica. Os termos acar, azeitona, azeite, alambique, assim
como muitos termos referentes ao comrcio, pesos e medidas como arroba e
arrtel, so tambm de origem rabe e muitos nomes de utenslios, de
recipientes e de instrumentos vm do Oriente, atravs dos rabes.
Os rabes foram os grandes responsveis pela introduo e
desenvolvimento do consumo do acar na Europa Ocidental, a partir do
sculo X, na medicina, farmacopeia, doaria e culinria. Em Marrocos, a
produo aucareira situava-se em Ceuta, Marrakesch e outros locais fluviais
frteis. Em meados do sculo XIV, existiam quarenta engenhos em Marrocos e
com o regresso dos almorvidas (dinastia rabe que submeteu primeiro Fez e
Marrocos, depois o sul de Espanha, de 1055 a 1147), expulsos de Granada
com a Reconquista Crist em 1492, incluindo mestres de engenhos e
confeiteiros, d-se o incremento da cultura do acar em Fez. A crise
aucareira, em Marrocos, comea por volta de 1640 e a partir de meados do
sculo XVII, a produo aucareira, nesta regio, deixa de ser rentvel com a
concorrncia das novas regies produtoras e pela falta de gua, lenha e
madeiras.
A introduo da cultura sacarina na ilha da Madeira marca a passagem
da produo aucareira do Mediterrneo para o Atlntico, constituindo o
campo experimental onde se ensaiam tcnicas e a estrutura scio-econmica
que ser transplantada para as novas regies atlnticas produtoras de acar.
Na Madeira desenvolve-se o sistema colonial de produo aucareira que ser
transplantado para as outras ilhas atlnticas e para a Amrica. Como nos diz
Galloway:
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Madeira, the Azores and the other islands of the West African coast have
long been regarded by historians as training grounds where the Spanish and
Portuguese learnt lessons in colonial administration they later applied in the
Americas. So it was also with the sugar industry. On these islands the
colonists learnt to adapt their Mediterranean techniques of cultivation and
production to cope both with unfamiliar environments and the ever larger
scale of the industry, processes in which those initial characteristics of
plantation agriculture first discernible in the Eastern Mediterranean became
much more pronounced.1
Parece ter sido o Infante D. Henrique o responsvel pela introduo da
cana-de-acar na ilha da Madeira, mandando vir da Siclia as primeiras
socas de cana e os mestres especializados na produo aucareira, apesar de
testemunhada a existncia da cultura aucareira no reino de Portugal, em
Coimbra e no Algarve, no incio do sculo XV. No Algarve, segundo Orlando
Ribeiro, o acar parece ter tido origem na Itlia, donde vieram os primeiros
mestres de engenho genoveses.2. Coloca-se ainda a hiptese da cana-de-
acar cultivada na Madeira, no incio do povoamento, ter vindo de Granada
ou de Valncia. No entanto, dadas as relaes de Portugal com os mercadores
italianos, parece-nos plausvel que o Infante mandasse buscar as plantas
directamente ilha da Siclia, por ser uma regio com caractersticas
semelhantes Madeira, tendo garantia de melhor produtividade. A primeira
referncia ao acar da Madeira data de 1433 e vinte anos depois j era
produzido em suficiente quantidade para ser exportado para Portugal,
Flandres e Inglaterra, sendo considerado o mais refinado do mercado. O
acar da Madeira afirma-se, no mercado europeu, pela sua qualidade,
competindo com o acar da Siclia, Egipto e Marrocos e sendo exportado
para Inglaterra, Flandres, Frana, Itlia, Constantinopla, etc. A riqueza e o
valor do acar madeirense tal que este canalizado para obras de
assistncia, durante a 1 metade do sculo XVI. As esmolas de acar
estendem-se a toda a Pennsula e Norte de frica para misericrdias,
hospitais, mosteiros, obras religiosas e conventos.
A ilha da Madeira oferecia boas condies para a produo aucareira
gua para irrigar os canaviais e mover os engenhos e lenha para construir os
engenhos e alimentar as fornalhas. Na Madeira, a cana-de-acar foi
cultivada, inicialmente, na vertente sul da ilha (de Machico Calheta), e s no
sculo XIX o seu cultivo foi estendido costa norte da ilha. As Partes do
Fundo (Ribeira Brava, Calheta e Ponta do Sol), que pertenciam capitania do
Funchal, constituam a zona que produzia mais acar. Na Ponta do Sol, a
Lombada dos Esmeraldos era uma das maiores propriedades de canaviais da 1 J. H. Galloway (1989), The sugar cane industry: an historical geography from its origins to 1914, Cambridge, Cambridge University Press, p. 48. 2 Orlando Ribeiro (1962), Aspectos e problemas da expanso portuguesa, Lisboa, Junta de Investigaes do Ultramar, p. 98.
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ilha, apresentando uma estrutura composta pelos canaviais, casa e capela
trilogia agrria que se desenvolve no Brasil. tambm na Madeira que surge
a associao dos escravos cultura aucareira, o que ocorre em grande escala
no Brasil. A produo aucareira molda a estrutura scio-econmica do
espao que ocupa, atravs das profisses, tcnicas e termos desta actividade,
do controle administrativo e alfndegrio da produo, do comrcio e da
escravatura. Como escreve Orlando Ribeiro, O acar, de origem
mediterrnea, foi transformado pelos portugueses numa grande cultura
tropical e a ele se deve a prosperidade da Madeira, a colonizao de Cabo
Verde, de S. Tom, do Nordeste do Brasil3.
A produo aucareira, na ilha da Madeira, entra em crise a partir da
segunda metade do sculo XVI, devido doena da cana e concorrncia do
acar de Canrias, de S. Tom e do Brasil, com custos de produo mais
baixos. No entanto, continuam a existir plantaes de cana espordicas e
alguma produo muito reduzida de acar, que no chega para as
necessidades, sendo por isso importado acar de S. Tom e do Brasil para a
indstria conserveira. Segundo Galloway:
The decline of the Madeiran sugar industry began at the same time as
the decline of the industry around the Mediterranean, and for the same
reason: competition from Brazilian sugar () sugar cane has survived on the
island, more or less as a garden crop although there has continued to be a
modest market for the local sugar in the preparation of candied fruit ().4
De acordo com Alberto Vieira, no sculo XVII, continua a haver produo
aucareira, na ilha da Madeira, embora com reduo do nmero de engenhos
e de canaviais:
A conjuntura do sculo dezassete foi favorvel ao retorno da cultura.
Algumas terras de vinha ou searas cedem lugar s socas de cana, mas estas
pouco ultrapassam, num primeiro momento, a rea circum-vizinha do
Funchal. Assim o comprova o livro do quinto do ano de 1600, que nos 108
proprietrios de canaviais apresenta um grupo maioritariamente desta rea,
sendo evidente a retraco da rea ocupada pelos canaviais.5
Quanto produo de acar na ilha, no sculo dezassete, este livro
quase nico, pois s teremos novas informaes a partir de 1689, com a
3 Idem, ibidem, p. 29. 4 J. H. Galloway (1989), The sugar cane industry: an historical geography from its origins to 1914, Cambridge, Cambridge University Press, p. 54. 5 Alberto Vieira (1993), O acar na Madeira: sculos XVII e XVIII, Actas III Colquio Internacional de Histria da Madeira, Funchal, DRAC/CEHA, p. 326.
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arrecadao do oitavo6. A pequena produo aucareira sobrevivente destina-
se ao consumo interno da ilha, nomeadamente ao fabrico de conservas e
confeitos. Sobre a produo aucareira da Madeira, no sculo XVIII, Alberto
Vieira salienta a existncia do engenho de acar, situado na Ribeira dos
Socorridos, denominado engenho dos Socorridos, no Funchal, em 1780, com
trs eixos de ferro de moer a cana. Este autor acrescenta:
No perodo de 1689 a 1766 deparamo-nos com algumas quantidades de
acar na Ribeira Brava, Funchal, Ponta do Sol, Santa Cruz e Calheta.
Todavia a situao totalmente distinta daquela que se viveu nos sculos XV
e XVI.7
lvaro Rodrigues de Azevedo indica o ano de 1748 como o fim da
primeira poca do acar na Madeira, afirmando que a cana doce continua a
ser cultivada para uso domstico, fazendo-se algum mel.8 A cana de acar
volta a ser reintroduzida na ilha, a partir da segunda metade do sculo XIX,
devido conjuntura favorvel, com a introduo da nova tecnologia da fbrica
a vapor.
Nas Canrias, o incio da indstria aucareira pode ser datado a partir
do primeiro engenho de acar construdo em 1484, na ilha de Gran Canaria.
Em finais do sculo XV, a cultura expande-se a partir de Gran Canaria para
as ilhas de Gomera, La Palma e Tenerife. Na documentao de Canrias, as
datas reveladoras de produo abundante so 1504 e 1507, com a criao do
cargo de lealdador e os Acuerdos relativos ao acar iniciam-se a partir de
1502. A indstria aucareira torna-se a base econmica das ilhas,
sobrevivendo concorrncia antilhana, mas entra em crise a partir de meados
do sculo XVI, por falta de recursos naturais e por concorrncia do acar da
costa africana e do Brasil. A cana-de-acar foi levada de Canrias para as
Antilhas espanholas, na segunda viagem de Colombo, por madeirenses que
participam nas expedies de Colombo. Assim, os termos e as tcnicas da
produo aucareira madeirense passam directamente da Madeira e
indirectamente, atravs de Canrias, para as Antilhas Espanholas, para Cabo
Verde, S. Tom e Brasil.
Os portugueses chegam a Cabo Verde em 1460 e, tal como nas outras
regies por eles povoadas e colonizadas, a cana-de-acar foi uma das
primeiras plantas introduzidas. No entanto, nos sculos XV e XVI, em Cabo
Verde, a cana-de-acar no atinge a dimenso produtiva da Madeira,
Canrias e depois S. Tom, devido s condies naturais desta regio, que se
6 Por alvar de 15 de Outubro de 1688, a coroa determina que os direitos da produo aucareira passam para um oitavo, como forma de promover esta cultura. 7 Alberto Vieira (1993), O acar na Madeira: sculos XVII e XVIII, Actas III Colquio Internacional de Histria da Madeira, Funchal, DRAC/CEHA, p. 327. 8 Cf. lvaro Rodrigues de Azevedo (1873), Notas, Saudades da Terra de Gaspar Frutuoso, Funchal, p. 697.
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revelam pouco favorveis produo aucareira. Na documentao histrica,
a primeira referncia que encontramos da produo de cana-de-acar, em
Cabo Verde, data de 1490. No ltimo quartel do sculo XIX e no sculo XX, a
cana-de-acar adquire grande importncia na economia do arquiplago,
produzindo acar da terra, acar mascavado e aguardente. As principais
ilhas produtoras de acar com melhores condies para o cultivo de cana-
de-acar so as ilhas de Santiago e de Santo Anto.
A produo aucareira de Cabo Verde inicia-se na ilha de Santiago.
Valentim Fernandes, no primeiro decnio do sculo XVI, refere que a ilha de
Santiago oferece todos os fruitos de Portugal que nela plantam: figos, uvas,
meles, assucares e todas outras fruitas9. Em carta rgia de 25 de Janeiro de
1540, temos informao de que na ilha laboram dois engenhos trepiches de
fazer aucares com todo o cobre e mais cousas necessarias aos ditos
engenhos10. Gaspar Frutuoso, no captulo sobre o descobrimento das ilhas de
Cabo Verde, em Saudades da terra, diz-nos que A ilha de Santiago d muito
aucar e fazem-se nela muito boas conservas, ainda que nada disto chega ao
da ilha da Madeira.11. Esta observao revela-nos que, em Cabo Verde, tal
como na Madeira, desenvolve-se uma indstria conserveira derivada da
produo aucareira, que ainda hoje existe. Segundo Pereira e Santos12, em
1508 e 1509, j se vende, em Lisboa, acar de Santiago, enquanto, s em
finais do sculo XVII comea a produo de acar em Santo Anto, devido s
dificuldades de acesso ilha.
Em S. Tom, a produo aucareira tambm se inicia em finais do sculo
XV, atingindo o auge da sua produo no sculo XVI. S. Tom apresenta
condies mais favorveis produo aucareira do que Cabo Verde, por ter
abundncia de gua e lenha, por isso logo aps o incio do povoamento da ilha
de S. Tom, em 1493, inicia-se a explorao da cana sacarina. As primeiras
socas de cana, os primeiros mestres de acar e os termos e tcnicas
aucareiras so transplantados da Madeira e a coroa portuguesa tem
interveno directa na plantao de canaviais e na construo de engenhos
nesta regio. O perodo ureo do acar de S. Tom a primeira metade do
sculo XVI, concorrendo com o acar da Madeira. Na segunda metade do
sculo XVI, as revoltas dos escravos e as pilhagens dos piratas e corsrios
franceses destroem muitos engenhos e provocam a quebra da produo de
acar. Magalhes Godinho13 cita as informaes dadas por Rau e Macedo
9 J. Pereira da Costa (1997), Cdice Valentim Fernandes (1506-1510), (Leitura paleogrfica, notas e ndice de Jos Pereira da Costa), Lisboa, Academia Portuguesa da Histria, p. 158. 10 Pe. Antnio Brsio (1953), Monumenta Missionaria Africana. frica Ocidental (1532-1569), 2 srie, vol. II, Lisboa, Agncia Geral do Ultramar, doc. 101, pp. 328-329. 11 Gaspar Frutuoso (1939), Saudades da terra, Livro I, cap. XXI, Ponta Delgada, Oficina de Artes Grficas, p. 117. 12 Cf. Pereira e Santos (1992), Cabo Verde cana-de-acar e tecnologias intermdias, Comunicaes IICT, Srie Cincias Agrrias, n 8, p. 186. 13 Vitorino Magalhes Godinho (1963-1971), Os descobrimentos e a economia mundial, vol. IV, Lisboa, Editorial Presena.
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sobre o regimento da venda dos acares de So Tom de 1517, em que se
conta cobrar naquele ano para a coroa 25.000 arrobas de acar e 10.700 de
meles, pagas as ordinrias e redzimas do capito, o que indica j grande
produo. O aumento da produo em meados do sculo XVI e o seu declnio
a partir da dcada de 1580 parecem indiscutveis. Este declnio, entre outras
razes locais, deve-se forte e crescente concorrncia do acar do Brasil,
desenvolvendo-se, em S. Tom, o comrcio de escravos para as Amricas. O
acar a primeira grande plantao de S. Tom e volta a assumir
importncia na segunda metade do sculo XVII, quando Pernambuco
tomado pelos holandeses, mas depois desenvolvem-se as plantaes de caf e
cacau, que substituem o acar.
No Brasil, a primeira referncia cultura aucareira de 1516, mas o
arranque da industrializao aucareira do Brasil data da dcada de 1540,
com a montagem dos primeiros engenhos. O primeiro surto aucareiro
realiza-se sobretudo no Centro e Sul do Brasil, mas depois desenvolve-se no
Nordeste. Durante o perodo de domnio holands de Pernambuco, h a
reduo da produo e o abandono de engenhos e, com a concorrncia do
acar das Carabas, o preo do acar sofre uma quebra. O desenvolvimento
do trfico de escravos da costa africana, de Cabo Verde e de S. Tom para o
Brasil leva ao incremento da produo aucareira.
Como escreve Alberto Vieira14, a cana-de-acar propicia o confronto da
cultura europeia com a africana. O mesmo autor refere como exemplo a
divulgao de tradies ldicas como as representaes teatrais e festivas,
nomeadamente, em S. Tom, o tchiloli, nome dado representao da
Tragdia do Marqus de Mntua e do Imperador Carlos Magno, atribuda ao
madeirense Baltazar Dias. Esta uma pea teatral do ciclo carolngeo muito
representada no sculo XVI, que teria sido levada para S. Tom pelos
colonizadores portugueses, designadamente os cultivadores de cana e mestres
de engenhos da Madeira. Segundo informao de Alberto Vieira, ainda hoje se
representa o tchiloli para celebrar um acontecimento importante ou um dia
santo. Tambm, no Brasil, algumas das festas que animam os terreiros dos
engenhos so um misto de tradies europeias e africanas, destacando-se o
bumba-meu-boi, que se aproxima da tradicional tourada, exaltando o negro e o
boi, elementos fundamentais da economia aucareira nesta regio. Nos
Aores, na ilha Terceira, persistem, na actualidade, as danas do entrudo que,
segundo a opinio de alguns estudiosos, se filia na tradio do Bumba-meu-boi
brasileiro. volta disso, Luiz Fagundes Duarte15 estabelece uma teoria que
aponta para a existncia de uma tradio ldica canavieira, que acompanha o
percurso de expanso do acar no Atlntico, marcada por representaes e
14 Cf. Alberto Vieira (1988), A Madeira na Rota dos Descobrimentos e Expanso Atlntica, Revista da Universidade de Coimbra, vol. xxxiv, Coimbra: 571-580. 15 Cf. Luiz Fagundes Duarte (1984), Sobre as danas de Carnaval da Ilha Terceira. Edio de texto, Ethnologia, n 2, Lisboa, Departamento de Antropologia da Faculdade de Cincias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, pp. 49-68.
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danas de carcter dramtico com sabor vicentino. Este autor levanta
algumas hipteses explicativas: tudo teria comeado com a colonizao, em
finais do sculo XV e princpios do sculo XVI, da ilha de S. Tom e com a
implantao nesta ilha do cultivo da cana-de-acar, o que provoca a
deslocao de mestres aucareiros da Madeira para dirigirem as plantaes e
os engenhos santomenses, levando com eles a tradio dos autos
portugueses, incluindo os autos do poeta dramtico madeirense Baltasar
Dias, contemporneo de Gil Vicente, de quem recebe muitas influncias.
Em S. Tom e Princpe, esta tradio teria evoludo de acordo com as
caractersticas etnolgicas da colonizao do arquiplago. Como j dissemos,
o florescimento da indstria aucareira no Brasil provoca o declnio da mesma
em S. Tom e Princpe e est na origem de um novo deslocamento de homens
e tradies atravs do Atlntico. Assim, os donos dos engenhos e das
plantaes, os mestres aucareiros e a mo de obra transferem-se para o
Brasil, e com eles tero levado a tradio dramtica. Esta tradio, ao
implantar-se num novo contexto tnico e lingustico, ter-se-ia, mais uma vez,
transformado e contribudo para a constituio do gnero tipicamente
nordestino conhecido por bumba-meu-boi, registado pela primeira vez, no
Recife, em 1840. Em finais do sculo XIX, com o regresso de colonos-
emigrantes do Brasil para Portugal, muitos dos quais seriam naturais ou
filhos de naturais da ilha Terceira, com eles teriam trazido alguns ecos dos
autos de bumba-meu-boi, que encontram terreno favorvel nas danas j
tradicionais na ilha. Assim, as danas da ilha Terceira, que j tinham uma
tradio coreogrfica prpria, teriam adoptado e adaptado a dimenso
dramtica vinda do Brasil e adquirido as caractersticas fundamentais que
ainda hoje conservam. Sendo assim, as danas da Terceira constituem um
produto miscigenizado de elementos culturais de provenincias muito
diferentes: os autos medievais portugueses apropriados e intervencionados
por populaes etnicamente hbridas de zonas equatoriais de ambos os lados
do Atlntico (So Tom e Princpe e Nordeste Brasileiro, ambas ligadas
indstria aucareira), e posteriormente transplantados para a ilha Terceira,
onde foram integrar uma tradio coreogrfica j muito evoluda e de
inspirao oriental. Segundo esta hiptese explicativa de Fagundes Duarte,
esta tradio cultural das danas da Terceira no teria passado directamente
da Madeira mas atravs do Brasil, o que explica a existncia de elementos
semelhantes ao bumba-meu-boi do Nordeste brasileiro. O autor prope um
mapa que representa o percurso hipottico de alguns dos diversos elementos
culturais de origens diversas, que, num dado momento da histria, tero
convergido num nico ponto geogrfico e dado origem a uma outra forma de
cultura popular as danas da Terceira. Luiz Fagundes Duarte afirma:
Estou convencido de que se dever remontar a origem das danas
tradio teatral medieval que, levada da Pennsula Ibrica pelas naus das
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ndias, se foi prolongar, num curioso processo de adaptaes sucessivas a
contextos outros, em novas tradies que, ao ncleo dramtico original,
juntaram as dimenses coreogrfica e musical. (...) Quando, no sculo XIX, se
verificou o regresso dos brasileiros torna viagem a Portugal, os que
regressaram Ilha Terceira foram ali encontrar uma tradio de bailados de
rua, remontada j ao sculo XVI, com fortes influncias orientais (bailados
aparatosos, trajos ricamente adornados de plumas, lantejoulas e gales)
devidas talvez importante localizao da ilha na rota da Carreira das ndias
e nossa imaginao, desprovida por enquanto de provas documentais
apropriadas, no ser difcil inter-relacionar as danas da Terceira com os
resultados da combinao dos referidos bailados com a tal tradio
dramtico-coreogrfica ibero-frico-brasileira.16
Resumindo, a hiptese da origem das danas terceirenses resulta da
rota de regresso da carreira da ndia, que passava na ilha Terceira, e da
cultura aucareira dos mestres de acar madeirenses deslocados para S.
Tom e depois para o Brasil e ainda do regresso dos emigrantes brasileiros
Terceira.
A cultura aucareira est tambm, inevitavelmente, presente na
literatura das regies aucareiras. Na Madeira, os romances etnogrficos
regionais de Horcio Bento de Gouveia, nomeadamente guas Mansas (1963)
e Canga (1975), retratam a realidade rural do cultivo da cana-de-acar e da
produo aucareira nos engenhos de mel e de aguardente, registando os
seguintes termos: cana doce, canas de acar, soqueira de cana, toiceiras de
cana de acar, engenho a vapor, engenhos de gua, engenhos da cana,
cilindros do engenho, alambique do engenho, garapa, armazns da garapa,
peneiro da garapa, cestos de bagao, homens do bagao, molhos de cana, bicho
da cana, fornalha da caldeira, caldeireiro, fogueiro, laborao do engenho, cana
bambu, cana da ndia, aguardente de cana, mel de cana, fbrica de vapor,
fornalha, alambiqueiro do engenho, grau de aguardente, moenda de cana de
acar, tacha para fazer mel, esfolha da cana, novidade da cana, plantao de
cana, caldeira do alambique, acar de cana. No Brasil, Gilberto Freyre, a
partir de 1933, o primeiro a chamar a ateno para o interesse e estudo da
sociologia do acar, com a sua obra Casa grande e senzala, e Jos Lins do
Rego escreve um conjunto de romances a retratar o ciclo da cana-de-acar.
Os portugueses foram os grandes responsveis pela divulgao e
desenvolvimento da cultura aucareira no Atlntico, a partir da ilha da
Madeira, contribuindo para o aumento do consumo do acar, embora a
generalizao absoluta deste s se tenha realizado no incio do sculo XIX,
associado ao ch, caf e chocolate.
16 Luiz Fagundes Duarte (1989), Polcias e ladres ou Em busca das origens das danas da Ilha Terceira, Revista de Cultura Aoriana, ano I, n 1, Lisboa, Casa dos Aores, p. 25.
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17
2. Justificao do tema e objectivos
A cultura da cana-de-acar e a produo aucareira constituem, como
dissemos, uma das actividades agrcolo-industriais mais antigas do
arquiplago da Madeira. Quase extinta, tem merecido a ateno de muitos
historiadores, mas o estudo da lngua com ela relacionada tem muito a
oferecer para o conhecimento da histria da terminologia e da tecnologia da
indstria aucareira no arquiplago.
O presente trabalho, centrado na ilha da Madeira, com referncias
comparativas aos principais espaos aucareiros do Mediterrneo e do
Atlntico, pretende ser um estudo descritivo-comparativo e interpretativo das
terminologias aucareiras histrica e actual. Quer isto dizer que a ilha da
Madeira constitui o epicentro do trabalho, por razes fceis de compreender: a
falta de estudo lingustico prvio, a acessibilidade dos materiais a recolher e a
urgncia de o fazer, antes do seu provvel desaparecimento ou transformao,
e o desejo de contribuir para a identificao e caracterizao da cultura da
regio. Para tal fim, os espaos aucareiros anteriores do Mediterrneo
(Siclia, Valncia e Granada) so importantes em termos comparativos, assim
como os espaos atlnticos posteriores, nomeadamente Aores, Canrias,
Cabo Verde, S. Tom e Brasil, uma vez que a ilha da Madeira funciona como
ponte de ligao entre o Mediterrneo e o Atlntico, sendo exportadora dos
termos e tcnicas aucareiras. Assim, estudamos a terminologia da cultura
aucareira na ilha da Madeira: do Mediterrneo ao Atlntico, examinada
histrica e sincronicamente e situada no contexto romnico, que lhe
natural. S nesse contexto histrico abrangente podemos compreender a
transmisso e desenvolvimento da cultura aucareira mediterrnica no
Atlntico, a partir de um foco que a ilha da Madeira. Por isso, procuramos
fazer um estudo comparativo por campos semnticos da produo aucareira:
cultivo e colheita da cana, casa da moenda, casa das caldeiras, casa de purgar
e casa de encaixar, partindo dos termos e conceitos agrcolas e
manufactureiros e no apenas do comentrio geogrfico das diferentes regies
aucareiras.
Este estudo comparativo da terminologia aucareira, nos espaos
mediterrnicos e atlnticos referidos, permite antecipar a datao de alguns
termos aucareiros madeirenses, nomeadamente em relao a Granada, como
o caso do termo tacha, atestado primeiramente na Madeira, nas Canrias e
na Amrica e, apenas no sculo XVIII, na Andaluzia. Permite ainda verificar a
extenso geogrfica dos termos e identificar o aparecimento de novos termos
nos espaos aucareiros do Atlntico. Constatamos que quase todos os
termos que foram classificados por muitos lexicgrafos como brasileirismos ou
americanismos so, na verdade, termos de origem europeia, muitos dos quais
madeirismos, cuja primeira atestao ocorre na documentao madeirense,
como o caso dos termos tacha, panela e rapadura. Coloca-se, assim, a
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18
questo da relao existente entre a terminologia aucareira no Mediterrneo,
nas ilhas atlnticas e na Amrica. Existir uma unidade terminolgica entre
estas regies aucareiras, tendo como ponte, entre o Mediterrneo e o
Atlntico, a ilha da Madeira? Poderemos afirmar que h uma maior ligao
entre a Madeira e a Amrica do que com o Mediterrneo, atravs de palavras
de origem americana ou americanismos, como o termo garapa ou guarapa,
devido importao de acar do Brasil, nos sculos XVII e XVIII, e
emigrao madeirense para a Amrica?
Verificamos que o desenvolvimento da produo aucareira est
associado exportao de terminologia e tecnologia desta rea de actividade.
Assim, o Mediterrneo o primeiro espao de difuso da cultura do acar na
Europa. A importao de termos tcnicos da produo aucareira do
Mediterrneo para a ilha da Madeira favorecida, desde logo, porque o Infante
D. Henrique manda buscar as plantas e mestres de acar Siclia (ou a
Valncia) e tambm pelo facto de a Madeira ser um espao aberto aos
mercadores estrangeiros, principalmente italianos e valencianos. A
terminologia aucareira recebida do Mediterrneo desenvolve-se na Madeira,
como resultado de uma conjuntura econmica e administrativa prpria,
surgindo, nesta regio, novos termos tcnicos que, depois, so exportados
para as ilhas aucareiras do Atlntico e para a Amrica. Por sua vez, mais
tarde, a Amrica torna-se exportadora de terminologia e tecnologia do acar,
devido ao grande desenvolvimento da sua produo aucareira.
A par do estudo histrico da terminologia do acar, atravs da
documentao das diferentes regies aucareiras do Mediterrneo e do
Atlntico, pretendemos fazer um estudo sincrnico, com base em inquritos
lexicais temticos ou especficos sobre a produo aucareira actual,
realizados na ilha da Madeira (com excluso da ilha do Porto Santo, onde a
produo aucareira foi praticamente inexistente, por falta de abundncia de
gua e lenha) e em Cabo Verde (ilhas de Santiago e Santo Anto), regies de
lngua portuguesa onde ainda hoje h produo aucareira17.
No glossrio, procuramos reunir todas as informaes histricas e
actuais da cultura aucareira, resultantes da documentao histrica e dos
inquritos etnolingusticos realizados. Trata-se de um inventrio lexical,
centro fulcral do nosso trabalho, que pretende estudar a histria e a evoluo
semntica das palavras do acar, a partir da sua origem etimolgica e
ocorrncias contextuais.
17 No realizmos inquritos lingusticos em S. Tom, onde a produo aucareira est praticamente extinta, embora fosse interessante faz-lo, sendo provvel encontrar neste arquiplago os termos de Cabo Verde, pois a produo aucareira de S. Tom era realizada, na sua maior parte, por emigrantes caboverdianos. Em relao ao Brasil, os estudos histrico-etnogrficos e lingusticos sobre a produo aucareira, j realizados, revelam a conservao de muitos termos histricos do acar madeirense, em determinadas regies isoladas e menos desenvolvidas, principalmente na produo de rapadura, em Minas Gerais, aproximando-se da situao actual de Cabo Verde. Cf. Marcelo Magalhes Godoy (2000), Dinossauros de madeira e ferro fundido. Os centenrios engenhos de cana de Minas Gerais: sculos XVIII, XIX e XX, Histria e tecnologia do acar, Funchal, CEHA, pp. 275-300.
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19
O tema do presente trabalho surgiu do estudo da documentao
histrica da Madeira (dos sculos XV e XVI), utilizada na nossa dissertao de
mestrado sobre a antroponmia primitiva da Madeira. Observmos, ento, a
ocorrncia de abundantes referncias produo aucareira na
documentao administrativa da Cmara Municipal do Funchal e na
documentao alfandegria da ilha, referncias que careciam de um exame
lingustico adequado. Embora se trate de um estudo centrado no acar,
optmos por uma abordagem inclusiva, que abrange os materiais, profisses e
produtos perifricos do acar, que intervm directa ou indirectamente na
produo aucareira, e sem os quais no seria possvel descrever o seu ciclo
de modo completo. No entanto, eliminmos os termos muito gerais, que so
lexemas sem interesse para este trabalho, por serem comuns a variadas
actividades: alfndega, almotac, almocreve, tanque de gua, tarefa de lenha,
lenha, madeira, gua, levada, virgens, rodete, cubos da gua, roda da gua,
calha de madeira, carreto, cinza, cal, rego, espeque, escravos, senzala dos
escravos, pesar e pesador. Mantivemos alguns termos gerais, como fogo,
devido forma derivada fogueiro, por ser uma profisso importante no
processo manufactureiro e industrial do acar, e almoxarife por ocorrer
muitas vezes com o complemento determinativo do acar. Registmos, ainda,
termos gerais que se referem s profisses artesanais ao servio do engenho,
como carpinteiro (de engenhos ou que faz engenhos), oleiro e ferreiro, e aos
oficiais administrativos, como o estimador dos canaviais, o lealdador do acar
e o quintador do acar, que garantiam a cobrana dos direitos reais da
produo aucareira.
Vamos agora referir, com mais pormenor, as fontes utilizadas, a
metodologia adoptada nos trabalhos de campo e o enquadramento terico da
anlise lingustica.
3. Fontes consultadas
Utilizamos como fontes, para todas as regies estudadas, principalmente
edies de documentos e apenas, pontualmente, alguns manuscritos inditos.
As edies utilizadas como fontes, confrontadas com os manuscritos, em
geral, respeitam os critrios filolgicos, permitindo-nos estudar a forma dos
termos e discutir a sua etimologia com base na grafia e fontica da palavra, o
que, no entanto, nem sempre foi possvel realizar. Apesar de algumas edies
apresentarem uma actualizao da grafia original dos manuscritos, no as
exclumos por conterem importante terminologia aucareira. o caso de
alguma documentao valenciana que apresenta grafia castelhana
actualizada, nomeadamente alguns documentos integrais transcritos em
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20
apndice por Barcel e Labarta18, e o caso de citaes fragmentrias e
indirectas de documentos, atravs de ensaios de historiadores, como o caso
de Prez Vidal19. Utilizmos esta documentao como fonte de atestaes por
ser importante registar a ocorrncia dos termos aucareiros nestes
documentos e pelo facto da documentao desta regio ser escassa. Embora
fosse importante conhecer a forma original para reconstituirmos com
segurana a histria das palavras.
Salientamos a necessidade de deslocaes a Lisboa e ao estrangeiro
motivadas e justificadas pela pesquisa de fontes em arquivos e no terreno e
pela consulta de bibliografia inexistente na Madeira e em Portugal. Assim,
deslocmo-nos a Lisboa para aceder aos manuscritos, no Arquivo Histrico
Ultramarino, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo e na Biblioteca Nacional,
confrontando-os com as edies dos documentos utilizados, no que respeita
documentao dos Aores, Cabo Verde, S. Tom e Brasil e alguma
documentao madeirense, que no se encontra no Arquivo Regional da
Madeira. As deslocaes Siclia e a Granada, nomeadamente ao Archivio di
Stato di Palermo e ao Archivo Municipal de Motril, visaram a procura de
documentao histrica sobre a produo aucareira nestas regies e de
bibliografia sobre o acar inexistente em Portugal. No entanto, a
impossibilidade de copiar os manuscritos, aliada ao curto perodo de tempo
das estadias para a transcrio no local, levou-nos a utilizar as edies
existentes de alguns documentos, procurando, sempre que possvel, o seu
confronto com o exame dos manuscritos.
Por impossibilidade de deslocao aos arquivos histricos de Valncia e
de Canrias, utilizamos as edies de documentos destas regies, que
encontrmos no Arquivo Municipal de Motril e na biblioteca da Universidade
de Granada e que no tivemos oportunidade de confrontar com os originais.
Assim, devido larga mancha geogrfica e histrica abrangida por este
estudo, confimos nas edies ou fontes editadas, embora nos tenhamos
deslocado a algumas bibliotecas e arquivos para examinar os originais
manuscritos, confrontando-os com as respectivas edies. Trata-se de fontes
de diferentes origens geogrficas e cronolgicas, que procuram documentar,
de forma homognea e contnua, a produo aucareira do Mediterrneo ao
Atlntico. As poucas fontes manuscritas utilizadas surgem com a indicao do
fundo arquivstico e documental a que pertencem e a instituio onde se
18 Cf. C. Barcel, A. Labarta (1984), Azcar, trapigs y dos textos rabes valencianos, Sharq al-Andalus. Estudios Arabes. Anales de la Universidad de Alicante (Espaa) n 1: 55-70; C. Barcel, A. Labarta (1988), Le sucre en Espagne (711-1610), Journal dAgriculture Traditionnel et de Botanique Appliques, vol. XXXV, pp. 175-193; C. Barcel, A. Labarta (1990), La Industria Azucarera en el litoral valenciano y su lxico (siglos XV-XVI), Actas del Segundo Seminario Internacional: La caa de azcar en el Mediterrneo, Motril, Casa de la Palma, pp. 73-94. 19 Cf. J. Prez Vidal (1973), La cultura de la caa de azcar en el Levante Espaol, Madrid, Consejo Superior de Investigaciones Cientficas, Instituto Miguel de Cervantes, Departamento de Dialectologia y Tradiciones Populares.
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21
encontram, enquanto as fontes impressas surgem com a indicao da edio
usada por regies geogrficas, apresentando-se por ordem alfabtica.
Para a ilha da Madeira, como toda a documentao histrica notarial,
administrativa e alfandegria , referente ao acar, j se encontra publicada,
utilizmos as edies existentes, confrontando-as com os manuscritos. A
documentao das regies atlnticas de lngua portuguesa (Aores, Cabo
Verde, S. Tom e Brasil) funciona como fontes anexas e complementares da
Madeira, de onde recebem a cultura aucareira. Para estas regies
aucareiras tambm utilizmos edies de documentos, que nem sempre foi
possvel confrontar com os manuscritos. Para Cabo Verde, dada a escassez de
documentao editada com referncias aucareiras, incluimos trs
manuscritos inditos do AN/TT20.
Dividimos as fontes madeirenses sobre a produo aucareira em
documentao histrica (do sculo XV a XVII), incluindo a documentao
anexa das regies aucareiras de lngua portuguesa (Aores, Cabo Verde, S.
Tom e Brasil), documentao contempornea (sculos XIX e XX) e
documentao oral contempornea (inquritos lingustico-etnogrficos).
No nos foi possvel ter acesso nem tratar toda a documentao existente
sobre a produo aucareira dos espaos mediterrnicos e atlnticos. No
entanto, a documentao utilizada parece-nos ser representativa da
terminologia e tecnologia de cada uma das regies aucareiras estudadas.
3.1. Documentao Histrica
Utilizamos fontes histricas no literrias e literrias que nos do
informaes terminolgicas e tecnolgicas sobre a produo aucareira das
regies estudadas: Siclia, Valncia, Granada, Madeira, Aores, Canrias,
Cabo Verde, S. Tom e Brasil. Para a regio da Siclia, a documentao
histrica consultada escassa e limitada, pois a produo aucareira termina
em fins do sculo XVI e incios do XVII. Para Valncia, Granada e Brasil,
utilizamos documentos que vo at ao sculo XVIII e, no caso de Granada,
tambm de incios do sculo XIX. Em relao a Granada, consultamos
documentao do sculo XVI ao XIX, uma vez que ainda hoje h produo
aucareira. No entanto, a terminologia actual granadina no faz parte do
nosso estudo, nem a de Canrias, onde tambm ainda podemos encontrar
produo aucareira, embora pouco significativa. Neste caso, a documentao
consultada dos sculos XV, XVI e XVII, por ser primitiva e a mais
significativa, testemunhando uma grande presena de madeirenses no
20 Os materiais recolhidos nos inquritos etnolingusticos em Cabo Verde complementam a escassa documentao histrica desta regio, revelando uma tecnologia rudimentar, que nos permite comparar a produo actual caboverdiana com a produo primitiva da Madeira, reconstituindo-a.
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22
arquiplago e muitos portuguesismos relacionados com a indstria
aucareira.
3.1.1. Madeira
A documentao histrica da ilha da Madeira, que utilizamos como
fonte, data do sculo XV e vai at ao sculo XVII. Trata-se de documentao
rica e variada: notarial (Testamento de Antnio Teixeira de 1535), literria (As
Saudades da Terra de Gaspar Frutuoso e o Cdice Valentim Fernandes),
administrativa (Vereaes da Cmara Municipal do Funchal e Tombo Primeiro
da Cmara Municipal do Funchal) e alfandegria (Livros de contas da ilha da
Madeira)21. Excluimos alguma documentao com escassas informaes
terminolgicas do acar22. Tambm no utilizamos como fonte as
informaes relativas produo aucareira madeirense, que nos so
fornecidas pelos estrangeiros que visitam a ilha da Madeira, nos sculos XV e
XVI, nomeadamente a descrio da produo aucareira madeirense,
realizada pelo italiano Giulio Landi, cerca de 1530, por se tratar de uma
traduo. No entanto, usamo-las como referncias importantes para a
discusso da tecnologia e terminologia aucareiras da Madeira na poca.
No caso do Testamento de Antnio Teixeira de 1535, importante
documento que nos d muitas informaes sobre a terminologia e a tecnologia
da indstria aucareira da poca, atravs de um inventrio de utenslios do
engenho, confrontamos as duas publicaes do documento que apresentam
formas e grafias diferentes: a edio do documento publicado no peridico A
flor do Oceano23 e a edio de Alberto Artur24. Utilizamos como fonte a
primeira edio por ser mais fivel, conservando as grafias e formas
21 Ao contrrio dos sculos XV e XVI, poca de grande desenvolvimento da produo aucareira na Madeira, em que abundam as fontes documentais com referncias ao acar, do sculo XVII a meados do sculo XIX, a produo de acar escassa e praticamente inexistente, importando-se acar do Brasil, de Cabo Verde e de S. Tom, o que explica a escassez de documentao para esta poca, pois este o perodo de grande produo vitivincola, razo pela qual a produo aucareira insignificante e sem interesse. 22 Designadamente a Ementa dos Livros de Vereaes da Cmara do Funchal, L. 1. (1470-1472), L. 2. (1481-1482), L. 3. (1485-1486), in Arquivo Histrico da Madeira, vol. III, 1933: 30-34, 102-105, 129-138, pelo facto destas notas marginais serem posteriores s Vereaes, sendo difcil determinar a sua datao. Exclumos tambm o documento Reeneamento dos foguos almas freguesias, e mais igrejas que tem a ilha da Madeira tirado pellos rois das confies, assi em geral como em particular, Arquivo Histrico da Madeira, vol. II, 1932: 28-35, pelo facto dos escassos termos aucareiros referidos j terem sido registados em documentos anteriores e por isso serem pouco pertinentes neste documento de datao imprecisa. Tambm o Livro das ilhas foi excludo, porque a documentao relativa ao acar na Madeira, reunida neste livro, foi consultada noutras publicaes. A documentao da Flandres sobre a importao de acar da Madeira no foi contemplada neste estudo, por se encontrar redigida em flamengo antigo e no estar transcrita, impossibilitando o acesso a estas fontes. Exclumos ainda os textos literrios Zargueida. Descobrimento da ilha da Madeira, poema herico de Francisco de Paula Medina e Vasconcellos, e Insulana de Manoel Thomas. 23 Cf. A flor do Oceano de 7 de Outubro de 1865, n 259, p. 2. 24 Cf. Alberto Artur (1950), Apontamentos histricos de Machico, DAHM, n 1, vol. I, p. 8-9.
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23
originais25. Em relao ao Cdice Valentim Fernandes (1506-1510), que nos d
informaes sobre a produo aucareira nas ilhas do Atlntico, utilizamos a
edio de Jos Pereira da Costa por conservar a grafia original do documento.
A cultura aucareira passa da Madeira para os Aores, Canrias, Cabo
Verde, S. Tom e Brasil. Por isso, incluimos como documentao anexa e
complementar da Madeira alguns documentos destas regies aucareiras, que
mereciam um estudo exaustivo quanto sua documentao histrica,
principalmente a de S. Tom e Brasil, devido grande importncia da sua
produo aucareira. No entanto, esse estudo teve de ser limitado aos
documentos mais antigos com mais referncias produo aucareira, pelo
que esperamos que outros possam continuar o trabalho aqui iniciado.
Seleccionmos como fontes anexas da Madeira os documentos mais
significativos e representativos da produo aucareira das regies dos
Aores, Cabo Verde, S. Tom e Brasil, dado que seria invivel abranger neste
estudo toda a documentao histrica destas regies de forma exaustiva. A
incluso de documentao anexa Madeira resulta da necessidade de alargar
o estudo da terminologia aucareira a estas regies do Atlntico, o que nos
ajuda a conhecer a terminologia e tecnologia histricas do acar,
transplantadas da ilha da Madeira, e permite-nos complementar e clarificar a
definio de termos obscuros da documentao histrica madeirense,
confirmando a expanso da terminologia aucareira da Madeira no Atlntico e
registando termos que embora no documentados teriam existido nesta
regio. o caso de termos que surgem em Granada e no Brasil e no ocorrem
na Madeira nem nas Canrias.
Quanto aos Aores, apesar da sua produo aucareira insignificante,
existe documentao que nos d informaes sobre a tecnologia e
terminologia do acar, transplantadas da Madeira para aquela regio. Para
os Aores, utilizamos, como fonte anexa da Madeira, apenas o texto de Gaspar
Frutuoso, Saudades da Terra, que descreve o incio da produo e indstria
aucareira na ilha de S. Miguel.
A documentao histrica de Cabo Verde com referncias produo
aucareira escassa e pouco explcita comparativamente documentao da
Madeira e de Canrias. Utilizamos como fonte o texto de Gaspar Frutuoso,
Saudades da Terra, com referncias produo aucareira de Cabo Verde; as
informaes do Cdice Valentim Fernandes sobre a produo aucareira de
Cabo Verde; alguns documentos transcritos por Antnio Brsio nos
Monumenta Missionaria Africana, referentes produo aucareira
25 A verso de Alberto Artur apresenta erros de leitura e transcrio do documento, por exemplo: bomba por pomba, correntes de ferro das formas por correntes de furo das formas. Alm disso, a verso do peridico mais completa, pois d-nos mais informaes: 2 caldeiras de cobre assentadas nas fornalhas, enquanto Alberto Artur corta o texto em 2 caldeiras de cobre. Registmos as seguintes diferenas grficas, respectivamente, entre a edio de Alberto Artur e a edio do peridico: coadura e coadoura; taxa grande de coser e tacha grande de cozer; raminhes e raminhois; correntes de pau e correntes de pao; coxas grandes de ter mel e coxos grandes de ter mel; sinos de meles e signos de melles; casa de purgar e casa de porgar; andainas de sinos e andaimos de sinos.
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24
caboverdiana; trs manuscritos inditos do Arquivo Nacional da Torre do
Tombo; fragmentos de documentos referidos por Antnio Correia e Silva, no
primeiro volume da Histria Geral de Cabo Verde; e dois pequenos
documentos publicados no segundo volume ou Corpo Documental da Histria
Geral de Cabo Verde, uma vez que so escassas as referncias ao acar de
Cabo Verde, pois a maior parte da documentao publicada neste volume diz
respeito produo de algodo. No referimos a documentao da costa da
Guin, publicada por Brsio, por apresentar escassas referncias produo
aucareira.
Inicialmente, limitmos o mbito geogrfico do trabalho, no Atlntico,
Madeira, Canrias e Cabo Verde, excluindo a documentao de S. Tom e do
Brasil, mas, posteriormente, surgiu a necessidade de incluir importantes
documentos do Brasil, que nos ajudam a esclarecer a terminologia e
tecnologia histricas do acar da Madeira, transplantadas para o Atlntico.
Mais tarde, verificmos ser pertinente incluir tambm a documentao de S.
Tom, por se tratar de uma importante regio aucareira de referncia
obrigatria e por anteceder cronologicamente produo aucareira do Brasil.
Para S. Tom, utilizmos um relatrio de 1529, publicado pelo Padre
Antnio Brsio, nos Monumenta Missionaria Africana, as informaes do
Cdice Valentim Fernandes e ainda trs documentos publicados por Silva
Marques, nos Descobrimentos Portugueses. Confrontmos estas edies com
os manuscritos, utilizando os documentos editados por respeitarem os
critrios filolgicos e serem de mais fcil manuseamento. No utilizmos como
fonte o texto do piloto annimo portugus do sculo XVI, datado de 1540-41,
por Arlindo Manuel Caldeira, na edio Viagens de um piloto portugus do
sculo XVI costa de frica e a So Tom, por ser desconhecido o texto
original do qual apenas temos a traduo italiana, traduzida para portugus
por Mendo Trigoso com o nome de Navegao de Lisboa ilha de S. Tom e,
depois, publicada numa edio actualizada intitulada Viagem de Lisboa ilha
de S. Tom por Augusto Reis Machado. No entanto, este texto apresenta um
indiscutvel valor documental, sobretudo nas questes de histria econmica
e social da ilha de S. Tom, sendo uma referncia obrigatria neste estudo
pelo facto de relatar a produo aucareira so-tomense e a qualidade do seu
acar, principal fonte do comrcio desta ilha, em meados do sculo XVI. Para o Brasil, utilizmos edies dos Tratados da terra e gente do Brasil (1583-
1598), texto de Ferno Cardim, datado de finais do sculo XVI; os Dilogos das grandezas do Brasil, texto de Ambrsio Fernandes Brando, datado de 1618; a Histria do Brasil (1500-1627), datada de 1628, de Frei Vicente do Salvador; o Sermo dcimo quarto dos Sermes do Padre Antnio Vieira, pregado irmandade dos negros de um engenho de acar da Baa, em 1633; e a edio facsimile do texto de Andr Joo Antonil, Cultura e opulncia do Brasil (1711), que apresenta a descrio mais completa e pormenorizada que conhecemos da terminologia e tecnologia do acar, permitindo reconstituir a produo aucareira madeirense, conservada no Brasil, embora apresentando j algumas inovaes tcnicas. No utilizmos como fonte o Cdice de Costa Matoso, cronista do sculo XVIII, que descreve a fabricao de acar e
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25
aguardente, nas primeiras dcadas de funcionamento dos engenhos de cana, em Minas Gerais, por necessidade de limitar as fontes aos textos mais antigos com mais referncias produo aucareira. Embora a documentao consultada seja a mais representativa, seria interessante incluir ainda muita outra documentao brasileira existente.
Seria importante abranger toda a documentao destas regies com
referncias aucareiras, o que infelizmente no vivel no nosso trabalho.
Por razes que ficaro mais claras no captulo III, compreendemos a
necessidade de realizar pesquisas em vrios centros documentais da bacia do
Mediterrneo ocidental e nas Canrias.
3.1.2. Siclia
Realizmos uma deslocao Siclia, porque esta foi uma regio
mediterrnica de importante produo aucareira e o primeiro espao
romnico, no Mediterrneo, onde se desenvolvem a terminologia e a tecnologia
do acar e de onde a cana-de-acar com os seus termos e tcnicas foi
transplantada para Valncia e para a Madeira. A, procurmos documentao
histrica sobre a produo aucareira desta regio, no Archivio Communale di
Palermo e no Archivio di Stato di Palermo. Neste ltimo, reunimos doze
documentos inditos (gentilmente transcritos pelo historiador Antonino
Morreale), que tivemos oportunidade de confrontar com os manuscritos
originais, alm de documentos editados em apndice por Rebora (1968) e
documentos citados por Trasselli (1982). (Ver fontes documentais sicilianas
na bibliografia). Embora a documentao estudada seja representativa da
produo aucareira siciliana, reconhecemos que seria importante consultar
mais documentao e documentao mais antiga desta regio.
3.1.3. Valncia
Para a regio de Valncia, dada a escassez de documentao, apenas
conseguimos reunir trs documentos publicados isoladamente, que parecem
ser os mais representativos da terminologia da produo aucareira desta
regio: Cronica de Viciana de 1564, publicada por Barcel e Labarta em 1988;
Inventario del Trapiche del Rfol de 1514, publicado por Barcel e Labarta em
1990; Inventario de Bienes de los llocs del comtat de Villalonga: eines de la casa
del trapig de sucre de 1607, editado por Santonja em 1990. Inclumos ainda a
documentao valenciana citada de forma fragmentria por Prez Vidal
(1973), nomeadamente os textos de Mayns (1766) e de Escolano (1610), que
nos do informaes sobre o funcionamento do engenho de Oliva26.
26 No conseguimos consultar a edio do documento Inventrio de 1652 de la casa de la seoria de Daimus de 1642, por s existir em Madrid e Valncia, regies onde no nos foi possvel deslocar. Este
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26
Recorremos a edies dos documentos e a documentao fragmentria citada
em obras historiogrficas, visto no termos tido a oportunidade de deslocao
a Valncia para examinar os manuscritos e conseguir a edio integral de
alguns textos e por as edies utilizadas serem fiveis e significativas, porque
nos do importantes informaes sobre a produo aucareira na regio e a
respectiva terminologia.
3.1.4. Granada
Realizmos uma deslocao a Granada, mais precisamente ao Arquivo
Municipal de Motril, onde, por motivos de conservao, no nos foi possvel
fotocopiar os manuscritos dos sculos XVI a XIX, j editados por Dominguez
Garcia (1991 e 1995), que confrontmos com os documentos originais. A
edio de documentos de Motril e Granada, realizada por Dominguez Garcia,
respeita os critrios filolgicos, incluindo a crnica La epidemia de peste en
Motril 1679, de Nio de la Puente y Guevara, publicado em 1680, a qual
confrontmos com a edio facsimilada do texto.
3.1.5. Canrias
Na documentao histrica de Canrias, os termos do acar que
encontramos so, na sua maioria, portuguesismos de origem madeirense, a
que ousadamente chamamos madeirismos, por serem termos tcnicos que
surgem e/ou se desenvolvem na ilha da Madeira com o incremento da
produo aucareira nesta regio27.
Consultmos as edies dos seguintes documentos de Canrias, que
utilizmos como fontes: Acuerdos del cabildo de Tenerife I (1497-1507),
Acuerdos del cabildo de Tenerife II (1508-1513), Acuerdos del Cabildo de
Tenerife III (1514-1518), Acuerdos del Cabildo de Tenerife IV (1518-1525),
Acuerdos del Cabildo de Tenerife V (1525-1533), Datas de Tenerife (I e II),
Ordenanzas de la Isla de Tenerife (compiladas pela primeira vez em 1540 e
recompiladas depois em 1670) e Ordenanzas del Concejo de Gran Canaria de
1531. Embora no tenhamos confrontado as edies com os documentos
originais, estas parecem respeitar critrios filolgicos, conservando a grafia
original. Utilizmos ainda como fontes alguns documentos resumidos com
documento foi transcrito e editado por F. Pons Monjo, em 1984, segundo referncia de J. A. Gisbert Santonja (1990), En torno a la produccin y elaboracin de azcar en las comarcas de la Safor Valencia y la Marina Alta Alicante. Siglos XIV-XIX. Arquitectura y la evidencia arqueolgica, Actas del Segundo Seminario Internacional. La caa de azcar en el Mediterrneo, Motril, Casa de la Palma, p. 253. 27 Termos que, provavelmente, no existiram no continente portugus, onde a produo aucareira foi muito breve e quase insignificante, no havendo, portanto, muita documentao, razo pela qual o territrio continental portugus no contemplado neste estudo.
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grafias actualizadas, uma vez que no nos foi possvel ter acesso aos
documentos originais e integrais, designadamente Protocolos de Rodrigo
Fernndez I e II (1520-1526), Protocolos de Alonso Gutierrez I e II (1520-1525),
Protocolos de Hernn Guerra (1510-1511), Extractos del Protocolo de Juan Ruiz
de Berlanga (1507-1508), Documentos Canarios en el Registro del Sello I e II
(1476-1517). No exclumos esta documentao por apresentar referncias
importantes sobre a histria da terminologia e tecnologia aucareiras28.
3.2. Documentao Contempornea
Como j referimos, a Madeira a regio para a qual apresentamos
maior nmero e variedade de documentao histrica sobre a produo
aucareira. Relativamente documentao contempornea, encontramos
documentos de natureza tcnica (Estatstica Industrial do Districto do Funchal
de 1863), legislativa (Diplomas do Regimen Saccharino da Madeira) e literria
(dois romances de Horcio Bento Gouveia), a partir da segunda metade do
sculo XIX e no sculo XX, que retratam a produo aucareira da poca,
depois da reintroduo da indstria do acar e da mquina a vapor na ilha29.
Na documentao contempornea da Madeira, incluimos ainda alguns
documentos manuscritos inditos do Arquivo Regional da Madeira,
nomeadamente o Registo de copia da postura de 11 de Agosto de 1836 contra
o uso da cachaa, das Posturas de 1805-1839 da Cmara Municipal do
Funchal, e o Ofcio do governador de 1865 aos donos das fbricas de
espremer cana doce, do livro Authoridades diversas 1862-1869. Utilizmos
tambm como fontes pontuais: o Decreto de 21 de Outubro de 1863:
classificao dos estabelecimentos insalubres, incommodos ou perigosos, da
Colleco official da legislao Portugueza; a Carta de o patriota ao redactor
do peridico madeirense A flor do Oceano n 69 de 27 de Maro de 1836 e o
Annuncio. Venda de garapa em O Clamor pblico n 36 de 22 de Janeiro de
185530.
28 O importante documento de 1615, publicado na Cidade do Mxico por Francisco Hernandez, que descreve as tcnicas agrcolas e industriais da manufactura aucareira em Gran Canaria e que se destinava a instruir os cultivadores do Novo Mundo, no foi utilizado como fonte, por dificuldades de acesso ao documento original, bem como de consulta da sua edio. 29 O retorno da indstria aucareira ilha da Madeira, em meados do sculo XIX, foi fomentado pela crise vitivincola nesta regio, pela crise da produo aucareira no Brasil com o fim da escravatura e pela revoluo industrial com a introduo de fbricas mecanizadas a vapor, originando documentao variada sobre a produo aucareira recente da Madeira, sobretudo legislativa e tcnica, mas tambm literria, permitindo datar a primeira atestao de alguns novos termos, ainda actuais, que surgem em meados do sculo XIX, como o caso do termo garapa. 30 Exclumos as informaes fornecidas pelo Dirio de Notcias do Funchal, que surge a partir de 1876, com referncias produo das fbricas aucareiras da ilha da Madeira, a regulamentao sobre as fbricas de moer cana de acar, de 31 de Dezembro de 1852, e a iseno de direitos na importao de maquinaria, caldeiras e mais utenslios necessrios para o fabrico dos produtos de cana doce, de 14 de Julho de 1855, do Livro da Alfndega do Funchal, n 707, entre outros, por necessidade de limitar a documentao consultada.
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28
Apresentamos a documentao contempornea separadamente da
documentao histrica, na segunda parte deste estudo, juntamente com a
documentao oral contempornea, uma vez que a terminologia aucareira
daquela documentao se aproxima dos materiais recolhidos nos inquritos
etnolingusticos, realizados na ilha da Madeira, correspondendo segunda
fase da produo aucareira da regio, que surge, como j referimos, depois
da revoluo industrial.
3.3. Documentao Oral Contempornea
Limitmos a recolha de documentao oral contempornea ilha da
Madeira e a Cabo Verde (ilhas de Santiago e de Santo Anto), regies de
lngua portuguesa, onde ainda hoje encontramos produo aucareira. Por
isso, nelas realizmos um questionrio lexical especfico ou temtico dessa
actividade, atravs do mtodo onomasiolgico, partindo do conceito ou
significado para o termo ou significante, o que nos permite estudar no s a
terminologia e tecnologia actuais mas tambm a vitalidade das palavras e
tcnicas histricas do acar, verificando em que medida a evoluo tcnica
se reflecte na lngua (lxico e semntica), conduzindo perda ou adaptao da
terminologia tradicional, por desaparecimento ou transformao dos antigos
referentes31.
4. Metodologia de trabalho
Dada a natureza do problema, empregmos um mtodo misto,
resultando na combinao das fontes histricas e contemporneas
(documentao escrita) e das fontes orais (inquritos lexicais etnolingusticos),
partindo da realidade histrica para a actualidade da produo aucareira.
Este mtodo permite realizar o estudo comparativo das terminologias
aucareiras histrica e actual, dando conta da extino de termos e tcnicas
antigas da produo aucareira, bem como da vitalidade, sobrevivncia e
adaptao de alguns termos histricos nova realidade tcnica e do
surgimento de novos termos resultantes de novas tecnologias. Assim,
recorremos ao mtodo tradicional de estudo da mudana lingustica
terminolgica do acar, atravs da anlise de corpora escritos e orais e da
comparao de dialectos vivos de Cabo Verde (Santiago e S. Anto).
Partimos da documentao histrica consultada, das regies aucareiras
estudadas, donde recolhemos a terminologia do acar apresentada no
31 No tommos como fonte os atlas lingusticos existentes das vrias regies aucareiras estudadas, dado que estes nem sempre contemplam a rea da actividade aucareira, em muitos casos j extinta, pelo que as comparaes seriam difceis de realizar.
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29
corpus, citado no glossrio, atravs do mtodo semasiolgico inventrio dos
significados ligados a um mesmo significante , procurando definir os
conceitos correspondentes, a partir do contexto, muitas vezes insuficiente e
pouco claro, e registando as palavras por regies e datas. Em contrapartida,
nos inquritos lexicais realizados na ilha da Madeira e em Cabo Verde,
servimo-nos do mtodo onomasiolgico, inventrio das designaes
associadas a um mesmo conceito, partindo dos conceitos para recolher os
termos correspondentes, localizados por pontos de inqurito.
Para reunir todo este material, optmos pela elaborao de uma
ambiciosa base de dados de todas as palavras com interesse, retiradas da
documentao, e respectivas variantes grficas e fonticas com indicao do
contexto, data, regio, fonte, volume e pgina. Pretendamos que ela
permitisse cruzar informaes das ocorrncias das palavras do acar e
respectivas variantes, no seu contexto, por regies, fontes e datas, o que
facilitaria o estudo descritivo-comparativo e interpretativo dos termos e da sua
origem, histria e evoluo. No entanto, ela acabou por se manifestar menos
produtiva do que desejvamos, devido ao facto de o corpus ser muito
complexo, apresentando formas sicilianas, valencianas, castelhanas e
portuguesas, diferentes tipos lexicais para designar o mesmo conceito e
muitas variantes grficas, fonticas, morfolgicas e sintcticas32. A nossa base
de dados terminolgicos do acar, elaborada com toda a documentao
histrica das diferentes regies aucareiras estudadas e com a documentao
contempornea escrita da ilha da Madeira, acha-se disponvel para ser
utilizada em pesquisas de outra natureza. No apresentamos toda a
documentao referida no glossrio, seleccionando apenas as atestaes mais
antigas ou primeiras dataes das formas e os seus contextos mais
ilustrativos e simplificamos as entradas lexicais, reduzidas s formas
infinitivas dos verbos e s formas singulares dos nomes e adjectivos. (V. Parte
III: Estrutura do glossrio).
No que concerne documentao oral, no organizmos os dados
recolhidos numa base de dados por diversas razes: menor complexidade dos
dados; por corresponder apenas a duas regies aucareiras, Madeira e Cabo
Verde, embora com algumas diversidades internas (no caso de Cabo Verde as
ilhas de Santiago e de Santo Anto); por no surgirem datas e pocas
diferentes; por no apresentarmos a contextualizao destes termos, visto ser
dispensvel para a definio do significado dos termos, pelo facto de
utilizarmos um mtodo onomasiolgico nos inquritos lingusticos, ao
32 Mesmo assim, ela revelou-se um instrumento importante, sem o qual no teramos podido fazer o glossrio. constituda por seis mil registos, cada um com vrios campos: palavra, data, fonte, contexto, categoria, forma derivada ou composta. Na base de dados, os registos das palavras foram realizados sem normalizao grfica, ou seja, com as formas que surgem na documentao. Assim, registmos as palavras nas suas diferentes formas: singular e plural, variantes grficas e morfolgicas, verbos no infinitivo e conjugados, formas simples e complexas.
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30
contrrio da documentao histrica, onde o contexto fundamental para a
definio dos termos, em regies e datas muito diversas.
A elaborao dos questionrios lingusticos, internamente organizados
por campos semnticos: cultivo e colheita da cana, extraco do sumo da
cana, fabrico de mel, fabrico de acar e fabrico de aguardente, parte de
estudos de prospeco in loco, junto de agricultores de cana-de-acar e
trabalhadores dos engenhos, na ilha da Madeira, e, no caso de Cabo Verde, a
partir de estudos de etnografia desta regio, nomeadamente Cabo Verde:
Retalhos do quotidiano de Joo Lopes Filho. A constituio e estrutura do
questionrio foi vrias vezes reformulada e acrescentada, ao longo da
realizao dos inquritos e medida que surgiam referncias a novas
realidades ainda no contempladas no questionrio. Este, depois de aplicado
na ilha da Madeira33, nas localidades onde existe ou existiu produo
aucareira, foi adaptado realidade tcnica e scio-cultural das ilhas de Cabo
Verde, sem, no entanto, perder de vista o objectivo de comparao das
informaes recolhidas nos dois arquiplagos.
A documentao resultante dos inquritos lexicais foi gravada em
registo magntico com microfone. Os inquritos realizados so essencialmente
lexicais, sem inquiries fontico-fonolgicas, o que explica a ausncia de
transcries fonticas sistemticas, pois apenas assinalamos e transcrevemos
formas relevantes com interesse comparativo a nvel dialectal ou inter-
regional, no vocalismo ou consonantismo. No apresentamos os materiais
lingustico-etnogrficos, recolhidos na Madeira e em Cabo Verde, em atlas
dialectais, pelo facto das ilhas apresentarem grande unidade interna,
registando-os no glossrio, juntamente com a terminologia histrica e
contempornea do acar.
5. Enquadramento terico: mtodo Wrter und Sachen
Este estudo enquadra-se no mtodo Wrter und Sachen, em portugus
Palavras e coisas, que originou importantes trabalhos na rea da lingustica
romnica, nomeadamente El mobiliario popular en los pases romnicos de
Fritz Krger (1963), Coisas e palavras. Alguns problemas etnogrficos e
lingusticos relacionados com os primitivos sistemas de debulha na Pennsula
Ibrica de Herculano de Carvalho (1953) e reas lingustico-etnogrficas
romnicas (processos tradicionais de moldar o queijo) de Maria Jos de Moura
Santos (1991). Tambm ns nos propomos reconstituir as palavras e as coisas
do acar num estudo lingustico e histrico das reas aucareiras romnicas
do Mediterrneo e do Atlntico. Este mtodo justifica-se em reas
33 No realizmos inquritos lingusticos na ilha do Porto Santo, porque, devido s caractersticas climticas, nunca houve produo aucareira significativa nesta ilha, nem nenhum engenho de acar, ou, pelo menos, se existiu no parece estar documentado.
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31
etnoculturais que no foram estudadas do ponto de vista lingustico,
continuando a ser til e necessrio no estudo de actividades tradicionais e
artesanais, pois cada ano que passa perdem-se produtos e tcnicas
tradicionais, substitudos por produtos em srie de fabrico industrial, e,
consequentemente, perdem-se tambm as palavras ou termos que designam
essas realidades tradicionais manufactureiras ou pr-industriais. Por isso,
urgente a sua aplicao para recolher o material lexical agrcola e tcnico dos
engenhos, que corre o risco de desaparecer, nomeadamente a terminologia
popular da cultura aucareira tradicional, que est em vias de extino ou
transformao. Como escreve Manuel Alvar:
si viven an, con nombre distinto, escuelas que, al parecer, estaban
perdidas en el tiempo, no llama la atencin que la dialectologa tenga, todava
bastante que decir. Porque los mtodos tradicionales, adaptados a las
exigencias de nuestro tiempo, no estn exhaustos: muchos dialectos
romnicos quedan por inventariar y conocer, y sin la posesin de esos datos
inmediatos carecera de sustento cualquier clase de especulacin ulterior.34
O mtodo Palavras e coisas, criado por Rodolfo Meringer e Hugo
Schuchardt, no incio do sculo XX, fundamenta-se na ideia de no se poder
fazer o estudo e a histria das palavras sem a histria das coisas,
pretendendo explicar a relao existente entre a palavra e o objecto
designado, entre a lexicologia e a etnografia ou entre o lxico e a civilizao.
Karl Jaberg, a propsito das informaes sobre a forma dos baloios em
Portugal, escreve: L'tude des mots ne saurait se faire sans l'tude des
choses.35. No podemos estudar as palavras sem estudar as coisas e
respectivos conceitos, ou seja, no podemos estudar a terminologia do acar
sem estudar a sua tecnologia. Schuchardt, considerando ser a coisa anterior
ao nome, prefere inverter a ordem conhecida para Sachen und Wrter, no que
seguido por Herculano de Carvalho e Serafim da Silva Neto com Coisas e
palavras. Herculano de Carvalho cita Hugo Schuchardt: em relao s
palavras, os objectos que so primaciais e fixos, as palavras encontram-se-
lhes ligadas e movem-se sua volta36. Por isso, o autor comea por
apresentar uma descrio etnogrfica dos objectos e tcnicas e s depois
realiza o estudo lingustico das suas designaes ibero-romnicas. Herculano
de Carvalho esclarece:
34 Manuel Alvar (1983), Estructuralismo, geografa lingustica y dialectologa actual, Madrid, Biblioteca Romnica Hispnica, Editorial Gredos, p. 19. 35 Karl Jaberg (1946), Gographie linguistique et expressivisme phontique: les noms de la balanoire en portugais, Revista Portuguesa de Filologia, vol. I, tomo 1, Coimbra, p. 3. 36 Apud J. Herculano de Carvalho (1953), Coisas e palavras. Alguns problemas etnogrficos e lingusticos relacionados com os primitivos sistemas de debulha na Pennsula Ibrica, Sep. de Biblos, vol. XXIX, Coimbra, p. x.
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32
O objecto a realidade a palavra apenas o sinal que evoca essa
realidade. Se comearmos pois por analisar e estudar os objectos, como
existentes por si, quando da passarmos ao estudo das palavras, muitos
problemas se encontraro j de antemo resolvidos.37
No nosso estudo, seguimos a frmula Palavras e coisas, apresentando
primeiro o estudo lingustico das designaes romnicas das tcnicas e
produtos aucareiros ou terminologia do acar, nas regies estudadas, e,
depois, o estudo e a descrio da evoluo da tecnologia e respectiva
terminologia, do mundo mediterrnico at realidade atlntica actual.
Verificamos que a terminologia do acar inseparvel da tecnologia da
produo aucareira, assim como as palavras das coisas; por isso, no ltimo
captulo, apresentamos um estudo comparativo lingustico-etnogrfico,
descrevendo a terminologia e a tecnologia actuais da produo aucareira, na
ilha da Madeira e em Cabo Verde. Como escreve Serafim da Siva Neto, no
podemos separar a histria da palavra da histria da civilizao humana, pois
a lngua expresso da sociedade, inseparvel da histria da civilizao.38.
Este autor acrescenta que o mtodo Palavras e coisas, ou melhor, Coisas e
palav