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Lúcia Helena Mendes Pereira Notícias da Amazônia: A Cultura Jornalística Hegemônica das Televisões Portuguesa e Brasileira. Tese de Doutoramento em Pós-Colonialismos e Cidadania Global, orientada pelo Professor Doutor José Manuel Mendes, apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Setembro de 2014

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    Lcia Helena Mendes Pereira

    Notcias da Amaznia:

    A Cultura Jornalstica Hegemnica das Televises Portuguesa e Brasileira.

    Tese de Doutoramento em Ps-Colonialismos e Cidadania Global, orientada pelo Professor Doutor Jos

    Manuel Mendes, apresentada Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.

    Setembro de 2014

  • Lcia Helena Mendes Pereira

    Notcias da Amaznia A Cultura Jornalstica Hegemnica das Televises Portuguesa e

    Brasileira

    Tese de Doutoramento em Ps-Colonialismos e Cidadania Global, na especialidade de Sociologia, apresentada Faculdade de Economia da

    Universidade de Coimbra para obteno do grau de Doutora

    Orientadores: Prof. Doutor Jos Manuel Mendes

    Coimbra, 2014

  • ii

  • iii

    Dedicatria:

    Dedico esta tese minha cunhada, irm de corao, Walkyria Conceio Rodrigues (in

    memoriam); ao meu av, Francisco Antnio Mendes Pereira (in memoriam), no

    cumprimento ao seu desejo de um dia me ter graduada pela Universidade de Coimbra; e ao

    companheiro de toda a vida, Paulo Fernando Rodrigues.

  • iv

  • v

    Agradecimentos:

    Este trabalho resulta da tese de doutoramento em Ps-Colonialismos e Cidadania

    Global desenvolvida no Centro de Estudos Sociais CES da Faculdade de Economia

    FEUC da Universidade de Coimbra. Ficaria, contudo, incompleto sem um agradecimento

    pblico a todos quantos, de uma maneira ou de outra, me ajudaram a lev-lo a bom termo.

    Em primeiro lugar, ao Professor Doutor Jos Manuel Mendes, por ter aceitado

    orientar esta investigao. As suas observaes e conselhos foram determinantes para o

    resultado final.

    Ainda ao Professor Doutor Jlio Csar Tavares, que co-orientou a minha trajetria

    no Brasil. Sua sabedoria, disponibilidade e ateno foram de suma importncia nas

    dificuldades enfrentadas no trabalho de campo.

    A toda equipe do CES em geral, e ao Professor Doutor Antnio de Sousa Ribeiro,

    em particular, pelo acolhimento do projeto, a serenidade e o carinho no tratamento das

    angstias e dvidas sofridas no trajeto.

    Aos excelentes professores de toda a grade do curso pelo dinamismo das aulas e

    empenho ao meu aprendizado.

    Ao Professor Doutor Boaventura de Sousa Santos, dirigente do CES, que

    proporcionou este magnfico campo de conhecimento a todos ns.

    E, por fim, aos colegas da Turma de Ps-Colonialismos e Cidadania Global da

    edio, 2009/2010, pela alegria do convvio, a partilha de ideias, que deixaro saudades

    para o resto da vida.

  • vi

  • vii

    Epgrafe

    O fato de uma multido de pessoas seja levada a pensar coerentemente e de maneira

    unitria a realidade presente um fato filosfico bem mais importante e original do que

    a descoberta por parte de um gnio, de uma nova verdade que permanea como

    patrimnio de pequenos grupos intelectuais

    Antnio Gramsci, Concepo Dialtica da Histria.

  • viii

  • ix

    Resumo:

    Essa investigao identifica e procura os fatores polticos e culturais que impedem ou

    promovem a prtica democrtica do Jornalismo hegemnico nas televises portuguesa e

    brasileira sobre o territrio brasileiro conhecido como Amaznia Legal conceito

    poltico-estratgico com fins econmicos, forjado pelo governo do Brasil. O foco desse

    estudo so os critrios de noticiabilidade proferido pelas comunidades interpretativas da

    Televiso e Rdio de Portugal RTP e pela Rede Globo de Televiso TV Globo, entre

    os anos de 2005 e 2011, como importantes fatores, tanto para a manuteno do exerccio

    da colonialidade de poder (Anibal Quijano, 1991, 1993, 1994) como para a evocao de

    prticas democratizantes no imaginrio social sobre o debate da crise ambiental. Trata-se

    assim, de uma reflexo crtica assentada na Teoria Ps-colonial, dos Estudos Culturais, dos

    valores tico-culturais da produo jornalstico-televisiva generalista de quatro jornais

    dirios na televiso portuguesa e um jornal dirio da televiso brasileira. O mtodo seguido

    foi o Estudo de Caso Extendido (Michael Burawoy, 1998) combinado com a Etnografia

    Multi-Situada (George Marcus, 1998). Como resultado, apresenta os fatores hegemnicos

    atuantes nas notcias de ambas as televises e as insurgncias contra-hegemnicas

    apreendidas.

    Palavras-Chave: Teoria Ps-colonial, Amaznia, Jornalismo Ambiental, Hegemonia,

    Contra-hegemonia.

    Abstract:

    This investigation identifies and seeks political and cultural factors that impede or promote

    democratic hegemonic practice of Journalism in Portuguese and Brazilian televisions over

    the Brazilian territory known as "Legal Amazon" - political-strategic concept for economic

    purposes forged by the government of Brazil. The focus of this study is the criteria for

    newsworthiness given by the interpretive communities of Television and Radio Portugal -

    RTP - and the Globo Television Network - TV Globo, between the years 2005 and 2011,

    as important factors for both the maintenance the exercise of the coloniality of power

    (Anibal Quijano, 1991, 1993, 1994), and for the evocation of democratizing practices in

    the social imaginary about the debate on the environmental crisis. It is, thus, a critical

    reflection based on Postcolonial Theory, of the Cultural Studies, of ethical and cultural

    values of the generalist television newscast production of four daily newscasts in

    Portuguese television and one daily newscast of Brazilian television. The method pursued

    was the Extended Case Study (Michael Burawoy, 1998) combined with the Ethnography

    Multi-Sited (George Marcus, 1998). As a result, it presents the hegemonic factors acting in

    both televisions news and the counter-hegemonic insurgencies apprehended.

    Keywords: Post-colonial Theory, Amazon, Environmental Journalism, Hegemony,

    Counter-hegemony.

  • x

  • xi

    Lista de Siglas:

    PAC Programa de Acelerao do Crescimento

    JN Jornal Nacional

    RTP - Radio e Televiso de Portugal

    ECE Estudo de Caso Extendido

    SPVEA Superintendncia do Plano de Valorizao Econmica da Amaznia

    OECD Organizao Para o Desenvolvimento e Cooperao Econmica

    WRI World Resources Institute

    CBD Conveno Sobre a Biodiversidade das Naes Unidas

    PIB Produto Interno Bruto

    FUNAI Fundao Nacional do ndio

    SUDAM Superintendncia de Desenvolvimento da Amaznia

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    PVEA Plano de Valorizao Econmica da Amaznia

    INPA Instituto Nacional de Pesquisa da Amaznia

    JK Juscelino Kubitschek

    CPLP Comunidade dos Pases da Lngua Portuguesa

    CIESPAL Centro Internacional de Estudos Superiores de Comunicao

    ELACOM Escola Latino-Americana de Comunicao

    NBC National Broadcasting Company

    SBT Sociedade Brasileira de Televiso

    SIC Sociedade Independente de Comunicao

    TIC Tecnologias de Informao e Comunicao

    TVI Televiso Independente

    UFT Universidade Federal do Tocantins

    APTN Associated Press Television News

  • xii

    OMC Organizao Mundial do Comrcio

    PPUE Presidncia Portuguesa da Unio Europeia

    PEUEB Parceria Estratgica da Unio Europeia e Brasil

    PAS Plano Amaznia Sustentvel

    FSM Frum Social Mundial

    WWF Wild Wildlife Fund

    MAB Movimento dos Atingidos por Barragens

    PPCDAM Plano de Ao e Preveno e Controle do Desmatamento da Amaznia

    INCRA Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria

    FRM Fundao Roberto Marinho

    DETER Deteco de Desmatamento em Tempo Real

    IBAMA Instituto Brasileiro de Meio Ambiente

    MMA Ministrio de Meio Ambiente

    CIMI Conselho Indigenista Missionrio

    MP Medida Provisria (de lei)

    MST Movimento dos Sem Terra

    FUNASA Fundao Nacional de Sade

    REDD Reduo das Emisses por Desmatamento e Degradao Florestal

  • xiii

    Sumrio:

    Introduo: 1

    Captulo 1: Globalizao e Crise Ecolgica Luz da Teoria Ps-Colonial 7

    1.1 A dialtica da crise para por a ecologia em cultura 20

    1.2 Sociologia das ausncias na Amaznia brasileira: um localismo-globalizado 24

    1.3 Razo indolente na representao hegemnica da Amaznia: do colo ao cultus 37

    1.3.1 No cenrio colonial da Amaznia Portuguesa 38

    1.3.2 Amaznia no cenrio da Independncia do Brasil 52

    1.3.3 Amaznia no cenrio rumo Abolio da Escravatura e Repblica 58

    1.3.4 Amaznia no cenrio do Sculo XX 63

    Captulo 2: Telejornalismo, Ps-Colonialismos e Meio Ambiente 75

    2.1 Globalizao e localizao: o poder das notcias na objetivao de mundo 78

    2.1.1 Notcia globalizada, recepo localizada: relao do telejornalismo com os

    seus pblicos 88

    2.1.2 Televiso daqum e dalm mar: os telejornalismos no Brasil, com a TV

    Globo, e em Portugal, com a RTP 93

    2.2 A Produo do noticirio televisivo: teoria e prtica da notcia 104

    2.3 Sociologia das ausncias no telejornalismo: sombras, apagamentos, (in)visibilidades na

    representao da realidade 114

    2.4 O meio ambiente e o telejornalismo: o clamor pela reforma dos valores culturais do

    jornalismo em tempos de crise ecologica 119

    2.4.1 Traduo e telejornalismo: breve esboo para uma sociologia da emergncia

    em trs dimenses ticas na produo da notcia 126

    2.4.2 A Amaznia no Ecr: ausncias e emergncias nos discursos representativo

    de um localismo-globalizado 129

    Captulo 3: Mapas e Traados do Olhar da Investigao 133

    3.1. O Recorte temporal 137

    3.2. O mapa de campo: a rede hegemnica de notcias na lngua portuguesa 137

    3.3. O Recorte Temtico 141

    3.4. Mapas e fluxos de alcance da produo das notcias 143

    3.4.1 Fluxometria da RTP 144

    3.4.2 Fluxometria da TV Globo 146

  • xiv

    3.5. Recorte da programao e recolhimento de dados. 151

    3.6. Curso e percurso do olhar no trabalho etnogrfico 152

    Captulo 4: Em Terras Lusitanas: contexto da pesquisa, dimenses tico-cognitivas e

    polifonia dos jornalistas 159

    4.1 Contextos da pesquisa 159

    4.2 Na trilha das notcias: descries e descobertas 174

    4.2.1 Dimenso tica da transformao dos fatos em notcias na RTP: os valores-

    seleo das notcias 178

    4.2.2 Dimenso tica na linguagem noticiosa na RTP: os valores-construo das

    notcias 186

    Captulo 5: Em Terras Brasileiras: contexto da pesquisa dimenses tico-cognitivas e

    polifonia dos jornalistas 209

    5.1 Contextos da pesquisa 209

    5.1.1 Fantasmagoria de campo na pesquisa com a TV Globo: entre a tica, o

    mtodo e o possvel 213

    5.1.2 Possibilidades 214

    5.2 Na trilha das notcias da TV Globo: descries e descobertas 215

    5.2.1 Dimenso tica da transformao dos fatos em notcias na TV Globo: Os

    valores-seleo das notcias 217

    5.2.2 Dimenso tica na linguagem noticiosa da TV Globo: os valores-construo

    das notcias. 243

    Arremate (In) Conclusivo: 312

    Amaznia, para que te quero? 314

    Amaznia, de onde te vejo e para onde te levo? 315

    Amaznia, como te represento? O que de ti retiro e o que para di devolvo? 317

    Referncias Bibliogrficas. 323

    Apndice A: Entrevista com a Jornalista da RTP, Ana Lusa Rodrigues. 335

    Apndice B: Entrevista com o Jornalista do Jornal O Pblico, Ricardo Garcia. 359

    Apndice C: Entrevista com a Jornalista da RTP, Lavnea Leal. 371

    Anexo I: Notcias Emitidas pela RTP 375

    Anexo II: Notcias Emitidas pela TV Globo 423

    Anexo III: Contrato TV Globo 571

  • 1

    Introduo:

    Tem sido proeminente, no s por fora da necessidade imposta pelas catstrofes

    ambientais que vm acometendo o planeta, mas tambm pelas velozes transformaes

    ambientais do globo, a discusso sobre as questes ecolgicas no seio das sociedades.

    Especialmente aps as transformaes ocorridas no domnio da regulao e da governao

    da cincia e da tecnologia que pautam o desenvolvimento dos estados-nao, as relaes

    internacionais, e fundamentalmente, o presente e o futuro dos cidados e da natureza. A

    comunicao social assim, atravs da mdia, ganha destaque nas especulaes sobre a

    compreenso e a identificao dos fatores scio-polticos conflituosos que obstaculizam a

    informao socioambiental e um possvel fomento do debate entre cidados, governos e

    cientistas sobre as questes ambientais pertinentes na atualidade.

    Esta investigao compreende o campo da comunicao social, portanto, como

    rea de conhecimento capaz de abraar a interdisciplinaridade e/ou transdisciplinaridade,

    desde a ideia imprimida por MacLuhan (1964,1977), nos anos 50, como promotora de uma

    aldeia global, passando pela enunciao de Claude Lvi-Strauss (1962), de que cada vez

    mais as sociedades tornam-se um conjunto de prticas comunicativas. Um entendimento

    ento, de que a identidade multidisciplinar desse campo se resolve com a afirmao

    conceitual e poltica dos estudos culturais e sociais para promover a desconstruo do

    pensamento nico e da misria colonial do saber (Tavares, 2007: 135). Assim esse estudo

    procura compreender e identificar esses fatores para a prtica democrtica do Jornalismo

    Ambiental na lngua portuguesa.

    Um estudo que compreende a importncia da periodicidade da informao

    ambiental como motivadora do debate entre os diversos atores no contexto social da lngua

    portuguesa e que evoca o Jornalismo Ambiental como prxis discursiva cotidiana que se

    constitui como espao pblico1 de fundamental importncia em seu processo de captao,

    produo e edio de informaes comprometidas com a temtica ambiental que se destina

    1 O entendimento da imprensa como espao pblico tem sua base depois da construo conceitual de Jrgen

    Habermas, de Esfera Pblica, mas tal conceito sendo modificado sistematicamente por muitos autores. Este

    estudo se utiliza da noo de espao pblico alargado, ou seja, compreende a ao da receo na emisso da

    informao, num processo cclico e aberto, como em Esteves (2007) e Mendes (2004):Mais do que falar

    numa esfera pblica, que adquire uma conotao quase metafsica, parece mais adequado falar de pblicos,

    procurando restituir a complexidade da construo e recepo mediticas e dos seus impactos polticos.

  • 2

    a pblicos leigos, no especializados; mas que v nestes mesmos pblicos relevantes fontes

    de informao, de acordo com os Estudos Culturais Ps-coloniais.

    A importncia do acesso informao ambiental relevante s Sociedades de

    Risco (Beck, 1992) que hoje vivem as incertezas e as ameaas associadas ao

    desenvolvimento cientfico e tecnolgico e seus efeitos no s na natureza, mas tambm na

    sade, segurana e bem-estar dos cidados de hoje e de amanh. A inteno da

    investigao foi assim, a de mapear e analisar a produo hegemnica televisiva para ver

    como tal produo foi valorada pelas comunidades interpretativas atuantes no Jornalismo

    do Brasil e de Portugal, a saber: a informao ambiental nas televises de sinal aberto

    dominantes nos pases que falam a lngua portuguesa onde h relevante produo sobre o

    recorte temtico, o territrio amaznico brasileiro, local que abriga grande biodiversidade

    de fauna, flora e humana. A Amaznia est no centro do interesse nacional brasileiro para

    planejamento do seu desenvolvimento e tambm no centro do interesse mundial, mas antes

    de mais, territrio que para alm da vida vegetal e animal, que abriga a vida de 25

    milhes de brasileiros, entre eles minorias tnicas e povos de natureza humana

    condicionada os contextos desse territrio.

    O principal objetivo dessa investigao foi o de encontrar os caminhos possveis

    de uma pedagogia que absorva o ethos do conceito de ecologia dos saberes2 (Santos,

    2008), para pensar uma melhor formao do ensino do Jornalismo no prprio territrio da

    pesquisa, ou seja, na Amaznia Legal, onde a autora dessa tese leciona. Isto, sem perder de

    vista o contexto histrico-cultural e poltico das naes envolvidas e suas relaes

    internacionais para, a posteriori, vir a contribuir na ampliao e qualificao da

    representao das questes ambientais da Amaznia na imprensa de lngua portuguesa,

    seja na dimenso local ou global.

    A hiptese central que os obstculos sofridos para a fruio da informao

    ambiental democrtica3 se d atravs dos evidentes conflitos polticos e nos jogos de

    2 Ecologia dos saberes: conceito desenvolvido por Santos (2008: 154-165) para definir a possibilidade de

    dilogo entre epistemologias diversas, hegemnicas e contra-hegemnicas, incluindo assim os chamados

    conhecimentos tradicionais. 3 Entendemos por comunicao ambiental democrtica a informao sobre meio-ambiente que contribui para

    a formao ou manuteno da cidadania. O conceito de cidadania por sua vez o de cidadania imperfeita,

    de tienne Balibar, compreendido atravs de outro conceito, o de comunidade de destino citado por Jos

    Manuel Mendes (2004) : A comunidade de destino implica a prevalncia de situaes de incerteza e da

    conflitualidade, que no a violncia, das condies do poltico (2001: 209). Esta comunidade de destino, na

    sua componente territorial, pode ir do prdio, rua ou bairro at ao globo como um todo. Como consequncia,

    a cidadania uma noo complexa, que se define e constri sempre a vrios nveis, em quadros mltiplos e

  • 3

    interesses econmicos pblicos e privados alimentados pela colonialidade de poder4

    (Quijano, 1991, 1993, 1994) que atingem no s a produo deste gnero jornalstico na

    mdia, em tempos de capitalismo, mas tambm no despreparo cultural da comunidade

    interpretativa em jogo, originado da histrica separao epistemolgica e institucional

    entre as cincias naturais e as cincias sociais, entre conhecimentos cientficos e

    conhecimentos tradicionais e/ou alternativos, prtica oriunda da lgica hegemnica do

    pensamento cientfico dualista e cartesiano. Enfim, o que nos termos de Boaventura de

    Sousa Santos acaba por resultar em verdadeiro epistemicdio5, que vem impedindo que a

    prtica da construo de narrativas jornalsticas se configure como construtoras de

    gramticas interculturais que traduzam6 e faam dialogar as formas hbridas para conhecer

    e fazer acontecer vida.

    A questo central de toda a investigao foi, portanto, remetida seguinte

    pergunta: poderamos pensar a atividade do Jornalismo Ambiental com possibilidades de

    se tornar uma traduo cultural na contemporaneidade entre cincia e populao, para usar

    a metfora central do pensamento de Ribeiro, ou seja, traduo como local de promoo da

    interculturalidade atravs da linguagem como ncleo de uma noo de transformao

    social numa perspectiva de descolonizao? (Ribeiro, 2005).

    A reflexo se deu na miragem dos critrios de noticiabilidade proferido pela

    media televisiva de sinal aberto, mira escolhida pelo entendimento de ser esta forma de

    emisso de informaes de maior audincia e penetrao nos pases de Norte a Sul7. A

    tecnologia da emisso televisiva via satlite e terrestre consegue alm de grande frequncia

    de audincia em nvel global, penetrao geogrfica nas localidades mais afastadas dos

    grandes centros; e, sua tecnologia lingustica, permite considervel entendimento na

    recepo, mesmo por audincias no includas pelo paradigma de instruo do

    articulados de forma diversa. A cidadania imperfeita constituda, assim, por prticas e processos e no

    tanto uma forma estvel ou pr-definida. 4 O conceito de colonialidade descrita por Anibal Quijano na diferenciao do conceito de colonialismo

    apesar de ser constitutiva deste. Trata-se da persistncia profunda e duradoira (j dura 500 anos ) da

    dominao/explorao de uma populao, incluindo as relaes racistas e que pode ocorrer dentro de um

    Estado-nao, ou seja, no mais como no colonialismo, uma dominao determinada por um poder cuja sede

    se localiza noutra jurisdio territorial. 5 Epistemicdio: a morte de um conhecimento local perpetrada por uma cincia aliengena (Santos,

    2004:20). 6 Traduo como procedimento que permite criar inteligibilidade entre as experincias do mundo, tanto as

    disponveis como as possveis (Santos 2008:123). 7 Diviso geogrfica metafrica usada pelos estudos ps-colonialistas para explicitao das assimetrias que

    geram as desigualdades no globo terrestre: no Norte esto os pases desenvolvidos e centros de deciso

    poltica e, no Sul, os pases em desenvolvimento e perifricos esses centros decisrios.

  • 4

    conhecimento formal ocidental, alcanando assim as populaes tradicionais - povos

    ribeirinhos, camponeses, povos indgenas, etc. - dos pases em desenvolvimento, ou seja,

    do Sul. Especificamente: as populaes que habitam a Amaznia Legal no Brasil.

    A escolha do recorte temtico foi feita em cima e atravs do conceito poltico

    criado pelo Estado brasileiro, Amaznia Legal, por ser uma rea que engloba nove

    estados federativos do Brasil, pertencentes bacia amaznica, mas que tambm engloba

    vrios importantes biomas naturais do pas, incluindo no s as florestas, mas tambm o

    cerrado e toda a sua biodiversidade de flora e fauna. A Amaznia Legal brasileira

    formada pelos estados do Acre, Amap, Amazonas, Par, Rondnia, Roraima, Tocantins e

    grande parte dos estados do Maranho e Mato Grosso. Alm disso, constitui 60% de toda a

    regio territorial amaznica (Pan-Amaznia) e 50% do territrio nacional brasileiro. Est

    no epicentro dos conflitos de terra no Brasil, assim como no planejamento do estado para o

    Programa Acelerao do Crescimento PAC do atual governo e, abriga cerca de vinte e

    cinco milhes de habitantes. Mas principalmente, est no centro dos interesses mundiais na

    disputa poltica e estratgica pela biodiversidade8 da referida regio. A Amaznia Legal

    nos fornece um tema cujos critrios de noticiabilidade podem ser observados e analisados

    na produo jornalstica da lngua portuguesa nos dois nveis: o local, com a produo do

    discurso meditico brasileiro e o global, com a produo do discurso meditico na lngua

    portuguesa, traduzido e emitido por Portugal e Brasil para telespectadores na Europa, sia

    e frica.

    Tratou-se por fim, de uma tentativa de ultrapassar a insuficincia da crtica que

    ainda deriva da presente hegemonia do paradigma funcionalista nas pesquisas de

    comunicao, pois, o que fundamentalmente os estudos culturais ps-coloniais propem

    atravs do conceito de colonialidade de poder (Quijano, 2010: 84-130), que as prticas de

    produo e de recepo da comunicao sejam articuladas com as relaes de poder. Ora, a

    produo e a reproduo social do sentido envolvida nos processos culturais, no

    somente uma questo de significado simblico, mas tambm uma questo de entendimento

    dos jogos econmicos de poder na disputa pela hegemonia desse significado. Por isso, se

    nos afastarmos dessa proposta, podemos cair na priso redundante da tendncia de hoje de

    8 Termo aqui utilizado de acordo com a CBD (Conveno sobre a Diversidade Biolgica das Naes

    Unidas): variabilidade entre organismos vivos de todas as origens, incluindo, a inter galia, a terrestre, a

    marinha e outros ecossistemas aquticos e os complexos ecolgicos de que fazem parte. Inclui a diversidade

    interna s espcies, entre espcies de ecosistemas (Hindmarsh, 1990)

  • 5

    defesa liberal e deliberada da existncia de uma cultura de massas e de um irrevogvel

    sistema de comunicao social sob domnio da elite mundial; perdendo as complexas

    relaes entre comunicao e cultura num denso contexto social e poltico mundial, que

    tem por horizonte a relao de subordinao presente nas culturas populares e

    subcontinentais em que se articulam relaes de resistncia, mas tambm de submisso; de

    oposio, mas tambm de cumplicidade.

    Assim, foram analisados os valores-notcia de 312 notcias em seus contextos

    polticos e de produo noticiosa nas duas televises generalistas e hegemnicas de sinal

    aberto: A Rdio e Televiso de Portugal RTP, em Portugal; e a TV Globo, no Brasil. A

    investigao da produo jornalstica da televiso portuguesa incidiu em quatro jornais

    nacionais diarios dos dois canais generalistas da emissora: O Bom Dia Portugal, o Jornal

    da Tarde, e o Telejornal, no canal RTP1; alm do Jornal 2, do canal RTP2. J na produo

    da televiso brasileira, com profuso bem maior de notcias sobre o tema, a investigao

    concentrou-se no jornal de maior audincia da TV Globo no Brasil, o Jornal Nacional (JN).

    A pesquisa de dados encontrou 125 notcias sobre o tema na televiso portuguesa e 185, no

    recorte da televiso brasileira.

    Para tanto foi necessario um criterioso mergulho crtico e histrico assentado na

    teoria ps-colonial, sobre a representao discursiva incidida no territrio temtico da

    investigao numa reflexo terica interdisciplinar dos discursos da globalizao e da crise

    ecolgica atual, e suas relaes culturais. o que o leitor ir ler no Captulo I, intitulado,

    Globalizao e Crise Ecolgica Luz da Teoria Ps-Colonial.

    O segundo captulo desta tese versa sobre a interdisciplinaridade terica entre os

    campos da Ecologia e da Comunicao Social, oferecendo continuidade na busca por

    aproximaes com a hiptese da investigao. Foi apresentado um conceito de Jornalismo

    Ambiental que vem sendo desenvolvido no Sul, principalmente por Wilson Bueno (2007) e

    na trilha deste conceito, uma tentativa de esboo de uma sociologia das ausncias e das

    emergncias nos modos de produo do fazer jornalismo, como aconselhou Boaventura de

    Sousa Santos (2008).

    Os caminhos, os mtodos escolhidos e os mapas das fluxometrias de abrangncia

    das notcias estudadas esto no terceiro captulo, onde comea e termina o trabalho

    etnogrfico num trabalho cclico de observao que combina os mtodos de Estudos de

    Caso Estendido ECE (Burawoy, 1991), com da observao etnogrfica multi-

  • 6

    localizada do campo complexo da investigao (George Marcus, 1995). Um ir e vir

    incessante de uma reflexo ideolgica derivada (Marcus, 1994:18) dos interesses dos

    estudos ps-coloniais e suas pretenses epistemolgicas.

    Os captulos IV e V apresentam uma descrio densa das notcias acompanhada

    da anlise reflexiva nos dois lugares da investigao: Portugal, na RTP e Brasil, na TV

    Globo, respectivamente.

    O estudo revelou como a colonialidade de poder opera na construo simblica da

    representao da Amaznia nas duas televises, mas tambm revelou insurgncias ou

    formas de resistncias s foras hegemnicas produtoras dessa colonialidade de poder

    praticadas por ambas as comunidades interpretativas. Revelou enfim, as intenes da

    competencia comunicativa das equipes de jornalistas em ambas as televises estudadas,

    alm das emergncias de foras contrahegemnicas tambm empreendidas nas respectivas

    produes jornalsticas. Aponta as intencionalidades das comunidades interpretativas, tanto

    na seleo que fazem dos acontecimentos que sero transformados em produto final as

    notcias , quanto da inteno na construo dessas narrativas na linguagem.

    As principais revelaes so comentadas na tentativa de concluso da tese, sob o

    ttulo, Arremate (In) Conclusivo, por entender o conceito de notcia como um artefato

    ideolgico de ao comunicativa que incide no imaginrio social nunca inteiramente

    apreendido, sempre aberto a novos olhares no devir social.

  • 7

    Captulo 1 - Globalizao e Crise Ecolgica Luz da Teoria Ps-Colonial:

    Os termos globalizao e crise ecolgica tm sido usados incessantemente em

    todas as esferas sociais em diferentes contextos polticos e de comunicao social em geral.

    Isto no tem sido toa, posto que h uma mudana em curso no mundo que precisa ser o

    mais compreendida possvel para ser diagnosticada tambm da melhor forma possvel. H,

    porm um entendimento hegemnico nas sociedades contemporneas que equivalem ao

    uso, tambm hegemnico, de ambos os termos. Em linhas gerais, por globalizao

    entende-se um processo inevitavelmente mais veloz que ultimamente vem unindo as

    naes a valores econmicos e simblicos homogneos a servio do tambm inevitvel

    regime de acumulao capitalista mundial. Por crise ecolgica, numa espcie de mono

    causalidade ahistrica e trgica, entende-se as transformaes nos ciclos naturais do

    planeta como consequncia da grande transformao urbano-industrial que ganhou uma

    escala sem precedentes a partir do sculo XX, no referido processo globalizador.

    bem mais e mais complexo do que isso. Afinal, o que temos aqui um conjunto

    de formaes de discursos9 que predominam na atualidade: o discurso da globalizao e o

    discurso da crise ecolgica. Ambos determinados por ordens de discursos socialmente

    constitudas no conjunto de convenes associadas com as instituies sociais. So

    discursos que se formaram ideologicamente no devir histrico das sociedades capitalistas

    no s pelas relaes institucionais de poder, mas tambm por tais sociedades como um

    todo, constituindo-se como um jogo de linguagem ou uma dialtica entre as estruturas e

    prticas sociais (Fairclough, 2001:15). Esto intrinsicamente interligados e carregam no

    bojo dessa interligao, foras hegemnicas e contra hegemnicas10

    de poder, como define

    Fairclough:

    9 Utilizo aqui o conceito de discurso de Norman Fairclough: discurso prtica social determinado e

    determinante pelas e das estruturas sociais e conectado s ideologias, portanto, podem contribuir tanto para a

    continuidade do status quo social, quanto para a sua mudana (Fairclough, 1989, 2001: 14-35).

    10

    O jogo de foras hegemnicas e contra hegemnicas retirado do trabalho de Gramsci na construo do conceito de Hegemonia. Na formulao de tal conceito, Gramsci prope uma nova relao entre estrutura e

    superestrutura na teoria marxista: a estrutura nem sempre determina a superestrutura, sendo a ltima central

    na anlise das sociedades avanadas. Assim, a ideologia assume um papel central na constituio das relaes sociais. A conquista da hegemonia se d num jogo de foras entre classes atravs da persuaso e educao

    (em sentido amplo e informal) no seio da sociedade civil. Para falar da atualizao desse jogo de foras

    est o que este trabalho aponta como jogo de foras hegemnicas e contra hegemnicas (Gramsci, 1978 a e

    b).

  • 8

    Globalization is first an economic process, and the neo-liberal doctrine it is

    currently associated with is centred upon maximally free trade the free

    movement of goods, finance and people internationally. What is involved is a

    shift in the relationship between the market and the state which has

    characterized capitalism for most of the twentieth century, freeing the market

    from state controls and undermining the role of the state in providing social

    welfare, and converting the state into a local advocate and agent for the free

    market. Supporters of this new order point to its huge capacity for wealth

    creation, assuming that while some may gain more than others, all will gain to

    some extent. Opponents argue that the market free from state controls increases

    the gap between rich and poor internationally and within states, makes life

    radically insecure for most people, and causes immeasurable environmental

    damage. Globalization is a process which is only partially complete and which

    those who benefit most are seeking to extend. They do so through a struggle to

    impose a new order. In the first instance, this is a new economic order, but it is

    not just economic: there is also a more general process of globalization,

    including for instance politics and culture (2001: 204).

    Na ordem da imensurabilidade dos danos ambientais, apontada na citao do autor

    como fora contra hegemnica do discurso da crise ecolgica em contraponto ao discurso

    da globalizao, a resposta desse ltimo tem sido em linhas gerais, a de que vrias

    mudanas catastrficas da natureza aconteceram nas diversas fases de evoluo geolgica e

    ecolgica no nosso planeta extinguindo espcimes de seres vivos e transformando a

    paisagem da Terra. Entretanto, cada vez mais surgem discursos dominantemente

    proferidos pela comunidade cientfica - de que a crise ecolgica atual, pela primeira vez

    no apenas uma mudana apenas natural. uma mudana da natureza induzida pelas

    concepes metafsica, filosfica, tica, cientfica, poltica e tecnolgica do mundo. A crise

    ecolgica, ento, est intrinsecamente ligada concepo do modo como a globalizao se

    realiza, obrigando-nos a pensar reestruturao do cenrio, poltico, cientfico e educativo

    como o problema mais importante do sculo XX e inaugurador do sculo XXI. uma

    questo que no emana unicamente da evoluo da matria, mas que se revela no mundo

    objetivo trazendo novos e complexos problemas para o meio ambiente.

    A complexidade ambiental um processo de reconstituio de identidades

    resultantes da hibridao entre o material e o simblico; o campo no qual se

    gestam novos atores sociais que se mobilizam para a apropriao da natureza;

    uma nova cultura na qual se constroem novas vises e surgem novas estratgias

    de produo sustentvel e democracia participativa (Leff, 2003:7).

    Samos assim do discurso da globalizao para pensarmos a globalizao dos

    discursos, promovidas pela emergncia e ampliao da virtualidade do mundo, o que faz

    muitos pensadores a estudarem essas globalizaes alternativas que vem gerindo a

    reconstituio entre o material e o simblico em nossos dias, como nos disse Leff. Isto

  • 9

    revela o fato de que estamos em pleno perodo de transio, quando nossos valores e

    atitudes desmontam progressivamente colocando a todos ns num impasse civilizatrio

    oriundo de uma longa histria que traz em seu bojo todas as heterogeneidades de

    pensamentos que foram suprimidas desse entendimento, apoiadas na noo de progresso.

    Uma noo que embasa o modelo de desenvolvimento escolhido pelo bloco de poder

    dominante, que ao longo da histria vem exaurindo - e agora, em uma velocidade

    assustadora - os recursos naturais no renovveis do planeta, com impactos negativos

    qualidade de vida dessas mesmas populaes, mas tambm risco de vida das ditas outras,

    no ocidentais ou transocidentalizadas.

    Nas ultimas dcadas principalmente, a globalizao hegemnica e seu discurso

    desenvolvimentista adquiriu formato associado a um carter mundializado das relaes de

    mercado e s formas neoliberais de governos. Ou seja, o processo de globalizao

    assentado no modelo de desenvolvimento dos valores capitalistas exatamente o que est

    posto em xeque pela crise ecolgica, a partir de uma ideia muito simples: no possvel

    um crescimento infinito num planeta finito. A ideia de um crescimento infinito neste

    modelo desenvolvimentista nada mais do que o fomento da ideia capitalista do lucro

    infinito.

    Historicamente, a ideia foi criteriosamente apoiada pelo devir de uma revoluo

    cientfica quando essa implodiu o pensamento medieval a partir dos cus, inaugurando as

    navegaes a partir do deslocamento do eixo do cosmo da Terra, para o Sol. Do

    pensamento religioso, para o profano e cientfico. Da separao do homem da natureza. Tal

    pensamento tem sua maior expresso na obra de Descartes, que permitiu a colocao da

    natureza disposio da racionalizao do homem. Ou na de Bacon (1997), onde a

    natureza tem valor utilitrio. E que mais tarde, na sociologia foi extensamente anunciada

    na obra de Max Weber desde seu artigo escrito em 1913, Uber Einigen Kategorien der

    Verstehenden, (Sobre Algumas Categorias da Sociologia Compreensiva), que a chamou

    de desencantamento de mundo (entzanberg der welt) (Pierucci, 2003: 62-65, apud

    Weber).

    A teoria ps-colonial, por sua vez , vem se consolidando nas ultimas dcadas

    como uma nova anlise crtica das conflituosas relaes centro-periferia criada pelo

    colonialismo e pela expanso do capitalismo nesse processo chamado de globalizao.

    Trata-se de uma teoria que vem adotando, portanto, um ponto de vista poltico que procura

  • 10

    revelar neste modelo de desenvolvimento escolhido e apoiado pela cincia na dita

    modernidade; as complexidades, ambiguidades e contradies desse processo de formao

    de mundo polarizado entre um centro constantemente explorador, e periferias

    constantemente exploradas, provocando fraturas em ambos os lados formando um mundo

    extremamente desigual. As vozes que surgem do pensamento ps-colonial procuram

    imaginar uma era de ps-desenvolvimento e de produo de conhecimento descolonizante.

    So olhares para a perspectiva de uma insurgncia epistmica de praticas, saberes,

    epistemologias e cosmologias indgenas, camponesas, afrodescendentes (Ferguson, 1990;

    Escobar, 1995; Sachs, 1992; Rist, 2008).

    Assim, em relao crise ecolgica o pensamento ps-colonial mergulha na

    contradio capital-natureza, na procura por revelar quem o bloco de poder e quem so

    os atores sociais ou naturais que podem produzir uma mudana social e ambiental

    emancipatria. Para isso o aconselhamento que vem sendo desenvolvido por tais tericos

    o de modificar os sentidos do desenvolvimento para, no caso limite, anul-lo. Quando os

    territrios, os projetos endgenos e, em suma, a vida e a unicidade da experincia das

    pessoas passam a sobressair como ncoras na desconstruo de narrativas sobre progresso

    e sua histria linear, o potencial uma reconfigurao poltico-epistmica que sinalize a

    colonialidade vigorosa que permeia todo princpio de representar, prescrever em nome de

    um desenvolvimento universal.

    No se trata logicamente, de rejeitar incondicionalmente toda a cincia moderna.

    Trata-se sim do entendimento da noo de desenvolvimento como um projeto. Isso desvela

    que o modelo escolhido no s econmico, mas tambm histrico poltico e cultural.

    Cultural porque surge de uma experincia particular: a modernidade europeia e suas

    escolhas que subordinaram outras culturas aos princpios ocidentais. Princpios esses que

    foram sedimentados pela revoluo cientfica citada, a saber: o indivduo racional no

    vinculado a nenhum lugar ou comunidade; a separao de natureza e cultura; a economia

    do social e do natural; a primazia do conhecimento especialista ou cientfico sobre todos os

    outros tipos de conhecimento. Esta forma particular de modernidade tende

    [...] a crear lo que la ecloga hindu, Vandana Shiva, llama monocultivos

    mentales. Erosiona la diversidade humana y natural. Por esto el desarrollo

    privilegia el crecimiento econmico, la explotacin de recursos naturales, la

  • 11

    lgica del mercado y la bsqueda de satisfaccin material e individual por sobre

    cualquier outra meta (Escobar, 2010: 22)11

    .

    Os efeitos simblicos de intercmbio histrico cultural com os centros coloniais,

    portanto, so especialmente caros teoria ps-colonial, o que a faz inicialmente nutrir-se

    da teoria literria e da filosofia ps-estruturalista, em anlises comparativas das macro

    narrativas de longos perodos histricos. Para tanto, abarca elementos tericos da

    antropologia cultural, para entender o homem e as sociedades na vertente da cultura, o que

    acaba por distingui-la pela tentativa constante de repensar a estrutura epistemolgica de

    todas as cincias sociais. Tais estruturas teriam sido moldadas de acordo com padres

    ocidentais que se tornaram tambm globalmente e simbolicamente hegemnicas devido ao

    fenmeno histrico do colonialismo.

    Historicamente, ao que interessa especificamente aqui, remonta o significado do

    termo globalizao sua origem: ao contexto do processo de colonizao iniciado no

    sculo XIV, impulsionado pelas descobertas de novas terras pelos europeus navegantes.

    Para pensar no devir desse processo e a construo deste modelo desenvolvimentista como

    uma forma de conhecimento de mundo que se imps sobre a imensa diversidade de outros

    conhecimentos, tivemos a ajuda da Teoria da Dependncia. Uma crtica modernidade,

    que nos anos 60, sob a autoria de Andr Gunder Frank (1967), j apontava os pases

    colonizados, no como pases atrasados e sim, como pases marcados para o

    desenvolvimento do subdesenvolvimento. Uma formulao incmoda para o

    pensamento da poca, pois inclusive as formulaes de esquerda estavam impregnadas

    pelas teorias da modernizao e, mesmo entre os marxistas, ainda se pensava o Brasil, por

    exemplo, como resultado do atraso feudal e no como subproduto necessrio da

    acumulao em escala mundial.

    A proposta de desconstruo desse modelo de desenvolvimento da globalizao

    moderna passa tambm pelo novssimo conceito de desenvolvimento sustentvel12

    cujo

    11

    Traduo livre da autora: [...] a criar o que a ecloga hindu, Vandana Shiva, chama de monocultivos mentais. Erode a diversidade humana e natural. Por isso o desenvolvimento privilegia o crescimento

    econmico, a explorao dos recursos naturais, a lgica do mercado e a busca por satisfao material e

    individual por sobre qualquer outra meta (Escobar, 2010:22). 12

    Refiro-me aqui ao conceito de desenvolvimento sustentvel criado e usado pela primeira vez pela Comisso Mundial Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, formada em 1983 pela Assembleia Geral das

    Naes Unidas: Em essncia, o desenvolvimento sustentvel um processo de transformao no qual a

    explorao dos recursos, a direo dos investimentos, a orientao do desenvolvimento tecnolgico e a

    mudana institucional se harmonizam e reforam o potencial presente e futuro, a fim de atender s

    necessidades e aspiraes humanas (CMMAD, 1987:49).

  • 12

    segundo termo serve apenas para legitimar o primeiro, ou seja, a perpetuao do

    desenvolvimento como gramtica insupervel (Rist, 2008:194). At porque a noo de

    sustentabilidade iguala-se de crescimento linear, apagando outras temporalidades

    impostas Natureza e suas populaes exploradas, contraindo o presente, dilatando o

    futuro e apagando o passado, como veremos em pormenores mais frente.

    Em ps-colonial, o sufixo ps, ento, no se constitui nestes estudos como

    descrio do depois ou do agora, ou seja, no se trata de uma mera periodizao baseada

    em estgios de desenvolvimento das sociedades mundiais. um sufixo usado para a

    releitura da colonizao como parte de um processo transnacional e transcultural global,

    para produzir uma reescrita das anteriores grandes narrativas centradas nas naes. A

    pertinncia do sufixo ps que d nome a estes estudos, entretanto, vem sendo largamente

    questionado, como em Ella Shohat (1992, apud Hall, 2009:99), que acredita ser

    provocador de ambiguidade terica e poltica e, assim despolitizante. Ou por, Anne

    McClintock (1992, apud Hall, 2009:100), que critica a linearidade do termo e sua

    suspenso arrebatada da histria. Para ambas, ento, o termo ps confunde e traz uma

    compreenso de fechamento do perodo histrico do colonialismo. Ou ainda, por Arif

    Dirlik, que desconfia do conceito por ser:

    [...] um discurso ps-estruturalista e ps-fundacionista empregado

    principalmente por intelectuais deslocados do Terceiro Mundo, que esto se

    dando bem em universidades americanas prestigiosas, do Ive League e que

    utilizam a linguagem em voga da virada lingustica e cultural para reformular o

    marxismo, remetendo-o a outra linguagem do Primeiro Mundo com pretenses

    universalstico-epistemolgicas (Dirlik, 1994 Apud Hall, 2009: 96-97).

    So crticas, para concordar com Hall, que no fundo anseiam por uma poltica

    bem definida de oposies binrias, o que o autor chamou apropriadamente de desejo para

    traar linhas claras na areia13

    . No h dvidas que tais binarismos existem e, alm do

    mais, sempre que tentamos universalizar pensamentos, no exerccio da abstrao, camos

    em binarismos. A teoria ps-colonial tambm faz uso deles14

    , evidentemente. Mas, em um

    mundo em tamanha ordem de transformao, tambm verossmil que binarismos que

    sempre nos serviram, como bem e mal, ou certo e errado, em qualquer abstrao que seja,

    tm sido cada vez mais difcil. Isto implica que cada vez mais temos a viso nebulosa, mas

    que de qualquer forma precisamos continuar fazendo escolhas do nosso ponto de vista

    tico, do nosso lugar enunciao, na perseguio da maior transparncia possvel dos

    13

    Idem, ibidem: 98 14

    Para citar a frequncia de alguns deles: Ocidente/Oriente, Norte/Sul, Centro/Periferia, etc.

  • 13

    nossos pensamentos. esta a justificativa do termo ps-colonial quando desconfia do

    projeto modernista e desconsidera o fechamento histrico do conceito de modernidade,

    preferindo compreender a confusa situao atual como uma espcie de colonialismos

    tardios (grifos da autora).

    A crtica ps-colonial tm significado importante como testemunho das foras

    desiguais e irregulares de representao cultural envolvidas na competio pela autoridade

    poltica e social dentro da ordem do mundo moderno (Bhabha, 2007:239). Uma

    modernidade criada (inventada) sob-bases de determinao metafisica de conhecimentos

    produzindo uma ordem coisificada e fragmentada na dominao e controle do mundo.15

    Ou

    seja, tal pensamento importante porque evidencia as relaes que em diferentes contextos

    histricos, de povo para povo e de relaes dinmicas de diferentes graus de intensidade

    com o centro imperial, levantam as formas pelas quais possvel estar no Ocidente, sem

    fazer parte dele.

    A produo do discurso de desenvolvimento como progresso constante dessa

    modernidade foi embasada no campo do simblico, como mostra Arturo Escobar

    (2010:41) atravs de seus estudos de Trinh, (1989) e Hirschman (1981), em seis etapas

    histricas das formas discursivas para a nomeao dos povos que no atingiram o

    desenvolvimento europeu ocidental e depois estadunidense no conhecimento produzido

    pela cincia dominante. Uma percepo da alteridade como falhada, de identidades que

    necessitam de ajuda e que foram tomadas sucessivamente nas formas de brbaro, pago,

    infiel, selvagem, nativo e subdesenvolvido, desde o incio da colonizao at os dias atuais.

    Aps a deflagrao da 2 Guerra, sob o signo do subdesenvolvimento esto h

    quatro dcadas compreendidas, na mentalidade geopoltica monocultural (para usar a

    terminologia de Shiva), todas as sociedades latino-americanas, africanas e algumas

    asiticas. o tambm chamado, Terceiro Mundo, que o autor adverte que mesmo

    admitindo falhar, esse modelo produz ideias, coisas e disciplinas efeito de instrumento

    - que sacrificam formas de conhecimentos locais e modelos de compreenso da natureza

    em favor de um modo racional de governo com a constituio de programas para alavancar

    economias e gerar bem estar a essas populaes ditas pobres (Escobar, 1995: 44)

    15

    Modernidade de determinao metafsica no sentido heideggeriano: criada pela filosofia grega, e, portanto ocidental, a cincia foi classificatria do mundo e da diviso dos seres em marcos de conhecimento abrindo a

    possibilidade para o domnio controlado de cada coisa.

  • 14

    O que justifica a escolha desse trabalho no vis da teoria ps-colonial o

    entendimento do seu desafio mais interessante: o de imprimir na historia da humanidade

    com a natureza o que foi reprimido pela razo moderna, ou ps-moderna em suas redes

    conceituais reificadas. Um desafio que permite uma crtica da modernidade da posio do

    sujeito colonizado, o que deve contribuir tanto para a compreenso das relaes da

    Natureza e das sociedades subalternizadas que nela habitam, quanto para pensar a

    transformao das relaes socioculturais em jogo.

    Para isso, no devir dessa crtica modernidade, surge o termo que Anibal Quijano

    (1991, 1993,1994) cunhou para conceituar esses efeitos e diferenci-los do conceito de

    colonialismo assentado no imaginrio epistmico apenas no passado desses povos: o

    conceito de colonialidade de poder. Como o prprio termo conduz trata-se de uma

    identidade que insere resqucio, ou resduo, mas tambm naturalizao dos processos de

    dominao/explorao do poder colonial entranhada, arraigada persistentemente nas

    mentalidades e comportamentos poltico-sociais, tanto nos prprios pases que sofreram o

    processo violento da colonizao (tambm denominado de colonialismo interno), quanto

    por um poder cuja sede se localiza noutra jurisdio territorial (Anibal Quijano, 2010).

    Percebe-se, portanto, que o uso dos termos jurisdio territorial escolhido por

    Quijano no quer apenas incluir no conceito a noo geogrfica16

    de espao, mas enxerg-

    la tambm nos espaos de relaes de poder de dimenso poltica (poder legal-

    administrativo de estados-nao) e imaterial (simblico)17

    complexos da

    contemporaneidade, ou seja, sua ecologia poltica18

    . Faz-se necessrio, portanto, atrelar

    trs eixos na procura pela colonialidade de poder na crise ecolgica que se encontram

    fortemente entrelaados: as formas de conhecimento a que se refere, o sistema de poder

    que regula suas prticas e as formas de subjetividade fomentadas no discurso da crise.

    16

    O conceito de espao geogrfico utilizado neste trabalho inclui no s a noo de espao fsico, mas

    tambm a social, entendendo que aes sociais e todos os elementos naturais desse espao so

    interdependentes. O espao social, portanto, est contido no espao geogrfico (Milton Santos, 2002). 17

    Retirado da Geografia Crtica, compreende-se que os conceitos de espao geogrfico e espao territorial

    so indissociveis. Apenas, entende-se por territrio a delimitao de um espao incluindo as relaes de

    poder em suas duas dimenses: a material que diz respeito rea do territrio, aos objetos geogrficos

    influenciados/dominados/apropriados pelo sujeito territorial; e a imaterial, que corresponde s estratgias dos

    sujeitos para a construo de um territrio; so as aes, representaes espaciais criadas, a disputa de foras

    com outros sujeitos, as ideologias e os discursos, posicionamentos polticos, manifestaes e outras formas

    imprimir o poder. 18 A ecologia poltica tem como principal estratgia de ao os movimentos ambientais e algumas propostas, entre as quais podem ser destacadas: a justia ambiental, a resistncia como estratgia de luta e proposies

    de alternativas ao desenvolvimento.

  • 15

    No primeiro eixo hoje, na grande esfera de conhecimento das cincias humanas,

    podemos observar sob as inmeras perspectivas epistemolgicas do construtivismo social

    em estudos das mais variadas minorias, intervindo nos discursos hegemnicos da

    modernidade: perspectivas da prpria cincia como construo social, de feministas,

    discursos de relaes tnico-raciais, de histrias diferenciadas de naes e povos e, at

    mesmo (e aqui o que mais interessa a esse estudo), na perspectiva de uma nova poltica que

    considere a natureza humana como integrante da natureza. Apesar de j ser lugar comum

    na avaliao dos tericos dessa grande profuso de novos conhecimentos no sculo XX ter

    sido permitida no promulgado giro lingustico sofrido pelas cincias sociais e expresso na

    famosa frase de Wittengestein, os limites da minha linguagem significam os limites do

    meu mundo (1994: 245), isto s no basta. So tambm clamores que evidenciam

    mudanas de paradigmas em curso a partir de um mal-estar generalizado na relao

    humana com o meio ambiente social e natural, nos velozes e complexos processos

    impostos pela globalizao de um mundo superpovoado e interligado pelas tecnologias de

    transporte e de comunicao que modificam a relao tempo-espao.

    No cabe aqui uma extensiva antologia desses pensamentos, mas vale sublinhar a

    novidade radical do pensamento ecofeminista19

    que sem desconsiderar a importncia das

    anlises e interconexes entre poder, conhecimento, subjetividade e linguagem, procura

    recusar ainda a separao do mundo material, do mundo imaterial. Um raciocnio que

    prope a reconceitualizao da Natureza para descoloniza-la, resgatando o conceito de

    agncia20

    : a Natureza agente e tais aes tm graves consequncias tanto para o mundo

    humano, quanto para o no humano e, no mais apenas recurso para a produo industrial

    ou construo social. A ideia ecofeminista explora a interao entre histria, cultura,

    discurso, tecnologia e biologia, com meio ambiente, concomitantemente sem privilgio de

    nenhuma das partes. Isto nos remete ao segundo eixo e abre perspectivas ticas e polticas

    relevando importncia s prticas de poder. Pois, nesta tica material que inclui a Natureza

    como agente implica,

    19

    Existem muitos tipos de movimentos que se intitulam ecofeministas. Os aqui referidos so anlises formuladas principalmente pelas autoras: Sandra Harding, Helen Longino, Loraine Code, Lunne Hankinson

    Nelson, mas tambm por autores como Bruno Latour e Andrew Pickering, que procuram se manterem no

    elemento emprico e material sem abandonar a construo social de seus objetos de anlise. 20

    Refiro-me aqui ao conceito formulado por Anthony Giddens e sua teoria da estruturao do sistema social para pensar mudana social. Agncia como espao onde se encontram as estruturas e os agentes, como uma

    fuso de circunstncias estruturais e capacidade propulsora duplamente condicionado: tanto pelo equilibrio

    entre estries e limitaes, quanto pelas aptides e talentos, habilidades, conhecimentos e atitudes dos

    membros da sociedade, por outro.

  • 16

    [...] que podemos comparar as prprias consequncias materiais reais das

    posies ticas e formular concluses a partir daquelas comparaes. Podemos,

    por exemplo, argumentar que as consequncias materiais de uma tica so mais

    favorveis ao desenvolvimento dos seres humanos e no humanos do que as

    consequncias de uma outra tica (Alaimo & Hekman, 2012:5).

    Assim, podemos mudar o foco dos princpios ticos para as prticas ticas que so

    encarnadas e situadas, que se desdobram em contextos particulares decisrios. Isso

    porque elas no esto acima ou sobre as realidades materiais e sim, emergem atravs delas.

    Na perspectiva poltica, permite a compreenso que as decises esto inscritas nos

    corpos humanos e no humanos o que produz marcas e gera demanda de resposta a esses

    corpos, instaurando novos direitos no contexto poltico de regulao. Isso tambm

    transforma a poltica ambiental e sua estreita relao com a cincia ecolgica, permitindo

    que ambientalistas tenham meios de desmascarar a ideia de que todas as argumentaes

    cientficas so igualmente vlidas. A discusso recente em torno do aquecimento global

    um exemplo dessa transformao na poltica da cincia que coloca a fora da Natureza

    como protagonista na luta.

    Ao fim e ao cabo, a questo ambiental , fundamentalmente, uma crise de uma

    razo que se intitulou de moderna sobre outras razes. Problemas ambientais so

    problemas de um conhecimento ocidental de mundo. Portanto, questionar essa

    racionalizao particular crescente do conhecimento e da objetivao de mundo tambm

    propor as questes dos valores e da subjetividade de mundo no interior das relaes de

    saber-poder, o que nos remete ao ltimo eixo. compreender a modernidade como um

    projeto no acabado com todos os seus tropeos e paradoxos. realizar o intento de poder

    pensar os povos que sequer chegaram a viver essa modernidade e, entretanto, dela j so

    vtimas. por fim, reiterar a cultura da prpria Natureza como vitima no processo.

    A crise ecolgica sob uma perspectiva macro da colonialidade de poder, no est

    relacionada apenas com as consequncias da grande transformao urbano-industrial dos

    tempos atuais, mas tambm com uma srie de outros processos, sejam eles macro ou

    micro, globais ou locais, que lhe so anteriores, mas que permanecem culturalmente. Sem

    dvida, o caso da expanso colonial europeia e da incorporao de vastas regies do

    planeta, uma grande variedade de territrios e ecossistemas, a uma economia-mundo sob

    sua dominncia, a visvel ponta do iceberg. Mais oculta est a vitria de um tipo de

    conhecimento, de prticas polticas e de formao cultural que propiciou a primazia do

    fator econmico sobre todos os outros enquanto estruturantes dos valores materiais, sociais

  • 17

    e culturais neste projeto ocidentalista. O auge do debate deu-se na Europa durante o sculo

    XVII quando,

    O argumento em favor de privilegiar uma forma de conhecimento que se traduzia

    facilmente em desenvolvimento tecnolgico teve de confrontar-se com outros

    argumentos em favor de formas de conhecimento que privilegiavam a busca do

    bem e da felicidade ou a continuidade entre sujeito e objeto, entre natureza e

    cultura, entre homens e mulheres e entre os seres humanos e todas as outras

    criaturas (Santos, 2005:21).

    Estaria, portanto, apontado no pensamento de Santos a origem do que hoje

    imprimimos terminologia de globalizao neoliberal que se instaurou no mundo como

    forma dominante do pensamento que se materializa no sistema de poder mundial

    principalmente a partir dos anos 90: uma lgica de mercado em detrimento a lgicas que

    anteriormente pretendiam garantir alguma distribuio social. Foram as escolhas realizadas

    pelas elites polticas, empresariais e cientficas europeias e norte-americanas, que depois

    alcanam todo o globo. A Teoria ps-colonial assim rechaa a viso de alguns cientistas

    polticos de que o processo globalizador da hegemonia econmica, poltica e cultural

    uma reinveno do processo expansionista norte-americano no perodo ps-guerra fria,

    como queria, por exemplo, Samuel Huntington (1997), como um processo inevitvel de

    expanso da cultura ocidental e do sistema capitalista sobre os demais modos de vida e de

    produo no mundo, o que nos conduziria a um choque de civilizaes.

    Muito pelo contrrio, a Teoria Ps-colonial opera no sentido da necessidade da

    reinveno social, cultural e material num mundo repleto de diferenas, sendo a mais

    visvel e marcante delas, a diferena hoje instaurada entre os pases do Norte e os pases do

    Sul.21

    Mas, sobretudo, entender que tal diferena s foi possvel atravs de um verdadeiro

    epistemicdio (Santos, 2005: 22)22

    . Um processo histrico que foi violento na Europa, mas

    o foi muito mais nos pases colonizados, de exclusivismo epistemolgico de uma cincia

    moderna transformada por duas principais modalidades de pensamento: uma concepo a-

    histrica do prprio conhecimento cientfico, feita do esquecimento dos processos

    histricos de constituio do conhecimento e, uma concepo cumulativa do progresso

    da cincia (Idem, Ibidem), que viria a acarretar o ocultamento do valor do erro e da

    21

    A metfora Norte-Sul uma traduo sociolgica (e no territorial) das desigualdades visveis no sistema

    mundial entre os pases desenvolvidos do norte como centro do processo globalizador neoliberal que

    subordina os pases do Sul (excluindo-se Nova Zelndia e Austrlia), como pases perifricos e

    semiperifricos nesse processo (Santos, 2003). 22

    Nota citada em Santos como conceito com que designa a morte de um conhecimento local perpetrada por

    uma cincia aliengena .

  • 18

    controvrsia, principalmente nas cincias sociais. O pensamento dominante do Norte assim

    passava a justificar uma capacidade superior de conhecer e de transformar o mundo e as

    cincias sociais em particular, assumiram a condio de ideologia legitimadora da

    subordinao dos pases da periferia e da semiperiferia do sistema mundial, o que se veio a

    se chamar Segundo e Terceiro Mundo23

    .

    O resgate histrico de outras ideologias se faz aqui necessrio no s para a

    compreenso das crises atuais, mas tambm para um reenquadramento e reinsero de

    conhecimentos esquecidos, silenciados, ocultados, em seus contextos de luta, que torne

    visvel outros conhecimentos, outras histrias. E, para apontar o terceiro eixo como lugar

    epistmico desse trabalho, quando falamos em crise ecolgica, portanto, convm a

    apreenso da trajetria de subjetividades que se estabeleceu ao redor do termo ecologia

    para marcao da definio conceitual neste trabalho. A maioria dos estudiosos atribui

    principalmente a Haeckel (1866), o primeiro significado e uso do termo, na obra, intitulada

    Morfologia Geral dos Organismos, editada em Berlim e que pretendia uma teoria geral

    dos seres vivos 24

    .

    Haeckel propunha uma perspectiva de anlise inerente s cincias naturais,

    assentada sobre a sua rea de atuao, a zoologia. Era assim, uma cincia que surgia para

    estudar as relaes entre os organismos vivos e o ambiente em que eles vivem. No levava,

    portanto, em considerao as relaes entre sociedade-ambiente, ou homem-natureza. Foi a

    perspectiva vencedora poca, porm, desde antes de Haeckel, ou mesmo

    concomitantemente, j surgiam outras perspectivas fora das chamadas cincias naturais.

    Eram acepes sobre uma cincia que se apresentava no numa nova perspectiva de

    anlise, mas tambm num foro de discusso poltica que reivindicava conhecimentos para

    uma garantia satisfatria de qualidade de vida para as sociedades, devido j aos primeiros

    problemas advindos da nova sociedade industrial para as colnias. A cincia ecolgica

    dominante nasce e se desenvolve, portanto, dentro de um ramo da cincia cartesiana, que

    admitia especificamente as relaes deterministas e mecnicas de causa e efeito, isto , o

    paradigma da cincia positivista que priorizava a determinao natural para a causa de

    muitos fenmenos, incluindo-se aqui os sociais.

    23

    Idem, Ibidem: 22-23 24

    Obra que marca a origem do conceito de ecologia: Haeckel, Ernest (1866): Generelle Morphologie der

    Organismen : allgemeine Grundzge der organischen Formen-Wissenschaft, mechanisch begrndet durch

    die von C. Darwin reformirte Decendenz-Theorie Berlin

  • 19

    Hoje, no incio do sculo XXI, a ecologia representa muito mais que uma

    subdisciplina de uma cincia determinista; representa, alm disso, um vasto campo

    cultural, poltico, cientfico, biolgico e social. So muitos os desdobramentos que a

    ecologia sofreu, tanto do ponto de vista pragmtico: ecologia humana, social e poltica,

    quanto do ponto de vista terico: sociologia ambiental, histria ambiental ou pensamento

    ecolgico (Pdua, 2002). O debate entre as cincias naturais e sociais est definitivamente

    instaurado e ele se estabelece numa atmosfera de discursos, em vrias esferas sociais, que

    primeira vista, ou primeira audincia, parecem disparatados. Ouve-se, ao mesmo tempo

    um crescente interesse pelos assuntos relacionados com a cincia e a tecnologia, assim

    como nos limites e pelos riscos que essa mesma cincia e tecnologia oferecem ecosfera,

    humanidade. Fala-se em sociedade da comunicao, sociedade de risco, sociedade

    sustentvel, sociedades tradicionais, etc. Cresce o debate sobre a poltica das cincias, no

    anseio de muitos cientistas e at mesmo de indivduos da esfera civil, os ditos leigos, por

    uma maior transparncia e dilogo entre as cincias.

    Esta investigao se pretende como apenas um desses espaos de observao, na

    difcil interface entre os vrios conhecimentos cientficos e no cientficos, nas relaes

    culturais de poder, questes ambientais e de desigualdades sociais. Para tanto e, ancorada

    nos estudos culturais ps-coloniais, procura primeiro a percepo dos ocultamentos,

    silenciamentos e estratgias enunciativas nas formaes discursivas sobre a Amaznia

    objeto tema da pesquisa - de uma forma de comunicao que surge no mundo moderno

    quase que ao mesmo tempo em que a crise ecolgica no processo histrico, como cnone

    literrio25

    desta globalizao neoliberal: o jornalismo. Apenas para deixar aqui apontado, -

    pois iremos discorrer detalhadamente sobre isso nos captulos subsequentes - a intenso foi

    a de seguir a trilha terica aberta por Sousa Santos na busca por um localismo-

    globalizado26

    da problemtica poltica-ambiental amaznica em dois pases

    semiperifricos: o Brasil e Portugal. O Brasil como semiperiferia do Sul; e Portugal, do

    Norte. Recorte que permite enxergar o encontro/desencontro, entre colonizado e

    25

    Encaixo aqui o jornalismo no conceito de cnone literrio criado por Santos (2006:71), a saber, um

    conjunto de obras literrias que nos dias atuais as instituies dominantes consideram ser de grande

    representatividade, valor e autoridade na cultura da neoglobalizao. 26

    Tambm aqui me utilizo da terminologia de Santos para nomear a o local de tenso entre hegemonia e

    contra-hegemonia no processo de globalizao. O localismo-globalizado so locais onde as especificidades

    das relaes entre colonizados e seus colonizadores so mais visveis (2005).

  • 20

    colonizador falantes da mesma lngua e ainda, local globalizador do poder das questes

    ambientais que incidem sobre o territrio da Amaznia, atravs da linguagem.

    Mas, antes se faz necessrio nessa linha terica, por a cincia em cultura. Neste

    trabalho, ento, por a ecologia em cultura.

    1.1 A dialtica da crise para por a ecologia em cultura:

    A etimologia do termo cultura aponta para a sua origem latina, colere, que

    significa cultivar. um conceito de vrias acepes, sendo que a definio formulada pelo

    antroplogo britnico, Edward B. Tylor (Barsa, 1999)27

    , segundo a qual cultura aquele

    todo complexo que inclui o conhecimento, as crenas, a arte, a moral, a lei, os costumes e

    todos os outros hbitos e aptides adquiridos pelo homem como membro da sociedade,

    foi a vencedora e permanece at hoje nas mentalidades contemporneas. No cabe neste

    trabalho discorrer sobre esse vasto assunto j to debatido exaustivamente, inclusive pela

    principal herdeira de tal concepo, a Antropologia. Cabe apenas apontar uma trajetria de

    assuno de muitos significados desde o que era entendido com cultivar, ligada ao

    surgimento da agricultura, nas cincias naturais para a acepo das cincias sociais. A

    teoria ps-colonial fora o conceito de cultura, para fora e para alm do ideal esttico ou

    organizacional sempre suspeitando da sua completude. conceitualmente produo

    irregular, incompleta de sentido e de valor, no cotidiano das relaes sociais, ou melhor

    dizendo, no que Homi Bhaba chamou de ato de sobrevivncia social,

    A cultura se adianta para criar uma textualidade simblica, para dar ao cotidiano

    alienante uma aura de individualidade, uma promessa de prazer. A transmisso

    de culturas de sobrevivncia (grifos dos autor) no ocorre no organizado muse

    imaginaire das culturas nacionais com seus apelos pela continuidade de um

    passado autntico e um presente vivo seja essa escala de valor preservada

    nas tradies nacionais organicistas do romantismo ou dentro das propores

    mais universais do classicismo (Bhabha, 2007: 240-241).

    Deixemos essa reflexo no crtex do nosso pensamento para pensarmos na

    histria do significado de ecologia que como vimos alguns anos antes do conceito de

    cultura desenvolvido por Tylor, si vencedor o conceito determinista de Haeckel, onde a

    etimologia do termo, oikos, do grego casa, ou seja, o estudo da casa (a Terra) deixa de

    fora as relaes sociais no homem com sua casa, separando homem e natureza. Por que j

    27

    Refiro-me aqui obra de Tylor, historicamente citada como elaboradora do conceito moderno de cultura:

    Primitive culture: researches into the development of mythology, philosophy, religion, art, and custom,

    editada pela primeira vez em 1871.

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Edward_B._Tylor

  • 21

    na segunda metade do sculo XIX, os cientistas autoridades que ditam pensamento

    dominante poca - decidem pensar a ecologia separadamente da cultura?

    Considerando a importncia significativa do fato das relaes de poder-saber em

    todas as suas instncias deixarem marcas no corpo da linguagem persigo uma etimologia

    das palavras que possa levar ao entendimento de uma dialtica da Natureza como cultura

    em contraponto com a Natureza colonizada que persiste na globalizao hegemnica.

    A terminologia semntica da colonizao aponta-nos como bem lembrou Bosi

    para os termos cultura e culto, que derivam do mesmo verbo em latim, colo, para o

    processo de construo dos significados aqui importantes na determinao conceitual a

    ponderar (Bosi, 1992:11). Colo que nos remete ao sentimento de cuidar, de tomar

    conta. No Imprio Romano adquiriu a significao de cultivo da terra, mas por extenso,

    eu moro, eu ocupo a terra. Colo ento ao-matriz da forma adjetiva da palavra

    colnia, como espao que est ocupado. Tambm da deriva a palavra colonus, em

    grego, ipoikos, aquele que ocupou a terra para o latim e aquele que ocupou a casa, para

    os gregos. So inscries significativas da ao em colo: Tomar conta de sentido bsico

    de colo, mas importa no s em cuidar, mas tambm em mandar28

    .

    O particpio passado de colo em latim cultus,

    [...] cultus sinal de qua a sociedade que produziu o seu alimento j tem

    memria. A luta que se travou entre sujeito e objeto do suor coletivo contm-se

    dentro do particpio, e o torna apto a designar a inerncia de tudo quanto foi no

    que se passa agora. Processo e produto convm no mesmo signo (Bosi, 1992:

    13).

    E o particpio futuro, culturus. Percebe-se aqui o significado do que significa o

    termo cultura na terminao urus: uma ideia de porvir com conscincia coletiva que

    desentranha da vida presente e passada dos planos para o futuro, numa dimenso de projeto

    de colere, projeto de cultivo da vida. Por o estudo da casa ecologia em cultura,

    significa por o estudo da casa como projeto do cultivo da vida na Terra com conscincia

    coletiva que opera no presente a busca do passado para a construo de um projeto de

    futuro. O passado foi a colonizao da natureza, pois a ordem do cultivo da terra

    expressa em colo - teve como princpio bsico o seu domnio. A aproximao com colo na

    significao da cultura moderna, na relao homem-natureza que resultou na crise

    28

    Idem, ibidem: 13

  • 22

    ecolgica em que vivemos ento uma colonialidade de poder, como diriam Quijano e

    Mignolo, expressa na linguagem, porque nas palavras de Bosi,

    O vetor moderno do titanismo manifesto nas teorias de evoluo social, prolonga

    as certezas dos ilustrados e prefere conceituar cultura em oposio natureza,

    gerando uma viso ergtica da Histria como progresso das tcnicas e

    desenvolvimento das foras produtivas (Bosi, 2003:16).

    Assim, a reformulao de critrios de valorao social, associada adoo

    desde a dcada de 90 do sculo passado do referencial cultural ambientalista, faz parte

    agora de um cenrio mundial em que conferida uma importncia tanto cientfica, quanto

    cultural ecologia. Culturus traz em si no s a ao sempre reproposta de colo, o

    cultivar atravs dos sculos, mas principalmente a qualidade resultante desse trabalho e,

    portanto, j incorporado terra que se lavrou. Mas, a genealogia do termo cultus, como

    substantivo, queria dizer no s o trato com a terra, mas tambm o culto aos mortos,

    forma primeira de religio como lembrana dos antepassados. Chegamos aqui ao que

    Bosi pertinentemente considera a dialtica imprimida no termo colonizao: Convm

    amarrar os dois significados desse nome-verbo que mostra o ser humano inexoravelmente

    preso a terra e nela abrindo covas que o alimentam vivo e abrigam mortos 29

    .

    Ora, evidente que o carter dominador do processo colonizador se d no

    somente num processo violento de enfrentamento entre dois povos. Trata-se de um

    processo que reproduz nos prprios locais onde se manifesta, a luta de classes, abarcando

    uma franja de colaboradores que exploram povos dos quais fazem parte. E mais, tal

    fenmeno no se processa apenas atravs de razes econmicas e/ou polticas realizam-se

    tambm, nos fatores culturais e precisamente na linguagem. Alis, uma das conquistas

    tericas do marxismo foi a revelao de que so nas prticas sociais e culturais,

    profundamente enraizadas no tempo e no espao, que se formam as ideologias e as

    expresses simblicas em geral. Assim, no s convm amarrar os significados de vida e

    morte do ser humano atrelado a terra dialtica da colonizao, mas fundamental

    entender que foi esta dialtica da colonizao que resultou na crise atual e saber de quais

    vidas e de quais mortes estamos falando nos contextos dos conflitos.

    Como vimos com Bhabha, a textualidade simblica que conferiu uma aura de

    individualidade e promessa de prazer para o bloco do pensamento dominante, imprimida

    29

    Idem, ibidem: 14

  • 23

    no culturus ecolgico do colonizador, os coloca agora diante da crise, na eminncia de

    retorno a cultus na sua cultura de sobrevivncia atual. Ou seja, a promessa se torna

    ameaa com aspecto de inexorabilidade determinstica da terra em suas vidas e mortes. O

    trgico que tal trajetria no emancipa o bloco dominado que muitas vezes no participou

    ou mesmo no quis fazer parte dessa cultura de sobrevivncia, numa possvel aura de

    individualidade ou promessa de prazer. Entretanto, estamos todos juntos, incluindo aqui a

    Natureza, a cavar a prpria cova.

    Nesta dialtica, ento, pr a Natureza em cultura um esforo epistemolgico e

    poltico para transformar a cultura de sobrevivncia da humanidade e da prpria Natureza,

    aprendendo com a ameaa imposta pela crise ecolgica. E, de forma mais eficiente que a

    cultura da natureza colonizada construda pelo pensamento dominante ocidental,

    precisamos pensar em abarc-la em todos os mbitos histricos, sociais e cientficos, sem

    desconsiderar sua materialidade. Uma tarefa gigante, levando-se em conta a eficincia da

    construo cultural anterior de colonizao da natureza, que nos levou por cerca de cinco

    sculos at nos apercebermos da crise. No temos mais esse tempo todo, precisamos

    acelerar.

    Este trabalho, portanto, se pretende uma humilde parte dessa grande tarefa.

    Seguindo a trilha do pensamento de Boaventura de Sousa Santos, almeja investigar num

    dos discursos hegemnicos na lngua portuguesa sobre a Natureza amaznica os

    silenciamentos/ocultaes e conflitos polticos, que vem se configurando no bojo da crise

    ecolgica cotidianamente. Tal pensamento aconselha que seja na tenso entre hegemonia e

    contra hegemonia30

    no processo da globalizao, a busca por maior visibilidade das

    especificidades das relaes entre povos colonizados e seus colonizadores ou, melhor

    conceituando, na procura em um localismo globalizado 31

    .

    O localismo globalizado de que falo aqui a Amaznia brasileira e sua

    representao como territrio histrico-cultural na lngua comum entre colonizadores e

    30

    Refiro-me aqui ao conceito gramsciano de hegemonia como sistema complexo de mediaes e prtica

    poltica da classe dominante, no seio das sociedades capitalistas que visa suscitar o consentimento ativo dos

    dominados atravs da constituio fictcia de um interesse geral. Evidentemente isso no se d sem uma

    tenso com as outras ideologias. Mesmo entendendo a no recorrncia fora ou represso, temos hoje

    muitos estudos que demonstram o atravessamento de ideologias de resistncia que demonstram que esse

    consentimento no de todo pacfico nas dimenses das suas linguagens. Cf: Canclini, Barbero, Pirre Levy

    et al. 31

    Localismo globalizado: Tambm aqui me utilizo da terminologia de Santos (2005) para nomear a o local de tenso entre hegemonia e contra hegemonia no processo de globalizao. O localismo-globalizado so

    locais onde as especificidades das relaes entre colonizados e seus colonizadores so mais visveis.

  • 24

    colonizados especficos do colonialismo portugus, a saber, Brasil e Portugal, na dimenso

    espacial do cotidiano32

    ; a saber ainda, nas produes noticiosas das televises portuguesa e

    brasileira. Tal localismo globalizado na representao da temtica da crise ecolgica que

    coloca a Amaznia brasileira33

    como objeto global de interesse econmico e poltico, mas

    tambm atravs de representaes produzidas e traduzidas para a divulgao dos temas a

    ela relacionados atravs do mundo e dentro da prpria nao brasileira. Assim a textura

    simblica que constri o cotidiano dos povos da Amaznia e da prpria Natureza

    amaznica tecida na sua histria especfica atravessada pelas relaes de poder, mas

    tambm na ao pratica desse poder, que estaro impressas nas formas de subjetividade

    (representao) na dimenso do terceiro eixo, como nos aconselhou Escobar34

    . Procuro as

    pistas dessa formao no discurso hegemnico, em suas plataformas e linguagens, e

    convm, portanto, entendimento dos contextos estruturais, histricos, culturais e polticos

    que desembocam nesta tessitura de representao simblica atual.

    Por ora, deixo para o prximo captulo o desenvolvimento terico especfico das

    produes jornalsticas que ajudaro a entender a complexidade do tratamento da crise

    ecolgica nos meios televisivos e continuo na especificidade do recorte territorial-temtico

    escolhido para a abordagem da crise ecolgica na inteno de um mergulho na

    especificidade histrico-cultural da Amaznia, sob a jurisdio do Brasil. o que farei a

    seguir pontuando as ausncias como marcas histricas da cultura amaznica e situando-a

    na crise ecolgica atual.

    1.2 Sociologia das ausncias na Amaznia brasileira: um localismo

    globalizado.

    A Amaznia a maior floresta tropical remanescente do planeta e responde pelas

    principais questes que atualmente afligem o imaginrio dos ambientalistas como, a perda

    da diversidade biolgica, o aceleramento do aquecimento do planeta, o buraco da camada

    de Oznio, entre outras. A Amaznia representa assim, um dos trs eldorados reconhecidos

    32

    Uso aqui o conceito de dimenso espacial do cotidiano de Milton Santos que prev coexistncias de

    temporalidades e espacialidades, atravs dos meios de informao e comunicao em todos os aspectos da

    vida social enriquecendo o cotidiano das pessoas (Santos, 2010: 591-592). 33

    O recorte do trabalho no abriga a chamada pan-amaznia que inclui as nacionalidades peruanas, venezuelanas, colombianas e guianenses pelo entendimento que no podemos falar de apenas uma

    Amaznia, faz-se necessrio aqui especificar de qual delas estamos a falar. 34

    Supra. p.9

  • 25

    na contemporaneidade como capital de realizao futura e fonte de poder para as cincias e

    para o sistema capitalista. Os outros dois so os fundos ocenicos e a Antrtica. Os

    oceanos ainda no so regulamentados juridicamente e a Antrtica partilhada entre as

    potncias mundiais. A Amaznia, ento, o nico territrio repleto de riquezas naturais

    que est sob soberanias de Estados Nacionais, sendo que 60% do seu territrio esto sob a

    soberania do Estado brasileiro. isto que faz do Brasil, o centro das atenes tanto do

    novo contexto de sustentabilidade da Terra, como do apetite capitalista por progresso

    infinito.

    O recorte territorial dessa pesquisa tem a inteno de abrangncia das reas de

    conflitos especficos da crise na Amaznia. E, tais conflitos no incidem apenas nas

    regies do bioma florestal, e so at mais intensos na rea do entorno dessa floresta

    abrangendo grande parte do bioma do cerrado. Defino assim, como recorte desse trabalho a

    rea chamada de Amaznia Legal.

    A Amaznia Legal foi um conceito poltico com fins econmicos criado no

    governo brasileiro poca da presidncia de Getlio Vargas, em 1953, atravs da Lei

    1.806 e da Superintendncia do Plano de Valorizao Econmica da Amaznia SPVEA.

    Trata-se de um instrumento jurdico estratgico que ampliava o territrio amaznico,

    incorporando o Estado do Maranho (oeste do meridiano 44), o Estado de Gois (norte do

    paralelo 13 de latitude sul, atualmente Estado do Tocantins) regio amaznica. A

    inteno poca era o planejamento do desenvolvimento econmico da regio e garantia

    da soberania nacional neste territrio rico em recursos naturais e que estaria ameaado por

    foras polticas externas nao brasileira.

    Um dos autores do conceito no abandono das diretrizes geogrficas da poca foi o

    paraense, gegrafo e bacharel em direito, professor Eidorfe Moreira, quando trabalhava no

    rgo de divulgao da Superintendncia do Plano de Valorizao Econmica da

    Amaznia SPVEA. Autor de vrias obras sobre Amaznia, ele escreve em 1958,

    justificando a nova nomenclatura da regio: A Amaznia interessa hoje em dia menos

    pelo que no sentido geogrfico, do que pelo que significa ou promete economicamente

    falando (Moreira, 1989:37). Depois disso, nos governos sucessivos, outras reas foram

    incorporadas ao conceito que permanece ativo at os dias atuais.

    Por hora vale marcar que hoje, a regio amaznica brasileira e seu conceito

    geopoltico de Amaznia Legal um exemplo vivo de como a noo de

  • 26

    desenvolvimento no est liberta nos dias atuais, ou no chamado estado moderno, da noo

    linear de progresso e de crescimento econmico constante, prpria do conhecimento

    iluminista. O conceito poltico de Amaznia Legal foi criado a partir de um discurso de

    uma pretensa garantia da soberania econmica nacional brasileira no domnio,

    planejamento e controle, da atuao das foras estrangeiras na explorao da riqueza

    natural dos biomas amaznicos e seu entorno. A ferramenta poltica delimita o que rea

    de prioridade para o desenvolvimento econmico da nao brasileira. Atualmente a rea da

    Amaznia Legal engloba nove estados da federao brasileira Acre, Amap, Amazonas,

    Mato Grosso, Par, Rondnia, Roraima, Tocantins e boa parte do Maranho local onde

    vivem cerca de 60% da populao indgena entre o todo de 25 milhes de brasileiros, ou

    seja, 12,5% da populao do pas. Veja na figura abaixo:

    Figura 1: rea da Amaznia Legal

    Fonte: Instituto Socioambiental (2009).

    Trata-se de uma ferramenta que vem permitindo ao Estado o planejamento do

    desenvolvimento da regio sob a lgica do modelo de desenvolvimento j citado e que

    prima pela no-solidariedade na inter-relao de conhecimentos. Ato que esteve muitas

    vezes explcito na textura poltica e cultural da sociedade capitalista em sua tendncia

    totalizao. a compreenso que d primazia ao todo em detrimento das partes. A rea da

    Amaznia Legal compreende todo o bioma florestal, parte do bioma do pantanal e parte do

    bioma do cerrado e, portanto, possuem caractersticas ambientais muito diferentes. Ao

    tratar juridicamente toda a rea como suscetvel ao plano do governo de valorizao da

    Amaznia, vai mais pra frente criar conflitos no desenvolvimento da legislao ambiental

    do pas. Em linhas gerais, o bioma do cerrado, por exemplo, fica invisvel com todas as

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    suas particularidades e sua enorme biodiversidade. Santos chama metaforicamente tal

    tendncia de razo metonmica35

    ,

    No h compreenso nem ao que no seja referida a um todo e o todo tem

    absoluta primazia sobre cada uma das partes que o compe. Por isso, h apenas

    uma lgica que governa tanto o comportamento do todo como o de cada uma das

    suas partes. H, pois, uma homogeneidade entre o todo e as partes e estas no

    tm existncia fora da relao com a totalidade (Santos, 2008:97).

    Voltando assim ao pensamento de Sousa Santos, existem cinco modos de

    produo da no existncia na monocultura da razo metonmica referida acima

    (2008:101-105). O primeiro deles trata da prpria monocultura do saber e do rigor desse

    saber, que transforma a cincia moderna ocidental e a alta (grifos da autora) cultura em

    critrios nicos de verdade e de qualidade esttica respetivamente (2008:102). E, a cultura

    ambiental de uma maneira geral vem sendo desenvolvida primordialmente atravs dos

    conhecimentos produzidos pela cultura cientfica dos pases desenvolvidos do hemisfrio

    Norte36

    do nosso planeta.

    Apenas para fazer uma comparao quantitativa, ao olharmos para o nmer