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    Volume I

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    N.º 31104

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  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedro (Redondo), 3.º milénio a.n.e. 

    Catarina Costeira iii 

    Elaborar um tecido é construir uma teia, encadeando ou entrelaçando os fios (…). Tecer é (…) estabelecer relações, entrelaçar fios, desenhar formas. Processo que não se confina a um exercício mecânico e repetitivo de mãos, mas onde as mãos se cruzam com os olhos e com a imaginação (…)

    Cabral, I.; Almeida, I., 2003, p.44

  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedro (Redondo), 3.º milénio a.n.e. 

    Catarina Costeira iv 

    Agradecimentos

    Este trabalho, como muitos outros trabalhos científicos, é o resultado de longas

    horas de solidão, por vezes luminosas, inúmeras vezes sombrias. No entanto, a sua

    elaboração não seria possível sem o apoio e o encorajamento de familiares, amigos e

    colegas. As breves linhas que se seguem são dedicadas a todos os que me apoiaram

    nesta caminhada.

    Em primeiro lugar, agradeço ao professor Doutor Victor S. Gonçalves,

    orientador desta tese, a disponibilidade que sempre demonstrou para o esclarecimento

    de dúvidas e resolução de problemas, o tempo – esse bem tão preciso, que comigo

    partilhou a observar e a fotografar os componentes de tear do sítio de S. Pedro, e o

    encorajamento para não desistir.

    Ao Rui Mataloto, que comigo partilhou o sítio de S. Pedro, agradeço a

    disponibilização dos materiais, das informações de campo e da sua biblioteca, as longas

    conversas, e principalmente a amizade. À família “Mataloto” agradeço o acolhimento e

    os tantos jantares partilhados em que a arqueologia e os componentes de tear foram os

    temas dominantes.

    Ao Rui Boaventura agradeço todas as propostas para analisar os componentes de

    tear, todas as indicações bibliográficas e a cedência de alguns livros e artigos.

    Agradeço a todos os que participaram nas equipas de escavação e no tratamento

    dos materiais do sítio de S. Pedro, desde o Verão de 2004 ao Inverno de 2009. Em

    particular, agradeço à Catarina Alves e à Susana Estrela o muito que me ensinaram no

    campo, todo o apoio, e a amizade do início ao fim deste trabalho, e à Carla Antunes que,

    apesar da distância actual, esteve presente em muitos dos momentos essenciais.

    À Câmara Municipal do Redondo agradeço o acolhimento em inúmeros Verões

    nos últimos anos.

    À Jéssica Reprezas e à Elsa Luís agradeço a presença, a paciência para os

    desabafos e o incentivo para nunca parar ao longo deste trabalho.

    À Ana Sara Tomás agradeço as conversas junto ao mar, que me ajudaram a

    superar alguns dos dias mais críticos da escrita deste trabalho.

  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedro (Redondo), 3.º milénio a.n.e. 

    Catarina Costeira v 

    Aos meus pais e ao Miguel agradeço todo o apoio, sem o qual a realização deste

    trabalho teria sido muito mais difícil, e a compreensão das longas horas, em que estando

    presente era como se não estivesse.

    Ao Xil Veríssimo agradeço o olhar objectivo e crítico com que leu o texto, o

    dedo sempre pronto a disparar a máquina fotográfica, a paciência na formatação de todo

    o trabalho, a compreensão nos dias de mau humor e de grande irritabilidade, e acima de

    tudo a presença incondicional em todos os momentos.

  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedro (Redondo), 3.º milénio a.n.e. 

    Catarina Costeira vi 

    Resumo

    O presente trabalho teve como objectivo estudar um conjunto de materiais em

    cerâmica, designados por componentes de tear, provenientes do povoado de S. Pedro

    (Redondo, Alentejo Central) intervencionado no âmbito de um projecto arqueológico de

    salvaguarda e de emergência. Este sítio integra-se cronologicamente no 3.º milénio

    a.n.e., podendo remontar a sua fundação ao final do milénio anterior.

    Os componentes de tear foram analisados sob várias perspectivas.

    Primeiramente construi-se uma ficha descritiva para a sua caracterização tipológica e

    tecnológica, definindo-se duas grandes formas – placas e crescentes – organizadas em

    vários tipos e subtipos, procurando-se em seguida uma aproximação à sua

    funcionalidade. As características formais e métricas normalizadas, a existência e a

    disposição de perfurações, associadas à quantidade e à presença constante destas peças

    em espaços de habitat, constituem argumentos relevantes para a sua interpretação como

    artefactos funcionais, com elevada probabilidade de se relacionarem com a tecelagem.

    Contudo, a ausência de análises traceológicas e a impossibilidade de recurso às técnicas

    da arqueologia experimental limitaram a definição da sua funcionalidade, apenas

    problematizada em termos teóricos.

    Os dados obtidos foram enquadrados nos espaços e nas fases do povoado de S.

    Pedro, com os objectivos de, respectivamente, avaliar a disposição espacial e o

    comportamento quantitativo e formal dos componentes de tear ao longo da diacronia.

    Estes materiais surgem predominantemente fragmentados e espacialmente dispersos,

    verificando-se a coexistência das principais formas e tipos em todas as fases de

    ocupação, numa situação semelhante à documentada noutros contextos do 3.º milénio

    a.n.e. do Sudoeste peninsular.

    Os componentes de tear assumem-se como uma das categorias de artefactos

    mais típicas dos povoados calcolíticos do Sul da Península Ibérica e como uma das

    expressões materiais das transformações integradas na “Revolução dos Produtos

    Secundários”, tornando-se, assim, um elemento fundamental para o estudo das

    primeiras comunidades agro-metalúrgicas.

    Palavras-chave: Componente de tear, peso de tear, crescente, final do 4.º/3.º milénios

    a.n.e., Alentejo Central

  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedro (Redondo), 3.º milénio a.n.e. 

    Catarina Costeira vii 

    Abstract

    The aim of present thesis was to study a sample of ceramic materials, reported as

    loom components, from the archaeological site of S. Pedro (Redondo, Central Alentejo)

    excavated in a project of salvage and rescue archaeology. This site is chronologically

    integrated in the 3rd millennium BCE, being able to retrace its foundation to the end of

    the previous millennium.

    The loom components were analyzed from different perspectives. Firstly, a

    recording sheet was made for the description of their technological and typological

    characteristics, defining two main forms – plates and crescent-shaped – organized into

    several types and subtypes, looking up afterwards an approximation to its functionality.

    The formal and metric standard features, the existence and arrangement of perforations,

    associated with the number and the constant incidence of these objects in archaeological

    sites, are important arguments for their interpretation as tecnomic artifacts, with high

    probability that they are related to weaving. However, the absence of use-wear analysis

    and the impossibility of using the experimental archeology’s techniques restricted the

    definition of its functionality, only problematized in theoretical terms.

    The data were located into spaces and phases of the S. Pedro’s site, with the aim

    of, respectively, evaluating the space disposal and the quantitative and formal behavior

    of loom components over the diachronic. These materials arise predominantly

    fragmented and spatially dispersed, verifying the coexistence of the main forms and

    types in all phases of occupation, in a similar situation as registered in other

    archaeological contexts of the 3rd millennium BCE in south-western Peninsula.

    The loom components are one of the most typical artifacts of the chalcolithic

    settlements of the southern Iberian Peninsula and one of the material expressions of the

    changes incorporated in the “Secondary Products Revolution”, becoming, thus, a key

    element for the study of the first agro-metallurgic communities.

    Keywords: Loom component, loom weight, crescent-shaped weight, final 4th/3rd

    millennia BCE, Central Alentejo

  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedro (Redondo), 3.º milénio a.n.e. 

    Catarina Costeira viii 

    Índice

    Agradecimentos ............................................................................................................... iv Resumo ............................................................................................................................ vi Abstract ........................................................................................................................... vii Índice ............................................................................................................................. viii Índice de tabelas ............................................................................................................... x 1 Introdução ...................................................................................................................... 1 

    1.1 A estrutura interna do trabalho ............................................................................... 2 

    2 O povoado de S. Pedro .................................................................................................. 4 2.1 O povoado de S. Pedro no espaço .......................................................................... 4 

    2.1.1 Localização administrativa e o espaço na actualidade .................................... 4 

    2.1.2 Enquadramento geográfico .............................................................................. 5 

    2.1.3 A paisagem: uma aproximação possível ......................................................... 6 

    2.2 A investigação arqueológica ................................................................................... 8 

    2.2.1 Identificação e contexto das intervenções ....................................................... 8 

    2.2.2 O método de escavação: escavar em área um sítio pré-histórico .................... 9 

    2.2.3 A área de intervenção: organização e caracterização .................................... 11 

    2.3 O povoado de S. Pedro: faseamento ..................................................................... 12 

    2.4 Os povoados de S. Pedro no Alentejo Central no final do 4.º e durante o 3.º

    milénio a.n.e. .............................................................................................................. 16 

    3 Os componentes de tear na investigação arqueológica ............................................... 22 3.1 Breve história da investigação dos componentes de tear ..................................... 22 

    3.1.1 O final do século XIX e a primeira metade do século XX ............................ 22 

    3.1.2 As décadas de 70 e 80 ................................................................................... 27 

    3.1.3 Os anos 90 e o início do século XXI ............................................................. 32 

    3.2 A distribuição dos componentes de tear no Ocidente da Península Ibérica ......... 35 

    4 A tecelagem no 3.º milénio a.n.e. ................................................................................ 38 4.1 Introdução ao estudo de um tema problemático ................................................... 38 

    4.2 A tecelagem: uma actividade feminina? ............................................................... 39 

  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedro (Redondo), 3.º milénio a.n.e. 

    Catarina Costeira ix 

    4.3 Os teares: tentativa de aproximação aos mecanismos do 3.º milénio a.n.e. ......... 41 

    4.3.1 Tear de placas ................................................................................................ 41 

    4.3.2 Tear de grade ou tear de bordos ..................................................................... 42 

    4.3.3 Tear vertical de quadro .................................................................................. 42 

    4.3.4 Tear vertical de pesos .................................................................................... 43 

    5 Metodologia ................................................................................................................. 44 5.1 Definição de conceitos.......................................................................................... 44 

    5.2 Definição do conjunto .......................................................................................... 44 

    5.2 A ficha descritiva .................................................................................................. 46 

    5.3 Tipologia em construção ...................................................................................... 50 

    5.4 Registo gráfico e fotográfico ................................................................................ 53 

    6 Os componentes de tear ............................................................................................... 54 6.1 Formas e variantes ................................................................................................ 54 

    6.1.1 Placas ............................................................................................................. 54 

    6.1.1.1 Placas Rectangulares: P-I ....................................................................... 55 

    6.1.1.2 Placas Ovaladas: P-II .............................................................................. 60 

    6.1.1.3 Placas hiperbolóides: P-III...................................................................... 61 

    6.1.1.4 Placas: análise de conjunto ..................................................................... 62 

    6.1.2 Crescentes ...................................................................................................... 65 

    6.1.2.1 Crescentes de secção ovalada: C-I.2....................................................... 66 

    6.1.2.2 Crescentes de secção sub-rectangular: C-II.2 ......................................... 67 

    6.1.2.3 Crescentes de secção circular: C-III.2 .................................................... 67 

    6.1.2.4 Crescentes de secção ovalada robusta: C-IV.2 ....................................... 68 

    6.1.2.5 Crescentes: análise de conjunto .............................................................. 68 

    6.2 Análise tecnológica............................................................................................... 70 

    6.2.1 Pastas ............................................................................................................. 71 

    6.2.2 Modelação e acabamentos de superfície ....................................................... 72 

    6.2.3 Perfurações .................................................................................................... 72 

  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedro (Redondo), 3.º milénio a.n.e. 

    Catarina Costeira x 

    6.2.4 Cozedura ........................................................................................................ 72 

    6.2.5 As decorações dos componentes de tear........................................................ 73 

    6.2.6 Os vestígios de utilização .............................................................................. 76 

    6.3 Aproximação à funcionalidade ............................................................................. 77 

    7 Componentes de tear: contextos e faseamento ............................................................ 81 7.1.1 Os contextos dos componentes de tear .......................................................... 82 

    7.1.2 Uma visão espacial ........................................................................................ 84 

    7.2 Os componentes de tear no faseamento do povoado de S. Pedro ........................ 85 

    8 Considerações finais .................................................................................................... 88 8.1 Propostas para o futuro ......................................................................................... 91 

    9 Referências bibliográficas ........................................................................................... 93 9.1 Cartografia .......................................................................................................... 110 

    Índice de tabelas

    Tabela 1: Coordenadas do sítio de S. Pedro ................................................................................................. 4 Tabela 2: Esquema para a construção da tipologia de placas ..................................................................... 51 Tabela 3: Esquema para a construção da tipologia de crescentes ............................................................... 53

  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedro (Redondo), 3.º milénio a.n.e. 

    Catarina Costeira 1 

    1 Introdução

    É da realidade artefactual, concreta e mensurável, que temos de partir (…)

    Gonçalves, V. S., 2003b, p.109

    O tema desta dissertação foi inspirado no do último trabalho elaborado no

    âmbito da licenciatura em arqueologia: as placas e crescentes em cerâmica – os

    componentes de tear, provenientes do sítio arqueológico de S. Pedro (Redondo,

    Alentejo Central). Estudou-se um amplo conjunto de placas e crescentes de cerâmica,

    recolhidos nas várias campanhas de escavação (2004-2009), e provenientes dos vários

    sectores e fases do povoado.

    O interesse pelo estudo destes materiais surgiu pela quantidade em que se

    identificaram neste povoado e pelo desafio que a sua análise comportava, uma vez que a

    sua interpretação e significado suscitam ainda muitas discussões na comunidade

    arqueológica.

    Os principais objectivos que nortearam esta investigação centraram-se na análise

    morfológica, tecnológica e funcional dos artefactos, através da construção de fichas

    descritivas e da organização de estruturas tipológicas. Pretende-se igualmente

    contextualizar no espaço e no tempo os componentes de tear, analisando-se todas as

    unidades estratigráficas de proveniência destes artefactos com base nas suas

    características, inter-relações, localização e faseamento, e organizando-as

    numericamente em tabelas descritivas, agrupadas pelos seis sectores de escavação. Este

    último objectivo foi o mais difícil de concretizar devido à fase embrionária em que se

    encontrava o estudo da globalidade da estratigrafia do sítio arqueológico. No entanto, o

    apoio disponibilizado pelo responsável dos trabalhos de campo e de gabinete, Dr. Rui

    Mataloto, permitiu contornar as principais dificuldades, esperando-se que com o avanço

    da investigação seja possível rever muitas das leituras e dados apresentados.

    As placas e crescentes em cerâmica típicos de sítios arqueológicos do Sul da

    Península Ibérica, cronologicamente integrados no 3.º milénio a.n.e., e alguns deles nos

    finais do milénio anterior, marcam presença nos trabalhos arqueológicos desde os

    alvores da disciplina, no século XIX, o que evidencia a frequência da sua identificação.

    Estes materiais, apesar de atenciosamente estudados por alguns investigadores, foram

    sistematicamente relegados pela maioria para categorias de análise genéricas e pouco

  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedro (Redondo), 3.º milénio a.n.e. 

    Catarina Costeira 2 

    relevantes, limitando o seu estudo e o seu potencial informativo. Na actualidade, estes

    artefactos são entendidos como componentes de tear, tendo-se tornado elementos

    indispensáveis para o estudo das transformações agrícolas, pastoris e artesanais que

    caracterizaram as primeiras comunidades agro-metalúrgicas. Espera-se que este trabalho

    contribua para afirmar esta potencialidade informativa e a relevância desta temática.

    Em termos cronológicos abordam-se realidades do final do 4.º e do 3.º milénios

    a.n.e. Numa perspectiva mais objectiva, optou-se por utilizar a referência “antes da

    nossa Era” (a.n.e.), ao contrário de “antes de Cristo” (a.C.), seguindo a posição de

    outros autores como Victor Gonçalves (2005), Rui Boaventura (2009), Ana Catarina

    Sousa (2010), entre outros.

    1.1 A estrutura interna do trabalho

    O presente trabalho estrutura-se em dois volumes: o primeiro constituído por

    nove capítulos de texto e o segundo composto por nove anexos.

    O primeiro capítulo refere-se à apresentação do estudo desenvolvido, definindo-

    se o âmbito e os principais objectivos.

    No segundo capítulo apresenta-se o sítio arqueológico de S. Pedro em termos

    espaciais (localização e enquadramento geográfico), ambientais, arqueológicos

    (identificação, contexto das intervenções, organização da área intervencionada e método

    de escavação) e históricos (faseamento e enquadramento regional).

    O terceiro capítulo consiste numa breve reflexão sobre a história da investigação

    arqueológica dos componentes de tear na Península Ibérica desde o século XIX até aos

    inícios do século XXI, com especial ênfase para a realidade portuguesa. No final,

    apresenta-se uma imagem geral da distribuição dos componentes de tear no Ocidente

    peninsular.

    No quarto capítulo apresentam-se algumas questões teóricas relacionadas com a

    tecelagem, referimos os principais vestígios desta actividade no Sul peninsular na

    cronologia em estudo, e descrevemos alguns teares que, segundo vários investigadores,

    poderiam ter sido utilizados pelas comunidades existentes. A questão da associação da

    tecelagem ao género feminino, não podendo ser ignorada num trabalho com esta

    temática, é abordada de forma breve neste capítulo.

  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedro (Redondo), 3.º milénio a.n.e. 

    Catarina Costeira 3 

    O quinto capítulo contém a metodologia utilizada no estudo dos componentes de

    tear: a definição dos principais conceitos e a explicação dos critérios das fichas

    descritivas e da estruturação da tipologia.

    O sexto capítulo dedica-se ao estudo dos materiais, estando organizado em três

    partes: análise morfológica (apresentação das formas, tipos e variantes), tecnológica e

    funcional.

    No sétimo capítulo apresentam-se os contextos de proveniência dos

    componentes de tear e o seu enquadramento nas fases do sítio de S. Pedro.

    O trabalho termina com as conclusões e com as propostas para o futuro (capítulo

    8), seguindo-se as referências bibliográficas (capítulo 9).

    O segundo volume é constituído pelos anexos, estruturados de acordo com a

    organização do primeiro volume.

    No anexo 1 disponibiliza-se toda a informação cartográfica, gráfica e fotográfica

    que documenta o contexto espacial e a investigação arqueológica do sítio de S. Pedro.

    O anexo 2 pretende ilustrar a história da investigação dos componentes de tear,

    salientando a diversidade da representação gráfica destes materiais.

    No anexo 3 apresentam-se algumas imagens de reconstituições de teares.

    O anexo 4 é o suporte do capítulo da metodologia (capítulo 5), contendo

    esquemas explicativos da análise dos materiais e os catálogos de formas.

    No anexo 5 apresentam-se os dados estatísticos (gráficos e tabelas) e nos anexos

    6 e 7 as representações gráficas e fotográficas, respectivamente, dos componentes de

    tear.

    O anexo 8 é dedicado aos contextos estratigráficos de proveniência dos

    materiais, apresentando uma nota explicativa geral, a descrição das unidades e as

    fotografias das mais representativas.

    O último anexo (9) contém os quadros descritivos e a base de dados geral.

    As tabelas e quadros descritivos dos anexos 8 e 9 encontram-se exclusivamente

    em formato digital (ficheiro pdf, CD-ROM), com o objectivo de permitir uma fácil

    consulta e rápida pesquisa da informação.

  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedro (Redondo), 3.º milénio a.n.e. 

    Catarina Costeira 4 

    2 O povoado de S. Pedro

    2.1 O povoado de S. Pedro no espaço

    Os lugares não se encontram, constroem-se. A diferença daquele chão não estava na geografia.

    Mia Couto, 2002, p.189

    2.1.1 Localização administrativa e o espaço na actualidade

    O sítio de S. Pedro (SPD) localizava-se na região do Alentejo Central, distrito de

    Évora, freguesia e concelho de Redondo, a 322 m de altitude (Figuras 1 e 2).

    Tabela 1: Coordenadas do sítio de S. Pedro

    Coordenadas militares (CMP 1:25 000, 451, 2008) X: 250636,77 Y: 187159,05

    Coordenadas geográficas Lisboa -07º 33’ 00,924’’ 38º 38’ 55,800’’

    Datum 73 -07º 33’ 08,364’’ 38º 38’ 58,665’’ WGS84 -07º 33’ 05,060’’ 38º 39’ 01,480’’ ED 50 -07º 33’ 00,130’’ 38º 39’ 05,970’’

    O sítio arqueológico de S. Pedro encontrava-se no interior do perímetro urbano

    da vila de Redondo, nas traseiras da ermida de S. Pedro. Na actualidade, a área

    arqueológica estava seccionada por diversos muros de propriedade e coberta por um

    olival, erguendo-se no lado Norte, sobre as estruturas pré-históricas, duas antenas de

    telecomunicações. A colheita de pedra, as valas para a plantação de árvores e a

    edificação das fundações das estruturas contemporâneas referidas afectaram

    significativamente a conservação das realidades pré-históricas, demonstrando que este

    sítio continuou a fazer parte das vivências da comunidade local. Mais recentemente a

    área central do sítio de S. Pedro foi destruída e a paisagem completamente modelada

    com a construção de uma estrutura viária – Via Circular Poente à Vila de Redondo, o

    que motivou a intervenção arqueológica de salvaguarda do local.

  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedro (Redondo), 3.º milénio a.n.e. 

    Catarina Costeira 5 

    2.1.2 Enquadramento geográfico

    O sítio de S. Pedro integrava-se globalmente na unidade morfoestrutural da

    Península Ibérica designada por Maciço Hespérico ou Maciço Ibérico, mais

    concretamente na zona de Ossa-Morena, no sector de Estremoz-Barrancos (Araújo et.

    al., 2006). A peneplanície alentejana é o elemento estruturante do relevo desta região,

    limitada a Este pela crista de Redondo e a Norte pelo maciço da Serra d’Ossa (Feio,

    Martins, 1993), como se pode observar no mapa de relevo do Alto Alentejo (Figura 6).

    A unidade fisiográfica, individualizada por Manuel Calado a partir das sub-

    regiões propostas no Atlas do Ambiente (2001, p.2-28), a que pertencia o sítio de S.

    Pedro é a bacia do Degebe, uma área geologicamente marcada pelos quartzodioritos,

    envolvida pelos xistos, com solos relativamente aptos para a actividade agrícola, como é

    visível nas Cartas Geológica e Litológica de Portugal, respectivamente, nas Figuras 3 e

    4. Esta área caracteriza-se por ser uma paisagem aberta, com boa transitabilidade natural

    até ao limite Norte, onde se eleva a Serra d’Ossa.

    O território deste sítio é drenado por um conjunto de pequenos cursos de água e

    ribeiras, a maioria de carácter não permanente, afluentes dos rios Degebe e Lucefece,

    que pertencem à bacia hidrográfica do grande rio do Sul – Guadiana.

    O sítio de S. Pedro implantava-se no cimo de um cabeço alongado de vertentes

    íngremes e topo aplanado (Figura 7), pontuado por afloramentos rochosos de xisto. Este

    cerro integra um conjunto de elevações que bordejam a margem Nascente da planície

    central de Redondo, a Sul da Serra d’Ossa. A posição destacada sobre a planície tornou-

    o um marco na paisagem, com um amplo domínio visual para Sul e para Ocidente

    (Figuras 11, 13 e 14), onde as planuras só por vezes são interrompidas pelo ondular de

    pequenas elevações, mas relativamente limitado nos quadrantes Norte e Nascente pela

    Serra d’Ossa e restantes elevações de Redondo, respectivamente, como se observa nas

    Figuras 10, 12, 15 e 16.

  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedro (Redondo), 3.º milénio a.n.e. 

    Catarina Costeira 6 

    2.1.3 A paisagem: uma aproximação possível

    (…) O território é um artefacto (…) afeiçoado por milhões de gestos humanos (…)

    Mateus, J., Queiroz, P., Leeuwaarden, W., 2003

    As reconstituições dos territórios antigos no actual Alentejo Central são muito

    escassas, não estando ainda disponíveis os resultados dos dados antracológicos e

    faunísticos do sítio de S. Pedro. Apesar destas lacunas considerou-se pertinente colocar

    algumas questões sobre o ambiente e os recursos disponíveis, recorrendo

    exclusivamente a informações publicadas em estudos referentes a esta região e às que

    lhe estão mais próximas: Estremadura espanhola, Algarve e Andaluzia.

    Na actualidade o Alentejo apresenta um clima de características

    mesomediterrâneas, com Verões quentes e secos e Invernos chuvosos e curtos (Queiroz

    in Gonçalves, 2003c, p.453), que não podem ser linearmente transpostas para a Pré-

    história. Contudo, a estabilidade dos principais factores climáticos permite admitir que,

    mesmo com valores absolutos distintos, as relações fundamentais se tenham conservado

    basicamente idênticas (Calado, 2001, p.18).

    A capacidade de uso dos solos é condicionada pela geologia, relevo, clima e,

    principalmente, pela própria acção humana, o que dificulta a análise dos solos do

    passado com base na informação do presente. A área envolvente do povoado,

    principalmente para Oeste, apresenta solos com potencial agrícola (Figura 5), aptos para

    o desenvolvimento de uma agricultura de sequeiro.

    O coberto vegetal desta região no 3.º milénio a.n.e. seria diferente do actual,

    provavelmente mais variado e com áreas densamente arborizadas. A paisagem vegetal

    seria composta por espécies características de diferentes unidades de vegetação (Soares

    e Silva, 2010, p.227) como o pinheiro-bravo (Pinus pinaster), o pinheiro-manso (Pinus

    pinea), o carvalho-cerquinho ou carvalho-português (Quercus faginea), o sobreiro

    (Quercus suber), a azinheira (Quercus rotundifolia) e o zambujeiro ou oliveira-brava

    (Olea europaea var. sylvestris). Esta paisagem estaria em transformação com a

    crescente acção produtiva do homem, no sentido do aumento das áreas de cultivo e de

    pasto, o que originaria cada vez mais espaços abertos e o desenvolvimento de uma

    vegetação arbustiva (Diniz, 2007, p.45). A antropização do meio seria mais evidente na

  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedro (Redondo), 3.º milénio a.n.e. 

    Catarina Costeira 7 

    envolvente dos sítios habitados e utilizados para a exploração, conservando-se,

    sobretudo nas zonas de maior altitude, áreas de vegetação densa e diversificada.

    No que se refere à paisagem cultivada salienta-se a presença de cereais de

    sequeiro como o trigo (Triticum spp.) e a cevada (Hordeum vulgare), e de leguminosas

    como a fava (Vicia faba), identificados no registo arqueológico de vários povoados

    calcolíticos do Alentejo (Porto das Carretas, Soares e Silva, 2010), Algarve (Alcalar,

    Morán e Parreira, 2003), Estremadura espanhola (La Pijotilla, Duque, 2004, p.518) e

    Andaluzia (Las Eras, Lizcano et. al., 2009). As espécies vegetais não alimentares,

    utilizadas em actividades artesanais como a tecelagem, seriam também cultivadas,

    destacando-se o linho (Linum usitatissimum) e as esparteiras (Lygeum spartum e Stipa

    tenacissima).

    No actual território português identificam-se sete variedades de linho, adaptadas

    às características das diferentes áreas regionais, com ciclos de sementeira/colheita

    díspares. “No Alentejo (…) onde se cultivam as variedades de linho de inverno –

    mourisco, abertiço e serrano – destinavam-lhe preferentemente os terrenos frescos das

    bordas dos cursos de água, e sobretudo os hortícolas.” (Oliveira et. al., 1978, p.34). Os

    dados disponíveis não permitem aferir a presença directa de linho no sítio arqueológico

    em estudo, no entanto a observação do registo de outros sítios calcolíticos,

    nomeadamente na Estremadura portuguesa (Vila Nova de S. Pedro, Paço, 1954), no

    Algarve (Alcalar, Móran e Parreira, 2003) e na Andaluzia (La Cueva de los Murciélagos

    de Zuheros, Córdova, Cacho et. al., 1996), onde se documentou a existência de vestígios

    deste elemento vegetal, permite-nos colocar a hipótese do seu cultivo e da sua

    transformação no sítio de S. Pedro. O esparto é uma espécie vegetal autóctone da

    Península Ibérica, presente no Centro e Sudeste, cuja utilização para a tecelagem pode

    ter resultado da sua recolha directa (esparto selvagem) e do seu cultivo. (Alfaro Giner,

    1984).

    A fauna desta área é, com elevada probabilidade, semelhante à detectada noutros

    sítios arqueológicos regionalmente próximos (Boaventura, 2001, p.35; Valera, 2006a,

    p.170-171; Moreno e Valera, 2007; Silva e Soares, 2010, p.227-228). Das espécies

    selvagens identificadas destacam-se o veado-vermelho (Cervus elaphus), o corso

    (Capreolus capreolus), o javali (Sus scrofa), a lebre-comum (Lepus europaeus) e o

    coelho-comum (Oryctolagus cuniculus). A presença de animais adaptados a espaços

    vegetais diversificados reforça a multiplicidade paisagística desta região e indicia o

    desenvolvimento de actividades cinegéticas pelas comunidades do 3.º milénio a.n.e.

  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedro (Redondo), 3.º milénio a.n.e. 

    Catarina Costeira 8 

    As espécies domesticadas como os suínos (Sus domesticus), os bovinos (Bos

    taurus), os caprinos (Capra aegagrus hircus) e os ovinos (Ovis aries) teriam uma

    expressão cada vez maior, salientando-se a intensa exploração dos primeiros na região

    alentejana, como indicam os dados de um estudo de S. Davis e M. Moreno Garcia

    (2007, p.65-66).

    No âmbito deste trabalho, a presença de ovelhas, cuja confirmação se aguarda

    com o estudo aprofundado dos vestígios faunísticos provenientes de escavação, reveste-

    se de importância na medida em que, em teoria, a exploração plena das suas

    potencialidades permitiria a obtenção de lã para a tecelagem. As ovelhas desta fase de

    domesticação seriam semelhantes às ovelhas selvagens, distinguindo-se das actuais na

    dimensão, na coloração e na pelagem. Teriam um revestimento composto por pêlos

    grossos, curtos e enraizados designados por kemps (Davis, 1987, p.156-157), o que o

    tornaria pouco apto para a utilização na tecelagem, originando tecidos toscos e ásperos.

    O sítio de S. Pedro integrava-se numa área natural de contacto entre o litoral

    atlântico do Tejo e as planícies interiores do Guadiana (Mataloto, 2010, p.264), num

    território multifacetado, em que a planície de solos agrícolas e pastos se combina com a

    estrutura imponente da Serra d’Ossa – espaço de exploração de recursos cinegéticos e

    de captação de minérios (cobre). A associação de todos estes factores contribuiu para a

    instalação de comunidades humanas estáveis neste local.

    2.2 A investigação arqueológica

    2.2.1 Identificação e contexto das intervenções

    O sítio de S. Pedro foi identificado na década de noventa do século XX, no

    âmbito de prospecções de um grupo local de defesa do património, sendo pela primeira

    vez referido na bibliografia arqueológica por Manuel Calado na Carta Arqueológica do

    Alandroal (Calado, 1993) e num pequeno artigo (Calado e Bairinhas, 1994, p.175-178).

    Este investigador posteriormente, ao estudar o povoamento Neolítico e Calcolítico da

    Serra d’Ossa, analisou as características de ocupação do sítio a partir dos materiais de

    superfície e das estruturas visíveis, classificando-o como um povoado potencialmente

    fortificado (Calado, 1995, 2001).

  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedro (Redondo), 3.º milénio a.n.e. 

    Catarina Costeira 9 

    As intervenções arqueológicas no sítio de S. Pedro enquadraram-se num

    contexto de salvaguarda e de emergência motivado pelo projecto de construção de uma

    estrutura viária – Circular Poente à Vila de Redondo, da autoria da Câmara Municipal,

    cujo traçado contemplava o atravessamento do cabeço, afectando irremediavelmente o

    sítio. O primeiro passo desta intervenção consistiu na avaliação do potencial

    arqueológico do sítio através de um plano de sondagens, que permitiu confirmar a

    existência de estruturas de fortificação, a presença de estratigrafia conservada e de

    abundantes vestígios materiais contextualizados. Os resultados obtidos não

    comprometeram o avanço da obra mas impuseram a escavação integral da área a

    afectar, que no final dos trabalhos rondava os 2000 m2. Os trabalhos de escavação

    organizaram-se em várias fases, associadas ao desenvolvimento do projecto de

    construção. A primeira etapa decorreu entre Março de 2004 e Novembro de 2005,

    abordando-se todas as áreas do povoado; a segunda fase teve lugar nos meses de Verão

    de 2007 e 2008, executando-se trabalhos mais localizados, uma vez que os

    constrangimentos de tempo eram mais acentuados. A terceira fase de escavação

    realizou-se entre os meses de Março e Novembro de 2009, retomando a abordagem

    global.

    2.2.2 O método de escavação: escavar em área um sítio pré-histórico

    I believe that the larger the horizontal area which can be excavated, the more the evidence will be understood (…)

    Barker, P., 1977, p.101

    A site is more easily understood when entirely exposed than when it is divided into a series of holes.

    Harris, E., 1989, p.20

    O contexto da intervenção e a necessidade de escavar integralmente a área a

    afectar conduziram à utilização de uma metodologia de área aberta (Figura 17).

    Começou-se pela remoção expedita com meios mecânicos dos níveis superficiais,

    seguindo-se posteriormente os princípios definidos por Barker (1977, 1982, 1993) e

    Harris (1979, 1989), com vista à “escavação por fases de ocupação” (Mataloto, 2010,

    p.267).

  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedro (Redondo), 3.º milénio a.n.e. 

    Catarina Costeira 10 

    De acordo com os procedimentos deste método os trabalhos no terreno têm

    como objectivo a definição e o registo de unidades estratigráficas (depósitos, estruturas

    positivas, interfaces negativas), e a sua remoção, em conformidade com a sua forma e

    contorno na ordem inversa à sua formação (Harris, 1989, p.15 e Barker, 1993, p.91). No

    caso concreto do sítio arqueológico de S. Pedro todas as unidades estratigráficas foram

    definidas com a superfície humedecida e raspada a colherim, de modo a salientar os

    seus contornos. As unidades foram registadas individualmente em planta, fotografia e

    numa ficha descritiva, onde se indicam as suas características, os materiais

    identificados, as inter-relações estratigráficas e a sua interpretação. De modo a

    simplificar o processo de escavação criou-se uma listagem esquemática de unidades

    estratigráficas com a sua descrição preliminar no momento em que foram identificadas.

    A escavação de realidades espaciais e cronologicamente distintas em simultâneo exigiu

    que as unidades fossem numeradas de forma sequencial, independentemente da posição

    ou antiguidade, não correspondendo a sua ordem numérica exactamente à sua formação

    deposicional.

    Os ecofactos e artefactos são identificados com o número da unidade

    estratigráfica de proveniência, não tendo, salvo raras excepções, registo tridimensional

    individual, uma vez que se considera que os materiais não devem ser lidos isoladamente

    mas sempre integrados num contexto – unidade estratigráfica (Harris, 1989, p.124). Esta

    indissociabilidade influencia a posterior organização e inventariação do material, não se

    criando uma sequência de inventário única mas numerando-se os materiais dentro de

    cada unidade. Assim, o número de inventário remete imediatamente para o contexto de

    proveniência do objecto.

    A estratigrafia de espaços habitacionais como a do sítio de S. Pedro é dinâmica,

    resultando de inúmeras acções humanas e de agentes naturais, o que dificulta a

    identificação de realidades completamente fechadas. Com efeito, nestes sítios raramente

    se detectam materiais no seu sítio de utilização ou de abandono, tornando-se arriscada a

    super-valorização de objectos/fragmentos em campo na ilusão de que sozinhos nos

    permitem reconstituir contextos seguros.

    Numa escavação de emergência integral como a que ocorreu no sítio de S.

    Pedro, o trabalho não se esgotou no último dia de campo. O arquivo arqueológico

    construído é extenso, com 3134 unidades estratigráficas identificadas, não sendo

    possível ainda a organização total da sequência estratigráfica e a construção global da

    matriz de Harris. A morosidade desta análise não é uma fragilidade do método mas o

  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedro (Redondo), 3.º milénio a.n.e. 

    Catarina Costeira 11 

    resultado da difícil equação entre tempo, informação produzida e recursos disponíveis

    para o seu tratamento e análise.

    2.2.3 A área de intervenção: organização e caracterização

    A área de escavação foi ordenada em seis sectores, de A a F, para orientar a

    abordagem no terreno, simplificar a organização da informação e permitir a rápida

    localização dos dados (Figura 29). Estes sectores não têm significado funcional nem

    leituras estratigráficas específicas (Mataloto, 2010, p.267).

    O sector A localizava-se no interior da linha de muralha do topo do cabeço.

    Nesta área documentaram-se as várias fases do povoado, registando-se uma potência

    estratigráfica com alguma expressão.

    O sector B, delimitado pelas duas linhas de muralha, era o mais extenso e

    complexo, porque continha todas as fases de ocupação do povoado numa estratigrafia

    reduzida, sendo o resultado de múltiplos revolvimentos decorrentes das sucessivas

    acções de vivência.

    O sector C enquadrava-se no espaço exterior à muralha da fase II para Sul,

    contendo o registo das fases de abandono/reconstrução desta fortificação.

    O sector D situava-se na área virada a Norte, na zona de maior declive,

    apresentando grande potência estratigráfica. As características topográficas da área entre

    a muralha [716=832] e o muro [483] originaram a formação de uma bacia de deposição,

    onde as unidades do interior eram mais recentes que as dos limites, embora estas se

    encontrassem a cotas mais elevadas devido aos processos de erosão.

    O sector E compreendia o espaço definido entre a antena de telecomunicações e

    o muro de propriedade a Oeste. Esta área foi muito afectada pela fundação da primeira

    estrutura, o que dificultou a sua conexão com os restantes sectores. Neste espaço

    registaram-se sobretudo evidências das fases mais recentes de ocupação do sítio.

    O sector F resultou do alargamento para Oeste dos sectores A, B e E,

    perfazendo um espaço triangular com cerca de 200 m2. Na extremidade Norte a

    estratigrafia encontrava-se bastante afectada, com a presença do afloramento rochoso

    quase à superfície.

  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedro (Redondo), 3.º milénio a.n.e. 

    Catarina Costeira 12 

    Este povoado apresentava grande complexidade estratigráfica, como se

    depreende da observação das várias unidades estratigráficas apresentadas no anexo 8.4

    [CD-ROM]. Na maior parte da área a potência estratigráfica era reduzida, “(…) como

    seria de esperar numa área de forte dinamismo ocupacional e logo deposicional,

    resultante de uma sucessão continuada de vivências quotidianas.” (Mataloto, 2010,

    p.268). Efectivamente, o dinamismo da estratigrafia resultou maioritariamente de acções

    que sucederam durante a Pré-história, tendo as estruturas do final da fase V,

    nomeadamente o empedrado [497] – a última construção a ser realizada, marcado a

    conservação da estratigrafia desta cronologia.

    2.3 O povoado de S. Pedro: faseamento

    O catálogo das formas é infinito: enquanto houver uma forma que não tenha encontrado a sua cidade, continuarão a nascer novas cidades. Onde as formas esgotam as suas variações e se desfazem, começa o fim das cidades.

    Italo Calvino, As Cidades Invisíveis

    O sítio arqueológico de S. Pedro é o resultado do somatório, num mesmo lugar,

    de diversos espaços, estruturas e vestígios de vivências que decorreram ao longo de uma

    ampla diacronia, entre o final do 4.º e meados do 3.º milénio a.n.e. É a apreensão e a

    reconstrução destas realidades que pretendemos alcançar mas, tendo o processo de

    escavação terminado recentemente, apenas conseguimos, neste momento, apresentar

    uma proposta geral da história de ocupação do sítio baseada essencialmente nas

    informações cedidas directamente pela equipa de campo e nos dados publicados em três

    artigos: As fortificações calcolíticas de São Pedro (Mataloto, Estrela e Alves, 2007); O

    4.º/3.º milénio a.C. no povoado de São Pedro (Redondo, Alentejo Central): fortificação

    e povoamento na planície centro alentejana. (Mataloto, 2010); Construtores e

    metalurgistas: Faseamento e cronologia pelo radiocarbono da ocupação calcolítica do

    São Pedro (Mataloto e Müller, no prelo).

    Os dados actualmente disponíveis tornam incerta a definição da primeira fase de

    ocupação do sítio de S. Pedro. A identificação de um conjunto artefactual marcado por

    formas esféricas e globulares lisas, por vezes com mamilos junto ao bordo, taças

    carenadas, e ausência de pratos, (Mataloto, 2010, p.280), associado a depósitos, a

  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedro (Redondo), 3.º milénio a.n.e. 

    Catarina Costeira 13 

    unidades negativas de tipo silo/fossa e a depressões escavadas na rocha sob a estrutura

    amuralhada da fase II, permite-nos avançar com a hipótese de a primeira ocupação do

    sítio se enquadrar na transição do 4.º para o 3.º milénio a.n.e. A fraca visibilidade desta

    fase no registo arqueológico é explicada pela sua reduzida expressão arquitectónica e

    pelo dinamismo das etapas seguintes. O desenvolvimento dos trabalhos na área Norte

    (sector D), que conduziram à identificação de um muro com cerca de 14 m de

    comprimento e 1,2 m de largura, em que um dos troços assentava na rocha de base,

    colocou dúvidas ao carácter aberto desta primeira fase. De facto, a posição estratigráfica

    desta estrutura, [483], tornava-a anterior à estrutura de fortificação mais robusta da fase

    II, podendo relacionar-se com um momento inicial desta fase ou com um momento

    avançado da fase I. No estado actual da interpretação estratigráfica, a incapacidade de

    determinar o faseamento desta estrutura conduziu a que a sua representação gráfica se

    realizasse na planta da fase II (Figura 30).

    O povoado da fase II caracterizava-se pela construção de um amplo e robusto

    sistema de fortificação, que não conseguimos ainda demonstrar se é uma fundação de

    raiz ou uma continuação da ocupação anterior. A permanência dos principais

    componentes artefactuais nas duas fases e a ausência de espessas camadas de abandono

    que evidenciem hiatos de tempo tornam praticamente impossível a identificação da sua

    sequencialidade.

    Na área intervencionada a estrutura de fortificação é constituída por cinco

    segmentos rectilíneos construídos em xisto, delimitando um espaço aproximadamente

    trapezoidal com cerca de 800 m2. Num primeiro momento, associadas aos troços das

    muralhas, erguiam-se duas torres ocas a Sudoeste e três de maior envergadura a Norte,

    uma das quais reforçando o canto da muralha numa zona sensível (Figura 21). Após um

    episódio de destruição a face Sudoeste da muralha (Figura 22) sofreu uma remodelação

    de parte do seu circuito, com a substituição de alguns dos seus troços e das suas torres

    por construções de menor entidade. Estas transformações não alteraram

    significativamente a morfologia da estrutura nem o espaço delimitado.

    Na área central interior identificaram-se duas estruturas, [345] e [1600], de

    planta circular com alicerces de pedras de xisto de calibre diverso, que deveriam

    desenvolver-se em altura (Figuras 19 e 20). A presença de vestígios habitacionais no

    seu interior, a par da sua dimensão e localização, colocam a hipótese da sua utilização

    como cabanas com a função de torres (Mataloto, Estrela e Alves, 2007, p.123).

  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedro (Redondo), 3.º milénio a.n.e. 

    Catarina Costeira 14 

    O conjunto artefactual cerâmico associado a esta ocupação é marcado pela

    presença expressiva de formas esféricas e globulares maioritariamente lisas, taças

    carenadas, almagradas e de bordo espessado, e alguns pratos de bordo espessado, largo

    e aplanado. A esta fase associam-se, possivelmente, os primeiros indícios da prática

    metalúrgica com a presença de cadinhos e raros artefactos em cobre.

    Esta ampla estrutura fortificada terá sido desactivada e desmantelada no final do

    primeiro quartel do 3.º milénio a.n.e., sendo mais uma vez difícil de indicar se ocorreu

    um abandono efectivo do sítio ou se a sua ocupação continuou com a mutação

    arquitectónica e a reformulação espacial.

    O povoado da fase III ergueu-se e organizou-se sobre as ruínas e as fundações

    do anterior, sem sistema de delimitação e constituído maioritariamente por estruturas

    construídas em materiais perecíveis, o que lhe conferiu uma fraca expressão

    arquitectónica. As principais evidências desta fase identificaram-se no lado Norte

    (sector D), materializando-se em vestígios de uma lareira, de algumas estruturas

    negativas de apoio, de um conjunto de buracos de poste relacionados e de um

    compartimento de planta rectangular com paredes de xisto e telhado possivelmente de

    duas águas (Figura 23). Estamos assim perante realidades de difícil caracterização,

    pouco resistentes à afectação das ocupações posteriores, sobretudo as que se situavam

    na zona central do povoado (sectores A e B). A fragilidade estrutural desta fase e os

    constrangimentos na sua interpretação não permitiram ainda o desenho da sua planta,

    optando-se por inserir o compartimento rectangular do ambiente Norte na planta da fase

    anterior (Figura 30).

    Apesar de em termos materiais não se terem detectado alterações significativas

    nesta terceira fase, a sua descontinuidade arquitectónica e a existência de potentes níveis

    de escombros, individualizaram-na da ocupação anterior.

    Na transição do primeiro para o segundo quartel do 3.º milénio a.n.e. o espaço de

    S. Pedro reformulou-se completamente com a construção de uma nova estrutura de

    fortificação (fase IV), de planta ovalada, ligeiramente achatada, com um vão orientado

    a Nascente e um conjunto de torres adossadas pelo exterior, delimitando um espaço de

    cerca de 200 m2 (Figuras 26 e 31). As torres que constituíam esta estrutura sofreram

    alterações ao longo do tempo: inicialmente erguia-se uma torre oca a Norte, outra a

    Nascente e outra a Oeste, sendo posteriormente acrescentada uma torre maciça de

    menor dimensão a Sudeste, que teria sido desactivada com a construção de uma nova

    torre oca a Sul. Apesar destas alterações a fisionomia da muralha permaneceu

  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedro (Redondo), 3.º milénio a.n.e. 

    Catarina Costeira 15 

    praticamente inalterada. Na área central sucederam-se várias estruturas de planta

    circular e paredes espessas, interpretadas como cabanas-torre (Figuras 24 e 25), o que

    “(…) poderá evidenciar não só uma intensa actividade construtiva, mas também

    destrutiva, quer por motivos técnicos (…), quer por motivos externos (…)” (Mataloto,

    2010, p.275).

    No exterior da fortificação identificou-se uma quantidade assinalável de

    vestígios de construções domésticas, nomeadamente estruturas negativas de tipo

    silo/fossa, conjuntos de buracos de poste e muros de pedra que, associados a materiais

    perecíveis, estruturariam cabanas. A proliferação e a diversidade destas estruturas, e a

    exiguidade do espaço delimitado, parecem indicar que a maioria das áreas de actividade

    e de residência se localizavam fora das muralhas. Assim, o povoado seria uma realidade

    mais ampla do que o espaço fortificado (Mataloto, Estrela e Alves, 2007, p.125).

    O conjunto artefactual da fase IV distingue-se do das fases anteriores pela

    predominância das formas abertas, nomeadamente dos pratos de bordo simples e

    almendrado, e pelo desaparecimento das taças carenadas. Os recipientes decorados com

    motivos geométricos e simbólicos permanecem minoritários.

    A desactivação deste povoado terá ocorrido gradualmente em meados do 3.º

    milénio a.n.e., surgindo posteriormente sobre as suas ruínas e derrubes uma nova

    ocupação (fase V), sem estrutura delimitadora, constituída por cabanas de planta

    circular com embasamento pétreo (Figuras 27 e 32) e por algumas estruturas negativas

    de apoio habitacional.

    Em termos materiais destaca-se a presença de raros fragmentos de cerâmica

    campaniforme de estilo inciso, com gramáticas decorativas semelhantes aos conjuntos

    do tipo Ciempozuelos (Mataloto, 2010, p.284).

    Após o abandono das estruturas da fase V construi-se um empedrado (Figura 28)

    sobre o traçado da antiga muralha. Esta estrutura tinha morfologia circular e 4 m de

    largura, não se desenvolvendo em altura (Mataloto e Müller, no prelo). Os autores da

    escavação interpretaram esta construção como um “acto de evidenciamento do

    Passado”, atribuindo-lhe um significado simbólico (Mataloto, Estrela e Alves, 2007,

    p.126).

    O enquadramento cronológico da última fase e o abandono total do sítio

    enquanto povoado não são ainda possíveis de definir com clareza. Torna-se necessário

    aguardar pela interpretação global da estratigrafia e pela realização de novas datações de

    radiocarbono, uma vez que as seis efectuadas até ao momento resultaram bastante

  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedro (Redondo), 3.º milénio a.n.e. 

    Catarina Costeira 16 

    homogéneas e estatisticamente concordantes, o que tem dificultado a leitura fina do

    faseamento do povoado (Mataloto e Müller, no prelo).

    Na análise sequencial dos cinco povoados verificou-se a alternância entre

    complexos de fortificação e ocupações sem estruturas delimitadoras. Esta diversidade

    de cenários, mais do que contribuir para a famosa discussão da dicotomia

    aberto/fechado, fortificado/não fortificado, exige uma reflexão da problemática da

    continuidade e da ruptura, ou seja, se os vários povoados podem ser lidos como uma

    sucessão de construções realizadas por uma mesma comunidade que se transforma e se

    adapta a novas situações ou se a pluralidade arquitectónica revela a presença de grupos

    diferentes com estratégias díspares de implantação e de vivência.

    2.4 Os povoados de S. Pedro no Alentejo Central no final do 4.º e

    durante o 3.º milénio a.n.e.

    Será preciso quebrar primeiro a nossa luneta de horizontes pequenos, e alargar, depois, o compasso com que habitualmente medimos o tamanho do que nos circunda. Teremos, portanto de, mudar de ritmo e de visor.

    Miguel Torga, 1993

    A imagem da ocupação humana no final do 4.º e no 3.º milénio a.n.e. no Sul da

    Península Ibérica, nomeadamente no Alentejo, Estremadura espanhola e Andaluzia,

    sofreu uma profunda transformação a partir das últimas décadas do século XX. O

    aumento significativo de intervenções arqueológicas de minimização de impactos,

    decorrentes do desenvolvimento de núcleos urbanos e rurais e da construção de grandes

    infra-estruturas, como a Barragem de Alqueva, ampliou exponencialmente o número de

    contextos enquadrados nesta cronologia.

    O aumento de dados exigiu o redimensionar de horizontes, uma vez que não só

    existiam mais sítios como surgiam realidades de grandes dimensões e de amplas

    diacronias. A imagem e o quadro conceptual a que tradicionalmente se associava a

    ocupação calcolítica, baseada em povoados fortificados de altura, relativamente

    solitários e distantes entre si, transformou-se num polimorfismo de espaços, estruturas e

    arquitecturas dinâmicas em contacto e conexão, localizadas em áreas territoriais

  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedro (Redondo), 3.º milénio a.n.e. 

    Catarina Costeira 17 

    adjacentes. Esta proliferação de sítios de habitat conduziu a que se inviabilizasse a sua

    análise isolada e se pensasse o povoamento regional através de redes estruturadas e da

    hierarquização dos vários povoados em função da sua dimensão. No entanto, a

    informação disponível para os sítios arqueológicos de uma mesma área geográfica é

    normalmente muito desigual, o que impõe um constante reformular das malhas de

    povoamento desenhadas com o surgir de novas realidades.

    Os dados actualmente disponíveis parecem indicar que o final do 4.º milénio

    a.n.e. no Alentejo Central é caracterizado pelo surgimento de amplos povoados com

    fossos, implantados em áreas planas e abertas de grande potencial agrícola e abundantes

    recursos hídricos, como são os casos de Juromenha 1 (Alandroal, Calado, 2001),

    Malhada das Mimosas (Alandroal, Calado, 2001), Águas Frias (Alandroal, Calado,

    2005), Perdigões (Reguengos de Monsaraz, Lago et. al., 1998 e Valera et. al., 2007) e

    San Blás (Cheles, Badajoz, Hurtado, 2002, 2004). Este processo de concentração

    populacional terá sido conturbado e instável, como evidenciam as reformulações e

    curtas ocupações de alguns destes sítios. De facto, com a consolidação do sistema agro-

    pastoril a permanência dos grupos humanos aumentou, exigindo novos investimentos

    nos espaços habitacionais e produtivos. A identificação do grupo ao seu espaço e a

    crescente pressão humana sobre os territórios terão sido propícios ao desenvolvimento

    de tensões sociais. Os fossos que cercavam estes povoados constituíam linhas

    delimitadoras, que não inviabilizando completamente a passagem, a dificultavam,

    podendo ser um reflexo dessa instabilidade. No entanto, não se exclui totalmente a

    associação dos fossos a outras funcionalidades.

    Na transição do 4.º para o 3.º milénio a.n.e. documentam-se profundas mudanças

    no povoamento, evidentes no abandono de alguns povoados com fossos (Juromenha e

    Malhada das Mimosas), na emergência e consolidação de outros, e na ocupação de

    elevações proeminentes na paisagem como novo desafio de organização territorial.

    O primeiro quartel do 3.º milénio a.n.e. caracterizou-se por uma nova forma de

    ocupação em altura com a construção de sistemas de fortificação pétreos,

    defensivamente muito diferentes das grandes instalações com fossos. Para esta

    dualidade construtiva de realidades contemporâneas avançou-se a hipótese de poderem

    constituir duas culturas diferentes: “(...) de um lado, fossos, de outro muralhas (…)”

    (Gonçalves e Sousa, 2006, p.248), mas não totalmente apartadas. No entanto, a

    proximidade geográfica dos povoados, a coincidência de muitas das suas fases,

    nomeadamente as de crescimento, associadas à semelhança das estruturas habitacionais

  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedro (Redondo), 3.º milénio a.n.e. 

    Catarina Costeira 18 

    e de apoio, e a total ausência de dados antropológicos e biométricos que diferenciem as

    duas populações (Boaventura, 2009; Mataloto e Boaventura, no prelo, p.42), constituem

    alguns dos argumentos que fragilizam esta interpretação.

    Se admitirmos que fossos e muralhas se combinam na estruturação do

    povoamento, muitos dos povoados fortificados do 3.º milénio a.n.e. poderão ser lidos

    enquanto estruturas defensivas e marcadores de territórios, com o seu centro na planície,

    como o modelo proposto para La Pijotilla (Hurtado, apud Calado, 2001, p.132). Neste

    sentido, pode-se considerar que os povoados de planície de grandes dimensões

    delimitados por fossos, e por vezes com estruturas pétreas associadas, exerciam um

    papel de destaque pela provável concentração de indivíduos e de excedentes, e talvez

    pela relevância simbólica sobre um território, como é sugerido para La Pijotilla

    (Hurtado, apud Calado, 2001, p.132) e para Perdigões (Evangelista, 2003, p.154). Os

    povoados fortificados de altura, sendo espaços habitacionais multifacetados, seriam

    elementos dissuasores e defensivos implantados nos limites destes territórios. A relativa

    uniformidade da cultura material ao longo deste milénio pode ser um indício da

    comunicação e inter-relação entre estas realidades, que partilhavam elementos culturais

    comuns.

    No segundo quartel do 3.º milénio a.n.e. verifica-se a intensificação das

    estruturas de fortificação, “(…) que assumirão forte carácter identitário, produzindo

    uma notável transformação da paisagem, que surgirá agora bastante mais

    compartimentada” (Mataloto e Boaventura, no prelo, p.44).

    O final do milénio no Alentejo Central é marcado por uma profunda

    reconfiguração das estruturas de povoamento, com o abandono de muitos dos povoados

    de planície e de altura e o consequente desmembramento das redes territoriais em que se

    organizavam. Aparentemente os povoados tornaram-se mais pequenos e com menos

    sinais de permanência, integrando-se em territórios mais segmentados. No entanto, a

    diversidade de espaços de povoamento manteve-se com ocupações de altura e de

    planície, muitas vezes coincidentes com a localização de povoados anteriores, mas sem

    evidências de estruturas delimitadoras, como ocorreu nos sítios de S. Pedro, Monte

    Tosco, Porto das Carretas ou Perdigões. Estas ocupações, que se ergueram sobre as

    antigas ruínas ou em espaços novos, com inovações artefactuais, como a cerâmica

    campaniforme, e a intensificação da metalurgia, apresentavam algumas linhas de

    continuidade material e uma certa conexão com os antigos espaços, provavelmente

    interpretados como antepassados dos “(…) intervenientes e talvez principais actores das

  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedro (Redondo), 3.º milénio a.n.e. 

    Catarina Costeira 19 

    transformações ocorridas (…)”: “(…) as populações locais e regionais (…)” (Calado,

    2001, p.134).

    Para finalizar, pretende-se enquadrar os povoados de S. Pedro a uma escala mais

    local: a vertente Sul da Serra d’Ossa. Nesta área conhecem-se diversos sítios com

    vestígios de ocupações integrados no final do 4.º milénio a.n.e. e sobretudo ao longo do

    3.º milénio a.n.e., como se observa pela densidade de pontos marcados nos mapas das

    Figuras 8 e 9. A maioria dos dados disponíveis resultou de trabalhos de prospecção

    realizados no âmbito de um projecto de investigação (Calado, 1995) e da elaboração da

    carta arqueológica de Redondo (Calado e Mataloto, 2001), tendo sido escavados apenas

    dois povoados: o de S. Gens e o de S. Pedro; o primeiro só alvo de algumas sondagens

    (Mataloto, 2005) e o segundo escavado intensamente em área. Esta disparidade no

    volume e na proveniência da informação limita a análise comparativa dos vários sítios,

    uma vez que os dados exclusivamente de superfície são muito mais problemáticos do

    que os obtidos em escavação. Apesar destes constrangimentos tenta-se estabelecer o

    diálogo entre os vários locais partindo do povoado de S. Pedro, não porque seja o

    centro, mas porque é o mais conhecido.

    A escassos quilómetros a Norte detecta-se na planície uma ampla área de

    dispersão de materiais, genericamente enquadráveis na transição do 4.º para o 3.º

    milénio a.n.e., designada por sítio do Monte da Ribeira, cujas características de

    implantação parecem indicar que estamos perante um povoado com fossos (Calado,

    2001 e Mataloto, 2010, p.289). A Noroeste, numa elevação de encostas suaves,

    identifica-se o sítio das Pereiras, com um conjunto artefactual composto por elementos

    típicos do Calcolítico inicial (taças carenadas e bordos espessados) mas também por

    alguns materiais tardios de contextos campaniformes. Esta diversidade sugere que o

    sítio tem uma ampla diacronia, mantendo-se activo ao longo de todo o 3.º milénio a.n.e.

    Nos cerros da Serra d’Ossa mais próximos da planície identificam-se sítios como

    Argolia, Monte do Outeiro e Pica na Velha; o primeiro de difícil caracterização e os

    dois últimos provavelmente dos inícios do 3.º milénio a.n.e., dada a presença de formas

    abertas e de bordos espessados. No topo da serra, numa posição de grande

    defensabilidade natural e controlo visual sobre a planície e principais portelas, ergue-se

    o povoado fortificado de S. Gens, de reduzidas dimensões e com um conjunto material

    do Calcolítico inicial. A Este, na crista rochosa que baliza a planície de Redondo,

    encontram-se dois sítios possivelmente fortificados, Caladinho e Vinha, com materiais

  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedro (Redondo), 3.º milénio a.n.e. 

    Catarina Costeira 20 

    do Calcolítico pleno. A Oeste detecta-se uma ocupação em altura pouco conhecida,

    provavelmente fortificada – o sítio do Almo, e diversos pequenos sítios, enquadráveis

    no Calcolítico inicial, localizados em baixas elevações como o Colmeeiro 2 e em áreas

    planas, como o Cabido e a Craveira.

    Os indícios de ocupação do final do 4.º milénio a.n.e. são escassos, podendo

    enquadrar-se nesta cronologia as primeiras fases dos povoados do Monte da Ribeira e

    de S. Pedro, o que nos remete para a diversidade de locais de implantação, como

    verificado para outras áreas próximas.

    No início do 3.º milénio a.n.e. os povoados tornaram-se mais expressivos e

    diversificados, correspondendo a um “(…) momento de particular expansão

    demográfica e clara intensificação produtiva (…)” (Mataloto, 2010, p.290). As

    ocupações em altura aumentaram e complexificaram-se com a construção de estruturas

    pétreas de delimitação, como se observa no povoado II de S. Pedro, no S. Gens, e

    provavelmente no Almo e na Argolia, mantendo-se os povoados de fossos como o do

    Monte da Ribeira. Se este último povoado se confirmar como um sítio de entidade e de

    dimensão, na senda de outros povoados de planície do Alentejo Central, terá

    desempenhado um importante papel na organização do povoamento desta área,

    enquanto centro coordenador de um território. Nesta perspectiva, as fortificações que

    envolviam a planície podem ser interpretadas como uma cintura delimitadora e

    identificadora de um grupo coeso, possivelmente com funções defensivas decorrentes

    de “(…) pressões demográficas e produtivas exercidas por grupos externos.” (Mataloto,

    2010, p.290).

    A rede de povoamento descrita transformou-se completamente no final do

    primeiro quartel do 3.º milénio a.n.e., com o abandono total de alguns povoados

    fortificados como o de S. Gens, o desenvolvimento de uma ocupação sem estrutura de

    delimitação no sítio de S. Pedro (fase III) e o declínio do Monte da Ribeira.

    No segundo quartel do 3.º milénio a.n.e. o povoamento em altura reforçou-se,

    como é visível na edificação da segunda fortificação do povoado de S. Pedro (fase IV),

    no surgimento dos povoados do Caladinho e da Vinha, e talvez nas novas fases dos

    povoados das Pereiras e do Almo. O fortalecimento destas estruturas aparentemente não

    foi acompanhado pelo crescimento de nenhum povoado com fossos, o que pode resultar

    da superficialidade dos dados do povoado do Monte da Ribeira e do desconhecimento

    de outras realidades deste tipo na planície central de Redondo, mas também da sua não

  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedro (Redondo), 3.º milénio a.n.e. 

    Catarina Costeira 21 

    existência. Nesta última hipótese o “centro” seria um povoado mais afastado,

    provavelmente o de Perdigões ou o de San Blás.

    No final do milénio as transformações neste território foram acentuadas com a

    redução do número de povoados, o que pode ter resultado de um efectivo declínio

    populacional como sugeriu Manuel Calado (2001, p.134), mas também do ritmo da

    investigação. Na área em estudo identificam-se materiais associáveis a esta cronologia

    no povoado da Fonte Ferrenha, no das Pereiras e no povoado V de S. Pedro, o que

    evidencia uma preferência por sítios elevados, com visibilidade e defensabilidade,

    muitos deles com anteriores ocupações. Este novo povoamento diversificado e instável

    transformou as dinâmicas territoriais.

  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedro (Redondo), 3.º milénio a.n.e. 

    Catarina Costeira 22 

    3 Os componentes de tear na investigação arqueológica

    3.1 Breve história da investigação dos componentes de tear

    (…) Nós, como outros, somos apenas mais um momento da história de um artefacto que continua.

    Branco, G., 2007, p.20

    As placas e crescentes de cerâmica, designados por componentes de tear, são

    presença constante nos contextos relacionados com as comunidades calcolíticas da

    Península Ibérica, ocorrendo com maior expressão nos sítios de habitat e de forma mais

    restrita e pontual nas necrópoles. Tornaram-se assim peças incontornáveis, ainda que

    dificilmente compreensíveis, para as sucessivas gerações de arqueólogos peninsulares

    que, desde os finais do século XIX até à actualidade, as tentam analisar e interpretar

    com os métodos disponíveis.

    Neste capítulo procura-se traçar a história da investigação dos componentes de

    tear, definindo três fases distintas de análise e de interpretação que, não tendo limites

    rígidos, se associam às principais transformações epistemológicas da arqueologia

    portuguesa.

    3.1.1 O final do século XIX e a primeira metade do século XX

    Estes objectos, sobre cuja utilização os pré-historiadores não estão de acordo, pois uns consideram-nos pesos de tear, outros elementos de fornos de fundição ou de aplicação indeterminada (…)

    Paço, A., 1940, p.235

    A consolidação da arqueologia enquanto disciplina científica ocorreu em

    Portugal na segunda metade do século XIX, acompanhando, ainda que de forma lenta,

    as mudanças e inovações epistemológicas que marcaram a Europa oitocentista. Os

    pioneiros desta disciplina tinham formações, técnicas e objectivos muito diversificados

    (Gonçalves e Diniz, 1993-1994, p.185), organizando-se em instituições como a

    Comissão Geológica de Portugal, que desenvolveu uma arqueologia de terreno

  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedro (Redondo), 3.º milénio a.n.e. 

    Catarina Costeira 23 

    principalmente centrada na Pré-história, a Real Associação dos Architectos Civis e

    Archeologos Portuguezes, dedicada à identificação, estudo e conservação do património

    arqueológico de épocas históricas, e em Sociedades Archeológicas, vocacionadas para o

    estudo e divulgação do património local e regional. O dinamismo destas instituições

    científicas evidenciou-se na pluralidade e na diversidade de publicações periódicas e

    monográficas (idem, p.186).

    Uma das Figuras de destaque desta época foi Sebastião Philippes Estácio da

    Veiga, “o primeiro arqueólogo profissional português” (Fabião, 1999, p.112),

    incumbido pelo Estado de elaborar a Carta Arqueológica do Algarve (1876 -1878) e de

    realizar vários trabalhos de campo, cujos resultados publicou nos primeiros quatro

    volumes da obra Paleoethnologia Antiguidades Monumentaes do Algarve (1886-1911).

    É justamente no terceiro volume que Estácio da Veiga referiu a presença de crescentes,

    descrevendo-os como objectos de “(…) barro mal cozido (…)”, que “(…) teêm a forma

    sub-cylindrica e geralmente são um pouco encurvados (…)” (p.214), com furos e sem,

    identificados em vários sítios do Algarve, principalmente no monumento 4 da necrópole

    de Alcalar (Figura 43).O autor demonstrava muitas dificuldades na interpretação da sua

    funcionalidade, duvidando da associação à tecelagem, “(…) por não ser necessária para

    este serviço a curvatura que alguns demonstram (…)”, e aproximando-se mais da sua

    utilização como “(…) enfeites do pescoço ou do penteado (…)” (p.216).

    José Leite de Vasconcellos é uma Figura incontornável da arqueologia

    portuguesa, enquanto investigador, director do Museu Etnológico Português e professor

    universitário. Em vários artigos da revista O Archeologo Português publicou os

    diversos materiais arqueológicos que observou e recolheu nas suas viagens por

    Portugal, nomeadamente pelo Alentejo. Em alguns destes conjuntos, como o do Castro

    de Vidais (Marvão), o autor deparou-se com placas de argila perfuradas, que

    considerava semelhantes às da Estremadura, interpretando-as por isso como pesos de

    tear, e com crescentes (Figura 44), que julgava “partes de colares” (apud Paço, 1953,

    p.14) – objectos simbólicos sem qualquer relação com a tecelagem.

    A actividade arqueológica portuguesa do final de oitocentos e nas primeiras

    décadas de novecentos é marcada pela excessiva iniciativa individual (Fabião, 1999,

    p.118), em que muitos dos projectos de investigação e de museologia eram tão fugazes

    como a vida dos seus fundadores, e os atritos académicos e as desavenças pessoais eram

    constantes, sobrepondo-se, em algumas situações, ao próprio interesse científico. Estas

  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedro (Redondo), 3.º milénio a.n.e. 

    Catarina Costeira 24 

    querelas tornaram a arqueologia portuguesa demasiado regionalista, produzida em torno

    de líderes científicos com grande poder institucional.

    Vergílio Correia, uma destas Figuras de destaque, dedicou grande atenção ao

    estudo dos pesos de tear. Em 1914 publicou na revista Águia – Órgão da Renascença

    Portuguesa um artigo sobre esta temática, abordando de forma sucinta a história destas

    peças em Portugal desde a Pré-história até aos inícios do século XX (p.181). Neste

    artigo o autor defendeu que os primeiros teares seriam verticais e que teriam surgido no

    Neolítico e no Calcolítico, sendo identificados no registo arqueológico pela presença

    significativa de pesos de tear em cerâmica. Na descrição destas peças V. Correia deu

    ênfase às placas de forma rectangular, referindo a sua morfologia geral e de secção, a

    quantidade de orifícios, as dimensões e as decorações, salientando as diferenças

    decorativas entre o Alentejo e a Estremadura. Num outro artigo, publicado em Espanha,

    dedicado aos sítios arqueológicos da área de Pavia (1921), o autor destacou a presença

    intensa no povoado do Castelo de “placas de barro perfuradas” (p.22) e de “meias

    argolas de barro” (p.23), que ao ter designado por “pesos de tear” refutou a explicação

    simbólica das últimas.

    O trabalho publicado no Arqueólogo Português por Félix Alves Pereira em 1915

    sobre o espólio arqueológico do sítio do Outeiro da Assenta (Óbidos) merece uma

    atenção especial, uma vez que na organização dos artefactos pré-históricos de cerâmica

    criou um campo de análise específico para os pesos, subdividindo-os em três categorias:

    fiação ou cossoiros, de tear e de rede (p.108), dentro das quais definiu vários tipos. Este

    artigo constitui, em nosso entender, a primeira tentativa de organizar tipologicamente os

    artefactos interpretados como pesos, e de problematizar a sua funcionalidade. Importa

    salientar, para o desenvolvimento do presente trabalho, a categoria dos “pêsos de tear

    (…) de barro grosseiro, mas fortemente cozido (…) de tipo de paralelepípedos rectos e

    deprimidos, mas com variantes (…)” (p.125), na qual se enquadram as placas típicas da

    Estremadura. Neste grupo de pesos o autor definiu três tipos com base na morfologia

    das faces e no número de perfurações: quadrado de quatro orifícios, quadrado de dois

    orifícios e oblongo de quatro orifícios. F. A. Pereira, ao interpretar as placas perfuradas

    como pesos de tear, sugeriu que “(…) estes pesos para teares verticais (…) ficavam

    suspensos por dois dos seus orifícios e não pelos quatro ao mesmo tempo. E a razão é

    que não só aparecem pesos desta forma com duas perfurações apenas, mas nos de

    quatro, em grande parte deles, apenas dois orifícios de um dos lados (…) manifestam os

  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedro (Redondo), 3.º milénio a.n.e. 

    Catarina Costeira 25 

    vestígios de uso (…)” (p.126). Esta proposta de colocação de placas na horizontal, com

    a utilização de apenas um dos pares de perfurações, pode ser observada na Figura 34.

    Manuel Heleno publicou uma parte ínfima da informação que recolheu,

    encontrando-se a maioria dos dados das suas pesquisas arqueológicas nos cadernos de

    campo. A propósito dos componentes de tear do Sul, este autor mencionou a presença

    de placas em alguns monumentos megalíticos do Alto Alentejo, referindo o número de

    perfurações (“buracos”) somente em algumas anotações, mas nunca aludindo à

    existência de crescentes (Rocha, 2005, p.147). Esta omissão não foi resultado da sua

    não identificação em campo, uma vez que M. Heleno recolheu artefactos deste tipo no

    povoado de Brissos (idem), mas de não os interpretar como pesos de tear, tendo

    atribuído pouco destaque à sua presença em campo.

    Para além destas personalidades “(…) existiu todo um grupo de homens, que

    poderemos definir como voluntaristas e práticos, que construíram o grupo mais fecundo

    e produtivo, se preferirmos, a verdadeira face da arqueologia portuguesa dos segundo e

    terceiro quartéis do século XX” (Fabião, 1999, p.126). Destes destaca-se Afonso do

    Paço pela relevância que atribuiu aos componentes de tear ao longo da sua vida. Nos

    vários artigos que publicou sobre o povoado fortificado de Vila Nova de S. Pedro (numa

    primeira fase em co-autoria com Eugénio Jalhay) as placas de barro com quatro

    orifícios, lisas e decoradas, eram presença constante, de tal forma que, no Congresso do

    Mundo Português em 1940, apresentou uma comunicação exclusivamente dedicada a

    este tema. Nesta exposição, Afonso do Paço manteve a dúvida quanto à funcionalidade

    das placas, aproximando-se, no entanto, das propostas funcionais e morfológicas de F.

    Pereira, à qual acrescentou mais um tipo: “(…) rectangular de quatro orifícios” (p.236).

    Este conjunto de placas é marcado por um grande número de peças decoradas, com

    técnicas e motivos muito diversificados: zoomórficos (bovídeos e cervídeos),

    geométricos (círculos, linhas ondulantes, ziguezagueantes, reticulados e pontilhados),

    simbólicos e solares. Os elementos decorativos referidos assemelham-se aos de

    figuras rupestres, aos de recipientes cerâmicos e aos de alguns objectos simbólicos,

    como os ídolos de calcário e as placas de xisto gravadas (Figura 35).

    Num artigo posterior dedicado ao estudo das sementes pré-históricas de Vila

    Nova de S. Pedro, a presença de vestígios de linho foi utilizada como argumento para

    Afonso do Paço reforçar a funcionalidade das placas de barro como pesos de tear, uma

    vez que tendo encontrado a matéria-prima podia confirmar a prática da tecelagem: “(…)

  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedro (Redondo), 3.º milénio a.n.e. 

    Catarina Costeira 26 

    mais nos inclinamos a admitir que as tão discutidas placas quadrangulares sejam pesos

    de tear e não elementos de fornos de fundição (…)” (1954, p.338).

    Nos seus trabalhos no Alentejo, nomeadamente no Castro de Vidais (Marvão,

    1953) e no Castelo do Giraldo (em parceria com José Fernandes Ventura, Évora, 1960-

    61), A. Paço registou conjuntos significativos de placas de barro de duas e quatro

    perfurações, morfologicamente semelhantes mas com menos decorações do que as da

    Estremadura, e crescentes com curvaturas e espessuras diversificadas mas sempre com

    duas perfurações. As placas foram associadas sem hesitações à tecelagem, enquanto

    evidência de uma “(…) indústria local e rudimentar de fiação e tecelagem (…)” (Paço,

    1953, p.16). Os crescentes, por seu lado, suscitaram mais dúvidas interpretativas à

    partida, levando o autor a referir as várias explicações em voga sobre a sua

    funcionalidade: “(…) parte de colares (…)”, “(…) componentes de fornos de fundição

    de metais (…)” e “(…) pesos de tear (…)” (Paço, 1953, p.16). No entanto, dada a

    quantidade em que estes artefactos surgiram e a ausência de sinais de fogo conduziram

    o autor a “(…) considerá-los pesos de tear” (Paço e Ventura, 1960-61, p.45).

    É assim evidente a identificação de placas e crescentes em cerâmica desde os

    alvores da actividade arqueológica científica em Portugal.

    As placas apresentam uma maior uniformidade e semelhança, surgindo em sítios

    arqueológicos de diferentes regiões peninsulares: Estremadura, Alentejo e Andaluzia. A

    interpretação destes objectos como pesos de tear era relativamente unânime na

    comunidade arqueológica portuguesa, afastando-se das explicações de alguns autores

    que estudaram sítios espanhóis, como Frederico Motos (1918), que os associavam a

    fornos metalúrgicos. Os crescentes surgem mais localizados no Sul da Península, não

    sendo a sua funcionalidade consensual, uma vez que se alguns autores, como V.

    Correia, os consideravam pesos de tear, relacionando-os com as placas, outros, na linha

    de Estácio da Veiga e J. L. Vasconcellos, interpretavam-nos como objectos de adorno,

    não havendo muitos apoiantes, na comunidade científica portuguesa, da proposta dos

    irmãos Sirets (1917) da sua associação à fundição metalúrgica. Na Figura 49 reproduz-

    se um forno de fundição com crescentes, de acordo com a proposta destes últimos

    autores.

    A descrição das placas é relativamente semelhante nos vários investigadores,

    destacando-se como critérios a morfologia das faces, a forma da secção, o número de

    perfurações e a presença de decoração, ainda que a terminologia seja diversificada:

  • Os componentes de tear do povoado de S. Pedr