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ARTIGO DEFINIDO | 27 O público brasileiro tem recebido abertamente um novo perfil de editora, com propostas inusitadas e ousadas de livros e de experiência de leitura, conhecido como “editoras independentes”. O que e quem são elas? Isabella Mimura Sato e Lara Cammarota Salgado n os últimos anos, a indústria criativa brasileira tem favorecido o desenvolvimento de uma nova modalidade de editora para o consumidor contemporâneo. Os leitores já estão familiarizados com as casas publicadoras de grande porte, como Companhia das Letras, Intrínseca e Record, cujos títulos são facilmente encontrados nas maiores redes de distribuição do país e ocupam todas as listas de livros mais vendidos. Em meio a esse competitivo mercado, porém, aparece uma lacuna, preenchida por iniciativas que arriscam produzir projetos editoriais sem garantia comercial, mas coerentes com um propósito particular, comumente designadas editoras independentes. Um evento já bastante conhecido abriga a diversidade desse tipo de produção. A Feira Plana Festival Internacional de São Paulo, que neste ano ocorreu na Bienal, no parque Ibirapuera, contou com 250 expositores de várias partes do mundo, entre editoras, designers e coletivos artísticos. Devido ao crescente número de participantes, como também de visitantes, o evento que acontecia tradicionalmente no Museu de Imagem e Som (mis), mudou de espaço para melhor comportar todos. O projeto surgiu quando sua idealizadora, Beatriz Bittencourt, foi a Nova York pela primeira vez. Inspirada pela New York Art Book Fair (ny abf), ela voltou ao Brasil e planejou uma feira onde “pudesse vender os livros que editava e convidar os amigos para fazer o mesmo”. O evento, que começou de forma intuitiva, teve mais de dezoito mil visitantes em seus dois dias de exposição. Mas o que é uma editora independente? Termo um tanto polêmico e aparentemente sem definição oficial, ele abrange, em geral, algumas características: independência do mercado, o que implicaria um catálogo que não tivesse um apelo tão comercial; autonomia financeira, o que significaria gerir os gastos sem depender de fontes externas; uso de meios alternativos na cadeia produtiva do livro, seja na sua realização material, seja na sua distribuição. Em busca de uma conceituação mais precisa, a Artigo Definido “esse movimento ‘independente’ revela um desejo de se experimentar aquilo que o meio digital não oferece” 26 | ARTIGO DEFINIDO

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O público brasileiro tem recebido abertamente um novo perfil de editora, com propostas inusitadas e ousadas de livros e de experiência de leitura, conhecido como “editoras independentes”. O que e quem são elas?

Isabella Mimura Sato e Lara Cammarota Salgado

nos últimos anos, a indústria

criativa brasileira tem favorecido o desenvolvimento de uma nova modalidade de editora para o consumidor contemporâneo. Os leitores já estão familiarizados com as casas publicadoras de grande porte, como Companhia das Letras, Intrínseca e Record, cujos títulos são facilmente encontrados nas maiores redes de distribuição do país e ocupam todas as listas de livros mais vendidos.

Em meio a esse competitivo mercado, porém, aparece uma lacuna, preenchida por iniciativas que arriscam produzir projetos editoriais sem garantia comercial, mas coerentes com um propósito particular, comumente designadas editoras independentes.

Um evento já bastante conhecido abriga a diversidade desse tipo de produção. A Feira Plana Festival Internacional de São Paulo, que neste ano ocorreu na Bienal, no parque Ibirapuera, contou com 250 expositores de várias partes do mundo, entre editoras, designers e coletivos artísticos. Devido ao crescente

número de participantes, como também de visitantes, o evento que acontecia tradicionalmente no Museu de Imagem e Som (mis), mudou de espaço para melhor comportar todos.

O projeto surgiu quando sua idealizadora, Beatriz Bittencourt, foi a Nova York pela primeira vez. Inspirada pela New York Art Book Fair (nyabf), ela voltou ao Brasil e planejou uma feira onde “pudesse vender os livros que editava e convidar os amigos para fazer o mesmo”. O evento, que começou de forma intuitiva, teve mais de dezoito mil visitantes em seus dois dias de exposição.

Mas o que é uma editora independente?

Termo um tanto polêmico e aparentemente sem definição oficial, ele abrange, em geral, algumas características: independência do mercado, o que implicaria um catálogo que não tivesse um apelo tão comercial; autonomia financeira, o que significaria gerir os gastos sem depender de fontes externas; uso de meios alternativos na cadeia produtiva do livro, seja na sua realização material, seja na sua distribuição.

Em busca de uma conceituação mais precisa, a Artigo Definido

“esse movimento ‘independente’

revela um desejo de se experimentar aquilo que o

meio digital não oferece”

26 | ARTIGO DEFINIDO

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ligada a uma reação, por parte dos artistas, à digitalização da vida, do tempo, da cidade, da subjetividade. “Tem a ver com um momento onde os artistas gráficos parecem querer experienciar formatos narrativos, impressão, papéis.”

Algo parecido foi dito por João Varella, para quem esse movimento “independente” revela um desejo de se explorar aquilo que o meio digital não oferece, em possibilidades tipográficas e gráficas, no geral. Dessa forma, o suporte parece ser objeto de múltiplas experimentações, como pode ser sugerido também pelos perfis das editoras traçados em seguida.

Já para Luciana Fracchetta, oficial-chefe de comunicações da Aleph, um desafio marcante das editoras menores ou independentes é a estratégia de vendas diretas. Isso ficou mais evidente com a crise aguda do mercado editorial em 2015 e 2016, quando elas tiveram de repensar o ritmo de produção (a editora passou a editar dois títulos por mês e não mais cinco) e os meios de chegar a seu público.

Vias alternativas de vendas diretas podem se dar, por exemplo,

pelas feiras Miolo(s), promovida pela Lote 42, Intergaláctica, pela Aleph, e Plana, e por oficinas ou palestras que interessem ao nicho de cada casa, como têm feito a Ubu, ao oferecer curso de tipografia, e a Pulo do Gato, ao organizar, em parceria com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (acnur), uma roda de conversa sobre crianças refugiadas no Brasil.

As editoras independentes parecem fornecer ao mercado editorial um vigor tanto no que diz respeito à seleção dos originais que comporão seus catálogos, quanto na concepção do projeto gráfico, bem como na distribuição de seus livros, correspondendo às novas realidades do leitor contemporâneo: o projeto cultural de cada casa publicadora torna a oferta de títulos mais heterogênea; a ascensão do livro digital estimula a experimentação do suporte impresso; e novas possibilidades de vínculo entre editora e público permitem relações mais dinâmicas e sofisticadas, condizentes com seu nicho.

A pluralidade de perspectivas acerca da definição das casas independentes enriquece não só

a discussão, mas também os projetos editoriais de cada uma. Enquanto a Lote 42 parte do princípio das possibilidades de sentido que o suporte impresso pode criar, a Aleph aposta em vínculos cada vez mais fortalecidos com o consumidor. A Carambaia investe em leitores já experientes e exigentes em relação a um repertório literário já formado, enquanto a Pulo do Gato acredita na formação de leitores e de mediadores de leitura.

São visões díspares, mas que, como João Varella indicou, dão um frescor ao mar de livros que o mercado oferece. E isso se torna possível, porque os leitores também são múltiplos. Dessa forma, diferentes nichos do público leitor ou de potenciais leitores podem ser contemplados pela produção do livro. Esse talvez seja um dos maiores feitos das editoras denominadas independentes para a indústria criativa.

Ao que tudo indica, elas têm se mostrado uma aposta bem-sucedida para o público, como pode ser confirmado pelas feiras especializadas, e, a longo prazo, culturalmente para o gosto e a formação dos leitores.

entrevistou quatro casas, cuja identidade pode estar relacionada a esse novo perfil. Aleph, Carambaia, Lote 42 e Pulo do Gato apresentam, cada uma a seu modo, especificidades em sua trajetória editorial. Os critérios adotados para constituir o catálogo, os projetos gráficos de cada obra, as formas de distribuição e venda dos títulos, a interação estabelecida com os leitores são alguns desses aspectos.

Fabiano Curi, editor e fundador da Carambaia, não acredita que exista uma independência de mercado, pois toda editora tem seu público consumidor. Existem “pequenas editoras que atuam com públicos específicos. Isso é importante para que tenhamos diversidade de edições e de temas”. Já para João Varella, da Lote 42, o conceito descreve o interesse de se “desenvolver um cenário de autores locais e sem investidores externos”. Mas acredita que se tornou muito amplo e agora está se desgastando.

Segundo Beatriz Bittencourt, a proliferação de editoras independentes pode estar

“um desafio marcante das

editoras menores ou independentes é a estratégia de vendas diretas”

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Aleph

Criada em 1984 por Betty Fromer e Luigi Piazzi como editora de manual de computadores, em 2012 a Aleph passa por um turn point com a ousada publicação da edição comemorativa de Laranja Mecânica, sob direção de Adriano Fromer Piazzi, atual diretor da casa e filho do casal. A partir desse projeto, a editora ganha visibilidade pela mídia, pela imprensa e pelos

livreiros, e passa a dedicar seu catálogo a títulos de Sci-Fi com arrojada concepção gráfica, como Star Wars e o soviético Nós, de Ievguêni Zamiátin.

A Aleph acredita que tem um papel importante na sociedade ao trazer ao leitor brasileiro uma edição caprichada de clássicos da ficção científica, uma literatura renegada no país, como A Mão Esquerda da Escuridão, da Ursula Le Guin. Não recebe originais, pois não há estrutura para tal procedimento.

O projeto gráfico é planejado individualmente e nunca em uma fórmula. Pensa-se na concepção do livro: a história narrada pelo texto e como o objeto pode contribuir para contá-la.

Principais formas de distribuição: livrarias; sites, como a Amazon; sua própria loja virtual; e participação e promoção de inúmeros eventos que estimulam o contato com o seu público, como a Feira Intergaláctica, a Comic-Con, a Bienal, a Festa da usp e os clubes de leitura.

Carambaia

Idealizada em 2012 por Fabiano Curi e Graziella Beting, teve seu primeiro lançamento em 2014. Seu nome é uma homenagem a um grupo de amigos.

O foco da editora é resgatar importantes títulos que estejam em domínio público, mas esquecidos pelo mercado editorial. Podem ser obras secundárias de grandes autores que não foram publicadas no Brasil, ou de autores consagrados em seu país de origem, mas pouco conhecidos aqui. Salões de Paris

(Marcel Proust), Uma Gozação Bem-sucedida (Italo Svevo), Jaqueta Branca (Herman Melville) são alguns exemplos.

Os títulos são selecionados por meio de pesquisa, leituras e conversas com tradutores e visam a um leitor mais experiente, que valoriza boas edições e se interessa por aclamados autores da literatura universal.

Para o projeto gráfico são convidados artistas diferentes para cada livro, que leem a obra e pensam no projeto todo, de forma que ele se relacione com o texto. A editora recorre a profissionais renomados para a concepção visual de cada título, como o ilustrador Fernando Vilela e a designer Tereza Bettinardi.

Principal forma de distribuição: vendas personalizadas pelo site e Facebook.

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Foto: Nino Andrés

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Lote 42

Formada em dezembro de 2012 por Cecilia Arbolave, João Varella e Thiago Blumenthal, tem a inspiração de seu nome no Guia do Mochileiro das Galáxias. A editora se destaca por sua aposta em talentos brasileiros e internacionais, projetos gráficos ousados, criação da Banca Tatuí e produção de feiras, com destaque a Miolo(s).

Recebe originais e já publicou vários deles, entre os quais estão: Manual de Sobrevivência dos Tímidos (Bruno Maron), Desenhos Invisíveis (Gervasio Troche),

Batoquim (Thais Ueda e Yumi Takatsuka) e Mais Leve que o Ar (Felipe Sali).

A Lote 42 acredita que seu papel é fazer com que conteúdos importantes venham à luz da melhor maneira possível, explorando as possibilidades de sentido que a arte impressa pode oferecer, seja como entretenimento rápido, seja como catalisadora de uma reflexão. A partir

dessa convicção, os originais são selecionados pelos editores para compor o catálogo.

O projeto gráfico é pensado de forma que dialogue com o conteúdo, mas sem que isso acarrete um aumento no preço da obra, pois ela deve ser acessível ao maior número de leitores.

A distribuição dos livros é feita em três eixos principais: livrarias, Banca Tatuí e feiras.

Pulo do Gato

Fundada por Márcia Leite e Leonardo Chianca em setembro de 2011, seu nome traz a popular expressão que remete à qualidade e ao lúdico.

Com uma linha editorial comprometida com a formação de leitores e formadores de leitores, a editora organiza a coleção Gato Letrado: ensaios sobre o livro e a leitura a partir de diferentes pontos de vista, como educadores, escritores,

editores, bibliotecários; e seleciona títulos que devem instigar o leitor por meio de suas qualidades literária e estética, como Diário de Blumka, livro ilustrado da polonesa Iwona Chmielewska que narra a história de doze crianças órfãs e judias sob os cuidados do célebre educador Janusz Korczak em plena Segunda Guerra.

O projeto gráfico dos livros é pensado junto com o texto e as ilustrações. A articulação dos três elementos deve ser coerente

com o projeto do livro, potencializando as descobertas e a experiência de leitura.

A distribuição tem quatro diretrizes: loja virtual; livrarias especializadas; o espaço da própria editora na Vila Buarque (principalmente quando abriga eventos e oficinas); e grandes compras de planos governamentais ou não, muito comuns, e até fundamentais, para as editoras de livros infantis.

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Foto: Cecilia Schiavo