novos conteúdos nas periferias urbanas das cidades médias ... · um conjunto de transformações...

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Investigaciones Geográficas, Boletín del Instituto de Geografia-UNAM ISSN 0188-4611, núm. 54, 2004, pp. 114-139 Novos conteúdos nas periferias urbanas das cidades médias do Estado de São Paulo, Brasil Maria Encarnação Beltrão Sposito* Recibido: 3 de enero de 2003 Aceptado en versión final: 28 de agosto de 2004 Resumo. As cidades brasileiras tiveram suas estruturas urbanas orientadas por relações do tipo centro-periferia, no âmbito das quais as áreas centrais eram caracterizadas como as melhor equipadas e as periféricas pelo uso residencial dos segmentos de menor poder aquisitivo, marcadas pela precariedade de condições de vida individual e coletiva. Um conjunto de transformações nas formas de produção do espaço urbano, cada vez mais associadas à realização dos interesses fundiários e imobiliários, tem gerado a redefinição dos conteúdos econômicos, sociais e culturais do "centro" e da "periferia" dessas cidades, seja em função de novos equipamentos comerciais e de consumo, seja pela reorientação do interesses industriais ou, com maior peso, pela implantação de novos habitats urbanos. Neste artigo, essa dinâmica é analisada, tomando-se como referência o Estado de São Paulo-Brasil e como foco suas cidades médias. Palavras-chave: Reestruturação urbana, Centro x periferia, Cidades médias. Nuevos contenidos en las periferias urbanas de las ciudades intermedias del Estado de São Paulo, Brasil Resumen. Las ciudades brasileñas tuvieron sus estructuras urbanas orientadas por relaciones del tipo centro-periferia, en el ámbito de las cuales las áreas centrales eran las mejor equipadas y la periferia urbana se caracterizaba por la con- centración de áreas residenciales de los segmentos de menor poder adquisitivo, marcadas por la precariedad de condi- ciones de vida individual y colectiva. Un conjunto de transformaciones en las formas de producción del espacio urbano, cada vez más asociadas a la realiza- ción de los intereses inmobiliarios, ha generado la redefinición de los contenidos económicos, sociales y culturales del "centro" y de la "periferia" de esas ciudades, sea en función de nuevos equipamientos comerciales y de consumo, sea por la reorientación de intereses industriales, o, con mayor importancia, por la implantación de nuevos hábitats urba- nos. * Departamento de Geografía, Faculdade de Ciencias e Tecnología, UNESP - Universidade Estadual Paulista, Campus de Presidente Prudente, SP - Brasil, Pesquisadora do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, Enderço eletrônico: [email protected]

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Investigaciones Geográficas, Boletín del Instituto de Geografia-UNAMISSN 0188-4611, núm. 54, 2004, pp. 114-139

Novos conteúdos nas periferias urbanasdas cidades médias do Estado de São Paulo, Brasil

Maria Encarnação Beltrão Sposito* Recibido: 3 de enero de 2003Aceptado en versión final: 28 de agosto de 2004

Resumo. As cidades brasileiras tiveram suas estruturas urbanas orientadas por relações do tipo centro-periferia, noâmbito das quais as áreas centrais eram caracterizadas como as melhor equipadas e as periféricas pelo uso residencialdos segmentos de menor poder aquisitivo, marcadas pela precariedade de condições de vida individual e coletiva.

Um conjunto de transformações nas formas de produção do espaço urbano, cada vez mais associadas à realização dosinteresses fundiários e imobiliários, tem gerado a redefinição dos conteúdos econômicos, sociais e culturais do"centro" e da "periferia" dessas cidades, seja em função de novos equipamentos comerciais e de consumo, seja pelareorientação do interesses industriais ou, com maior peso, pela implantação de novos habitats urbanos.

Neste artigo, essa dinâmica é analisada, tomando-se como referência o Estado de São Paulo-Brasil e como foco suascidades médias.

Palavras-chave: Reestruturação urbana, Centro x periferia, Cidades médias.

Nuevos contenidos en las periferias urbanas de lasciudades intermedias del Estado de São Paulo, Brasil

Resumen. Las ciudades brasileñas tuvieron sus estructuras urbanas orientadas por relaciones del tipo centro-periferia,en el ámbito de las cuales las áreas centrales eran las mejor equipadas y la periferia urbana se caracterizaba por la con-centración de áreas residenciales de los segmentos de menor poder adquisitivo, marcadas por la precariedad de condi-ciones de vida individual y colectiva.

Un conjunto de transformaciones en las formas de producción del espacio urbano, cada vez más asociadas a la realiza-ción de los intereses inmobiliarios, ha generado la redefinición de los contenidos económicos, sociales y culturales del"centro" y de la "periferia" de esas ciudades, sea en función de nuevos equipamientos comerciales y de consumo, seapor la reorientación de intereses industriales, o, con mayor importancia, por la implantación de nuevos hábitats urba-nos.

* Departamento de Geografía, Faculdade de Ciencias e Tecnología, UNESP - Universidade Estadual Paulista,Campus de Presidente Prudente, SP - Brasil, Pesquisadora do CNPq, Conselho Nacional de DesenvolvimentoCientífico e Tecnológico, Enderço eletrônico: [email protected]

Novos conteúdos nas periferias urbanas das cidades médias do Estado de São Paulo, Brasil

News contents in the urban peripherys of theintermediary citys of State Sao Paulo, Brazil

Abstract. Brazilian cities have had their urban structures oriented by relations of the kind city center-periphery, wherethe central areas have been characterized as better equipped and the periphery as residential area for the lower-income classes, marked by poor individual and collective life conditions.

A set of transformations in the forms of urban space production, increasingly associated with interests in real-estateand land ownership, have produced a redefinition of the economic, social and cultural contents of the "city center"and the "periphery" of these cities, either because of the new commercial and consume equipment, or the reorienta-tion of industrial interests, or, more significantly, by the implementation of new urban habitats.

In this article this dynamics is analyzed having as a reference the State of Sao Paulo, Brazil, and as its focus the state'smedium-size cities.

Key words: Urban restructuration, city center x periphery, medium-size cities.

INTRODUÇÃO

A urbanização brasileira contemporânea foi,marcadamente, influenciada pelas transfor-mações econômicas, políticas, sociais e espa-ciais propiciadas pela intensificação e mu-dança nas formas de articulação do Brasilcom a economia capitalista.

O conjunto dessas transformações inicia-se, ainda, no século XIX e tem suporte naexpansão da economia cafeeira, que promo-veu a apropriação do território paulista embases capitalistas e a constituição de umaformação socioespacial que, baseada na agri-cultura, gerou a industrialização e a estru-turação de uma rede urbana com cidades dediferentes portes, e uma complexa divisãoterritorial do trabalho entre a cidade e ocampo, e entre as cidades.

Neste artigo, interessa-nos focar as mu-danças ocorridas nas duas últimas décadasdo século XX, nas quais as cidades médiaspaulistas têm ampliado seus papéis econô-

micos, seja pela descentralização territorialdas unidades de produção industrial dametrópole para o interior, seja pela multipli-cação das atividades comerciais e de servi-ços nelas sediadas. Essas dinâmicas redefi-nem e aprofundam a complexa divisão terri-torial do trabalho iniciada pela constituiçãodo complexo cafeeiro e pela industrializaçãoe urbanização que, dessa constituição, fize-ram parte e a partir dela se ampliaram.

Um dos mercados que mais cresceu e sediversificou, no Estado de São Paulo, nodecorrer dos últimos 30 anos, é o de terras ede imóveis urbanos. Além da concentraçãode renda, duas dinâmicas alimentam esseprocesso -significativo crescimento vegetati-vo e urbanização acelerada- ambas reforça-doras dos papéis urbanos desempenhadospor cidades médias, já que se acompanharamde concentração fundiária no campo e dimi-nuição dos papéis das cidades pequenas.

O resultado desse movimento é a consti-tuição de estruturas urbanas mais complexas

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En el artículo, esta dinámica es analizada, tomando como referencia el Estado de Sao Paulo (Brasil) y como foco susciudades medias.

Palabras clave: Reestructuración urbana, Centro vs. Periferia, Ciudades intermedias.

Maria Encarnação Beltrão Sposito

e a redefinição da periferia urbana, em ter-mos das formas produzidas e de seus con-teúdos. Assim, o que se observa é a justa-posição contraditória de conjuntos habita-cionais implantados pelo poder público, lo-teamentos populares, cuja paisagem urbanaresulta da autoconstrução, e loteamentosvoltados aos de maior poder aquisitivo,alguns fechados e controlados por sistemasde segurança particulares.

Esta pluralização da paisagem e dosconteúdos da periferia urbana revela novaspráticas socioespaciais, novas formas de di-ferenciação e segregação urbana e, por fim,aponta para uma fragmentação territorial esocial da cidade.

Para contribuir à compreensão desse pro-cesso, recuperamos, neste texto, a análiseempreendida por diferentes autores acercadas relações entre centro e periferia na estru-turação das cidades.

O objeto principal de análise será, comojá foi destacado, a realidade das cidadesmédias paulistas, dando-se atenção especialao enfoque das novas formas de habitaturbano nessas cidades -os loteamentos fe-chados.

Nosso intuito, entretanto, não é, apenas, ode mostrar as mudanças pelas quais essascidades vêm passando a partir da implan-tação desses loteamentos, mas, também,contribuir para um repensar dos conteúdosespaciais e culturais da periferia urbana nascidades atuais.

PERSPECTIVA HISTÓRICA

A continuidade, a complexidade, a concen-tração e a capacidade de se renovar sãoconsideradas, por Benevolo (1983:269-282),caracteres gerais das cidades desde aAntiguidade.

A eles, podemos associar a expansãoterritorial das cidades, ainda que ela venhaocorrendo com intensidade e lógicas que sedistinguem no âmbito de diferentes modosde produção e formações sociais.

Há grande associação entre a urbanizaçãoque sucedeu à Primeira Revolução Industriale o crescimento rápido dos tecidos urbanos,gerando processos de suburbanização.

Entretanto, Mumford (1998:522) ressaltaque o fenômeno é, historicamente, bastanteanterior ao afirmar que:

... o subúrbio se torna visível quasetão cedo quanto a própria cidade, etalvez explique a capacidade de so-brevivência da cidade antiga, frenteàs condições insalubres que pre-dominavam dentro dos seu muros...Se temos dúvidas quanto ao traçado eao núcleo central da cidade egípcia,há tanto pinturas quanto modelosfunerários que nos mostram a vilasuburbana, com seus espaçosos jardins(grifo nosso).

Esse mesmo autor (p. 523) afirma que osdocumentos relativos à Alta Idade Médiaindicam que construções -tendas, cabanas,vilas- cercadas de jardins brotavam forados muros da cidade. Na mesma linha,referindo-se à cidade medieval, Benevolo(1983:269) caracteriza-a como

... um corpo político privilegiado, e aburguesia da cidade é uma minoriada população total, que cresce rápidae continuamente desde o início doséculo XI até a metade do século XIV.Portanto, a concentração é sua leifundamental; o centro da cidade é olocal mais procurado; as classes

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abastadas moram no centro, as maispobres na periferia... (grifos nossos).

Sem dúvidas, na Idade Média, a concen-tração urbana ganhou sua maior força, pois,segundo Sellier (1992:455),1 as cidades esta-vam restritas aos muros que as fortificavam,sendo que, à medida que a população cres-cia, as construções aumentavam em altura,as ruas se retraíam e os espaços livresdesapareciam.

Ainda que o espaço da cidade medievalestivesse definido pela presença da muralha,Le Goff (1998:17) ressalta que os postos decomando estavam nos palácios epicospais ounos castelos, em torno dos quais

... constituem-se dois tipos de terri-tórios: de um lado, a cidade pro-priamente dita, cingida em tornodeles e entremeada de campos, e, deoutro, os burgos da periferia. Desde oséculo XII, a evolução das cidadesmedievais constituiu na reunião, len-ta e numa única instituição, do nú-cleo primitivo da cidade e de um oudois burgos importantes. A cidadevia portanto lançar seu poder sobrecerta extensão em volta, na qualexercerá direitos mediante coleta detaxas: é o que se chamará de subúr-bio (grifo nosso).

Pirenne (1965:48) descreve as conse-qüências do ressurgimento do comércio, nasegunda metade do século X, afirmando queas cidades melhor situadas, do ponto de vistada circulação, tornaram-se parada para osmercadores e à medida que eles aumenta-vam em número tinham que se "... Estabele-cer nos arredores da cidade ou anexar a um

burgo antigo um novo ou, para usar o termoque se deu com muita exatidão um foris-burgus, isto é um burgo nos arredores, umarrabalde (faubourg)".

Podemos verificar, assim, que, apesar daconcentração, o processo de extensão dascidades se iniciou há muitos séculos e éconcomitante, no caso da Europa medieval, àpassagem do poder do campo para a cidade.

Descrevendo o que denominou de "épocadas grandes esperanças" (1815-1848), naInglaterra, Benevolo (1994:35 e seguintes)mostra que já tivera origem, na primeirametade do século XIX, um processo deampliação dos tecidos urbanos, a partirde uma dinâmica de periferização dascidades:

As famílias que abandonavam ocampo e afluíam aos aglomeradosindustriais ficavam alojadas nosespaços vazios disponíveis dentrodos bairros antigos, ou nas novasconstruções erigidas na periferia, quedepressa se multiplicaram formandobairros novos e extensíssimos emredor dos núcleos primitivos (p. 35;grifo nosso).

Analisando as transformações decorren-tes da expansão industrial têxtil em Man-chester, Mantoux (s.d.:361-362) afirma que,ao redor das fiações, formando "um cin-turão em torno da cidade antiga", estavamos bairros operários recém construídos,densos e com ruelas; no centro, estava ocomércio e foram abertas ruas largas; e, porfim, totalmente fora da cidade, estavam as"vilas elegantes", local de moradia dos"lordes do algodão".

Tanto a cidade antiga como a medieval ea moderna conheceram, então, processos

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de extensão urbana, associados segundoMumford (1998:522-524) à superioridadehigiênica do subúrbio e a um padrão espa-cial aberto com jardins e pomares rodeandoas edificações.

Não se trata da dinâmica de periferi-zação que se verificou, no decorrer doséculo XX, nos EUA ou nas cidades latino-americanas, diferentes do movimento quese verificou nos séculos anteriores e, tam-bém, bastante diferentes entre si.

No que se refere à suburbanização queocorreu, durante o século XIX, há especifi-cidades que devem ser observadas. A densi-dade continuava a se acentuar e a subur-banização respondia, prevalentemente, aosimpulsos decorrentes do rápido aumentopopulacional e ampliação dos papéis de-sempenhados pela cidade, promovidos pelaindustrialização, logo após a 1a. RevoluçãoIndustrial.

Blumenfeld (1972:54-55) destaca:

Nos países adiantados do século XIX,o desenvolvimento do transporte ma-rítimo e ferroviário e da comunicaçãopelo telégrafo tornou possíveis aexpansão das cidades em grandesregiões e o seu aumento popula-cional. Durante um período, seu cres-cimento foi limitado pelas restriçõesinternas. O transporte dentro dacidade ainda tinha que ser a pé ou acavalo. (...) Essa situação limitava ascidades a um raio de apenas cincoquilômetros a partir do centro. Naausência de elevadores, a cidade tam-bém se encontrava limitada em suaexpansão vertical. O único cresci-mento possível era o preenchimentodos espaços vazios dentro das

cidades. Residências, fábricas, lojas eoficinas se apinhavam em trono docentro. O resultado foi um incrívelaumento no preço da terra.

Essa foi apenas uma fase transitóriano crescimento das cidades, mas suaherança permanece, em estrutura,formas de ruas, instituições e concei-tos. Ainda pensamos e falamos emtermos de 'cidade e campo' e 'cidadee subúrbio... (grifos nossos).

Nesse período, verificamos, então, que aconcentração e a continuidade do tecidourbano eram marcas das cidades, mesmo queas diferenças socioespaciais existissem e ascondições de vida urbana fossem precárias.Em outras palavras, o processo de extensãourbana e de suburbanização ocorriam paripassu ao aumento da concentração demo-gráfica e como expressão dessa dinâmica,fazendo com que a estruturação urbana,apoiada num esquema de centro-periferia, seiniciasse desde o século XIX. Ela resultavanão apenas da expressão, no nível intra-urbano, da separação socioespacial que aorganização sociopolítica capitalista impun-ha, mas ela se refletia, também, nas idéias desocialistas como Charles Fourier (1772-1837),como se pode observar na sua proposta deorganização de uma cidade:

Devem traçar-se três cinturas: a pri-meira contendo a cité ou cidade cen-tral, a segunda contendo os subúrbiose as grandes fábricas, a terceira con-tendo as avenues e a periferia (...)

As três zonas são separadas porcercas, sebes e plantação que nãodevem obstruir a visibilidade2 (grifos

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nossos).

Não se pode afirmar que os ideais so-cialistas foram, de fato, considerados naspráticas urbanísticas que se implementaram,mas, em grande parte, o aparecimento daperiferia foi uma das razões que impôs anecessidade de elaboração de uma legislaçãourbana, como frisou Benevolo (1994:98):

... a teia de interligações urbanísticascriadas pelo desenvolvimento indus-trial torna-se necessariamente eviden-te através da constatação dos incon-venientes de ordem higiênica causa-dos pela desordem e a aglomeraçãodas novas periferias (grifo nosso).

A periferização das principais cidadeseuropéias decorreu da tendência anterior dedensificação dos espaços urbanos, geradapela industrialização e pelo aumento doscontingentes populacionais vivendo emcidades, em detrimento do campo.

Blumenfeld (1972:55) sintetiza bem quaisas determinantes da ruptura entre cidadeconcentrada e tecido urbano contínuo, e oinício da acentuação da periferização emdireção a uma cidade esparsa e descontínua:

A transformação iniciou-se no fim doséculo XIX, com a invenção do tele-fone, do bonde, do metrô e do eleva-dor. Mais forte ainda foi o impactocausado na cidade pelo automóvel e ocaminhão.

Assim, verificamos que se iniciou, aindano século XIX, a mudança do conteúdo sociale cultural da periferia, já que a suburbani-zação que se observava desde a Antigüidadesempre estivera marcada pelo interesse de

"fuga" das elites, em busca de ares maissadios e espaços mais amplos no campo,sendo que os problemas urbanos geradospela rápida industrialização impulsionaram,na segunda metade do século XIX, asprimeiras iniciativas de recuperação dasáreas centrais, de maior peso histórico eexpressão política, promovendo, paralela-mente, o afastamento espacial dos maispobres.

A CIDADE, O CENTRO E A PERIFERIA

Os pontos ressaltados no item anterior mos-tram, então, que o fenômeno da expansãoterritorial urbana não é recente. O quedestacamos é que, no decorrer do século XX,verificou-se a acentuação da suburbanização,ainda que essa dinâmica tenha novas deter-minantes e características. Esse processo,entretanto, reforçou a estruturação urbana dotipo centro periferia.

Os conceitos de centro e periferia sãomúltiplos.

Essa diversidade decorre, em primeirolugar, da possibilidade da aplicação deles,como destacou Reynaud (1993:617), à com-preensão da diferenciação do espaço emmuitas escalas, do espaço urbano ao mun-dial.

Quando projetamos sobre as cidades, asrelações entre centro e periferia, podemos,retomando a idéia de Reynaud, afirmar que aemergência de dois ou mais subconjuntos, nointerior dos espaços urbanos, tem relaçãodireta com os processos de descentralização,viabilizados, como destacou Corrêa (1989:46), pela emergência de meios de transportemais flexíveis e possibilitados pela difusãodo uso de veículos automotores.

Corrêa (1989) adverte, entretanto, que adescentralização é um processo complexo e

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seletivo: -do ponto de vista das atividades-,no que se refere à forma como a descen-tralização ocorre no decorrer do tempo, -emtermos de divisão territorial do trabalho,segundo o tamanho das cidades, e em ter-mos dos diferentes territórios que compõema cidade (pp. 49-50).

As análises e os modelos elaborados, noâmbito da Escola de Chicago, para estudar ospadrões espaciais urbanos, a partir da dé-cada de 1920, refletiam uma estrutura centro-periférica. Dentre esses modelos, destacamosa Teoria nos Núcleos Múltiplos que se basea-va na idéia de uma estrutura policêntrica,como seu nome denota, demonstrando que,desde o final da primeira metade do séculoXX, já se constatava que a estruturaçãourbana era complexa e não poderia ser com-preendida, apenas, pelas relações entre doissubconjuntos -o centro e a periferia.

Para nós, alguns traços essenciais relati-vos ao centro e à periferia devem ser destaca-dos, para uma caracterização inicial dessesterritórios urbanos.

O centro constitui-se por meio de umprocesso de concentração de atividades decomercialização de bens e serviços, de gestãopública e privada, de lazer e de valoresmateriais e simbólicos em uma área dacidade. Embora essa dinâmica possa serreconhecida, desde as cidades antigas, é pormeio do desenvolvimento capitalista que elase acentua, pois com

... a Revolução In-dustrial, as ligaçõesda cidade com o mundo exterior a elaampliaram-se qualitativa e quantitati-vamente (Corrêa, 1989:38).

O papel das ferrovias e a localização deseus terminais nas cidades influenciaram aconcentração de atividades nessas áreas, em

torno das quais também se estruturou otransporte intra-urbano, tornando-as setoresurbanos de grande acessibilidade, mostrandoas intrínsecas relações entre processo, formae funções (Ibid.).

A periferia, por outro lado, define-se,segundo Reynaud (1993:619-623), negativa-mente por comparação ao centro. Ainda quenão esteja se referindo, especificamente aosespaços intra-urbanos, esse autor consideraque centro e periferia não se opõem de formaabsoluta, mas devem ser com-preendidoscomo noções relativas, tanto mais que énecessário integrar, sempre, à análise, avariável temporal.

O tamanho da cidade determina a dis-tância da periferia ao centro e, ao mesmotempo, seu grau maior ou menor de homo-geneidade e extensão. Assim, diferentesfatores concorrem para a formação da peri-feria, desde aqueles próprios do meio físico,passando pelas vias de circulação e pelasirregularidades da produção do solo urbano(Laborde, 1994:167). Para esse autor, o cres-cimento urbano se faz no sentido da periferiafazendo com que o front urbano se desloquecada vez mais, sem que isso ocorra de formacontínua.

A constatação de que a organizaçãoespacial das cidades no século XX tem sidoanalisada, a partir uma estruturação centro-periférica exige, então, considerar não apenasa acentuação de uma dinâmica que seiniciara muito antes, como tentamos mostrarde forma resumida no item anterior, mas,sobretudo, revelar seus novos conteúdos.

OS CONTEÚDOS DA PERIFERIA

Nas cidades estadunidenses, desde os anosde 1910, o processo de periferização, re-conhecido como suburbanização, resultou do

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deslocamento dos segmentos de médiopoder aquisitivo, em busca de mais espaço ede habitações unifamiliares.

Rybczynski (1996:163) atribui o cresci-mento dos subúrbios nos Estados Unidos aoque denomina de uma série de coincidências:disponibilidade de terra; expansão do centrocomercial, absorvendo as áreas residenciaisantes ocupadas pelas famílias ricas e declasse média; presença de transporte (trem ebonde); homens de negócios que tinham in-teresse em criar "novas comunidades".

Naquele país, é incontestável a tendênciaà grande extensão territorial urbana de-corrente da iniciativa de implantação de lo-teamentos nas áreas suburbanas. A impor-tância dessa tendência para a análise daestruturação das cidades contemporâneasestá no seu papel na geração de novasformas de habitat.

Iniciativas semelhantes, em outros países,indicam que essa dinâmica se generalizara.Duas primeiras cidades-jardins foram im-plantadas em Londres (a partir de propostascomo as de Ebezener Howard) e nos anosseguintes o "modelo" se espalhou pelosEstados Unidos, ainda que as iniciativastenham diminuído durante a Depressão etenham sido retomadas, no pós 2a. GuerraMundial, com um padrão urbanístico menoselaborado, a preços menores e gerando umaocupação mais padronizada, desconsideran-do, assim, os princípios que fundamentarama proposta de Howard, já que o interessepassou a ser, apenas, o de vender casas abom preço (Rybczynski, 1996:166-178).

O termo correlato à periferia, em fran-cês -banlieue- tem um significado muito pró-prio, segundo George (1992:521), pois, embo-ra essas extensões urbanas recentes compor-tem setores de moradias de alto nível em

locais privilegiados, o banlieue é identificadocomo um franja mais ou menos contínua deresidências de classes sociais menos favore-cidas, fazendo com que essa parte da cidade,seja identificada como "a parente pobre daaglomeração", com forte dependência dosserviços de qualidade concentrados no cen-tro.

Para Sellier (1992:456), o fenômeno dadescentralização das cidades e de sua exten-são no sentido da periferia procede direta-mente da criação dos banlieues modernos.

Mumford (1998:525) também ressalta aimportância do processo de periferizaçãourbana no século XX e destaca seus novosconteúdos, ao afirmar que:

... o resultado final da separação en-tre o subúrbio e a cidade só se tornouvisível no século XX, com a propa-gação do ideal democrático, valendo-se das conveniências de multipli-cação e da produção em massa. Nomovimento coletivo em direção àsáreas suburbanas, produziu-se umanova espécie de comunidade, queconstituída uma caricatura assim dacidade histórica como do refúgiosuburbano arquetípico: uma multi-dão de casas uniformes, inidentifi-cáveis, alinhadas de maneira infle-xível, a distâncias uniformes, emestradas uniformes, num deserto co-munal desprovido de árvores, habi-tado por pessoas de classe média,mesma renda, mesmo grupo deidade, assistindo aos mesmos pro-gramas de televisão, comendo osmesmos alimentos pré-fabricados esem gosto, guardados nas mesmasgeladeiras, conformando-se, no as-

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pecto externo como no interno, a ummodelo comum, manufaturado nametrópole central. Assim, o efeitoúltimo da fuga suburbana, em nossotempo, é, ironicamente, um ambienteuniforme de baixo grau, do qual éimpossível fugir. O que ocorreu como êxodo suburbano nos Estados Uni-dos ameaça agora, graças aos mes-mos instrumentos mecânicos,verificar-se, em velocidade igual-mente acelerada, em todo o resto domundo -a menos que sejam tomadasas mais vigorosas medidas em con-trário (grifos nossos).

A caracterização apresentada por Mum-ford, em seu livro editado de 1961, anteci-pava os elementos estruturais, do ponto devista da forma e do ponto de vista doconteúdo, que constituiriam a periferia dascidades, nas décadas seguintes da segundametade do século XX.

Constatar que essa caracterização é fatourbano demonstra que sua advertência nãoteve eco, pois a periferização das cidadesimitou o "modelo" estadunidense, com aagravante de que, nos países cuja urbani-zação se acelerou no pós 2a. Guerra Mundial,esses traços tornaram-se mais fortes e reve-ladores das disparidades socioeco-nômicasque marcam, em grande parte, as formaçõessocioespaciais que as engendram.

A PERIFERIA NAS CIDADESBRASILEIRAS

Analisando, também, as formas de extensãoterritorial urbana e se referindo especifica-mente às cidades subdesenvolvidas,3 Santos(1981:187-202) afirmava que o livre jogo daespeculação é responsável pelo deslocamento

do habitai popular para a periferia, fazendocom que dentro da cidade, a acessibilidadeaos diferentes serviços, mais concentrados naárea central, varie em função das rendas decada grupo social, gerando "cidades justa-postas", mal vinculadas entre si, dentro daprópria cidade.

Destacando esses traços, Santos já definiaa periferia não apenas do ponto de vistamorfológico, mas mostrava seu menor graude coesão ou participação na estruturaçãourbana e lhe atribuía um conteúdo socialmuito peculiar, quando tratava das cidadeslocalizadas em países subdesenvolvidos.

Não raramente, nessas cidades, a ocupa-ção da periferia foi sendo feita irregular-mente, no século XX. Muitas vezes, a ini-ciativa privada se incumbiu de implantarloteamentos sem atender as exigências dalegislação urbana (tamanho mínimo doslotes, largura mínima das vias, definição deáreas verdes e de uso institucional, incor-poração de infra-estruturas mínimas etc) e,portanto, sem aprovar seus projetos, invia-bilizando a legalização da aquisição de seuslotes. Em outras vezes, é a falta de condiçõeseconômicas para essa aquisição que explica aocupação de áreas não loteadas, gerandofavelas, caracterizadas pela posse ilegal dasterras ocupadas.

Em outra dentre suas obras, ao analisar ametrópole paulista, Santos (1990:53) chamaatenção para os contrastes entre centro eperiferia, fazendo referência à existência deuma "oposição entre a cidade visível e ainvisível", lembrando que a paisagem urba-na se estende mais depressa do que o atendi-mento das necessidades da população.

A partir dos dados referentes ao aten-dimento de diferentes serviços urbanos, eleafirma:

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Novos conteúdos nas periferias urbanas das cidades médias do Estado de São Paulo, Brasil

A relação entre atividades e serviçoscuja utilização supõe a presença dousuário no lugar, como a educação e asaúde, ajuda a explicar a queda daqualidade de vida na aglomeração e aacessibilidade cada vez menor a taisserviços dos estratos mais pobres. Issoequivale a um empobrecimento aindamais sensível dos mais pobres e dasclasses médias, pelo fato de que, paraaceder a esses bens que deveriam serfornecidos pelo poder público, essacamada tem de pagar...

A forma como a cidade é geogra-ficamente organizada faz com que elanão apenas atraia gente pobre, masque ela própria crie ainda mais gentepobre. O espaço é, desse modo, ins-trumental à produção de pobre e depobreza: um argumento a mais paraconsiderarmos o espaço geográficonão apenas como um dado ou comoum reflexo, mas como um fator ativo,uma instância da sociedade, como aeconomia, a cultura e as instituições(p.59).

Analisando a área metropolitana de SãoPaulo, Kowarick (2000:43) afirma que setrata de:

Periferias... No plural. Isto porque sãomilhares de Vilas e Jardins. Tambémporque são muito desiguais. Algu-mas mais consolidadas do ponto devista urbanístico; outras verdadeirosacampamentos destituídos de benfei-torias básicas. Mas, no geral, comgraves problemas de saneamento,transporte, serviços médicos e escola-res, em zonas onde predominam

casas autoconstruídas, favelas ou oaluguel de um cubículo situado nofundo de um terreno em que sedividem as instalações sanitárias comoutros moradores: é o cortiço da peri-feria. Zonas que abrigam populaçãopobre, onde se gastam várias horaspor dia no percurso entre a casa e otrabalho. Lá impera a violência. Dosbandidos, da polícia, quando nãodos "justiceiros". Lá é por excelênciao mundo da subcidadania (grifosnossos).

Estudando a periferia da Grande SãoPaulo, Bonduki e Rolnik (1982) já afirma-vam que a habitação de baixa renda estavapredominantemente na "periferia" e expli-citavam preocupação com essa noção utili-zada em sentidos diferentes. Ressaltavamque uma "definição mais precisa" decorre-ria da compreensão dos mecanismos quedeterminam a sua formação, com destaquepara seus agentes -o loteador, o morador eo poder público (p. 118).

A análise da produção da periferia urba-na em São Paulo é, também, abordada, emartigo de Marques e Bichir, no qual se anali-sam os investimentos públicos nas áreaspobres da metrópole, considerando-se osmandatos do executivo municipal. Esses au-tores, com base nas literaturas sociológica eurbana dos anos de 1970 e 1980, caracteri-zam as periferias metropolitanas brasileiras:

Estas representariam territórios semEstado, quase totalmente intocadospelas políticas públicas, exceto pelosempreendimentos habitacionaismassificados implantados a partir dosanos 1960, o que teria levado à cons-tituição de espaços de condições de

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vida bastante precárias. A ação pul-verizada dos produtores privados e ainação do Estado teriam levado àconstrução de espaços metropolitanoscaracterizados por um gradiente de-crescente de condições de vida, inser-ção no mercado de trabalho e acesso àrenda de centro para as periferias(2001:10).

Caldeira (2000) apresenta quatro pontospara caracterizar o padrão de urbanizaçãocentro-periférico que dominou a estru-turação urbana de São Paulo de 1940 a 1980.Esses elementos podem, ao nosso ver, sergeneralizados para a maior parte das gran-des cidades brasileiras: padrão disperso emvez de concentrado; as classes médias ealtas vivem nos bairros centrais e melhorequipados, enquanto os pobres estão naperiferia precária e, às vezes, ilegal; a aqui-sição da casa própria é prioridade para amaioria dos citadinos; o transporte é o ôni-bus para os pobres e os automóveis para asclasses média e alta (p. 218).

Caldeira também faz referência aopadrão de segregação, que dominou aestruturação da cidade de 1890 a 1940, mar-cado pela concentração e heterogeneidade,padrão esse que pode, guardadas as dife-renças, ser identificado ao das cidadesindustriais européias, durante a maior partedo século XIX.

A periferia, nos termos descritos nosparágrafos anteriores, é uma marca dascidades brasileiras. Essa tendência passou ater importância, a partir dos anos de 1950,nas áreas metropolitanas e grandes cidades,e se acentuou, a partir dos anos de 1970,atingindo, inclusive, cidades de portemédio.

Apesar das diferenças observadas, tantoem cidades estadunidenses, como européiasou brasileiras, a periferização resultou deiniciativas privadas e públicas, às vezesrealizadas de forma articulada, às vezesnão. Muitos dos loteamentos foram implan-tados pela iniciativa de empresas incor-poradoras, mas também, em muitos casos, aperiferização foi propiciada pelos finan-ciamentos públicos destinados à aquisiçãode imóveis construídos na periferia dascidades ou pela implantação de grandesconjuntos residenciais, no âmbito de pro-gramas habitacionais estatais.

Guardadas as diferenças, essenciais parase reconhecer a complexidade do processode urbanização e a multiplicidade de for-mas urbanas que são engendradas por ele elhes dão sustentação, é necessário umesforço de apreensão do que é comum eessencial para se compreender o conjuntodas cidades contemporâneas e, por meiodelas, os vetores do processo de urba-nização.

Analisando-se mais especificamente atendência à periferização, que se desen-volveu durante o século XX, reconhecemos,pelo menos, três níveis de determinação doprocesso de estruturação das cidades,segundo a lógica centro periferia.

• A influência dos princípios do urba-nismo progressista, fortemente apoiadonas idéias de Le Corbusier, teve papelfundamental na ampliação territorial dascidades, durante o século XX. A leiturada Carta de Atenas possibilita a apreen-são dos princípios que sustentavam essaproposta. A idéia de diminuição da den-sidade dos assentamentos urbanos, pormeio da convivência, nas cidades, entre

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Novos conteúdos nas periferias urbanas das cidades médias do Estado de São Paulo, Brasil

áreas construídas e áreas verdes foi umvetor da extensão urbana. A proposta deunidade de vizinhança e de separaçãoterritorial das funções urbanas, gerandoo aumento dos espaços destinados àcirculação é outro princípio modernistaque impulsionou a extensão dos tecidosurbanos.Os interesses fundiários e imobiliáriossão, sem dúvida, os motores principaisda extensão da cidade. A lógica de pro-dução do espaço urbano tem sido orien-tada pela implantação de novos lotea-mentos e pelo contínuo lançamento denovos produtos imobiliários de forma ase atingir novos consumidores e/ou seestimular novas demandas àqueles quejá haviam consumido esses produtosimobiliários anteriormente. Essa lógicatem levado os espaços urbanos a cresce-ram mais territorialmente do que demo-gráfica ou economicamente, como atestao crescente número de lotes não edifica-dos, em cidades de diferentes portes.Nesses termos, a cidade é, mais do quenunca, um negócio e, contrariamente, àstendências anteriores, o que se tem nacidade atual é o espaço planejado, resul-tado da intenção e das estratégias demercado e não da história.Por último, é preciso lembrar que atendência à contínua expansão territorialurbana, verificada no século XX, cons-titui expressão das possibilidades técni-cas que a invenção da geladeira e dotransporte automotivo propiciaram. Se otrem e o bonde tiveram grande impor-tância na origem do padrão de subur-banização que se originou na segundametade do século XIX, a difusão do usodo automóvel foi fundamental para o

aparecimento de novas formas de habitaturbano que geraram novas práticassocioespaciais, a partir da década de 1920nos Estados Unidos, e logo depois da 2a.Guerra Mundial na Europa.

Redefine-se, assim, a estruturação urbanadas cidades contemporâneas, cujos elemen-tos essenciais, no que se refere às relaçõescentro o periferia, podem ser sintetizadoscomo se segue:

• Aumento da proporção de lotes nãoedificados e de "vazios urbanos" nãoloteados nos interstícios das áreas urba-nas, gerando uma morfologia urbanamais extensa e menos definida.

• Sobreposição dos interesses fundiários eimobiliários sobre os interesses dossetores de produção industrial, comerciale de serviços, no processo de produçãodo espaço urbano, no que se refere àsescolhas locacionais.

• Aparecimento de novas formas de habitaturbano, como conjuntos habitacionais,loteamentos fechados ou cidades planeja-das para fins habitacionais, promovendoa extensão dos tecidos urbanos e reali-zando os interesses fundiários e imobi-liários.

• Aproximação ou estandartização das pai-sagens urbanas de cidades de diferentesportes e localizadas em diferentes re-giões, em função da homogeneizaçãodos "produtos imobiliários", do pontode vista funcional, arquitetônico esimbólico—verticalização, condomínios,etc.

• Diminuição do número de cidades mé-dias e grandes estruturadas em torno deum centro único, onde se reunia a maiorparte das atividades comerciais e de ser-

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Maria Encarnação Beltrão Sposito

viços públicos e privados, e apareci-mento de novos equipamentos e formasde organização do consumo (shopppingcenters, centros de negócios, parques paralazer etc), ampliando a tendência deestruturações urbanas com múltiplasáreas centrais.

• Empobrecimento das áreas centrais e,em seguida, revitalização ou renovaçãodessas áreas, mais como resultado dosinteresses que orientam as propostas epráticas do urbanismo estratégico, doque da recuperação dessas áreas para ouso público e coletivo.

AS CIDADES MÉDIAS PAULISTAS

Antes de analisar as mudanças que vemocorrendo no conjunto das cidades médiaspaulistas, no que se refere às relaçõesexistentes entre centro e periferias urbanos,convém precisar como se conceituam essascidades.

Define-se como "cidades de porte médio"aquelas que têm entre 50 e 500 mil habi-tantes, se tomamos a proposta, para o Brasil,apresentada por Andrade e Serra (2001), quetrabalham no Instituto de Pesquisa Econô-mica Aplicada, fundação pública subordi-nada ao Ministério do Planejamento, Orça-mento e Gestão, o que torna essa definição,senão oficial, ao menos oficiosa.

Essa classificação toma como base otamanho demográfico das cidades para quea ela se aplique ou não o conceito de cidadede porte médio. No Brasil, é consideradacidade toda a sede urbana de município, oque indica que se incluem, então, na cate-goria cidades de porte médio, centros urba-nos que compõem tecidos e organismos ur-banos maiores, formadores de aglomeraçõesurbanas metropolitanas ou não-

metropolitanas.O que tomamos como referência, neste

texto, para a análise dos novos conteúdos decentro e periferia não é o conjunto das"cidades de porte médio", mas apenas as"cidades médias", ou seja, aquelas que, alémde terem tamanho demográfico corres-pondente a este porte, desempenham clarospapéis intermediários entre a(s) metrópole(s)e as cidades pequenas que compõem umarede urbana.

As cidades médias são aquelas que, numadada divisão territorial do trabalho, sãocentros regionais importantes, em função deserem os elos de ligação entre cidadesmaiores e menores. No período atual, noEstado de São Paulo, essas cidades são, deum lado, aquelas nas quais a população dascidades pequenas polarizadas por elas reali-za o consumo de bens e serviços necessáriosà produção e à vida, e são, de outro lado, osespaços escolhidos para a localização dasgrandes empresas comerciais e de serviçosque querem atingir um mercado consumidorde poder aquisitivo crescente -o do interiorpaulista.

Desse ponto de vista, as cidades médiassão os pontos de apoio para a atuação degrandes capitais nacionais e internacionaisque, sediados na metrópole paulista,expandem-se territorialmente em direção àscidades da rede urbana, cujas situações geo-gráficas estratégicas, possibilitam-lhesatingir mercados consumidores regionais,compreendidos pelos moradores destascidades e das cidades pequenas que estão emsua esfera de influência econômica e/oupolítica.

Algumas dessas cidades méidas, emfunção de processos de crescimento territo-rial e junção com outros núcleos urbanos

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Novos conteúdos nas periferias urbanas das cidades médias do Estado de São Paulo, Brasil

compõem, atualmente, aglomerações urba-nas de pequeno e médio porte, o que sóreforça seus papéis intermediários na redeurbana.

Muitas dessas cidades também tempapéis político-administrativos, porque ogoverno do Estado de São Paulo, desde adécada de 1970, instituiu regiões administra-tivas, nas quais se instalam divisões querepresentam o poder público estadual ejunto às quais são atendidas as demandasregionais. Atualmente, o território paulistaestá dividido em 15 regiões administrativas.

Considerando-se o quadro descrito nosparágrafos anteriores o que se compreendecomo cidades médias só pode ser consi-derado no plano conceituai e a partir de umaanálise que contemple a situação geográficada aglomeração ou centro urbano que aconstitui, seus papéis econômicos regionais,suas relações intermediárias entre cidadespequenas e metrópoles, bem como seuspapéis político-administrativos. Os papéiseconômicos aqui destacados são maisaqueles referentes às atividades comerciais ede serviços, do que propriamente os in-dustriais, embora, no Estado de São Paulo,grande parte dessas cidades são centrosurbanos que já eram industriais há algumasdécadas. Além disso, este setor da economiatem sido ampliado, nas cidades médias,desde que os ajustes relativos à passagem dosistema fordista para o sistema flexível deprodução de mercadorias têm levado a umadesconcentração da atividade produtiva in-dustrial da metrópole para o interior paulistaou para outros estados da federação, aindaque, paralelamente, estejam se centralizandoos papéis relativos ao comando de gestão efinanceiro, nessa mesma metrópole que de-clina em suas funções industriais de pro-

dução.Nesse amplo contexto de determinações,

não se trata de classificar as cidades médiascomo se pode classificar as de porte médiopor seu tamanho demográfico, mas deavaliar continuamente seus papéis numadivisão regional do trabalho que se encontraem período de rápidas transformações,redefinindo continuamente o próprio con-ceito de cidade média. Assim sendo, a aplica-ção do conceito de cidade média a umacidade ou aglomeração urbana é semprerelativa no tempo e no espaço. Tendo emvista a diferenciação regional existente noBrasil e a concentração, no Estado de SãoPaulo, da atividade econômica mais capitali-zada e integrada a circuitos econômicos in-ternacionais, algumas cidades médias de suarede urbana são maiores, em tamanhodemográfico, do que as cidades médias deoutros estados da federação, bem como émaior o número de cidades que desempen-ham esses papéis neste estado.

Na Figura 1 temos a representação carto-gráfica das 23 maiores áreas urbanas doEstado de São Paulo, tomando-se comoreferência o tamanho demográfico delas, acomplexidade de seus papéis e as dinâmicasde sua expansão e aglomeração territoriais.

A aglomeração metropolitana de SãoPaulo, com pouco mais de 17 milhões habi-tantes,4 dos quais quase 10 milhões estão nacidade principal, é sem dúvida o nó estru-turador da rede urbana paulista, tanto quan-to a principal metrópole nacional que secaracteriza, ainda, por desempenhar papéisna rede internacional de cidades que são ospólos principais de organização territorialdos grandes conglomerados multinacionais.

A aglomeração metropolitana de Campi-nas que tem cerca de 2.2 milhões de ha-

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bitantes, dos quais 950 mil estão na cidadeprincipal desempenha, ainda, papéis decidade regional, embora sua proximidade esuas relações com a metrópole principalcaracterizem-na, cada vez mais como parteconstitutiva de uma macrometrópole, daqual também fazem parte as aglomeraçõesnão-metropolitanas de Santos (1 milhão e200 mil habitantes), São José dos Campos(930 mil habitantes) e Sorocaba (900 milhabitantes). Estas três cidades, em que pese aintensificação da integração econômica eterritorial com a metrópole principal podemser claramente reconhecidas como cidadesmédias regionais.

No que se refere às outras aglomerações.

Figura 1. Principais áreas urbanas, Estado de São Paulo.

urbanas não-metropolitanas representadasna Figura 1, destacam-se por seus papéisregionais as de Ribeirão Preto (700 milhabitantes), São José do Rio Preto (400 milhabitantes) e Araçatuba (250 mil habitantes).Entre os centros urbanos representados, sãocidades médias mais importantes são Bauru(310 mil habitantes), Presidente Prudente eMarília (ambas com cerca de 190 mil ha-bitantes).

Na Figura 2, temos a representação carto-gráfica das sedes das regiões administrativasdo Estado de São Paulo, o que ajuda aformar o quadro das cidades médias quecompõem a rede urbana paulista. Destaca-sea cidade de Registro que sedia as atividades

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Novos conteúdos nas periferias urbanas das cidades médias do Estado de São Paulo, Brasil

administrativas no sul do Estado de SãoPaulo, área de menor desenvolvimentoeconômico, na qual a renda per capita é maisbaixa, o que explica porque esse centrourbano tem sido pouco atraente para osgrandes capitais comerciais e de serviços.Destacam-se, ainda, Barretos e Franca, am-bas em regiões de grande desenvolvimentoeconômico, mas relativamente próximas decentros regionais mais importantes (São Josédo Rio Preto e Ribeirão Preto) com os quaisrivalizam no desempenho de seus papéisintermediários, o que nos permite classificá-las como cidades médias de menor impor-tância que as citadas anteriormente.

Por último, destacamos a cidade de SãoCarlos que é um importante centro industriale universitário, mas cuja diversidade depapéis comerciais e de serviços é propor-cionalmente menor do que de outras cidadesde mesmo porte em função da concorrênciacom outros centros urbanos e aglomeraçõesnão-metroplitanas representados na Figura1: a cidade de Araraquara que com ela com-põe a aglomeração não-metropolitana, asaglomerações não-metropolitanas de Limeirae Ribeirão Preto e os centros urbanos dePiracicaba e Americana (este último sequerrepresentado na Figura 1, porque não se ca-racteriza como cidade média, embora tenhapopulação de 182 mil habitantes e tampoucoé capital administrativa).5

A participação do Estado de São Paulo noconjunto da economia brasileira é muitosignificativa. A economia cafeeira que se de-senvolveu nesse território, a partir da se-gunda metade do século XIX, criou as con-dições favoráveis à constituição de umaformação socioespacial que deu base ao de-senvolvimento da industrialização e de rela-ções sociais e de produção tipicamente

capitalistas, redefinindo as formas de articu-lação da economia brasileira à economiainternacional e colocando o Estado de SãoPaulo numa condição de primazia quando ocomparamos a outras economias regionaisque foram engendradas desde o períodocolonial, como a economia açucareirano Nordeste, ou a da mineração no BrasilCentral.

Esses fatores explicam porque há umarede urbana constituída no território paulistae que vai além dele, já que sua espacializaçãoultrapassa seus limites político-administrativos.6 Essa rede urbana estáestruturada em intensas e consolidadasrelações entre suas cidades, sendo essasrelações importantes para a constituição deuma base, em escala nacional, para oconsumo da produção industrial brasileira,formando um mercado interno.

Tendo em vista essas determinantes,a estruturação da rede urbana paulista écomplexa. Ela resulta da sobreposição e arti-culação entre lógicas espaciais que se suce-deram e se combinaram, de forma harmôni-ca ou contraditória, no decorrer do séculoXX, respondendo elas mesmas a diferentesdivisões regionais, nacionais e internacionaisdo trabalho.

Uma das decorrências dessa complexi-dade é a coexistência de relações, entre ascidades dessa rede urbana, do tipo hierár-quicas, competitivas e complementares,orientadas pela presença de grandes, médiose pequenos capitais, e de empresas trans-nacionais e nacionais de diferentes portes.

Considerando-se as maiores concentra-ções urbanas (áreas metropolitanas, aglo-merações urbanas e centros urbanos) éindiscutível a pluralidade de papéis desem-penhados pela metrópole de São Paulo, pois,

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Figura 2. Sedes das Regiões Administrativas, Estado de São Paulo.

como já destacamos, ela acumula as funçõesde cidade mundial (sobretudo para negóciosdos grandes conglomerados no hemisfériosul), de principal metrópole nacional, decapital estadual e de principal nó estrutu-rador da rede urbana paulista.

As cidades médias que compõem essarede urbana têm tido seu papel fortalecido àmedida que a economia se concentra e seampliam as escalas geográficas a partir dasquais as relações se estabelecem, em de-corrência de, pelo menos quatro dinâmicas:

• Diminuição relativa dos papéisindustriais da metrópole paulista,correspondendo às possibilidadesde separação entre as atividades degestão e produção dos grandes

grupos econômicos.• Diminuição dos papéis urbanos das

cidades pequenas, em função daconcentração fundiária e a moder-nização da agropecuária, que esva-ziaram demograficamente o campo.

• Concentração econômica e descen.tralização espacial dos grandes gru.pos do setor terciário que passarama se interessar pelos mercados con.sumidores do interior paulista, refor.çando os papéis de pólos comerciaise de serviços das cidades médias.

• Melhor qualidade com menor custode vida nas cidades médias, gerandoum aumento demográfico de algunsdelas comparativamente maior que oda metrópole, a partir de 1990, re-

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Novos conteúdos nas periferias urbanas das cidades médias do Estado de São Paulo, Brasil

forçando seus segmentos sociais demédio e alto poder aquisitivo.

Tais dinâmicas reforçaram a tendência,que já se desenhava desde início dos anos de1970, de crescente interesse pelo mercadofundiário e imobiliário urbano nessas cida-des. A evolução do crescimento da produçãoimobiliária vertical nos anos de 1980,ampliando no interior do Estado de SãoPaulo (Sposito, 1991a) uma forma de habitaturbano tipicamente metropolitano, pode serconsiderado o primeiro movimento signi-ficativo na direção da realização dos in-teresses fundiários e imobiliários nas cidadesmédias, em termos de mercado e de mu-danças das práticas socioespaciais.

Do ponto de vista das relações centroperiferia, a "onda" da verticalização só fezreforçar o paradigma que orientou a expan-são territorial e a estruturação urbana dascidades médias, pois esse produto imo-biliário -o apartamento- foi vendido asso-ciado a uma localização central, entendidaaqui em seu sentido mais amplo, qual seja odas áreas que mais próximas ao centro decomércio e serviços são as melhor equipadascom infraestrutura, equipamentos e serviçosurbanos.

Essa tendência ocorreu no mesmo pe-ríodo em que a solução dos problemashabitacionais dos mais pobres, nas cidadesmédias, passa a se dar por meio da cons-trução de grandes conjuntos habitacionais ede loteamentos populares, implantados pelainiciativa privada ou pelo poder público, naperiferia urbana pouco e mal servida pelosmeios de consumo coletivo.

Simultaneamente, cresceram as práticasespaciais que levam à formação de verda-deiros "vazios urbanos" e à descontinuidade

do tecido urbano, gerando uma cidade maisesparsa territorialmente e menos integradaespacialmente, já que as diferenças socioes-paciais e de grau de acessibilidade se amplia-ram no período.

Os conteúdos sociais e econômicos da pe-riferia urbana das cidades médias começama se redesenhar, em meados de 1980, com asprimeiras iniciativas de implantação deloteamentos fechados nessas cidades, mas,de fato, só vão se instaurar, de forma maisplena, no decorrer dos anos de 1990, quandoaumenta o número desses loteamentos e o depessoas que passam a viver neles, já que essase torna a nova forma de habitat, sucedendo a"onda" da verticalização e se constituindonum fenômeno associado aos segmentos dealto e médio poder aquisitivo, a exemplo doque já havia se iniciado, em diferentescidades latinoamericanas, a partir dos anosde 1960 (Svampa, 2001; Barajas, 2002).

A Tabela 1 apresenta os dados referentesao peso relativo dos loteamentos fechados noconjunto dos loteamentos implantados emalgumas cidades, para que se possa ilustrar apresença dessa nova forma de habitat urbanono território paulista, a partir de algunsexemplos. Nesta tabela, foram incluídas,além de cidades médias (Sorocaba, porexemplo) cidades de porte médio queampliam suas funções e começam a sedefinir, também como cidades médias (comoJaú e Franca) ou sedes de municípiosque compõem aglomerações urbanas não-metropolitanas (como, por exemplo,Louveira que pertence à aglomeração deJundiaí). Ainda que este artigo esteja voltadopara a análise da redefinição dos conteúdoseconômicos e sociais da periferia de cidadesmédias, temos interesse em mostrar que ofenômeno aparece em cidades de diferentes

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tamanhos e diferentes papéis, razão pelaqual a Tabela 1 foi composta como se segue.

Analisando-se a freqüência e distribuiçãorelativa à implantação dos loteamentosfechados, comparativamente ao conjunto dosloteamentos, verifica-se que não há corres-pondência completa entre as duas evoluções.

Destaca-se, por exemplo, o caso deBirigui, que tem população urbana poucosuperior a 90 mil habitantes e que é asegunda cidade da aglomeração não-metropolitana de Araçatuba. Nela a implan-tação de loteamentos fechados atingiu aordem de 15% do total de loteamentosabertos na cidade entre 1980 e 2000.

Outro destaque fica com a cidadede Louveira que tem população urbana deapenas 22 mil pessoas e compõe aaglomeração não-metropolitana de Jundiaí etem, apenas, pessoas vivendo. É sua proxi-midade da metrópole paulista que explica oboom de empreendimentos do tipo lotea-

mentos fechados, cujos lotes em parte sãodestinados à edificações de residências definais de semana para os moradores dasduas aglomerações metropolitanas doestado -São Paulo e Campinas.

Ressaltamos, ainda, Sorocaba que é con-siderada por nós uma típica cidade média,ainda que se intensifiquem suas relaçõescom a metrópole paulista. A Figura 3 quecontém os gráficos de evolução do númerode loteamentos implantados no períodoanalisado é apresentado, como exemplo,para chamar atenção do leitor para o fato deque, entre 1988 e 1999, há anos em quehouve diminuição de empreendimentos fun-diários, mas, ao mesmo tempo, aumento daárea implantada como loteamentos fechadosque se constituem em forma de habitaiurbano voltada para os segmentos de maiorpoder aquisitivo.

Do ponto de vista da reflexão que esta-mos desenvolvendo nesse artigo, o que mais

Tabela 1. Estado de São Paulo - Brasil, Áreas loteadas em algumas cidades, 1980-2000

Cidades principais de aglomeraçõesCentros urbanos isolados

Outras cidades deaglomerações

AraraquaraBiriguiCajamar

FrancaHortolândia

JauLouveira

Mogi GuaçuMogi Mirim

Rio ClaroSorocaba

Populaçãourbana

2000173 33591 04247 671

281 869151 669106 95429 926

116 11773 025

163 341487 907

Loteamentos implantados(em milhares de m2)

Totala27 8758 6849 139

30 2389 447

13 9945 4238 1098 8358 107

26 937

Fechadosb

6811 318

129

20163961

1 35655

512

2652 882

Índice 100b/a

2.4415.171.410.061.726.86

25.000.685.793.27

10.69

Fontes: Prefeituras Municipais e Censo Demográfico 2000 IBGE.

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Novos conteúdos nas periferias urbanas das cidades médias do Estado de São Paulo, Brasil

precisamente nos interessa ressaltar a pro-pósito do surgimento desses loteamentos sãodois aspectos.

Em primeiro lugar, a localização dessesloteamentos é, no geral, periférica, exigindoo repensar do significado conceituai dopróprio conceito de periferia urbana que estáassociado, nas cidades brasileiras, à pobrezae à precariedade de meios de consumocoletivo (infraestruturas, equipamentos eserviços urbanos). As Figuras 4 e 5 expre-

ssam, de forma bastante didática, a evoluçãoda implantação dos loteamentos em duascidades -Sorocaba e São José do Rio Preto- ea localização deles em relação ao conjunto dotecido urbano. Esses cartogramas ajudam amostrar que a localização periférica é,contudo, também concentrada, ou seja, elesnão se encontram em todo o "anel" peri-férico urbano, mas em setores dessa periferiaque são os melhor equipados.

Essa escolha locacional está associada ao

Fonte: Prefeitura Municipal de Sorocaba.Organizadora: Maria Aparecida da silva.

Figura 3. Sorocaba (SP-Brasil), número de loteamentos aprovados, 1981/2000.

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segundo aspecto a ser ressaltado: a im-plantação dessas novas formas de habitaturbano redefine a constituição da centrali-dade intraurbana e interurbana das cidadesmédias, já que se associa à tendência deinstalação de novos equipamentos comer-ciais e de serviços (shopping centers, centrosde eventos e exposições, hotéis), cuja locali-zação também é periférica e se voltam paraos mercados locais e regionais.

Estamos nos referindo a novos centrosurbanos, que diferentemente dos centros esubcentros tradicionais não resultam deações e decisões que historicamente se sobre-puseram no território urbano redesenhandocontinuamente a concentração de atividadescentrais e a própria estrutura urbana. Trata-

mos, isto sim, de centros resultantes dasestratégias locacionais de proprietários fun-diários e incorporadores imobiliários, quetêm como objetivo, ao criar uma nova cen-tralidade, agregar valor ao solo e aos imóveisque foram construídos em áreas cujo preçofundiário e imobiliário era, anteriormente,muito menor.

Essa dinâmica não é específica das cida-des médias. Muito ao contrário, ela é bas-tante representativa das lógicas que orien-tam a produção do espaço urbano nas cida-des capitalistas de vários países e tamanhosdiversos, ainda que diferenças culturais,econômicas e jurídicas concorram para queessa produção se efetive, segundo uma mul-tiplicidade de especificidades e formas.

Figura 4. Sorocaba. Evolução da implantação de leteamentos fechados.

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Novos conteúdos nas periferias urbanas das cidades médias do Estado de São Paulo, Brasil

Figura 5. São José do Rio Preto, loteamentos fechados áreas média dos lotes, 2001.

Reconhecendo que essas formas de pro-dução do espaço urbano são, em certo nível,universais, mesmo porque estão diretamenteassociadas ao conjunto das mudanças urba-nas possíveis com o aparecimento e aumentodo uso de veículos automotivos, é preciso,ainda, apreender quais as resultantes dessasdinâmicas em cidades de diferentes portes eno âmbito de diferentes formações socio-espaciais. A nós interessa, especialmente,como já destacamos, avaliar essas resultantesnas cidades médias, de forma a contribuirpara a compreensão de suas reestruturaçõesurbanas. Assim, no próximo item, apresen-tamos alguns elementos para se reconheceras tendências gerais das dinâmicas em

cursos e as que, de forma mais específica,realizam-se e se expressam nas cidadesmédias.

NOVAS FORMAS DE ESTRUTURAÇÃOURBANA

Novas formas de produção do espaçourbano contribuem para a instauração denovas práticas socioespaciais, dando suporteà mudança ou diversificação de papéisdesempenhados pelas cidades na divisãoterritorial do trabalho e, ao mesmo tempo,propiciando a transformação do própriosentido da cidade, nos dois âmbitos desta-cados por Henri Lefèbvre, em sua obra: omais amplo -o da historicidade- e o mais

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restrito -o do práxis.Esse processo gera a redefinição da

própria estruturação urbana, a partir da con-cepção de que a estrutura urbana se modificacontinuamente a partir da combinação deformas e papéis urbanos orientando osmodos de uso e apropriação do espaço urba-no. Quando o conjunto dessas mudanças érápido, intenso e profundo pode-se fazerreferência, então, a uma reestruturação urba-na, nos termos propostos por Soja (1993).

Essas novas formas de produção doespaço urbano e as práticas socioespaciaisque delas decorrem e a elas reforçam levamà reflexão acerca da mudança do sentido dacidade.

A tendência à sua expansão horizontal evertical tem provocado o aprofundamentodas diferenças, porque a cidade é vendidaaos pedaços, enquanto frações de um terri-tório denso de possibilidades objetivas e deconteúdos subjetivos, expressos em múl-tiplos signos. Ao mesmo tempo em que essaprodução do espaço busca oferecer a novida-de (e não necessariamente o novo), ela pro-duz a homogeneidade, porque as estratégiasimobiliárias se repetem, em diferentes cida-des, e se sucedem para que as novidadesenvelheçam e os novos produtos ganhempreços maiores no mercado.

Resumindo-se os pontos já apresentadosneste artigo e procurando sintetizá-los, des-tacando seus conteúdos conceituais, realça-mos o que consideramos como os traçosessenciais da cidade contemporânea, a partirdo conjunto de mudanças que, sob o in-vólucro de 3a. Revolução Industrial, revela-se, objetiva e subjetivamente, por meio daredefinição dos papéis econômicos da cida-de, da mudança de sua morfologia, da dimi-nuição das possibilidades de sua apropriação

e da reversão do sentido do urbano.Destacamos, então, dinâmicas que reo-

rientam a estruturação urbana, podendo-sepor meio delas reconhecer sua redefinição,ou seja, a instauração de uma reestruturaçãourbana:

a) complexificação da estrutura ur-bana, gerando o aparecimento de "pe-riferias" no centro e "centralidades"na periferia;b) fragmentação socioespacial dascidades, já que a segregação se acen-tua e, consequentemente, a possibili-dade de convivência entre as dife-renças se atenua.7

Quando se avaliam as repercussõesdessas dinâmicas sobre as cidades médias, asespecificidades denotam que há uma lógicageral, mas que se realiza diferentemente,segundo diversos níveis de determinação,como o tamanho e a natureza dos papéisdesempenhados pelas cidades.

Se os interesses que orientam a produçãodo espaço urbano geram dinâmicas demesma natureza, quando se analisam osprocessos de fragmentação que delas resul-tam, verifica-se que o tamanho demográficotem influência definitiva nesse movimento,porque a ele se refere o tamanho do mer-cado. Assim, o aparecimento de novas for-mas de habitat e novos espaços de consumopara os segmentos de médio e alto poderaquisitivo, provocam com maior intensidadee rapidez o esvaziamento e/ou degeneraçãode antigos bairros residenciais e do centroprincipal.

A dimensão temporal é outro aspectoobjeto de atenção. Sendo as cidades médiasmenores em extensão territorial, os temposnecessários aos deslocamentos entre centros

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Novos conteúdos nas periferias urbanas das cidades médias do Estado de São Paulo, Brasil

e periferias são menores, tanto do ponto devista das distâncias, quanto do ponto de vistada fluidez, já que os problemas de trânsitosão menores. Isso poderia fazer pensar que aida ao centro principal, muitas vezes centrotradicional, poderia ser menos difícil e, porisso, mais freqüente, mas o tamanho domercado gera maior separação social entre asáreas de comércio e serviços, segundo opoder aquisitivo dos consumidores, porquenão há mercado suficiente para a manu-tenção de duas áreas centrais (por exemplo, ocentro principal e um shopping center) parao mesmo extrato socioeconômico, tendendo auma segmentação muito mais rápida e pro-funda.

Outro ponto a ser considerado é o domaior peso de influências externas (inter-nacionais, nacionais e regionais) sobre oprocesso de estruturação urbana nas cidadesmédias, porque os atores econômicos epolíticos da "ordem distante" (internacionalou nacional) têm mais força, proporcional-mente, que os da "ordem local", quando secomparam cidades desse porte às grandescidades e cidades metropolitanas ou mun-diais. Assim, as estratégias espaciais dasgrandes empresas, por exemplo, são capazesde modificar a legislação urbana e/ou decompetir de forma desigual pelas melhoreslocalizações.

A maior proximidade cultural com omundo rural, seja pela recente migração, sejapela maior integração entre as atividadeseconômicas urbanas e agrárias, levaria oshabitantes das cidades médias ao paradoxalinteresse de se dissociar do mundo rural e seaproximar dos signos de moderno, identi-ficados com a vida metropolitana.

Este seria outro aspecto que mereceriauma pesquisa mais detalhada para que se

pudesse avaliar, no plano empírico, sua sus-tentação. A nosso ver, o interesse em buscaros signos de urbano e moderno conduziriaesses habitantes a maior disponibilidadepara destruir o "velho" e imprimir a marcado "novo" na paisagem urbana e em suaspráticas socioespaciais, no que se inclui umnovo jeito de morar e viver.

Para finalizar esse texto, registramos aimportância de que sejam ampliados osestudos urbanos voltados à compreensão darecente reestruturação urbana das cidadeslatino-americanas, em respeito às quais oconceito de periferia urbana foi engendradohá algumas décadas atrás, para verificar emque medida há similitudes entre o que seobserva no Brasil, especialmente no Estadode São Paulo, e em outros países deste sub-continente.

Estes estudos devem atentar para as di-ferenças em termos de formação socio-espacial, no que se refere às mudançasdecorrentes da maior ou menor integraçãorecente dessas economias nacionais à econo-mia internacional, mas, sobretudo, avaliarcomo as repercussões dessas articulaçõesrealizam-se em cidades de diferentes portes,mesmo que as lógicas que comandem areestruturação urbana sejam de mesmanatureza.

NOTAS:

1 Divulgado na coletânea organizada por MarcelRoncayollo (vide bibliografia), o texto de HenriSellier foi, originalmente, publicado com o título"Les banlieues urbaines et la réorganisationadministrative du département de la Seine", naedição Les Documents du Socialisme, da MarcelRivière, em 1920.

2 Essa descrição está publicada no livro Traitéde l 'Association Domestique-Agricole, de autoria de

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Maria Encarnação Beltrão Sposito

Charles Fourier, editado em 1841. Nossatrancrição foi feita, a partir de citação contidaBenevolo (1994:69).

em

3 Utilizamos a mesma expressão do autor e nãocabe, no àmbito desse trabalho, uma discussãosobvre os conceitos de desenvolvimento e subde-senvolvimento e sua maior ou menor adequaçãopara qualificar as cidades.

4 Os dados demográficos apresentados neste e nosparágrafos seguintes são os divulgados no CensoDemográfico de 2000 (IBGE-Instituto Brasileiro deGeografia e Estatística).

5 Para ampliar os conhecimentos sobre o conceitoe a caracterização das cidades médias no Brasil,ver Sposito (2001) e Pontes (2001). Para uma visãomais ampla dessa discussão, em nível mundial,ver Bellet e Llop (2000).6 Em função de como ocorreu a ocupação doterritório paulista a partir da expansão da econo-mia cafeeira, definiram-se historicamente relaçõeseconômicas e políticas que nos possibilitamreconhecer uma rede urbana paulista que incluicidades de estados limítrofes: Paraná (norte doestado), Minas Gerais (Triângulo Mineiro e suldo estado) e Mato Grosso do Sul (sul do estado).

7 Além desses dois pontos destacados, outros doisnão discutidos neste artigo, merecem ser citados:ampliação das relações entre cidades de diferentesportes e, portanto, maior articulação entre fluxosinterurbanos e intraurbanos; mudanças nas po-sições relativas das cidades pela sobreposição derelações, entre elas, dos tipos "hierárquicas","complementares" e competitivas".

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