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NOTAS GEOMORFOLÓGICAS POR MARIANO FEIO ASSISTENTE DA UNIVERSIDADE DE LISBOA l-REFLEXÕES SOBRE O RELEVO DO MINHO o Minho é um amplo anfiteatro virado ao mar e drenado por alguns rios sensivelmente paralelos - Minho, Lima, Cávado e Homem - orientados por fracturas de direcção bética; parte do Ave e o Tâmega não se afastam muito desta orientação. A erosão abriu profundos entalhes segundo estes cursos de água: a massa montanhosa que se levanta para o interior está reduzida a uma série de interflúvlos paralelos. A parte mais elevada deles forma uma barreira de relevos importantes - as Serras da Peneda, Ama- rela, Gerez; Cabreira e Marão - das quais as três últimas separam duas regiões de características muito diferentes, o Minho, litoral, de relevo movimentado e precipitações abundantíssimas, e Trás os Montes, planáltico e mais isolado das influências atlânticas. o interflúvio Minho-Lima é muito largo, de modo que os sistemas de vertentes derivados destes rios nem sempre chegam a interceptar-se: nas montauhas ainda se encontram restos de antigas aplanações, principalmente na Serra da Peneda e na Serra de Arga. Na primeira encontram-se entre 1000 e 1300 m., mas principalmente a 1100 e 1200 m.. Parece tratar-se de elementos derivados por rejuvenescimento lento de uma ou mais superfícies antigas. Os pontos mais altos (Pedrada 1415, Peneda 1373 m.) formall} pequenas elevações acima de áreas aplanadas: podem corresponder a Inselberge da antiga superfície ou a lugares que resistiram melhor ao processo de rejuvenescimento. A Serra da Peneda é separada da parte mais a jusante do 3

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NOTAS GEOMORFOLÓGICAS

POR

MARIANO FEIO ASSISTENTE DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

l-REFLEXÕES SOBRE O RELEVO DO MINHO

o Minho é um amplo anfiteatro virado ao mar e drenado por alguns rios sensivelmente paralelos - Minho, Lima, Cávado e Homem - orientados por fracturas de direcção bética; parte do Ave e o Tâmega não se afastam muito desta orientação. A erosão abriu profundos entalhes segundo estes cursos de água: a massa montanhosa que se levanta para o interior está reduzida a uma série de interflúvlos paralelos. A parte mais elevada deles forma uma barreira de relevos importantes - as Serras da Peneda, Ama­rela, Gerez; Cabreira e Marão - das quais as três últimas separam duas regiões de características muito diferentes, o Minho, litoral, de relevo movimentado e precipitações abundantíssimas, e Trás os Montes, planáltico e mais isolado das influências atlânticas.

o interflúvio Minho-Lima é muito largo, de modo que os sistemas de vertentes derivados destes rios nem sempre chegam a interceptar-se: nas montauhas ainda se encontram restos de antigas aplanações, principalmente na Serra da Peneda e na Serra de Arga. Na primeira encontram-se entre 1000 e 1300 m., mas principalmente a 1100 e 1200 m.. Parece tratar-se de elementos derivados por rejuvenescimento lento de uma ou mais superfícies antigas. Os pontos mais altos (Pedrada 1415, Peneda 1373 m.) formall} pequenas elevações acima de áreas aplanadas: podem corresponder a Inselberge da antiga superfície ou a lugares que resistiram melhor ao processo de rejuvenescimento.

A Serra da Peneda é separada da parte mais a jusante do 3

SGP
Referência bibliográfica
Boletim da Sociedade Geológica de Portugal, Vol. VII, Fasc. I-II, 1948.
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seu interflúvio pelos vales tectónico-estruturais do alinhamento Troporiz-Ponte da Barca-Vila Verde. A massa granítica dela é cortada por inúmeros vales quê seguem fracturas (fig. 1): além dos de direcção NNW, paralelos ao alinhamento estrutural atrás referido, encontram-se outros de direcção NNE, paralelos ao grande acidente de Régua-V erin e um sistema formado por duas direcções orto­gonais, N-S e E-W (vejam-se os vales que se cruzam a cerca de 1,5 km. ao SW de Tangil); este último sistema não parece dis­tinto do anterior, pois alguns dos seus alinhamentos, depois de seguirem a direcção que os caracteriza, inflectem-se, aproximan­do-se da orientação NNE (como acontece à extremidade m~ridional do alinhamento Barbeita -Sistelo-Agrela) (I,).

Para lá da depressão Monção-Ponte da Barca, o relevo já não alcança as mesmas altitudes. A Serra do Extremo (maiores altitudes Cotão 844 m. e Corno de Bico 889 m.) tem aplanações à volta dos 750 m. possivelmente derivadas de uma superfície que' passaria pouco acima.

Passada a depressão estrutural e linha sísmica Valença­-Ponte do Lima encontra-se a Serra de Arga (816 m.), formada por um resto de superfície perfeitamente conservada e limitada por abruptos vigorosos. Corresponde ao granito, que se comporta aqui como rocha mais resistente do que os xistos que o rodeiam ('). A posição interfluvial da serra é assim realçada pelo carácter de Hãrtling. Mas o facto mais importante a reter é a conservação de uma superfície antiga a 800 m. de altitude, a,penas a 13 km.

(1) Numa linha estrutural de direcção NNE, de que fazem parte a Ribeira da Peneda e as duas ribeiras mais ao norte que se juntam a SSE de Lamas de Mouro, há indicações de a drenagem para o quadrante do NE ter sido antigamente mais importante: na Portela do Lagarto, como não há curso de água, lião devia haver vale. Mas, pelo contrário, o mapa 100.000 mostra um vale cC?m cerca de 200 m. de profundidade o que significa que, onde hoje é a divisória de águas, já passou um curso de água. Como a divisória só se podia ter deslocado a favor da ribeira que hoje é mais poderosa (a que corre para o sul), segue-se que já houve na actual portela um curso de água que corria para o NNE.

'Dá-se um caso semelhante na portela situada entre o Outeiro Alvo (1313 m.) e o Fojo (1289 m.).

(2) H. Lautensach, Portugal auf Grund eigener Reisen und der Litera­tur, 2.- parte, Petermanns Mitt., Erg-Heft 230, Gotha 1937, p. 7.

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Fig; 1 - Rede hidrográfica da Serra da Peneda. Alinhamentos estruturais.

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do mar (Santa Luzia, a 5 km. da costa , tem 552 m.. Superfície rebaixada? ).

O interflúvio Lima-Homem é de todos eles o que tem mais o carácter de relevo formado por intersecção de vertentes. Os rios Lima e Homem correm relativamente perto (cerca de 12 km. enquanto o Minho corre a mais do dobro de distância do Lima), de modo que os sistemas de vertentes derivados deles e dos seus afluentes interceptam-se quase por toda a parte (pequenas áreas mais planas não são suficientemente nítidas para serem conclu­dentes). A serra desce muito gradualmente para jusante, como compete a um relevo formado por intersecção de vertentes e deri­vado de formas que não tenham desnivelamentos bruscos.

Para · jusante da depressão Monção -Ponte da Barca -Vila Verde, encontra-se a Serra do Ourai, com 720 m.. E próximo do mar ainda existem vários relevos entre 400 e 500 m ..

A parte portuguesa da Serra do Gerez fica situada entre os rios Cávado e Homem; mas o maciço montanhoso atravessa a fron­teira e estende-se por Espanha. A maior altitude dele encontra-se mesmo neste país. Mas a serra ainda forma a segunda elevação do continente português, pois alcança, mesmo na raia, para além das nascentes do rio Homem, a altitude de 1544 m.. Violenta­mente atacada pela erosão que rasga vertentes abruptas e cober­tas de floresta, que se contam entre as mais belas e bravias do nosso país, talvez as únicas com aspectos de alta montanha, os cabeços da sua parte mais alta - a mais poupada pela erosão­agrupam-se com poucas excepções, entre 1300 e 1450 m.. Na área das nascentes do Homem (Abrótegas) e no Cidadelhe encontram-se mesmo aplanações à volta de 1400 m.. A isoaltitude dos cabeços e as aplanações testemunham a existência de uma antiga superfície.

Para o ocidente, a acção destrutiva da erosão sente-se cada vez mais, não só porque se caminha para jusante mas também porque o rio Homem se aproxima do Cávado ; entra-se em regime franco de intersecção de vertentes, a montanha torna-se mais estreita e menos alta, até vir morrer no S. Pedro Fins (562 m.) , junto da confluência dos dois rios. Em frente , vê-se a ampla baixa do Cávado.

O ponto mais alto da Serra da Cabreira (1286 m.) apre­senta-se como um relevo residual acima de um mar de cabeços,

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que se estendem principalmente para o nascente e sueste dele, com cotas entre 900 e 1100 m. (S).

Fig. 2 - A superfí(lie do (limo da Serra do Larou(lo.

«A Serra do Marão é formada por dois ramos (fig. 3). O meridional tem a direcção SSE e eleva-se alterosamente a 1415 m., enquanto o Douro próximo corre apenas a 50 m. (Régua). O setentrional tem direcção NE e alcança só 1215 m.. Ambos são formados por cristas de rochas sedimentares, cuja cornija, por vezes

(3) Apresentamos, com as reservas devidas a um insuficiente estudo do terreno, as relações que nos sugeriu a região do Barroso. A parte mais plana dela é a oriental, do sopé da Serra do Larouco até ao degrau que dá para a bacia de Bobadela. Desta superfície saem vales de maturidade avançada cujo conjunto forma o Barroso ocidental (áreas de Montalegre, etc.) . Estes vales, com o fundo a 900 m., não são recentes, pois os rios actuais encaixam-se neles. Os relevos mais importantes da região são formados pelos interflúvios, bastante desmantelados, destes vales maduros: a Serra do Larouco (1538 m.), truncada por uma superfície que se inclina fortemente para o norte e parece estar des­locada (fig. 2), a Serra das Alturas (1275 m.), flanqueada a sul por extensa aplanação, o importante alinhamento de relevos entre o Cávado e o Regavão (Cerdeira 1208 m.) e as serras ao norte daquele rio que se vão ligar ao Gerez. Teríamos, assim, dois ciclos. A superfície do Barroso e os respe­ctivos vales maduros pertenceriam a um ciclo inferior e mais recente, formado

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vertical, olha para os quadrantes orientais (fig. 4). O ramo sueste é constituído por um complexo de xistos argilosos e sericíticos e de grau­vaques muito duros, com 450 m. de espessura sob o cume principal. O xisto sericítico contém fragmentos de quartzite; o argiloso é atravessado por espessos veios de quartzo. Esta massa, muito resistente, cobre os xistos argilosos e pobres em quartzo do Pre-

Fig. 4 - Crista do ramo meridional do Marão: subida sub-estrutural e cornija.

câmbrico. Enormes bacias torrenciais interrompem a crista, sepa­rando os vários cumes ('). Faltam por completo restos de glacia­ções quaternárias.

O relevo do ramo noroeste é formado essencialmente por xistos tabulares (Tafelschiefer) do Silúrico superior, no qual

em função de drenagem oriental (possivelmente para o interior da Meseta). Para o ocidente, os interflúvios estariam gradualmente melhor conservados: as aplanações que referimos nas Serras do Gerez e da Peneda seriam restos de um ciclo anterior e mais alto: os cimos da divisória Minho-Trás os Montes pertenceriam a um ciclo diferente do dos planaltos desta última província.

Não se esqueça todavia que o esclarecimento das relações entre a rechã que sobe o Cávado-Rega vão (e se bifurca na confluência destes rios?) e os vales maduros do Barroso, que seria da maior importância para a interpretação morfológica da região, pode introduzir modificações no esquema atrás esboçado.

(4) O mapa 1:100.000 é aqui muito pouco exacto.

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estão interestratificados leitos de quartzite e que assentam directa­mente nó Precâmbrico (ó).

Incluídos no complexo do Silúrico superior, na vertente ocidental da montanha, encontram-se os calcários de Campanhó, que abastecem de cal todo o noroeste do país. Os dois ramos da Serra do Marão estão separados pela Portela de Espinho (1009 m.) para a< qual sobe em voltas sem conta a estrada Amarante-Vila Real (Porto-Bragança)>> (6).

~ O relevo atrás descrito domina um nível de cimos e lombas entre 850 e 1000 m.. Na vertente oriental do ramo sueste da serra também se encontram rechãs à primeira daquelas altitudes ( 1).

A área a ocidente do Marão é um verdadeiro reticulado de vales tectónico-estruturais (fig. 5). Os vales seguem duas direcções perpendiculares: NW, como o alinhamento das sete ribei­ras que passa em Amarante, referido por Lautensach, e NE, como o Tâmega e o alinhamento de vales que passa na Portela de Espinho.

Que parte tiveram as deformações tectónicas e a erosão na formação do anfiteatro minhoto?

À volta das Serras da Cabreira e do Marão, no Alvão e no Barroso, encontrámos níveis que se podem referir às cotas 900-1000 m.; nas Serras da Peneda e do Gerez encontram-se outros que derivam de uma aplanação que se pode atribuir, grosso modo e provisoriamente, a 1400-1500 m.. Para o lado do litoral, a melhor aplanação, que pode realmente servir de referência, é a do cimo da Serra de Arga (800 m.). Provàvel­mente nunca se saberá, pois dispõe-se apenas de restos de superfícies a que falta a necessária continuidade para se poderem

(5) Segundo as minhas observações o complexo silúrico, enrugado e arrastado, forma em conjunto um grande cavalgamento sobre o Precãmbrico. Quando NERY DELGADO estudou o Marão ainda se estava longe destes problemas. No Marão não se trata pois, possivelmente, de um recobrimento normal mas de um cavalgamento de enormes dimensões.

(6) H. LAUTENSACH, Portugal, etc., 2.a parte, Petermanns Mitt., Erg.-H. 230, Gotha, 1937, p. 20. As duas notas anteriores são também de H. Lautensach.

(7) As condições na Serra do Marão estão perfeitamente de acordo com a hipótese da nota 3. Também acontece assim com a Serra do Alvão em frente de Vila Pouca de Aguiar: o Minheu (1203 m.) é um lnselberg de uma. planície muito bem conservada, a 950 m. de altitude.

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Fig. 5-Rede hidrográfica a oeste e sudoeste do Marão. Vales tectónico-estruturais.

tirar conclusões, se a superfície da Serra de Arga é a mesma da Serra da Peneda e, em caso afirmativo, se a diferença de cota entre elas é devida a desnivelamentos bruscos (falhas, flexuras) ou apénas ao abaixamento gradual da superfície. Todavia, o abaixamento gradual da cumeada da Serra Amarela parece apoiar, para o troço a montante da depressão Troporiz-Ponte da Barca­-Vila Verde, a última hipótese.

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Seja como for, a Serra de Arga mostra que uma superfície elevada existiu junto do mar; dela derivaram as formas actuais pela acção continuada da erosão.

Ao sul de Viana do Ca,stelo encontram-se elevações entre 400 e 500 m., desmanteladas pela erosão, e na área de Braga e Guimarães muitos cimos se elevam a altitudes entre os 500 e os 600 m.. Derivam de uma superfície que possivelmente não atingirá a altura da Serra de Arga , mas não pode ser muito mais baixa. Assim, abstraindo da acção do último ciclo erosivo, o relevo minhoto não seria essencialmente diferente . do de Trás os Montes, todavia inclinado para o mar em consequência da flexura atlântica.

Os vales minhotos têm características especiais que importa referir. O estado de avanço do ciclo de erosão varia ao longo dos rios com grande rapidez. O rio Lima, próximo da foz, tem um vale de maturidade avançada, de fundo muito largo, do qual saem digitações, também rebaixadas e aplanadas, segundo os afluentes, mesmo menores. Em frente da Aldeia de Suajo, a 56 km. do mar, o rio corre num vale jovem, muito apertado e íngreme. O mesmo se passa com os rios Minho e Cávado, este com um álveo extraordinàriamente amplo na baixa de Braga e já muito estreito 25 km. a montante, junto da Serra do Gerez (8).

Os vales talhados no granito mostram ainda outra particula­ridade: a um fundo mU,ito largo, dir-se-ia de maturidade, corres-

(8) As condições nos restantes rios portugueses são em geral diferentes. O Douro segue num vale jovem até à foz. A evolução do ciclo erosivo ao longo do Guadiana é lenta. O vale na ponte Reguengos-Mourão é semelhante ao que se encontra no Pomarão, 135 km. mais a jusante. O Vouga, o Tejo e o Sado não se prestam à comparação por talhar,em a parte inferior dos vales em rochas brandas.

Não parece que as características especiais dos rios minhotos se possam explicar só por razões de ordem climática ou petrográfica, dado o contraste com o Douro. Mas podem sugerir-se outras: As secções baixas dos rios seguiriam Griiben antigos, ou teriam sofrido recentemente menor elevação (compare-se com a hipótese de CARLOS TEIXEIRA, p. 49), ou, finalmente: na hipótese de uma drenagem endorreica, já se dirigiriam para o Atlântico pequenos cursos de água que tiveram mais tempo para modelar o vale e corresponderiam à parte baixa dos rios actuais; os troços de curso formados posteriormente por erosão regressiva, que existem há menos tempo como rio, estão naturalmente em estado de evolução menos adiantado.

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pondem vertentes muito inclinadas, abruptas mesmo nas partes mais afastadas do talvegue. Este comportamento, ainda por esclare­cer, deve relacionar-se com a natureza da rocha - granito - que fornece detritos finos , com o clima, actual ou passado, e com o princípio da imunidade das escarpas graníticas de Pierre Birot e).

Fig. 6 -.o nível de Suajo. Ao fundo, a. Serra. da. Pene da.. ( Foto C. Teixeim ) .

A forma dos vales, o estado muito adiantado do ciclo de erosão a jusante e os estreitos entalhes a montante explicam como, de uma superfície alta e possivelmente contínua, se veio a formar o actual relevo minhoto: no interior, altas serras .que quase se tocam, para o lado do mar, vales muito largos e férteis separados por alguns relevos interfluvíais importantes (10).

(9) P. EIROT, Recherches sur la Morphologie des Pyrénées orientales Franco-espagnoles, Paris, 1937, p. 287.

(10) Os níveis e rechãs, que são muito numerosos em todo o Minho, talve2: um dia, quando convenientemente interpretados, permitam contar a história das vissitudes do escavamento nesta região. Além dos níveis que sobem o Cávado, anotemos a rechã que segue a Ribeira de Azere, o nível de 300 m. da Aldeia de Suajo (fig. 6) j o de 750-800 m. situado entre Lamas e Tonel (Serra do Gerez) e o de 800 m. na vertente norte da Serra Amarela.

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11- EM TORNO DA INTERPRETAÇÃO DOS TERRAÇOS DO RIO MINHO

Os terraços do Rio Minho foram estudados por H. Lau­tensach, que publicou em 1932, na sua Geografia de Portugal (1), um apanhado dos resultados principais, a que se seguiu, em 1941, um trabalho monográfico completo (S).

Nestas obras, o autor traçou os perfis longitudinais dos terraços médio e superior com concavidades nas áreas de Valença­-Tuy e de Monção-Salvatierra, onde o vale do Minho é cruzado por duas linhas tectónico-estruturais com rumo norte-sul. Pouco acima de Barbeita, surge - ainda segundo o mesmo autor - por baixo da cascalheira do terraço médio, uma rechã (S) ou terraço de rocha, que sobe ràpidamente, alcançando 145 m. de cota em S. Gregório, no extremo norte de Portugal, e pouco mais de 200 m. em Cortegada, para depois descer para montante, ligando-se às

( 1 ) H. LAUTENSACH, Portugal au! Grund eigenet Reisen und der Literatur " 1.a parte, Petermanns Mitt., Ergãnzungsheft 213, Golha, 1932; 2.a parte, Petermanns Mitt., Ergãnzungsheft 230, Gotha, 1937. Especialmente: t,a parte,págs. 44-47 e est. 5, a e b.

(2) H. LAUTENSACH, lnterglaziale Terrassenbildung in Nordportugal und ihre Beziehungen zu den allgemeinen Problemen des Eiszeitalters, Petermanns Geogr. Mitt., 9, 1941, págs. 297-311. Publicado também em alemão, embora sem a estampa e seguido de resumo em português, in Congresso do Mundo Português, Memórias e ComunicaçOes. 1940, T. I, págs. 61-99; e traduzido. para português com o título Formação dos terraços interglaciários do Norte de Portugal e suas relaçOes com os problemas da época glaciária. nas Publ. Soe. GeoI. Portugal, I, Porto, 1945.

( 3 ) Em francês: replat.

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cascalheiras da bacia de Barbantes, a 120 m. de altitude, e à base dos depósitos de Orense, a 100 m. (4).

Destas ondulações do perfil deduziu H. Lautensach a exis­tência das deformações correspondentes, que atingem 130 m. em Cortegada e serão posteriores à formação dos terraços a que se referem, isto é, à penúltima e à última fase interglaciária.

Numa breve excursão (1;) na margem portuguesa do Rio Minho, não pudemos verificar as deformações de Valença-Tuy e de Monção-Salvatierra. Pareceu-nos, pelo contrário, que o terraço de Troporiz, cerca de 70 m. acima do rio, não corresponde ao nível de 30 m. de Monção (o médio), com o qual só está ligado por seixos escorregados pelas vertentes, mas se liga à mancha de terraço que está 65 a 75 m. acima do rio entre Monção e Mazedo e de que H. Lautensach não teve conhecimento.' O terraço de 70 m. de Troporiz pertencerá, assim, ao nível superior. Mais a montante, surge, por baixo das cascalheiras deste nível, a rechã que também pertence, portanto, ao nível superior. Desfaz-se, deste modo, a deformação de Salvatierra-Monção; e a inclinação da rechã, que, segundo Lautensach (6), é de 3,7 0 10 entre Monção e Cebide, desce para 2 010 no mesmo troço.

Não são necessários movimentos tectónicos para explicar o forte declive do terraço de rocha: o jogo da erosão e acumulação não só o justifica como até exige que ele tenha maior inclinação do que o terraço de acumulação que o continua para jusante.

Durante as fases glaciárias, como o nível do mar estava baixo, a erosão era intensa: os rios rebaixaram os leitos, especial­mente na parte vestibular, procurando adaptá-los às novas con­dições de nível de base. Parece, contudo, provável que rios relativamente pouco importantes como o Minho, não tenham

( ,() Obra citada em (1), La parte, estampa 5, b. (5) Feita no fim do verão de 1944, com Orlando Ribeiro, Carlos

Teixeira, M. Montenegro de Andrade e A. Jorge Dias. Todas as observações mencionadas nesta nota foram comuns e muitas ideias nasceram da troca de impressõés durante a excursão. A Orlando Ribeiro devemos também indi­cações posteriores. A todos, os nossos agradecimentos, com a lembrança da excelente camaradagem daqueles dias passados em comum.

(6) Obra citada em (1), La parte, pág. 45.

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conseguido alcançar· o perfil de equilíbrio glaciário em extensão considerável do curso. Mas, mesmo no caso de o terem alcan­çado, as nossas considerações são igualmente verdadeiras, contanto que este seja mais inclinado do que o perfil de equilíbrio intergla­etano. Ora, é este o caso do Rio Minho, como vamos ver.

Com as fases interglaciárias e a respectiva subida do nível do mar, deu-se aluviamento, comandado pelo assoriamento a jusante e com o declive correspondente ao perfil de equilíbrio­definido pelo caudal e carga - interglaciário. Este aluviamento

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dar-se-á nos pontos em que o leito fluvial está abaixo do perfil de equilíbrio interglaciário; para montante continuará a haver erosão.

Ora não há dúvida que o leito glaciário correspondente ao terraço superior do Rio Minho, a que nos estamos a referir, é mais inclinado do que a superfície de enchimento do mesmo terraço, pois a rechã que representa o leito glaciário mete-se por baixo da cascalheira do terraço e vai formar a base deste. No caso contrário, de o perfil de enchimento ser o mais inclinado, o aluviamento deveria estender-se até próximo das nascentes, o que não acontece.

O curso interglaciário do rio é, assim, formado por dois troços (fig. 1): um sujeito ao aluviamento (e cuja inclinação, por-

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tanto, é ado perfil de equUíbrio interglaciário); e outro, a montante, sem transição, formado pelo curso glaciário, naturalmente um pouco rebaixado na fase interglaciária, onde continua a actuar a erosão. O declive deste troço tem de ser maior do que o do perfil de equilíbrio interglaciário (senão também tinha sofrido aluviamento) e não tem limite máximo, sendo tanto maior quanto mais atrasada estiver a evolução desta parte do curso. De modo que, embora o troço aluviado e o troço sujeito a erosão tenham pertencido ao curso do rio durante a mesma fase, podem ter declives assaz dissemelhantes (1).

Como a excursão se limitou à parte portuguesa ,do vale, não pudemos verificar um ponto fundamental, a ligação da rechã às cascalheiras da Bacia de Barbantes e às de Orense.

O «terraço}) inferior é formado por limo de inundação, que s6 às vezes contém seixos quartzíticos (S). O perfil longitudinal dele confunde-se com o do curso actual próximo da foz e afasta-se gradualmente para montante, até alcançar 10 m. 'de altura: é sensivelmente paralelo ao perfil das cheias e alcança precisa­mente a altura máxima delas (9).

Pelo material e pelo perfil longitudinal, este terraço inferior parece relacionar-se com as cheias e poder explicar-se sem a intervenção de posições do nível de base mais altas do que a actual. Pelo contrário, se se tratasse de um terraço relacionado com um nível do mar mais alto - como o suposto máximo flan­driano - as alturas da superfície dele deviam ter disposição inversa, maiores próximo da foz e diminuindo progressivamente para montante. Não queremos com isto dizer que o terraço infe­rior não possa ser complexo e não se encontrem, por baixo dos sedimentos das cheias, aluviões mais antigas (grimaldianas ?), como acontece no terraço inferior do Guadiana, nem que a grande

( 7) Note-se que as considerações anteriores são independentes da atribuição de quaisquer elementos às fases glaciárias ou interglaciárias; Essen­cial para elas é apenas a existência de uma rechã, com forte declive, substi­tuída a jusante por um terraço com declive menor.

(8)' Obra citada em (2), pág. 19 da tradução. ( 9) A altura máxima, tanto do terraço inferior como das cheias é de

10 m.. (Obra citada em (2), págs. 18 e 19 da tradução; veja-se também a estampa).

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massa de aluviões que enche o profundo sulco aberto pelo rio na última fase glaciária se não deva atribuir à transgressão flandriana.

Enquanto H. Lautensach dá aos terraços inferior, médio e superior do Rio Minho as idades flandriana, grimaldiana e tirre­niana, G. Zbyszewski atribuí-os ao grimaldiano, tirreniano e millaziano (10).

Na obra acerca dos terraços do Rio Minho, diz H. 'Lauten­sach: «Ao Sul da foi do Rio Cávado, muito próximo à costa, estende-se uma superfície de desnudação sub-aérea, na qual estão situados os sítios mais altos da cidade do Porto, e que, por isso, designei por um nome tirado desta. Esta superfície portuense tem, perto do Porto, uma altura de 100 m. aproximadamente, e desce para o Norte. Ao Norte da foz do Cávado transforma-se num' terraço litoral com a largura máximâ de 1,5 km., que desce da altura de 40 m., perto da foz do rio Neiva, para 15 m., perto de La Guardia. Pode ser seguido mais 23 km. para o Norte até ao cabo Silleiro, onde desaparece sob o nível do mar no começo das Rias Bajas.» (11).

G. Zbyszewski já mostrou (12) que os terraços litorais entre Minho e Lima são complexos e formados na realidade por vários níveis diferentes. Do desnivelamento deles não se pode deduzir, pois, uma deformação. , A transformação da superfície de desnudação sub-aérea, para o norte do Cávado, num estreito terraço costeiro, ao passo que desaparecem todos os restos da peneplanície, precisamente onde ela se devia ter conservado melhor por estar a menor alti­tude, e sem que a diferença de constituição geológica possa justi­ficar a destruição dela, parece difícil de aceitar, mesmo como construção teórica.

(10) G. ZSYSZEWSKI, La classification du Paléolithique anclen et la chronologie du Quaternaire de Portugal en 1942, BoI. Soe. GeoI. Port., II, 2 e 3, pág. 81.

(11) Transcrito da obra citada em (2), págs, 26-27 da tradução. Vide também a obra citada em (1), págs. 43-44 e Morphologische Skizze der Küsten Portugals, Sonderb. Zeits. Ges. f. Erdkunde zu Berliu, 1928, págs. 303-12.

(19) Obr~ citada em (lO), pág. 36 e sego e 81.

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N a realidade, as coisas passam,.se de modo diferente. O. Ribeiro, J. M. Cotelo Neiva e C. Teixeira descreve­

ram (13), nos arredores do Porto, uma série completa de praias levantadas: a superfície portuense parece corresponder à de 120 m. ou à de 80-90 m.; as restantes praias quaternárias ficam embuti­das nestas e a alturas sucessivamente decrescentes. Depois de se conhecerem estes níveis, não é possível continuar a assimilar a superfície do Porto aos níveis baixos que se encontram mais ao norte. Estes correspondem, sim, aos níveis embutidos na super­fície de desnudação portuense. A passagem desta a um terraço costeiro, como a aparência de deformação de conjunto provêm, assim, de se ligarem níveis diferentes e não sincrónicos.

Na região do Porto. encontram-se diversos níveis de praias levantadas, o mais alto dos quais a 125-130 m.; na área entre os rios Cávado e Minho os depósitos deste tipo não ultrapassam 60 m. ; do mesmo modo faltam, no último destes rios, terraços com maior altura relativa; na Galiza não foram referidas praias levantadas, a não ser na região de La Guardia, onde se encontram a 45 m. de altitude (14).

Destes fados tira Carlos Teixeira argumento a favor de um abaixamento do compartimento ao norte do Rio Minho, mais rigo­rosamente ao norte do Eixo de Vigo (bloco galego), onde não existem praias ievantadas, em relação ao compartimento entre Minho e Cávado (bloco minhoto), onde os níveis não ultrapassam 60 m. de altura, e deste em relação ao compartimento ao sul do Cávado (bloco duriense), onde se encontram todos os níveis do esquema clássico (15).

(13) ORLANDO RIBEIRO, 1. 11'1. COTELO NEIVA e CARLOS TEIXEIRA, Depó­sitos e nlveis pliocénicos e quaternários dos arredores do Porto, BoI. Soe. GeoI. Port., 3, 1 e 2 j 1943.

(14) La Guardia fica ao sul do chamado Eixo de Vigo (veja-se a locali­zação deste na fig. 1 da primeira obra citada na nota 15). Poderia pertencer assim, tectonicamente, ao bloco minhoto.

(15) C. TEIXEIRA - Tectónica plio-pleistocénica do noroeste peninsular, BoI. Soe. Geol. Port., IV, 1 e 2. Porto, 1944.

C. TEIXEIRA - Éssai sur la paléogéographie du littoral portugais au Nord du Vouga, Petrus Nonius, VI, 3 ~ 4, Lisboa, 1946. .

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Não há dúvida que a hipótese apresentada explica os factos referidos. Repare-se, porém, que estes são de ordem negativa (ausência de praias e terraços acima de certos níveis) e que para o caso da falta de determinado fenómeno existem, em regra, várias possibilidades de explicação. Na falta de um depósito ou traço morfológico devem-se encarar sempre duas ordens de expli­cações: ou a forma ou depósito considerado não se chegou a for­mar, ou formou-se e foi destruído posteriormente. Só se pudermos eliminar a segunda alternativa, poderemos afirmar a primeira.

Apresentamos a seguir alguns modos de explicar a falta de níveis de praias e terraços no noroeste peninsular.

No que se refere à falta de praias levantadas, note-se que, entre Fão e Caminha, os níveis de 20-30 e 50-60 m. chegam à arriba granítica fóssil: não há lugar para as praias superiores, que, tinham necessàriamente de ser destruídas quando o mar das praias mais baixas foi bater contra a arriba. Uma praia ievan­tada só se conserva, de maneira geral e abstraindo dos casos em que é fossilizada, se o mar não tornar a atingir, posteriormente, posição tão avançada como a que tinha quando depositou a praia considerada. Com mais forte razão será destruída, se o mar alcançar posição mais avançada. No caso do litoral minhoto, os níveis pliocénico e siciliano podiam ter-se depositado ao ocidente da arriba fóssil e o mar ter avançado depois, por melhor evacuação de detritos, destruindo as praias mais antigas.

Outra explicação é possível. O troço de litoral, rectilíneo, entre a foz do Cávado e a do Minho, sugere uma origem tectónica directa: a arriba seria um simples retoque numa escarpa de falha, que desceria para fundos marinhos importantes, condição extremamente desfavorável à formação de praias; entalhes, se existiram, não será fácil reconhecê-los hoje. Se o acidente tiver jogado em tempos próximos do fim do Pliocénico, explica-se a falta dos níveis pliocénico e siciliano.

A falta do terraço de 80 a 90 m. no Rio Minho também não obriga a aceitar o abatimento da região deste curso de água. Podem dar-se outras explicações: ou ainda não existia o rio nesse tempo (Siciliano), ou a drenagem estava imperfeitamente estabe­lecida, de modo que esse pré-Minho não teve tempo de regula­rizar e rebaixar suficientemente o leito para que o aluviamento

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siciliano se fizesse sentir nele de forma apreciável (16). Se o assoriamento se limitou ao talvegue, sem alargamentos laterais, foi fatalmente destruído pelos encaixes subsequentes.

Segundo a concepção de Carlos Teixeira (17), os blocos duriense, minhoto e galego seriam separados e desnivelados por zonas de fracturas, aproximadamente segundo os cursos dos rios Cávado e Minho. A mais meridional destas zonas de fractura ter-se-ia movido entre o Pliocénico e o Quaternário médio, a mais setentrional teria continuado a actuar em tempos poste­riores.

Que os rios Minho e Cávado correm em vales tectónico­-estruturais, é facto assente e incontroverso. Mas as falhas respectivas podem ser antigas: os vales estruturais são apenas zonas de fraqueza, produzidas por falhas, cuja idade não importa para aqui, possivelmente arrazadas várias vezes e mais tarde apro­veitadas pelos cursos de água actuais.

As vertentes dos rios Minho e Cávado não conservam quais­quer traços morfológicos indicativos de escarpas de falhas; e sugerem, pelo recuo em relação ao talvegue, na parte baixa dos vales, e pelo traçado sinuoso, um estado adiantado de evolução; além disso, a existência de depósitos pliocénicos em ambos os vales leva à presunção de que se trate de fracturas não muito recentes.

Carlos Teixeira pôs em evidência muitas e importantes falhas no granito da região (18). Os referidos desnivelamentos de blocos poderiam ter-se dado aproveitando várias fracturas mas não segundo uma falha única, pois neste caso seriam susceptíveis de confir-

(16) No artigo Os terraços do Guadiana a jusante do Ardila, Com. Servo Geol. Port., XXVII, 1946, págs. 60-65, tratamos do modo de formação dos terraços' e procuramos mostrar que quanto mais poderoso for o curso de água, mais desenvolvidos devem ser os terraços.

(17) Obras citadas em (15). (18) C. TEIXEIRA, Alguns aspectos da geologia dos granitos do Norte

de Portugal, Publ. Soe. Geol. Port., Porto, 1945.

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mação morfológica (19). Passa-se assim, insensivelmente, a defor­mações graduais.

. Neste difícil assunto, as dúvidas sobrelevam ainda as cer­tezas. Mas a existência de rias na costa galega é suficiente para estabelecer de modo incontestável que se deu, primeiro um levanta­mento da região que causou o rejuvenescimento da rede fluvial (20)

e, depois, um abaixamento relativo, com certeza de menor ampli­tude do que o movimento contrário.

Este abaixamento não se estendeu à costa portuguesa, pelo menos com a mesma amplitude, pois nela faltam as rias.

O esquema de Carlos Teixeira, muito claro e atraente, ajusta-se sem dúvida, nos grandes traços, à realidade; ganharia, talvez, se fosse recuado no tempo e se supusesse que os desnivela­mentos se deram de maneira mais gradual. O estudo cuidado das rias galegas, tendo em vista especialmente a possível existência de praias levantadas e a determinação do estado de desenvol­vimento do ciclo litoral, poderia dar valiosa contribuição para a solução deste problema.

M. Montenegro de Andrade (21), baseado na análise polínica de amostras de argila lignitosa e fragmentos de madeira ligniti-

(19) Cada uma das falhas segundo o Miuho e o Cávado ter-se-ia movido, ao todo, no Quaternário, um míuimo de cerca de 60 m.. A falha situada entre os blocos minhoto e galego, para justificar a falta de praias levantadas no último, teria de mover-se posteriormente a um dado nível cuja ausência se pretenda expHcar, pelo menos tanto como a presumível altura desse nível, isto é, pelo menos 50-60 m. depois do Millaziano, 20-30 m. depois do Tirreniano e 10-15 m. depois do Grimaldiano. Trata-se, pois, de acidentes muito recentes e com rejeições ainda assim consideráveis. Numa rocha dura, como o granito, a observação das escarpas devia ser possível, excepto no caso de seguirem os talvegues. Mas, mesmo neste caso, algumas consequências se poderiam observar: a falha correspondente ao eixo de Vigo, na parte em que segue o troço do Rio Minho que tem terraços (Valença-Barbeita) devia colocar os de uma e de ontra margem a alturas diferentes.

"~(20) Como recordou C. Vidal Box num trabalho recente (Contribución ai conocimtento morfológico de las cuencas de los rios Sil y Mino, BoI. Real Soe. Espaiíola de Historia Natural, XXXIX, pág. 134, Madrid, 1941).

(21) M. MONTENEGRO DE ANDRADE, Alguns elementos para o estudo do terraço superior do Rio Minho, BoI. Soe. GeoI. Port., 4, 3, pág. 221.

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zada, onde encontrou Pinus sylvestris, Castanea, Betula, etc., atribui a formação do terraço superior do Rio Minho, «se tais plantas foram contemporâneas do depósito», a uma fase glaciária ou, pelo menos, aos primeiros tempos de uma interglaciária.

O material analisado foi colhido no entulho proveniente de um poço, aberto na cascalh~ira, para extracção das lignites; provém, segundo parece da camada de argila subjacente à casca­lheira. Dos resultados do estudo dele só se poderão deduzir, portanto, as condições de clima durante a formação das argilas.

Como procuramos mostrar (22), os assoriamentos provocados pelas oscilações do Quaternário no curso inferior dos nossos rios, ressalvando as restrições ali feitas, dar-se-ão durante a trans­gressão, enquanto o nív~l do mar estiver no máximo e durante o breve lapso de tempo em que, embora a regressão já tenha come­çado, a vaga de erosão regressiva ainda não atingiu a região (23). Os aluviamentos corresponderão, assim, ao intervalo de tempo que vai desde o fim do máximo frio até ao máximo quente, a tódo o tempo que este durar e ainda ao começo do arrefecimento: a parte inferior será glaciária e a superior interglaciária.

É certo que os assoriamentos do princípio da· trangressão se devem confinar às áreas próximas do mar e só gradualmente, com o progresso da transgressão, alcançam os troços mais a montante. Mas, por um lado, S. Pedro da Torre, onde foram feitas as colheitas, não fica longe da foz (cerca de 22 km.) e, por outro lado, a flora encontrada pode corresponder a um clima bastante próximo do actual; estamos no Alto Minho, quase no extremo norte de Portugal, num quadro de montanhas, e o achado de uma flora com vidoeiro, castanheiro, salgueiro e pinheiro silves­tre não pode ter aí o significado que teria no Alentejo ou no Algarve.

Não queremos deixar de mencionar uma série de conside­. rações de ordem geral das quais resulta não se poder decidir,

(22) Os terraços do Guadiana a jusante do Ardila, Com. Servo Geol. Port., XX.VII, 1946, págs. 68-70.

(23) No 'caso dos rios portugueses, este lapso de tempo deve ser pouco importante, por se encontrarem grandes fundos marinhos próximos da costa. O fim do aluviamento cairá, portanto, ainda na fase quente, embora quando já começa a arrefecer.

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a partir de elementos climáticos tirados de floras e faunas fósseis, se o depósito correspondente se formou numa fase glaciária ou numa interglaciária (24).

F. Zeuner (25) procurou fazer recentemente, através da revisão dos perfis quaternários melhor conhecidos e mais repre­sentativos, a demonstração de que só um glaciarismo múltiplo, com tantas oscilações quantas as da curva de Milankovitch, se podia adaptar aos factos observados. Esta maneira de ver, seguida por. muitos autores, não combate o tetraglaciarismo de Penck e Brückner: representa, antes, um aperfeiçoamento dele. Tanto as fases glaciárias como as interglaciárias de Penck e Brückner não seriam simples, mas formadas pelo agrupamento de várias oscilações menores. (Estas não se individualizaram geologicamente em todas as regiões, mas apenas nalgumas situadas mais favoràvelmente, como por exemplo as periglaciárias).

Nestas condições. as deduções climáticas tiradas de floras ou faunas fósseis não darão, a não ser em casos extremos, indicações seguras para se fazer a atribuição dos depósitos. correspondentes a fases glaciárias ou interglaciárias, pois nas primeiras deram-se oscilações temperadas e nas segundas houve oscilações frias (embora não tanto como os mínimos glaciários).

Só um estudo exaustivo permitiria, talvez, resolver os pro­blemas que nos limitamos a aflorar. O nosso fim ao escrever esta nota foi apenas levantar certas dúvidas, mostrar que algumas interpretações não são obrigatórias e trazer uma achega para resolver problemas ainda incompletamente esclarecidos.

Centro de Estudos Geográficos Instituto para a Alta Cultura.

(24) Fase glaciária e inlerglaciária no sentido do tetraglaciarismo clássico de Penck e Brückner.

(25) FRIEDRICH E. ZEUNER, Die Chronologie des Pleisfoziins. BulI. Ac. Royale Serbe, B. Sc. Nat., 4, Belgrado, 1938.