notas sobre a escrita de si

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Page 1: Notas sobre a escrita de si

NÃO, NÃO SOU QUEM EU REPRESENTO:

Notas sobre a escrita de si.

Jordan Bruno Oliveira Ferreira1

RESUMO: o texto aborda a escrita de si, parte de um conjunto de modalidades do que se convencionou chamar produção de si no mundo moderno ocidental. As implicações que ela traz para a pesquisa em história envolvem as formas pelas quais os indivíduos modernos se relacionam com o mundo e seus documentos, além disso, a escrita de si marca o vínculo cada vez mais intenso entre um novo espaço de investigação histórica – aquele do privado – e os novos objetos, metodologias e fontes que surgem diante dos historiadores. Problematiza também alguns autores que imprimiram em suas escritas as marcas de uma escrita de si, como A. Tito Filho, modificando, sobretudo a forma como os textos são lidos, e as relações entre autor e leitor. PALAVRAS-CHAVE: Escrita de si – Literatura – A. Tito Filho. ABSTRACT: The text discusses the writing of self, part of a set of rules of what is called production of itself in the Modern Western World. The implications it brings to research in history involve the ways in which individuals relate to the modern world and its documents. Also, the writing of self marks the increasingly intense bond between a new area of historical research - that of the private – and the new objects, methods and sources that arise before historians. Moreover, discusses some authors who impressed their writings with the marks of a self writing, such as A. Tito Filho, especially modifying the way that texts are read, and the relationship between author and reader. KEY-WORDS: Writing of self – Literature – A. Tito Filho.

1 Aluno do Programa de Pós-Graduação Mestrado em História do Brasil da Universidade Federal do Piauí (UFPI) – Desenvolvo pesquisa intitulada “A. Tito Filho: o cronista e o historiador”, orientado pela Prof.ª Dr.ª Teresinha Queiroz (UFPI) – Linha de Pesquisa: História, Arte e Cultura. Especialista em Literatura pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI).

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1. Fruto de um interesse cada vez maior, a escrita de si abarca certo número de

escritos (diários, correspondências, biografias e autobiografias) independentemente de

serem memórias ou entrevistas de histórias de vida, por exemplo.2 Marcam também um

vínculo existente entre um novo espaço de investigação histórica – aquele do privado,

de onde deriva a presença das mulheres e dos chamados homens “comuns” – e os novos

objetos, metodologias e fontes que se descortinam diante do historiador. São justamente

nesse espaço privado, que de forma alguma elimina o público, que crescem em

importância as práticas de uma escrita de si.3 A escrita auto-referencial ou escrita de si

integra um conjunto de modalidades do que se convencionou chamar produção de si no

mundo moderno ocidental (leia-se modernidade).4

Estas práticas de produção de si podem ser entendidas como englobando um

diversificado conjunto de ações, desde aquelas mais diretamente ligadas à escrita de si

propriamente dita – como é o caso das autobiografias e dos diários – até a constituição

de uma memória de si, realizada pelo recolhimento de objetos materiais, com ou sem a

intenção de resultar em coleções, como no caso de fotografias. Assim, percebemos que

o indivíduo moderno está constituindo uma identidade para si através de seus

documentos:

A ideia de indivíduo vincula-se à longa transformação das sociedades ocidentais chamadas de tradicionais, por ‘oposição às modernas’. Se o ato de escrever sobre histórias é muito antigo, a ideia de que a vida é uma história é bem mais recente. E é esse fundamento que está na base do que se considera a escrita biográfica ou autobiográfica.5

A idéia de indivíduo moderno se impõe pela coexistência de dois princípios

concorrentes – o de igualdade e o de liberdade. Essa tensão constitutiva do

individualismo moderno tem implicações fundamentais para o estabelecimento das

modalidades de produção de si anteriormente apontadas. Porque com essa nova

categoria de individuo, transformam-se, dentre outras, as noções de memória,

documento, verdade, tempo e história. No que diz respeito à memória, passam a serem

2 GOMES, Angela de Castro. Lapidação de si, escrita da História: a título de prólogo. In: GOMES, Angela de Castro (Org.). Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro: FGV, 2004. p. 7. 3 GOMES, Angela de Castro. Lapidação de si, escrita da História: a título de prólogo. In: GOMES, Angela de Castro (Org.). Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro: FGV, 2004. p. 9. 4 GOMES, Angela de Castro. Lapidação de si, escrita da História: a título de prólogo. In: GOMES, Angela de Castro (Org.). Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro: FGV, 2004. p. 10. 5 GOMES, Angela de Castro. Lapidação de si, escrita da História: a título de prólogo. In: GOMES, Angela de Castro (Org.). Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro: FGV, 2004. p. 11-12.

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legítimos os procedimentos de construção e guarda de uma memória individual

“comum”, e não apenas de grupos sociais/nacionais ou de “grandes homens”. Vale

ressaltar também que nesse contexto, o “eu” do individuo moderno não é mais tomado

como algo contínuo e harmônico, portanto as práticas culturais de produção de si se

tornam possíveis e desejadas, pois são elas que atendem a demanda de certa estabilidade

e permanência através do tempo.6 Por último, é importante apontar algumas

advertências que se tornaram necessárias devido às características da escrita de si. Uma

delas diz respeito à “ilusão biográfica”, isto é, da crítica que destaca a ingenuidade de se

supor a existência de “um eu” coerente e contínuo, que se revelaria nesse tipo de escrita,

exatamente pelo “efeito de verdade” que ela é capaz de produzir. Outro ponto diz

respeito ao estatuto da escrita de si e suas relações com seu “autor”.7

2. Anteriormente, foi apontado que a escrita de si surge na modernidade e que

uma das dificuldades de se abordar esse tipo de fonte diz respeito ao perigo de tomar a

vida, por exemplo, de um autor, como que marcada por uma continuidade coerente.

Assim, é interessante abordar a biografia no Renascimento – sobretudo se percebermos

que alguns dos elementos da escrita de si já são perceptíveis – onde ocorreu um

desabrochar do indivíduo e o fenômeno da ascensão das biografias (inclusive

autobiografias).8 Burke aponta que no estudo dessas biografias, existem duas perguntas

importantes a serem feitas. Em primeiro lugar, perguntas sobre o próprio gênero: o que

pensavam os contemporâneos sobre a forma e a função do que nós chamamos de

biografias? Em segundo lugar, o que essas ideias e pressupostos sobre a biografia nos

dizem sobre suas visões do indivíduo, ou sobre toda a sua cultura? A partir de fins do

século XV, por exemplo, era frequente que as vidas dos escritores fossem escritas e

publicadas como prefácios de suas obras. Essa questão do contexto da publicação não

era trivial. Ela ilustra a ascensão do conceito da individualidade da autoria, o

pressuposto de que as informações sobre a vida de um escritor nos ajudam a entender

6 GOMES, Angela de Castro. Lapidação de si, escrita da História: a título de prólogo. In: GOMES, Angela de Castro (Org.). Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro: FGV, 2004. p. 12-13. 7 GOMES, Angela de Castro. Lapidação de si, escrita da História: a título de prólogo. In: GOMES, Angela de Castro (Org.). Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro: FGV, 2004. p. 14. 8 BURKE, Peter. A invenção da biografia e o individualismo renascentista. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 10, n. 19 (1997), p. 83. Disponível em: < http://bit.ly/JBTqIO >. Acesso em: 21 maio 2012.

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suas obras.9 Essas biografias também eram marcadas por uma tensão derivada da

intenção presente nestes textos: a biografia de um indivíduo não era apenas um relato de

vida, também precisavam ser um exemplo de vida. Ora, biografava-se uma vida para

deixar impressa a ideia do indivíduo como exemplar, mas ao mesmo tempo biografava-

se para imprimir-se a ideia do individuo como ser único, um gênio. Só no século XVIII

se vislumbrou uma mudança, com a noção de que a personalidade passa por um

processo de desenvolvimento.10

Rousseau é o exemplo mais marcante (para alguns o primeiro) dessa percepção e é

justamente o que ele tentará resolver já na abertura das Confissões.11 Seria possível

também abordar essa questão da percepção de que a personalidade (ou a identidade)

passa por um constante processo de mutações a partir da observação de uma ligação

entre a (crescente) urbanização do ocidente e a concentração do romance nas relações

pessoais. Parece que isso se deveu a um dos traços mais universais e característicos da

experiência do citadino: ele pertence a vários grupos sociais – de trabalho, religião,

família, lazer, etc. –, mas nenhuma pessoa isolada o conhece em todos os seus papéis e

vice-versa.12

3. O problema do “autor” é um dos pontos centrais deste trabalho, sobretudo por

ser um dos mais interessantes aspectos relacionados à escrita de si: o fato de que o autor

pode ser também um sujeito que a todo o momento tenta construir uma identidade para

si ao mesmo tempo em que constrói o seu texto – se criam simultaneamente. Chartier13

aponta que Foucault distinguia dois problemas, frequentemente confundidos pelos

historiadores: por um lado, a análise sócio-histórica do autor como indivíduo social e as

diversas questões que se vinculam a essa perspectiva e, por outro lado, a própria

construção do que ele chama de “função-autor”, isto é, o modo pelo qual um texto

9 BURKE, Peter. A invenção da biografia e o individualismo renascentista. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 10, n. 19 (1997), p. 87-88. 10 BURKE, Peter. A invenção da biografia e o individualismo renascentista. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 10, n. 19 (1997), p. 96. 11 ROUSSEAU, Jean-Jacques. As Confissões. Tradução de Wilson Lousada. São Paulo: Martin Claret, 2011. p. 11. 12 WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. Tradução de Hildegard Feist. – São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 13 CHARTIER, Roger. Debate: Literatura e História. Topoi, Rio de Janeiro, nº 1, p. 197-216. Disponível em: < http://bit.ly/Rown3K >. Acesso em: 15 agosto 2012.

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designa explicitamente esta figura (do autor) que se situa fora dele e que o antecede.

Para Foucault, a atribuição das obras a um nome próprio é discriminatória.

Ela é discriminatória porque o nome de um autor não é simplesmente um

elemento em um discurso, ele exerce certo papel em relação ao discurso: assegura uma

função classificatória. Tal nome permite reagrupar certo número de textos, delimitá-los,

deles excluir alguns, opô-los a outros. O nome do autor funcionaria para caracterizar

certa forma de ser do discurso, de que se trata de uma palavra que deve ser recebida de

certa maneira e que deve, em uma dada cultura, receber certo status.14 Mas o que

autores como Chartier e Foucault tentam apontar com suas observações é para o fato de

que muitos autores imprimiram em seus textos uma representação de si mesmos, seja

para se contrapor a crítica, para possibilitar uma maior participação dos leitores ou

mesmo para mostrar que a identidade é marcada por uma multiplicidade, portanto, que a

escrita de si seria justamente uma tentativa de lidar com isso.

Chartier cita em seu texto o poema em prosa “Borges e Eu”,15 onde Borges aponta

a distância que isola o autor como identidade construída do indivíduo como sujeito

concreto, visto que descreve “a captura, a absorção ou a ‘vampirização’ do ego

subjetivo pelo nome do autor”.16 Não só nesse texto, mas também em “everything and

nothing”,17 percebemos como para Borges “dentro de cada homem habitam múltiplos

homens e que cada um, além de ser único, é, ou pode ser, muitos outros”.18 A identidade

é um dos pilares da construção borgiana, bem como os espelhos, os labirintos e o

tempo. Para ele, a identidade é o resultado do amálgama entre a realidade de cada um e

suas progressivas máscaras, conscientes ou não; e nenhum biógrafo que se preze pode

negligenciar esse ir e vir em múltiplas direções da fluente condição humana.19 Ao final

de “Borges e Eu” podemos ler:

14 FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In: Michel Foucault: Estética: literatura e pintura, música e cinema. Organização e seleção de textos: Manoel Barros da Motta. Tradução de Inês Autran Dourado Barbosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. (Ditos e Escritos III). p. 264-298. 15 BORGES, Jorge Luis. Borges e Eu. In: O fazedor. 4. ed. Tradução de Rolando roque da Silva. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1987. p. 47-48. 16 CHARTIER, Roger. Debate: Literatura e História. Topoi, Rio de Janeiro, nº 1, p. 199. 17 BORGES, Jorge Luis. everything and nothing. In: O fazedor. 4 ed. Tradução de rolando roque da Silva. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1987. p. 40-42. 18 ORDÒÑEZ, Solange Fernández. O olhar de Borges: uma biografia sentimental. Tradução de Cristina Antunes. – Belo Horizonte: Autêntica, 2009. p. 70. 19 ORDÒÑEZ, Solange Fernández. O olhar de Borges: uma biografia sentimental. Tradução de Cristina Antunes. – Belo Horizonte: Autêntica, 2009. p. 123.

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Faz anos tratei de livrar-me dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o tempo e o infinito, mas esses jogos são agora de Borges e terei de idear outras coisas. Assim minha vida é uma fuga, e tudo perco, e tudo é do esquecimento, ou do outro. Não sei qual dos dois escreve esta página.

E ao final de “everything and nothing” ficamos sabendo (e Shakespeare também!)

que:

A história agrega que, antes ou depois de morrer, se soube diante de Deus e lhe disse: Eu, que tantos homens fui em vão, quero ser um e

eu. A voz de Deus lhe respondeu num torvelinho: Eu tampouco sou;

sonhei o mundo como sonhaste a tua obra, meu Shakespeare e entre

as formas de meu sonho estás tu, que como eu és muitos e ninguém. (grifos do autor).

Portanto, para Foucault essa função de autor atinge, sobretudo, os textos

“literários”, que não podem ser aceitos senão como providos dessa função:

A qualquer texto de poesia ou de ficção se perguntará de onde ele vem, quem o escreveu, em que data, em que circunstâncias ou a partir de que projeto. O sentido que lhe é dado, o status ou o valor que nele se reconhece dependem da maneira como se respondem a essas questões. E se, em conseqüência de um acidente ou de uma vontade explícita do autor, ele chega a nós no anonimato, a operação é imediatamente buscar o autor. O anonimato literário não é suportável para nós; só o aceitamos na qualidade de enigma. A função autor hoje em dia atua fortemente nas obras literárias.20

4. Assim, o que a escrita de si e a “função de autor” podem trazer aos estudos

históricos é a possibilidade de percebemos nossos objetos de estudo (no meu caso a

crônica de A. Tito Filho) 21 a impossibilidade, dada pela própria escrita do autor, de

tratá-lo como uma descrição definida. Assim, o cronista A. Tito Filho pode narrar sua

juventude como um período marcado pelo acúmulo de experiências, amizades e

descobertas que antecedem seu reconhecimento na vida adulta,22 também pode ser

20 FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In: Michel Foucault: Estética: literatura e pintura, música e cinema. Organização e seleção de textos: Manoel Barros da Motta. Tradução de Inês Autran Dourado Barbosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. (Ditos e Escritos III). p. 276. 21 José de Arimathéa Tito Filho (Barras, 1924 – Teresina, 1992) foi presidente da Academia Piauiense de Letras (APL) de 1971 a 1992. Além de jornalista, foi também professor e diretor do Liceu Piauiense, escritor e editor. Foi Secretário de Educação e Cultura do Estado do Piauí na década de 1970 na administração de João Clímaco d’Almeida. Parte de sua obra está disponível em: www.acervoatitofilho.blogspot.com 22 BRANDIM, Ana Cristina Meneses de Sousa. A crônica como escrita autobiográfica: A. Tito Filho e a invenção de si. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH – São Paulo, julho, 2011. Disponível em: < http://bit.ly/J9vitj >. Acesso em: 21 maio 2012.

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descrito como o crítico dos carnavais da Teresina do presente,23 como o crítico

literário,24 como o biógrafo,25 como o historiador,26 como o leitor, como o professor.27

Boa parte dessas descrições são possibilitadas não apenas pela escrita de si, mas

também porque a crônica é um gênero de fronteira,28 que lhe permitiu historiar uma

série de temáticas sobre a história de Teresina e do Piauí e ao mesmo atravessar para

outro lado da crônica, que lhe permite fazer dela um testemunho de si mesmo – escrever

sobre estas temáticas era escrever sobre si mesmo.

Suas crônicas são sinais que atualizam as imagens do passado – transformam-se

em meio capaz de desencadear em quem as ler uma experiência sensível do encontro do

passado no presente.29 É o que podemos perceber, por exemplo, nas crônicas em que o

autor escreve sobre suas leituras, onde surge como leitor. Aí ele aponta que:

Quando ginasiano, em Teresina, nos domingos, eu fazia compras para leitura no M. A. Tote, casa de revistas de atualidades e literárias, entre as quais "Noite Ilustrada", "Carioca" e "Vamos Ler", do Rio. Gostava desta última e colecionei muito tempo as suas edições. Os livros de minha predileção, adquiridos semanalmente, eram os da Coleção Terra-Mar-e-Ar, de aventuras, autores estrangeiros. Eu apreciava Emílio Salgari. Outra agradável série de romances de variado gênero me fugiu da memória. Custava cada exemplar dois mil réis, livro de tamanho pequeno. Na interessante coleção fiz leitura de "A Patrulha

da Madrugada", que o cinema aproveitou para excelente filme de aviação; "Nana", de Zola, e obras de autores russos e ingleses. Muito me robusteceram a inteligência os livros de Edgar Rice Burroughs (Tarzan) e Júlio Verne. Li-os quase todos de ambos os autores. Teresina, na década de 30, possuía uma loja bem sortida, espécie de bazar de mil utilidades, sem que lhe faltassem edições literárias de Portugal e do Brasil. Tratava-se do estabelecimento comercial de Juca Feitosa, na antiga rua Bela. Nele adquiri romances de Alencar, Bernardo Guimarães, Manuel de Macedo, Camilo Castelo Branco, Pinheiro Chagas. Deliciosos para a minha adolescência. Custavam pouco e tinham aspecto pobre, com capas extravagantes.30

23 TITO FILHO, A. Quase no fim. O Dia, Teresina, 07 março 1989, p. 4. Disponível: < http://migre.me/cww7Y >. Acesso em: 20 dezembro 2012. 24 TITO FILHO, Arimathéa. Um manicaca: documento de uma época. Teresina: COMEPI, 1982. 25 TITO FILHO, A. Roteiro de Pedro Silva. O Dia, Teresina, 10 dez. 1988, p. 4. Disponível em: < http://migre.me/bFSvF >. Acesso em: 15 agosto 2012. 26 TITO FILHO, A. Governos do Piauí. 3. ed. Teresina: Artenova, 1978. 27 TITO FILHO, A. Consultório. O Dia, Teresina, 27 junho 1989, p. 4. Disponível em: < >. Acesso em: . 28 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Crônica: fronteiras da narrativa histórica. In: História UNISINOS, volume 8, nº 10, julho/dezembro, 2004, p. 61-80 – Disponível em: < http://bit.ly/JLDlkb >. Acesso em: 21 maio 2012. 29 BRANDIM, Ana Cristina Meneses de Sousa. A crônica como escrita autobiográfica: A. Tito Filho e a invenção de si. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH – São Paulo, julho, 2011. p. 2. 30 TITO FILHO, A. Leitura. O Dia, Teresina, 26 abril 1990, p. 4. Disponível em: < http://migre.me/cEuE2 >. Acesso em: 15 dezembro 2012.

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Em outras crônicas aponta também que aos domingos costuma reler “livros

saudáveis”, numa espécie de fuga à rotina. Essa leitura é composta de autores clássicos

lidos “vinte ou mais anos atrás”, que agora podem ser inteiramente compreendidos. É o

caso de autores como Dante, Camões, Cervantes, Shakespeare, Moliére, Voltaire,

Byron, Walt Whitman e Machado de Assis. Essas leituras eram para ele reencontros

com homens superiores que possibilitavam uma nova interpretação do mundo (TITO

FILHO, 1987, p. 4).31 Além disso, suas leituras, ou melhor, a forma como as

descreviam, eram intensamente marcadas por memórias de sua infância e juventude,

quando:

Garotote ainda, eu gostava de ler romances. Havia a loja do Juca Feitosa, em Teresina, e ali a gente adquiria Júlio Verne, os livros de aventuras da coleção TERRA MAR E AR, sempre o herói contra os bandidos. Comprei e li as obras completas de José de Alencar e algumas dos portugueses Camilo Castelo Branco e Pinheiro Chagas. Gostei do mineiro Bernardo Guimarães e do autor de A MORENINHA, Joaquim Manoel de Macedo. Nesse tempo se vendiam os livros de uma coleção de reduzido tamanho, autoria de franceses, ingleses e russos, em traduções excelentes. Lembro-me da leitura que fiz de obras de Zola Ohnet, Dostoiewski. Gostava de Emílio Salgari e do Tarzã, de Burroughs. Meu pai possuía boa biblioteca, em que se destacavam obras jurídicas. Mas havia também obras de literatura e uma boa quantidade de livros de português, especialmente gramáticas e algumas de dúvidas de linguagem e ensinamentos de correta escrita das palavras, como as lições do lusitano Cândido Figueiredo. Lia constantemente as vaidosas explicações desse sujeito de grande aceitação na sua pátria de origem. E tomei gosto pelo assunto. Na antiga biblioteca pública Casa de Anísio Brito adotei como leitura predileta obras de Xavier Fernandes e outros estudiosos de questões de linguagem. Professor de português, li Said Ali, Pedro Pinto, Silveira Bueno, Vitório Bergo, Napoleão Mendes de Almeida, Martinz de Aguiar, Tenório d'Albuquerque e quantos mais, meu Deus. Aprendi uma porção de lições úteis e também gravei na memória invencionices, e ordenamentos inconsistentes.32

A importância que passou a dar a estes acontecimentos, principalmente quando

desejava lembrá-los e significá-los pelo ato da escrita, marcam a forma como

normalmente olhava e apontava para o passado – e ao mesmo tempo fazia uma crítica

do presente. Mais do que narrativas do passado, o cronista registra a forma como

31 TITO FILHO, A. O regime dos ingleses. O Dia, Teresina, 30 outubro 1987, p. 4. Disponível em: < http://migre.me/cEuiD >. Acesso em: 15 dezembro 2012. 32 TITO FILHO, A. Português. O Dia, Teresina, 31 março 1992, p. 4. Disponível em: < http://migre.me/cEuAv >. Acesso em: 15 dezembro 2012.

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recepcionou os fatos, as pessoas, e como percebeu determinadas circunstâncias. Esta

forma de reinventar-se como um leitor de obras consagradas era uma maneira de

legitimar sua condição, já adulto, de literato.33 Assim, o cronista tanto constrói uma

identidade autobiográfica, quanto desfaz a ilusão autobiográfica por elas encenadas,

deixando visíveis as tênues fronteiras entre o cunho confessional do narrado e a livre

intenção ficcional.34

CONCLUSÕES

A escrita de si, que ao longo do texto foi muito aproximada do gênero

autobiográfico, depende, portanto, por um lado, da constituição do indivíduo moderno,

dotado de livre arbítrio, e, por outro, da distinção entre ficção e não ficção. Pelo

primeiro aspecto, seu paradigma seriam as já citadas Confissões de Rousseau, devido ao

objetivo do autor de desenvolvimento do eu e à vontade irredutível de sinceridade.

Quanto ao segundo, embora as fronteiras não sejam absolutas, a separação se faz pelo

papel reservado a primeira pessoa: enquanto na ficção o “eu empírico do escritor é um

suporte para a invenção”, na autobiografia “é a fonte de experiências que intentará

transmitir” (VIEGAS, p. 11-12). É mesma questão apontada por Bakhtin em relação à

distinção entre o autor-pessoa (isto é, o escritor, o artista) e o autor-criador (isto é, a

função estético-formal engendradora da obra). Este último é um constituinte do objeto

estético, mais precisamente, aquele constituinte que dá forma ao objeto estético, o pivô

que sustenta a unidade do todo esteticamente consumado. O autor-criador (aqui seria o

praticante da escrita de si) é, portanto, quem dá forma ao conteúdo: ele não apenas

registra passivamente os eventos da vida (ele não é um estenógrafo desses eventos),

mas, a partir de certa posição axiológica, recorta-os e reorganiza-os esteticamente. O

autor-criador é, assim, uma posição refratada e refratante. Refratada porque se trata de

uma posição axiológica conforme recortada pelo viés valorativo do autor-pessoa; e

refratante porque é a partir dela que se recorta e reordena esteticamente os eventos da

vida. Assim, o discurso do autor-criador não é a voz direta do escritor, mas um ato de

33 BRANDIM, Ana Cristina Meneses de Sousa. A crônica como escrita autobiográfica: A. Tito Filho e a invenção de si. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH – São Paulo, julho, 2011. p. 7-9. 34 ROCHA, Fátima Cristina Dias. Identidade e Autobiografismo nas crônicas de Clarice Lispector. In: JOBIM, José Luís; PELOSO, Silvano (Orgs.). Identidade e Literatura. Rio de Janeiro: de Letras/UERJ, 2006. p. 101-114.

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apropriação refratada de uma voz social qualquer de modo a poder ordenar um todo

estético.35

No que concerne mais diretamente a escrita de si (e suas relações com a

autobiografia) as idéias de Bakhtin sobre autor/autoria chamam nossa atenção para o

fato de que a autobiografia não é um mero discurso direto do escritor sobre si mesmo,

pronunciado do interior do evento da vida vivida. Ao escrever uma autobiografia, o

escritor precisa se posicionar axiologicamente frente à própria vida, submetendo-a a

uma valoração que transcenda os limites do apenas vivido. O escritor precisa tornar-se

outro em relação a si mesmo. Ou melhor, ele precisa se auto-objetificar, isto é, precisa

olhar-se com certo grau excedente de visão e conhecimento.36

Portanto, a escrita de si, como prática moderna de produção dos sujeitos, surge

como uma tentativa de dizer sobre si mesmo aos outros; de dizer, para os outros, como

eu me vejo e penso ser constituído e, mais complexo ainda, dizer aos outros como eu

gostaria de ser visto. No que concerne a pesquisa em história, isso gera uma série de

questionamentos: o que é mais importante, o que aconteceu? Como os outros

interpretaram o acontecimento (as representações)? E se eu posso interferir na forma

como os outros observam a mim e ao mundo, faz alguma diferença saber o que

realmente aconteceu? Se retornarmos a Rousseau, veremos que ele provavelmente tinha

noção disso, e que apostou todas as suas fichas na noção de que a percepção dos outros

sobre ele era mais importante do que o que ele pensava sobre si mesmo. As Confissões

parecem justamente ser a tentativa de interferir nesta percepção, ou seja, “não apenas

direi quem eu sou, mas como quero ser visto”.

Antes de Rousseau, Shakespeare também problematizava essa relação entre o que

pensamos sobre nós mesmos e o que os outros pensam de nós – e qual das duas

possibilidades era mais importante. Na Noite de Reis (cena I do quinto ato), o seguinte

diálogo acontece:

Duque – Eu te conheço bem. Como tens passado, meu bom homem? Feste – Para falar a verdade, senhor, tenho vivido melhor com os inimigos e pior com os amigos. Duque – Mas é justamente o contrário. Com os amigos é que tens de viver melhor.

35 FARACO, Carlos. Autor/Autoria. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2008. p. 27. 36 FARACO, Carlos. Autor/Autoria. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2008. p. 43.

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Feste – Não, sir. Pior. Duque – como é que pode ser isso? Feste – Deveras, senhor, eles me elogiam; e me fazem de burro. Já meus inimigos dizem na minha cara que eu sou burro. Assim é que, por causa de meus inimigos, sir, eu lucro em conhecer a mim mesmo, enquanto que por meus amigos sou enganado. Assim é que, conclusões sendo como beijos, se as suas quatro negativas formam duas afirmativas, ora, então vivo pior com os amigos e melhor com os inimigos. Duque – Ora, essa é ótima.37

A percepção dos outros é mais importante, certo? Mas nas cenas iniciais da peça

também vemos desenrolar o seguinte diálogo:

Olívia – O senhor é um comediante? Viola – Não, do fundo do meu coração, não. E, no entanto, pelas próprias garras de maldosa premeditação, juro: não sou quem eu interpreto.38

A escrita de si chama a atenção dos historiadores para o fato de que as fontes

(sobretudo as literárias) não são, elas representam. Porque nós não somos quem

representamos, nós atuamos.

37 SHAKESPEARE, William. Noite de Reis. Tradução de Beatriz Viégas-Faria. – Porto Alegre: L&PM, 2008. p. 121-122. 38 SHAKESPEARE, William. Noite de Reis. Tradução de Beatriz Viégas-Faria. – Porto Alegre: L&PM, 2008. p. 35.