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NUNO SIMÕES RODRIGUES, MITOS E LENDAS DA ROMA ANTIGA, LISBOA, LIVROS E LIVROS, 2005 A obra novíssima de Nuno Simões Rodrigues faz o levanta- mento e contextualização de mitos e lendas romanos, a começar pelos anteriores à fundação de Roma. Não se destina esta publicação, segundo diz o autor no prefácio, a um público de especialistas (filólo- gos ou historiadores classicistas), mas aos curiosos pelas coisas clássi- cas, e particularmente por Roma. Mas, dada a utilidade deste livro para os alunos e professores de Latim, Português ou História, será oportuno deixar aqui uma resenha. Na introdução, o leitor encontra uma reflexão sobre o tipo de narrativas que cabem na definição de mito e das formas como estas se encontram representadas na cultura romana, através da herança grega ou de criações e adaptações itálicas. A referência à conexão entre deuses e o mundo agrário, especialmente valorizada no panorama mitológico romano, motiva a inclusão de uma lista de festividades do calendário, acompanhadas da indicação da divindade a que se prestava culto. De seguida, uma cronologia geral permite situar o leitor por referência às principais datas, a começar pela fundação de Cartago e a terminar na queda do Império Romano do Ocidente. As lendas são agrupadas por grupos relacionados com marcos históricos ou temas gerais. Especial importância tem a chamada à colação das diversas versões dos mitos e das várias tentativas de explicação, antigas e modernas, que revelam a riqueza das lendas no património cultural romano e não só. Com efeito, são evocados relatos similares do mundo helénico, acádico, hebraico, nórdico; em suma, indo-europeu. Numerosas são as comparações com os textos bíblicos veterotestamentários. No que respeita à Cultura Romana, põe-se em evidência o cariz etiológico de muitos dos elementos presentes nas narrativas: busca de explicação para origem de topónimos, institui- ções, rituais, costumes, etc.

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NUNO SIMÕES RODRIGUES, MITOS E LENDAS DA ROMA ANTIGA, LISBOA, LIVROS E LIVROS, 2005

A obra novíssima de Nuno Simões Rodrigues faz o levanta-mento e contextualização de mitos e lendas romanos, a começar pelos anteriores à fundação de Roma. Não se destina esta publicação, segundo diz o autor no prefácio, a um público de especialistas (filólo-gos ou historiadores classicistas), mas aos curiosos pelas coisas clássi-cas, e particularmente por Roma. Mas, dada a utilidade deste livro para os alunos e professores de Latim, Português ou História, será oportuno deixar aqui uma resenha.

Na introdução, o leitor encontra uma reflexão sobre o tipo de narrativas que cabem na definição de mito e das formas como estas se encontram representadas na cultura romana, através da herança grega ou de criações e adaptações itálicas. A referência à conexão entre deuses e o mundo agrário, especialmente valorizada no panorama mitológico romano, motiva a inclusão de uma lista de festividades do calendário, acompanhadas da indicação da divindade a que se prestava culto. De seguida, uma cronologia geral permite situar o leitor por referência às principais datas, a começar pela fundação de Cartago e a terminar na queda do Império Romano do Ocidente.

As lendas são agrupadas por grupos relacionados com marcos históricos ou temas gerais. Especial importância tem a chamada à colação das diversas versões dos mitos e das várias tentativas de explicação, antigas e modernas, que revelam a riqueza das lendas no património cultural romano e não só. Com efeito, são evocados relatos similares do mundo helénico, acádico, hebraico, nórdico; em suma, indo-europeu. Numerosas são as comparações com os textos bíblicos veterotestamentários. No que respeita à Cultura Romana, põe-se em evidência o cariz etiológico de muitos dos elementos presentes nas narrativas: busca de explicação para origem de topónimos, institui-ções, rituais, costumes, etc.

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Um primeiro grupo de lendas diz respeito ao período anterior à fundação de Roma. Para a narrativa das tradições e lendas acerca dos povos que habitaram a Itália antes dos Romanos, são seguidas princi-palmente as informações de Dionísio de Halicarnasso. Este autor grego, ao sublinhar a origem helénica, sobretudo arcádica, dos Roma-nos, permite fazer a ponte entre Roma e a Grécia, de acordo com o contexto cultural do período augustano. Também a ligação de Hér-cules à Itália, por onde o herói passou depois de arrebatar os bois a Gérion, contribui para fundamentar certos ritos e topónimos, bem como a assimilação da origem grega e romana.

A parte relativa à fundação de Roma começa com o tratamento da figura de Eneias, através do qual o tema de Tróia se torna, espe-cialmente a partir de Augusto, parte integrante da história romana. O salvamento do pai, do filho e dos Penates faz do herói o protótipo da observação dos valores romanos da pietas e do mos maiorum. As aventuras de que Eneias é protagonista prefiguram diversos aconteci-mentos da história romana e da obra de Augusto. A Eneida de Virgí-lio, principal fonte usada na exploração da lenda de Eneias, encerra, assim, o segundo grande mito fundacional da cultura romana. Mas os fins propangandísticos inerentes ao programa de Augusto são também visíveis no facto de se acentuarem as origens itálicas de Dárdano, mítico fundador de Tróia, o que faz da viagem de Eneias um regresso à origem primordial.

A camaradagem de Niso e Euríalo, com antecedentes nas cultu-ras grega, acádica e hebreo-cananaica, é integrada, através de Virgílio, na promoção dos valores romanos da amicitia, fides, pietas e uirtus e na censura da ambição de bens materiais, a causa da perda de Euríalo.

As oscilações acerca do nome, filiação e descendência de Ascâ-nio ou Iulo acentuam a complexidade destes mitos fundacionais, em constante processo evolutivo. Mas, mais uma vez, o nome de Iulo e a especial relação com Vénus são aproveitados com fins propagandísti-cos pela gens Iulia, em especial por Augusto, filho adoptivo de Júlio César.

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A seguir vem a lenda de Rómulo e Remo, «o grande mito romano, senão o único em sentido estrito», como se diz na introdução (p. 15), mas com diversos paralelos no mundo indo-europeu. O valor etiológico do mito, patente no facto de ser tratado pelos principais historiadores antigos, levou a várias interpretações, mais ou menos racionalistas. A loba poderia ser apenas uma alusão à esposa de Fáustulo, que teria sido prostituta (o que se inclui no significado de lupa). A fusão entre este mito e o de Eneias é expressão da síntese da Cultura Clássica num estado avançado, em que o mais antigo se integra no mais recente e que faz entroncar Augusto, o novo Rómulo, na linhagem de Vénus e Marte, divindades tutelares dos Júlio- -Cláudios.

Neste capítulo, são ainda incluídos outros mitos subalternos na história da fundação de Roma; Plutarco, de acordo com o método das vidas comparadas, acaba por fazer radicar as alternativas sobre a vida de Rómulo em lendas de origem grega, particularmente motivos odis-seicos.

Um terceiro grupo intitula-se “lendas e tradição histórica” - uma série de relatos tradicionais que se apresentam mais próximos da his-tória romana do que da mitologia. O episódio do rapto das Sabinas é integrado no topos genérico do rapto, presente em mitos clássicos, como são os casos de Europa ou de Helena de Tróia. Poderia mesmo tratar-se de uma espécie de celebração mistérica do rapto de Persé-fone. Além disso, as narrativas mencionam instituições criadas pelo rei de Roma. Na sequência deste acontecimento, as versões contradi-tórias sobre Tarpeia como anti-heroína e heroína, reflectem, por um lado, uma visão moralizante da acção de uma matrona romana, a cen-sura da traição e da cobiça (e a justificação etiológica do nome da famosa rocha da qual eram precipitados os traidores) e, por outro, a explicação do culto prestado àquela figura no capitólio (provavel-mente um genius loci).

A descrição das versões sobre a morte e apoteose de Rómulo insere-se no tema mais vasto da morte dos reis míticos e explica certos topónimos (Quirinal) e cultos. Mas não deixam de estar presentes

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elementos racionais tardios que apontam para um assassínio político, cometido em defesa de ideais republicanos.

O mito de Aca Larência (que numas versões é identificada com a esposa do pastor Fáustulo e noutras com uma bela jovem que tem comércio carnal com Hércules e que, anos mais tarde, desaparece no mesmo local onde teria desaparecido a primeira Larência) pode repre-sentar uma etiologia criada para justificar os Larentalia e a instituição do colégio sacerdotal dos Irmãos Arvais. O desaparecimento corres-ponde ao topos mitológico do arrebatamento de personalidades excepcionais sem passar pela experiência da morte. O nome, o desa-parecimento e a referência ao facto de ser uma cortesã sugerem uma derivação a partir da figura original: a esposa de Fáustulo, que, segundo alguns, teria sido prostituta (lupa).

As história relativas a Numa Pompílio servem o intuito de explicar a instituição do rex sacrorum, a formação do colégio sacer-dotal dos Sálios e os feitiços usados pelos Romanos contra o raio, embora as reformas atribuídas a este monarca sejam muito posteriores ao seu reinado. A relação de Numa com a ninfa Egéria terá aparecido por sobreposição desta divindade à história do piedoso rei, através do qual ela revela a forma de os homens satisfazerem os deuses.

O confronto entre os Horácios e os Curiácios, repetição do topos do combate singular para resolver um conflito, poderá ser a transposi-ção de um antigo mito iniciático. A morte de Horácia, por chorar um inimigo que amava, liga-se à acusação de perduellio, isto é, crime de alta traição; e o subsequente julgamento do Horácio, por ter matado a irmã, inclui uma etiologia jurídica que fundamenta a prouocatio, o direito de apelo contra a acção dos magistrados. Do mesmo modo, a purificação imposta ao Horácio pretende explicar a origem do tigil-lum, trave que purificava das culpas a quem passava debaixo dela.

No que respeita à presença dos reis etruscos, os dois Tarquínios parecem corresponder à duplicação da mesma figura, e a morte de Sérvio Túlio poderá ter influência de lendas helénicas presentes na Oresteia. Quanto às figuras femininas, Tanaquil, esposa de Tarquínio- -o-Antigo, apresenta-se como protótipo da impotentia feminina que

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parece servir de modelo aos retratos tacitianos de Lívia e Agripina Menor; e Túlia Menor, esposa de Tarquínio-o-Soberbo, representa a negação da pietas e o reverso das qualidades da uxor bona, papel representado por Lucrécia. Também a tragédia desta virtuosa matrona faz suspeitar de modelos helénicos ou de um topos da poesia popular repetido em outras lendas.

Seguem-se os heróis da pátria romana que se notabilizaram na luta contra os Etruscos e que representam a valorização do cidadão romano republicano por oposição aos soberanos estrangeiros. O feito de Horácio Cocles parece repousar sobre a lenda dos companheiros de Hércules que se lançaram ao Tibre, arrependidos de terem abandonado a sua pátria, ou pode ter sido criada para explicar uma estátua que se encontrava junto à ponte Sublicius. Há também quem pense que as figuras de Horácio Cocles e de Múcio Cévola se baseiam na lenda escandinava de Ódin, com um só olho, e Tor, com um só braço. A uirtus no feminino é representada por Clélia, da qual Valéria será apenas uma duplicação. Poderá tratar-se, também neste caso, de uma etiologia para uma antiga estátua equestre, acaso representativa de uma divindade.

A batalha do lago Regilo, de cariz homérico, serve de justifica-ção para a fundação do templo aos Dioscuros, como recompensa pela ajuda que prestaram aos Romanos, e de explicação para a origem da devoção que os divinos gémeos inspiravam.

Como «lenda política», expressiva do conflito entre patrícios e plebeus e das lutas de Roma contra os povos vizinhos, a história de Coriolano mostra-se mais verosímil, embora a intervenção decisiva da mãe e da esposa lhe confiram uma aura lendária e trágica. Há que ter ainda em conta o aspecto etiológico, patente na referência à elevação de um templo à Fortuna das mulheres.

Ainda mais trágica é a história de Virgínia, apesar da presença de elementos históricos. Parece ser uma parábola da opressão da plebe. Repetem-se os topoi da lenda de Lucrécia e o próprio nome de Virgínia é definidor do estado e do carácter da heroína. São relevantes os procedimentos jurídicos evocados. Também a lenda de Camilo,

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construída sobre uma série de factos político-militares e enquadrada no âmbito dos conflitos entre patrícios e plebeus, poderá resultar da sobreposição da figura de um antigo herói etrusco homónimo ou do mito grego de Filoctetes. Além do mais, parece servir de etiologia para o novo templo de Juno no Aventino, para uma estátua de um general triunfador, colocada no telhado do templo de Júpiter Capito-lino, para o costume de as matronas se deslocarem em carro coberto e para o túnel do lago Albano.

A curta e heróica história da escrava Filótis ou Tutolo parece repousar sobre uma lenda helénica, como sugere o nome da protago-nista, e será uma justificação da origem da celebração das Nonas Caprotinas.

Quanto ao auto-sacrifício do jovem Marco Cúrcio será mais um exemplo de uma lenda topográfica e etiológica que exalta ao mesmo tempo a coragem e a pietas dos Romanos e se apresenta como uma alternativa à de Métio Cúrcio que, por altura do rapto das Sabinas, teria caído ao lago, ao qual dava, a partir dessa altura, o seu nome. O ritual da deuotio, sugerido por este episódio, repete-se no sacrifício voluntário dos Décios, pai e filho, que se oferecem pela pátria, no contexto das guerras contra os Latinos e contra os Samnitas.

A lenda de Atílio Régulo, feito prisioneiro e torturado até à morte pelos cartagineses, poderá ter sido criada para justificar a crueza dos actos cometidos pelos Romanos contra os vencidos, mas representa também a imagem do romano ideal, modelo de coragem (uirtus) e de respeito pela palavra dada (fides), uma vez que, enviado a Roma para negociar a paz, regressa voluntariamente ao cativeiro, como havia prometido.

Segue-se um último grupo, este relativo a ninfas e outras lendas romanas. Ana Perena (uma velha que salva o povo da fome por altura da secessão do Monte Sagrado ou, segundo outra versão, a própria irmã de Dido transformada em ninfa), a personificação feminina do ano, como sugere o nome (Anna) e justificação para uma festa de Ano Novo, celebrada no início de Março; Canente, casada com o rei Pico, a ninfa que personifica o canto; Carna (assimilada a Cárdea por

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Ovídio), a protectora dos recém-nascidos contra as Harpias; Pomona, protectora das árvores de fruto; Juturna, ninfa das fontes, associada a Lara (ou Larunda), considerada a mãe dos deuses Lares; Flora, repre-sentante das festas da primavera, os Floralia, cultos relacionados com a fecundidade. Está bem presente o topos da perseguição de ninfas: Marte e Ana Perena; Jano e Carna; Vertumno e Pomona; Júpiter e Juturna; Mercúrio e Lara; Zéfiro e Flora.

Neste rol se incluem também deusas maiores: a Bona Dea, a esposa ou a filha de Fauno, objecto de um culto feminino primordial ligado à fecundidade, e Diana, deusa autóctone que recebe da tradição grega toda a trama mitológica. Na transmissão destas tradições, Oví-dio assume um papel de relevo (Metamorfoses e Fastos), acentuando o cunho helénico.

Mas, nesta parte, são ainda incluídas outras lendas: a de Córico, lenda de origem grega, etiologia da luta greco-romana e do odre; a de Aio Locúcio, divindade obscura relacionada com o verbo aio e loquor, depois identificado com Silvano; a de Céculo, um mito fundacional de Preneste; a de Cipo, símbolo do horror republicano ao título de rei; a de Entória e Saturno, ligada à origem do templo daquele deus e da designação do mês de Janeiro; a de Valéria Luperca, duplicação do mito de Efigénia, etiologia do ritual de lustratio celebrado nas Lupercais; a da Mater Matuta, deusa da manhã, esposa de Portuno. A história da chegada de Cíbele a Roma explica a razão da veneração à Grande Mãe em Roma; e o feito de Cláudia Quinta, decalcado da chegada da estátua de Hércules a Eritreia, pode ser interpretado à luz da ascensão dos Cláudios no século I a.C. e da moralização de costu-mes operada por Augusto.

A inclusão do conto de Amor e Psique é justificada com o facto de ser registada por um autor latino (Apuleio) e pela sua vasta expres-são iconográfica, o que prova que fazia parte do imaginário romano. Acrescenta-se ainda um subcapítulo sobre “outros mitos e lendas romanas”, transmitidos por fontes escassas: variantes complementares de mitos já expostos; a origem do culto da Fortuna; as histórias de Mamerco e de Módio Fabídio; a razão da construção do templo de

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Júpiter Padeiro; a explicação para o nome do Capitólio [local onde se encontrara a cabeça (caput) do gigante Olo]; a história de Tages (explicação das capacidades divinatórias dos Etruscos); a explicação do nome da Porta Ratumena e, finalmente, a referência a Íncubos e Linfas.

A última parte do livro é constituída por uma breve síntese da história de Roma e do povo romano, que permite ao leitor comum um melhor enquadramento das lendas de base histórica. Fecham o volume, um glossário, a bibliografia geral e um índice remissivo.

O comentário que se segue à descrição das versões do mito inclui a indicação das fontes antigas e da bibliografia moderna especí-fica para cada caso, incluindo as traduções portuguesas das obras literárias onde as lendas são transmitidas. Enfim, são deixadas pistas seguras para quem quiser aprofundar qualquer dos temas apresenta-dos. E não foi omitido o contributo das artes plásticas para a fortuna dos mitos ao longo dos séculos.

Da leitura dos comentários fica a impressão de que significativa parte destas lendas, transmitidas embora pela pena de historiógrafos, poderá ficar a dever as suas versões a uma prévia ficção dramática: tal parecem sugerir os nomes falantes, a citação de frases lapidares, o contexto de rituais religiosos (muitas vezes de cariz dionisíaco), os desenlaces trágicos, cenas de comédia (como perseguições de machos excitados). De resto, o elemento erótico está continuamente presente nas lendas como força poderosíssima que intervém na história da humanidade.

Trata-se de uma leitura cativante que contribuirá certamente para a divulgação da cultura clássica. O leitor sente-se também envol-vido pelo facto de serem continuamente evocados motivos folclóricos de vários tempos e lugares. Um dos méritos desta publicação é, atra-vés da síntese de culturas, inserir as narrativas mitológicas romanas no actual património universal, constituído pelos legados greco-romano e judaico-cristão.

JOSÉ LUÍS LOPES BRANDÃO

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DELFIM LEÃO, PETRÓNIO, SATYRICON, VERSÃO PORTUGUESA, LISBOA, COTOVIA, 2005

Graças ao labor de Delfim Leão, o romance de Petrónio conta finalmente com uma tradução portuguesa elaborada a partir do latim. Esta publicação aparece como o corolário de uma já longa investiga-ção sobre o romance. Delfim Leão, doutorado em Cultura Clássica, é também autor da tese de mestrado As ironias da Fortuna: Sátira e moralidade no Satyricon de Petrónio, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra em 1995, e publicada pelas Edi-ções Colibri e pela F.L.U.C. (1998). A este trabalho, seguiram-se diversos artigos sobre o tema e troca de correspondência com autores estrangeiros.

De resto, a escola Coimbrã tem desenvolvido, sob orientação de Walter de Medeiros, o estudo do romance latino: Petrónio e Apuleio estiveram na base de outras provas académicas levadas a cabo por João Domingues, Cristina Ferrão, Paulo Sérgio Ferreira e Cláudia Teixeira, já para não falar de vários artigos, de carácter científico e didáctico, produzidos por outros investigadores do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos1.

Na introdução, o tradutor aborda, de forma leve e sintética, uma série de aspectos, mais ou menos controversos, que situam rapida-mente o leitor no universo da produção e do conteúdo da obra. Começa por pôr em evidência o potencial de sedução do romance, quer para filólogos quer para o leitor comum. Se o facto de Petrónio reescrever grande parte da tradição literária greco-romana desperta sobretudo o interesse dos eruditos, os elementos jocosos e as cari-caturas seduzem qualquer mortal, que, também em matéria de

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1 Esta unidade de investigação acaba de publicar uma colectânea de estudos justamente intitulada “O romance antigo”, coordenada por Francisco de Oliveira, Paolo Fedeli e Delfim Leão (Coimbra 2005).

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linguagem, não “ se arme em Lucrécia” – para usar uma expressão de Petrónio.

No que respeita às controversas questões da datação e autoria, Delfim Leão pugna pela colocação da obra no século primeiro, evo-cando alguns passos que denotam paródia de hábitos dos imperadores júlio-cláudios, e identifica o Petronius Arbiter dos códices com o elegantiae arbiter de Nero, honra que, por sua vez, parece caber ao cônsul de 62 d.C., Titus Petronius Niger. Aponta-se então, como ter-minus ad quem para a redacção do romance o ano 66, altura em que o dito nobre caiu em desgraça e se suicidou.

Depois de se referir à ambiguidade de significado do nome da obra, motivo pelo qual optou pela manutenção do título original, Del-fim Leão oferece um breve comentário da acção, que permite prevenir o leitor para as lacunas, e uma tradução do famoso retrato de Petrónio da autoria de Tácito. No final do livro é ainda apresentada uma bibliografia selecta que inclui edições críticas, traduções, comentários e estudos vários.

Trata-se de uma obra criativa, uma vez que o autor da tradução se esforça por encontrar na língua portuguesa os termos e expressões que possam corresponder aos diversos níveis de linguagem pre- sentes no texto de Petrónio, de acordo com o estatuto sócio-cultural das diversas personagens e da situação em que se encontram. Encontramos genuínas expressões populares e termos pitorescos que procuram transpor o colorido do latim vivo. O tradutor oferece assim ao leitor comum a possibilidade de fruir, de uma forma apro- ximada, da riqueza linguística que faz do Satyricon um texto deli-cioso para quem sabe latim. E nem fugiu cobardemente aos termos de calão, que traduziu de forma natural, sem falsos pudores e sem ostentação.

Mas o texto fala por si. Não resisto à tentação de transcrever aqui um excerto para abrir o apetite. Trata-se de um momento do banquete de Trimalquião em que, na ausência deste, os convivas dia-logam livremente sobre as suas preocupações. O assunto do seguinte

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passo é de todos os tempos: conversas de teor semelhante ouvimo-las e repetimo-las todos os dias (44-45):

(…) Ganimedes continuou da seguinte maneira: – Vocês estão para aí a contar coisas que não interes-

sam nem ao céu nem à terra, e entretanto ninguém se preocupa por a carestia do grão nos andar a morder. E caramba, hoje ainda não consegui encontrar nem uma bucha de pão! E esta seca que teima em continuar. Há um ano já que dura esta fome. Raios partam os edis, que andam feitos com os padeiros: “cuida de mim, que eu cuido de ti”. A arraia-miúda que trate de amargar, enquanto estes cães grandes passam o tempo em Saturnais. (…) Ai, ai, que isto piora de dia para dia. Esta colónia cresce para trás como o rabo de um vitelo. Mas por que razão temos nós um edil que não vale três figos e que pre-fere um asse em proveito próprio à vida de todos nós? E assim fica muito contente em sua casa, pois recebe mais dinheiro num só dia do que muitas pessoas têm de património. Eu já estou a par de um caso onde ele foi arrebanhar mil denários de ouro. Se ao menos tivéssemos colhões, não andaria ele tão alegrete! Mas agora o povinho em casa é um leão, enquanto fora é uma raposa. (…) Pela saúde da minha gente, tenho para mim que tudo isto acontece por vontade dos deuses. De facto, ninguém acha que o céu é céu, ninguém respeita os jejuns, ninguém faz um pintelho por Júpiter; em vez disso, põem todos vendas nos olhos e desatam a fazer contas aos bens. Dantes, as matronas subiam ao Capitólio com os pés descalços, de cabelo solto e consciência limpa, para pedir a Júpiter que mandasse água. Por isso, logo chovia a cântaros: “Ou agora ou nunca!” – e todos regressavam a casa empapados que nem ratas. Mas agora os deuses andam em pezinhos de lã, porque não respei-tamos a religião. Os campos estão deitados ao abandono…

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– Por favor, – disse Equíon, um farrapeiro de profissão – vamos lá a falar melhor. “Umas vezes assim, outras vezes assado!”, como dizia o lavrador que tinha perdido um porco malhado. O que hoje não é pode ser amanhã: assim roda a vida. Caramba, não seria possível mencionar terra melhor, se tivéssemos homens a sério. Agora está a passar por um mau bocado, e não é a única. Não devemos ser esquisitos: em todo o lado fica o céu a igual distância. Se fores a um sítio qual-quer, és capaz de dizer que por lá andam porcos assados a passear. E a verdade é que vamos ter um programa excelente, com três dias de festa; um grupo de gladiadores não profissio-nais, na sua maior parte libertos. E o nosso Tito não só tem horizontes largos como a cabeça lhe fervilha de ideias: ou isto ou aquilo, alguma coisa há-de ele desencantar. Na verdade sou íntimo da sua casa e ele não é pessoa para deixar assuntos a meio. (…)

Enfim, política, religião e jogos servem sempre para uma boa

controvérsia à mesa. Na transcrição perde-se naturalmente grande parte do aspecto

visual do texto, condicionado pelo formato do Boletim de Estudos Clássicos. Se exceptuarmos a numeração dos capítulos, a mancha gráfica desta tradução apresenta-se muito semelhante à actualmente usada para os romances modernos. Particularmente a forma de intro-duzir o discurso directo quebra a monotonia do texto contínuo.

Numa época em que o romance histórico, por um lado, e as nar-rativas povoadas de maravilhoso, por outro, vão de vento em popa, o Satyricon encontrará certamente o terreno propício, uma vez que apresenta características que podem satisfazer ambos os gostos.

JOSÉ LUÍS LOPES BRANDÃO

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MITO CLÁSSICO NO IMAGINÁRIO OCIDENTAL, D. F. LEÃO, M. C. FIALHO, M. F. SILVA (COORD.),

COIMBRA, ARIADNE EDITORA, 2005

ÍNDICE

- Mário Cláudio, A viagem do mito - Ana Paula Arnaut, Mário Cláudio: Aproximação a um

retrato - M. Luísa Portocarrero, Paul Ricoeur: A linguagem simbólica

do mito e as metáforas da praxis - José A. Ramos, Judite: a heroína fictícia e a identidade

nacional de Israel - Carmen Soares, Padrões de heroísmo e construção de identi-

dades: heróis helenos e bárbaros nas Histórias de Heródoto - Nuno S. Rodrigues, A heroína romana como matriz de identi-

dade feminina - J. M. Pedrosa Cardoso, Prometeu que a música eterniza - A. A. Alves de Sousa, Hofmannstahl e a antiguidade clássica - G. Ieranò, Observações sobre o mito de Medeia no séc. XX - A. Nascimento Rosa, Um Édipo: reescrita e produção cénica

de um mito paradigmático - A. Bierl, A Oresteia nos palcos modernos e Pier Paolo

Pasolini - C. Robalo Cordeiro, Modernidade ou juventude: Releitura de

Teseu de André Gide - A. Hernández Cardoso, O imaginário do mito no cinema

M. F. S. S.

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GÉNESE E CONSOLIDAÇÃO DA IDEIA DE EUROPA M. C. FIALHO, M. F. SILVA, M. H. ROCHA PEREIRA (COORD.), COIMBRA, IMPRENSA DA UNIVERSIDADE,

2005

ÍNDICE

- M. H. Rocha Pereira, Europa: os enigmas de um nome - J. Ribeiro Ferreira, Cidadania e exclusão: mecanismos de

gradação identitária - M. C. Fialho, Representações de identidade e alteridade em

Ésquilo - C. Soares, A visão do ‘outro’ em Heródoto - M. H. Rocha Pereira, Europeus e Asiáticos num tratado de

climatologia médica - M. F. Silva, Representações de alteridade no teatro de

Eurípides - M. F. Silva, O estrangeiro na Comédia Grega Antiga - M. T. Schiappa de Azevedo, Platão: helenismo e diferença - N. Simões Rodrigues, Um olhar a oriente: imagens do

mundo semítico na Literatura Grega dos Poemas Homéricos a Xenofonte

M. F. S. S.

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O ROMANCE ANTIGO: ORIGENS DE UM GÉNERO LITERÁRIO, F. OLIVEIRA, P. FEDELI, D. LEÃO

(COORD.), COIMBRA, 2005

ÍNDICE - W. Medeiros, Na aurora do conhecimento: do tumulto à

pacificação - M. Pulquério Futre, Origens gregas do género - M. C. Fialho, Novas tendências narrativas nas Argonáuticas

de Apolónio de Rodes - M. F. Silva, O motivo do sonho no romance de Cáriton - B. Zimmermann, Immagini poetiche – Sulla funzione delle

Bildbeschreibungen nel romanzo di Achille Tazio - M. C. Sousa Pimentel, Enquadramento histórico do romance

em Roma - P. S. Ferreira, O uso paródico e satírico do tema da

escravatura na Cena petroniana - D. Leão, Eumolpo e as correntes místicas gregas - P. Fedeli, Il labirinto nel ‘Satyricon’ - R. Dimundo, Le novelle petroniane: forme di riscrittura dei

modelli - E. Lefèvre, Petrons Kleidernovelle 12-15 - J. L. Brandão, O romance de Cárite em Apuleio: Trágica

admonição da providência - C. Afonso Teixeira, As histórias no Asinus aureus de Apuleio

e a sua relação com o romance - V. Ruas, Ethopoeia no romance bizantino do século XII - P. Carrajana, Da Historia Apollonii Regis Tyri à Confessio

Amantis: Leituras de uma narrativa singular - A. Pociña, Comparações impróprias e próprias para tentar

compreender um género indefinido: Petrónio, Apuleio e o Dom Quixote de 1605

- J. Domingues, Histórias ‘mais que verdadeiras’ de Luciano ou de Voltaire

- A. P. Arnaut, Em trânsito: do romance ao romance? M. F. S. S.

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SEXTO JÚLIO FRONTINO, ESTRATAGEMAS, INTRODUÇÃO E NOTAS DE MIGUEL MATA.

LISBOA, EDIÇÕES SÍLABO, 20052

«De todos os que se interessam pela ciência militar, eu fui o único a dedicar-me à sistematização das suas regras. Penso ter cumprido este objectivo, tanto quanto me foi possível, mas sinto-me na obrigação, para completar a tarefa que iniciei, de resumir, em esboços convenientes, as hábeis operações dos generais, às quais os gregos dão o nome de strategemata. Deste modo, os comandantes terão ao seu dispor exemplos de sabedoria e visão, que aumentarão a sua capacidade de conceber e executar feitos semelhantes. Outra vantagem adicional, é a de que o general não receará o desfecho do seu estratagema, se o comparar com experiências anteriormente levadas a cabo com sucesso».

FRONTINO, Sexto Júlio, Estratagemas, Introdução e notas de Miguel Mata. Lisboa, Edições Sílabo, 2005, p. 33.

Desta forma inicia Frontino a sua obra sobre a arte de explicar

como se deve fazer a guerra no terreno, adaptando-a às circunstâncias, ao momento. A sua «arma» não é o uso de um pensamento estratégico elaborado, teórico na sua estrutura e inflexível na sua aplicação, mas antes se suporta na flexibilidade, na criatividade repentina, nas «manhas» da experiência, na lógica da observação dos múltiplos pormenores sobre o inimigo. Inteligência, criatividade, adaptação e iniciativa são o núcleo fundamental dos seus «estratagemas», uma arte simples, mas eficaz, e que bem utilizada pode derrotar o inimigo.

Como bem nos recorda Miguel Mata, Frontino completa, com este apêndice prático e analítico, uma obra maior que teria escrito acerca da arte da guerra. Estes textos, que não chegaram até nós, são por diversas vezes referenciados ao longo dos Estratagemas.

_________________ 2 c. 35-104 d.C.

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Strategemata consiste, assim, num conjunto de informações e de conselhos sobre como os comandantes militares do mundo antigo, especialmente gregos e romanos, mas também Cartagineses e outros, deviam preparar as campanhas militares.

É um manual utilitário, uma espécie de «guia prático», muito completo, abordando cerca de cinquenta assuntos específicos relacio-nados com aspectos tácticos, estratégicos, psicológicos e logísticos, onde os oficiais romanos podiam encontrar respostas precisas sobre quais os estratagemas que podiam utilizar antes do início do combate (Livro I), quais aqueles relacionados com o momento específico do combate (Livro II), e que tipo de «artimanhas» podem ser usadas na guerra de cerco (Livro III).

Ilusão, engano, fingimento, astúcia. Pormenores actuantes e funcionais, muito próximos do conceito de estratégia, tal como nos ensina este grande romano. A arte de iludir não substitui o pensamento estratégico do general, o desenho teórico da sua campanha. Complementa-o, permite-lhe adequar a manobra efectiva das suas forças às condições do momento, sempre tão variáveis, ao uso do terreno, do clima, da pressão psicológica, adequando e modificando os movimentos antes delineados a modelos práticos que permitam uma eficaz subjugação do inimigo. Os estratagemas são componentes da experiência, «armas» que um líder não deve menosprezar em utilizar nas suas campanhas. Estes, devem ser recurso dos generais e exer-citados antes e durante as batalhas. E podem ser teorizados. Pode-se ensinar como enganar, como fingir, como usar as artes da ilusão. Afinal, já Ulisses das «mil artimanhas» as usava contra inimigos muito mais fortes do que ele.

Frontino, compila informações sobre como conduzir exércitos pelo meio dos inimigos, como executar actos de traição, como escon-der planos e carências, como distrair as atenções, como entusiasmar exércitos em desespero, como afastar medos e presságios. Mais de quinhentos exemplos de operações militares realizadas no Mundo Clássico são ordenados por este autor, dissecados, e apontados como exemplos a seguir pelos futuros líderes militares romanos.

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Trágicos, hilariantes, eficazes, infelizes, organizados, lógicos, desesperados, Sexto Júlio apresenta, em sucessão, casos concretos, organizando-os em temas e categorias: como cercar, como enganar os sitiantes, como preparar emboscadas, como levantar a moral, como retirar sem perder a organização, como manobrar e dispor forças no terreno, quando e como atacar, como defender cidades e acampa-mentos, o que não fazer quando provocado pelo inimigo, o que fazer para o provocar e com isso conseguir que as forças inimigas ataquem demasiado cedo, ou que reajam demasiado tarde. Da força do ataque à maneabilidade da defesa, da surpresa à dissimulação, da vigilância à tenacidade dos sitiados, da disciplina à moderação do «bom coman-dante», Frontino estabelece um enquadramento sistemático que per-mita ao chefe militar aperceber-se das diversas contingências e possi-bilidades que caracterizam a dinâmica do combate.

Em Estratagemas encontramos uma estrutura separada em qua-tro livros. No primeiro3, dividido em doze capítulos, trata-se principal-mente de ensinar os mais variados esquemas de dissimulação, quer no ataque, quer na defesa: parecer fraco quando se está forte; parecer forte quando se está fraco.

No segundo livro4, Frontino desenvolve aspectos relacionados com a forma como se deve escolher o momento e o local do combate; _________________

3 LIVRO I: I - Sobre esconder os nos planos; II - sobre descobrir os planos do inimigo; III - sobre determinar o carácter da guerra; IV - sobre conduzir um exército por locais infestados de inimigos; V - sobre escapar de situações difíceis; VI - sobre montar emboscadas e delas se defender, em marcha; VII - como dissimular a ausência de coisas de que carecemos, ou obter substitutos; VIII - sobre distrair a atenção do inimigo; IX - sobre sufocar motins de soldados; X - como não ceder a um pedido para entrar em combate num momento inoportuno; XI - como despertar o entusiasmo do exército para o combate; XII - sobre como afastar os medos causados nos soldados por presságios adversos.

4 LIVRO II: I – Sobre a escolha do momento para entrar em combate; II – Sobre a escolha do local de combate; III – sobre a formação das tropas para o combate; IV – sobre criar o pânico nas fileiras inimigas; V – sobre emboscadas; VI – sobre deixar o inimigo escapar para evitar que ele, vendo-se encurralado, renove o combate com maior denodo; VII – sobre esconder os

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sobre como fazer emboscadas e criar o pânico nas hostes inimigas; sobre como esconder os reveses da batalha e como restaurar o moral das tropas. Organizado em treze capítulos, os cinco finais relacionam-se «sobre as medidas a tomar depois da batalha», onde o autor discorre sobre os procedimentos a seguir sobre a necessidade de retirar as forças, sobre como reparar as perdas ou sobre a motivação da lealdade dos soldados, ou ainda como se deve comportar um comandante na defesa de um acampamento, sobretudo se não confia nas suas forças.

O terceiro livro5 trata sobre ataques de surpresa, sobre o desvio de rios e da contaminação das águas, sobre como aterrorizar os inimi-gos lançando ataques de direcções inesperadas, ou sobre como montar armadilhas e simular retiradas. Enumera, ainda, diversos conselhos sobre como proteger cidades e fortalezas sitiadas, estimulando a vigi-lância das tropas, ou como introduzir reforços. Ensina como se deve demonstrar abundância e tenacidade, ou como lidar com as ameaças

_________________ reveses; VIII – sobre restaurar o moral através da firmeza. Sobre as medidas tomadas depois da batalha: IX – sobre concluir a guerra após um recontro bem sucedido; X – sobre reparar as nossas perdas após um revés; XI – sobre garantir a lealdade daqueles de quem desconfiamos; XII – o que fazer para defender o acampamento, caso o comandante tenha pouca confiança nas tropas de que dispõe; XIII – sobre retiradas.

5 LIVRO III: I – Sobre ataques de surpresa; II - sobre enganar os sitiados; III - sobre promover a traição; IV – meios de provocar carências no inimigo; V – como persuadir o inimigo de que o cerco será mantido; VI – sobre distrair a atenção de uma guarnição hostil; VII – sobre desviar rios e contaminar águas; VIII – sobre aterrorizar os sitiados; IX – sobre ataques a partir de uma direcção inesperada; X – sobre montar armadilhas para atrair os sitiados; XI – sobre simular retiradas. Seguem-se agora os estratagemas relacionados com a protecção dos sitiados: XII – sobre estimular a vigilância das nossas tropas; XIII – sobre enviar e receber mensagens; XIV – sobre introduzir reforços e fornecer provisões; XV – como dar a ideia de que há uma abundância daquilo que se carece; XVI – como lidar com a ameaça da traição e deserção; XVII – sobre surtidas; XVIII – sobre a tenacidade dos sitiados.

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da traição e da deserção, entre outros aspectos. No quarto livro6, Fron-tino (ou outro por ele), fala da disciplina e dos seus efeitos, da justiça, da determinação e de outras «máximas e artifícios».

Os estratagemas baseiam-se na inteligência, na perspicácia e na perícia de quem os usa. E devem ser utilizados. Frontino descreve muitos casos onde a aplicação de «artimanhas» ou de eloquentes dis-cursos motivadores representaram, no final, o êxito no campo de batalha.

Não se sabe bem onde pela primeira vez viu a luz do dia. Supõe-se que fosse natural da Gália Narbonense, província romana onde nasceu no «trigésimo quinto ano da Era Cristã». Pertencia à mesma gens de Júlio César e, provavelmente, foi membro efectivo do senado romano. Da sua vida pública ressaltam algumas datas. 70 d.C., vê-o nomeado pretor urbano em Roma e quatro anos depois é nomeado governador da Britânia, província que pacifica comandando quatro legiões romanas e diversas forças auxiliares, derrotando no ano de 75 d.C. os Silures e as tribos vizinhas dos Ordovices. Com estas acções inicia o processo de pacificação de todo o País de Gales. A partir da sua principal base militar, Caerleon, construiu estradas e fortificações, desenvolvendo assim um plano estratégico de ocupação de toda a região Sul de Gales, cabendo-lhe o crédito de ter sido o principal introdutor do estilo de vida romano naquelas regiões.

Embora a tradução que agora comentamos seja sobre a vocação bélica do antigo governador da Britânia, a obra literária de Frontino não se reduz apenas ao elemento militar. Distingue-se, na sociedade

_________________ 6 LIVRO IV: I – Sobre a disciplina; II – sobre o efeito da disciplina;

III – sobre comedimento e desinteresse pessoal; IV – sobre justiça; V – sobre determinação («a vontade de vencer»); VI – sobre boa vontade e moderação; VII – sobre diversas máximas e artifícios. Alguns autores contemporâneos acham que este quarto livro não é da autoria de Frontino, já que aqui as preocupações são bem diferentes dos três livros anteriores. A matéria tratada relaciona-se mais com a dimensão moral da guerra, tratando de assuntos mais relacionados com a moral, a psicologia e a disciplina dos legionários. Um dos defensores desta ideia é GUNDERMANN, G., Leipzig, Teubner, 1888.

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romana, como um grande especialista em engenharia hidráulica e civil7. Para a posteridade ficam as suas obras memoráveis intituladas De Aqui Urbis Romae8 e De Agri Mensura, onde descreve com grande rigor e exaustão os procedimentos a seguir na construção dos aquedutos e no desenvolvimento dos sistemas de abastecimento de água em núcleos urbanos. Conhecido é também, no meio daqueles que se dedicam aos levantamentos topográficos. Frontino é um dos mais reputados agrimensores da Antiguidade, em especial na utilização da GROMA9, instrumento muito utilizado na abertura de estradas e canais, na construção de pontes e aquedutos, na divisão de terrenos, na construção de edifícios e no planeamento urbano. Este instrumento era, também, essencial na construção dos acampamentos militares das legiões.

Com 197 páginas de texto, das quais 168 estão dedicadas, exclusivamente, à tradução dos textos de Frontino, os Estratagemas encontram-se, ainda, profusamente anotados com dezenas de notas de rodapé, onde o leitor pode encontrar informação específica, bem detalhada nos pormenores técnicos, sobretudo no que se refere aos contextos militares, mas também sobre muitos outros aspectos rela-cionados com a economia, política, sociedade, religião e cultura da Antiguidade.

A edição portuguesa de Estratagemas revela-se muito útil para o público que procura mais informação sobre os sistemas militares e a maneira como a guerra era encarada pela sociedade romana. E, apesar de parecer destinada a um público «iniciado» - os «profissionais do sector» - como diz Miguel Mata, não deixa de ser interessante a um público mais vasto e, sobretudo, curioso, acerca dos comportamentos das sociedades humanas que viveram e lutaram há dois mil anos atrás.

_________________ 7 Em 95 d.C., Roma vê Sexto Júlio Frontino ser nomeado

superintendente para os aquedutos (curator aquarum). 8 Obra escrita em dois volumes. 9 Instrumento agrimensor inventado pelos egípcios e utilizado pelos

gregos.

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É com grande prazer que se segue o texto. O estilo peculiar de Frontino, o ritmo das suas descrições, a competência dos seus «avi-sos», a forma dramática ou cómica como descreve grandes massacres ou erros elementares prende a atenção, incomoda, diverte, informa. E a exposição ganha interesse com a clareza da tradução para a língua portuguesa, onde o tradutor/comentador, apoiado numa imensa bateria de notas explicativas e enquadradoras transforma o livro daquele general romano numa obra útil e eficaz para quem queira abordar os mais diversos aspectos e problemas da guerra na Antiguidade.

Esta edição inclui, ainda, uma boa introdução, dividida em três breves capítulos, que tratam, em primeiro lugar, dos dados biográficos do autor de Estratagemas e as circunstâncias envolventes ao seu per-curso político, militar e intelectual; um segundo capítulo desenvolve a interacção entre estratégia, estratagemas e a guerra; no terceiro capí-tulo, o tradutor e organizador deste livro introduz muitos dos princi-pais aspectos e problemas acerca da Guerra na Antiguidade.

O texto de Sexto Júlio Frontino, traduzido directamente de uma edição inglesa de 192510 e anotado por Miguel Mata, revela-se funda-

_________________ 10 É importante referir-se que esta não é, infelizmente, uma tradução

directa dos textos originais. Trata-se, em concreto, de uma tradução para língua portuguesa feita a partir da edição de BENNETT, C. E., The Stratagems. Massachusetts, Loeb Classical Library, 1925. Miguel Mata indica que esta tradução de Bennett se suporta, por sua vez, na tradução dos manuscritos originais, em latim, para alemão, da autoria de GUNDERMANN, G., Leipzig, Teubner, 1888. Do mesmo autor britânico existe ainda uma outra referência bibliográfica sobre a mesma obra que importa citar: FRONTINUS, The Stratagems and The Aqueducts of Rome, translated by Charles E. Bennett e que incorpora The Aqueducts revised translated by Clemens Herschel, Mary B. McElwain (editor), London and New York, 1925. A título de curiosidade refiram-se as obras de McDERMOTT, W., “Stemmata Quid Faciunt? The descendants of Frontinus” publicada na revista Ancient Society, nº 7 (1976), pp. 229-261; TUPLIN, C., “Military trickery: review of E. Wheeler Stratagem and the Vocabulary of military trickery”, in Classical Review, nº 40 (1990), pp. 403-404; WHEELER, Everett L., “The modern legality of Frontinus’ Stratagems”, in Militärgeschtliche Mitteilungen, nº 43.1 (1988), pp. 7-29. Sobre a carreira pública de Sexto Júlio Frontino o artigo de PERKINS, J.

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mental para quem queira perceber a génese do pensamento estratégico do Mundo Antigo e os variados aspectos relacionados com a sua apli-cação na dinâmica da guerra naqueles períodos. Contudo, a obra deste militar romano, alcança outros patamares cronológicos e outros níveis do pensamento militar. Este «manual» sobre procedimentos específi-cos aplicados ao fenómeno bélico na Antiguidade é, também, um texto evolucionista sobre métodos e processos.

O texto escrito por aquele militar romano levanta, contudo, um problema: o de perceber se estes estratagemas estão de acordo com as leis da guerra – as antigas e as da actualidade. Os cerca de 480 episó-dios onde Sexto Júlio apresenta o uso dos estratagemas apresentam-nos revestidos de legalidade dentro do conjunto de regras que estrutu-ram a sociedade militar romana. É legítimo perguntar se estes métodos relacionados com o engano, a ilusão, a mentira podem fazer parte das leis da guerra? Ou se os podemos comparar com os procedimentos da actualidade ou de outros períodos históricos? Será legítima esta comparação? Podem ser legitimamente utilizados pelas sociedades actuais?

Parece-me legítima a comparação. Estratagemas, agora traduzido por Miguel Mata e colocado nos

escaparates pelas Edições Sílabo, permite manter activa esta discus-são. A obra de Frontino é útil e válida na dialéctica sobre o uso desta «estratégia permissiva e enganadora». Afinal a maioria dos exemplos ali indicados foram seguidos e aplicados no campo de batalha pelos maiores generais de todos os tempos. Henrique, Coração-de-Leão, Henrique V, Napoleão, Rommel e Yamamoto usaram «estratagemas» nas suas campanhas, todas elas no plano teórico bem preparadas estratégica e tacticamente. Todas elas de acordo com as leis da guerra vigentes no tempo em que aconteceram. Na tomada de Acre, na bata-lha de Agincourt, em Austerlitz, na conquista de Tobruk ou no ataque

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Ward, “The career of Sex. Julius Frontinus”, in Classical Quarterly, nº 21 (1937), pp. 385-405.

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a Pearl Harbour, ficaram memórias de acções ilusórias e enganadoras, acções destinadas a enganar o inimigo, a tomá-lo de surpresa, a garantir, através de uma forte contra-informação, a predominância no campo de batalha.

A época medieval, as guerras da Reforma, as guerras «revolu-cionárias», as guerras mundiais do século XX, o pensamento estraté-gico militar e o das grandes corporações e empresas, estão repletos de exemplos concretos, quase copiados a papel-químico de muitos daqueles que Sexto Júlio Frontino expunha aos oficiais romanos no primeiro século depois do nascimento de Jesus Cristo.

Estratagemas. Como são tão contemporâneos!

JOSÉ VARANDAS