notas de um beletrista
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Entrevista com o escritor Carlos NejarTRANSCRIPT
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Quem afirma é o poeta, ficcionista, crítico e tradutor Carlos Nejar, ao ser questionado sobre o baixo índice de leitura dos brasileiros. Uma das razões está na nova edição de História da Literatura Brasileira – Da Carta de Caminha aos Contemporâneos (editado pela LeYa Brasil e Fundação Biblioteca Nacional), lançado em março e já esgotado. O livro, aproveitando expressão de sua lavra, é um “abraço fraterno” na literatura pátria. Entre as novidades estão quatro capítulos sobre a ficção produzida na década de 1960 e uma síntese dos autores teatrais – dos primórdios até a sombra prodigiosa de Nelson Rodrigues. O tomo vendeu tão bem que ensejou nova edição, já no prelo, que logo virá à luz com revisões e acréscimos. Lançado originalmente em 2007, o protótipo de História... era considerado incompleto em suas 550 páginas. “Agora completei falhas, inseri novos nomes e estudei os contemporâneos
e o teatro”, esclarece. Um dos mais importantes de sua geração, conhecido como “poeta da condição humana”, este porto-alegrense radicado no Rio de Janeiro senta-se na cadeira número quatro da Academia Brasileira de Letras – outrora ocupada pelos conterrâneos Alcides Maya e Vianna Moog. Aos 72 anos, Nejar é autor de Sélesis (1960), O Campeador e o Vento (1966), Casa dos Arreios (1973), Árvore do Mundo (1977) e Os Viventes (1979) – para citar apenas alguns nomes entre uma prolífica obra. Este último, aliás, foi reeditado em 2011. Na época do lançamento, no fim dos anos 1970, sua fecundidade poética ganhou a benção de Carlos Drummond de Andrade. Outra persona ilustre a admirar a ousadia e inventividade de Nejar foi Clarice Linspector, que uma vez declarou: “Ele atordoa os modelos e paradigmas da crítica literária”. Hoje, o autor lamenta o fato de que ao longo de 40 anos foi “estranhamente boicotado” pela Feira do Livro de Porto Alegre – e diz não fazer mais questão de participar. Uma polêmica levantada por História... envolve Paulo Coelho, colega de ABL, que contestou via Twitter sua ausência no livro. Nesta entrevista, Nejar fala de diversos autores gaúchos, alguns esquecidos pelo tempo e pela crítica, como Eduardo Guimarães. Ao abordar os contemporâneos, garante não ter cedido ao laço sanguíneo para incluir no rol dos poetas Fabrício Carpinejar, seu filho.
Debruçado sobre mais de mil páginas, o escritor Carlos Nejar apresenta uma nova versão para História da Literatura Brasileira – livro considerado pelo autor um trabalho em constante andamento
Notas de umbeletrista
“Não sou pessimista com os leitores”
Por CristiaNo bastos, jorNalista
entrevistaentrevista
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“Não são os escritores que inventam os leitores, são os leitores que sempre inventarão, mesmo em tempo de crise, os seus escritores”
Tanto História da Literatura Brasileira quanto Os Viventes
são obras que muito bem poderiam não ter fim. Os leitores
ainda podem esperar outras atualizações e poetizações?
Quanto à História..., penso ser necessariamente um work in
progress, o que já fiz na edição que deverá sair em breve – já
que considero este livro editado pela LeYa um novo livro. No
que tange a Os Viventes, acredito ser edição definitiva. Depois
de mais de 30 anos, formou-se uma galeria ou espécie de co-
média humana poética em miniatura. Salvo se brotar, contra
a vontade, algum personagem. Espero que não.
Em 2007, à época da primeira edição (pela Agir), o crítico
Wilson Martins reclamou sobre o tom pessoal de sua aná-
lise em História... Martins disse que a “história literária é e
só deve ser a história das obras”. O senhor respondeu que o
crítico “desleu” seu livro e, em outras ocasiões, comentou
que a crítica literária é desprovida de emoção.
Não concordo com Wilson Martins e, na página 1.008 de His-
tória..., observo que “se a história se embriaga de conceitos e
técnicas, a aventura humana se nutre de metamorfose”. E as
ideias não esgotam a realidade, nem a realidade esgota os
símbolos... pois não são os conceitos que fazem a história, é
a história que molda os conceitos. Donde não se pode afas-
tar as obras dos autores que as criam. Para mim, a história
precisa emocionar, sim, porque o historiador deve trabalhar
a linguagem. “Nada de grande se faz sem paixão”, dizia, com
acerto, Pascal.
A reedição de História... ganhou quase o dobro de pá-
ginas em relação ao original. O que o senhor levou em
conta? Nessa reedição também foram resgatados “ve-
lhos autores”?
Não considero este livro da editora LeYa uma simples reedi-
ção de História.... É um novo livro, com ampliação da análise
dos autores antes estudados e visão bem mais abrangente
dos contemporâneos, com a inclusão de um capítulo sobre
os pré-modernistas, com nomes esquecidos, mais ampliação
na análise dos poetas, além dos cânones de 1945. Idem no
que tange aos poetas de um tempo veloz, um capítulo sobre
a ficção da década de 1960, outro sobre Ariano Suassuna,
outro sobre a poesia da geração de 1960-1970, outro sobre
o teatro contemporâneo. Se o volume da Agir tinha 550 pá-
ginas, este possui1,2 mil. É outro livro. Tem razão quando diz
que resgatei velhos autores, corrigi injustiças e reposicionei
cânones. O que fiz foi um amoroso olhar sobre a nossa li-
teratura. E fiz isso hoje, quando os críticos, salvo exceções,
se escondem nas universidades, com a quase extinção de
suplementos e resenhas críticas. No parecer de Ricardo Pi-
glia, praticamente “sumiram do mapa”. Os melhores leitores
atuais, segundo ele, são os historiadores. E é preciso ousadia
e coragem para enfrentar os contemporâneos, e não os au-
tores já reconhecidos. E isso eu fiz.
pecto que nele vige da decadência do pampa, com o progres-
so (Ruínas Vivas), mas não se pode esquecer Simões Lopes
Neto e seu papel fundador. Alcides era um erudito da ficção,
próximo de Coelho Neto. Penso que Moog exagerou.
Passado tão pouco tempo da perda de Moacyr Scliar, é pos-
sível avaliar o tamanho de sua obra?
Fui amigo de Scliar e o recebi na Casa de Machado (ABL). Dedi-
quei a ele um capítulo, onde está valorizado. Com o tempo, é
possível que aumente seu prestígio.
A Divina Pastora (1847), de Caldre Fião, é considerado o pri-
meiro romance gaúcho. Há quem o tenha como o segundo
da história da literatura brasileira. O primeiro seria A More-
ninha, de Joaquim Manuel de Macedo. Em 1992, o livreiro
pelotense Adão Fernando Monquelat localizou, em Monte-
vidéu, o único exemplar até hoje conhecido de A Divina
Pastora. Por que o senhor não cita Caldre Fião?
É lógico que se tende a fazer barulho sobre as raridades, como
entrevista
O senhor faz uma revisão de autores simbolistas soterra-
dos pelo Movimento de 1922. Entre eles, Cruz e Souza, Al-
phonsus de Guimaraens e o “gaúcho esquecido” Eduardo
Guimarães. Historicamente, Guimarães foi relegado pelos
próprios conterrâneos, e ainda parece ser. Seria ele o nosso
poeta mais, digamos, underground?
Não entrei nos fundamentos da literatura gaúcha, tendo de
encarar um tema mais vasto, os elementos basilares da litera-
tura brasileira. Ademais, toda a história não deixa de ser uma
antologia pessoal (como queria Borges) e a inclusão ou não de
autores está sujeita a essa perspectiva. Concordo que Eduardo
Guimarães foi relegado – o que foi clamante injustiça. E nada
deve aos demais simbolistas. E, se foi underground, também o
seria Alphonsus Guimaraens. Julgo a importância de Eduardo,
inclusive precursora na métrica e na temática modernista.
A seção sobre autores da segunda metade do século 20 foi
a que mais cresceu. Do Rio Grande do Sul, escritores como
Moacyr Scliar, Luiz Antônio de Assis Brasil e João Gilberto
Noll marcam presença. No entanto, Charles Kiefer e alguns
outros não foram citados. O senhor considera a hipótese
de acrescer ao livro nomes que ficaram de fora?
Como já frisei, a inclusão de autores está necessariamente
sujeita à perspectiva e apreciação pessoal do historiador.
Charles Kiefer foi posto na próxima edição, que está no pre-
lo, como vários outros.
O senhor fala da singularidade de Simões Lopes Neto como
contador de história: “Ele não inventa nada”. Nesse mun-
do tecnologizado, ainda há espaço para um novo Simões
Lopes Neto?
Não falei apenas na singularidade de Simões Lopes Neto
como contador de histórias, mas também como inventor de
linguagem, absorvendo a tradição, o folclore, de uma forma
universal, com tipos inesquecíveis. Tanto que é, por exemplo,
precursor de um Guimarães Rosa.
O modernista Augusto Meyer introduziu uma feição re-
gionalista na poesia. Meyer completa com Raul Bopp e
Mário Quintana a trindade modernista do Rio Grande
do Sul. Sua obra mais admirada, porém, é o ensaio Ma-
chado de Assis (1935).
O que penso sobre Augusto Meyer como poeta, crítico, fol-
clorista e prosador está na minha História..., e não é somente
como crítico de Machado de Assis. Isso seria reduzi-lo.
O romancista e ensaísta Clodomir Viana Moog, sobre o qual
o senhor escreve no capítulo “Poetas da geração pós-mo-
dernista”, considerou que Alcides Maya foi em seu tempo
o representante típico do núcleo cultural rio-grandense. O
senhor concorda com Moog?
Acho valiosa a contribuição de Alcides Maya, sobretudo o as-
se houvesse uma nova descoberta da pólvora, sem desvalori-
zar o esforço dos bibliófilos. A cada um, o que é seu. Não entro
nessa contenda. Mas citei A Moreninha, de Macedo, o primeiro
romance brasileiro. E as referências e apreciações que fiz de-
correm de uma visão pessoal.
Uma das polêmicas suscitadas por História... envolve Paulo
Coelho, já que o livro não o cita. Pelo Twitter, ele reclamou
que foi ignorado: “Isso é que é pesquisa, digamos, tenden-
ciosa ou malfeita”. Como fica a convivência na ABL?
A reclamação de Paulo Coelho, meu confrade na ABL, ao criar
polêmica, ajudou a vender a minha História.... Respondo a ele
na segunda edição [na prática, a terceira edição, a contar a
lançada em 2007]. Aguardem.
Há quem lembre que o senhor não esqueceu seu filho, Fa-
brício Capinejar – a quem considera “um poeta de qualida-
de”. O senhor cedeu à paternidade?
Não. Todos que o conhecem e admiram sabem que não.
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“se ficasse no rio Grande, não entraria na abl, nem
faria a obra que fiz - porque a distância da terra é o que nos
sedimenta e fecunda”
O crítico Alfredo Bosi, na apresentação de História..., consi-
dera “particularmente notável o largo espaço concedido à
literatura contemporânea pelo livro de Nejar, o que o distin-
gue dos congêneres”. A história da literatura contemporâ-
nea estava sendo esquecida pelos críticos?
Há vários críticos que apenas ficaram na apreciação de seus
companheiros de geração e não ousaram ir adiante. O que não
deixa de ser conservadorismo, um repetindo o outro infinita-
mente a respeito de autores já clássicos. É como se o passado
se absolutizasse, com o impasse deliberado diante do novo –
para não dizer cegueira. O verdadeiro crítico é o que é capaz de
farejar a grandeza alheia no estado de linguagem.
Os números sobre leitura no Brasil indicam um país de
“não leitores”, conforme definiu a The Economist recen-
temente. Escreve-se para quem, afinal?
Não são os escritores que inventam os leitores, são os lei-
tores que sempre inventarão, mesmo em tempo de crise,
os seus escritores.
Há pouco tempo, Woody Allen comentou que finalmente
descobriu a universalidade de Machado de Assis. Que outros
autores brasileiros têm essa vocação?
Há vários, além de Machado, que têm um grande paradigma de
universalidade, como Euclides da Cunha, Guimarães Rosa, Clari-
ce Lispector, José Veiga, João Ubaldo Ribeiro, Moacyr Scliar (haja
vista O Centauro no Jardim). Deviam ser inseridos entre os ditos
gênios do Cânone Ocidental, do americano Bloom.
O senhor já comentou que, após um tempo de silêncio, o Rio
Grande do Sul começa a se voltar novamente para sua obra.
Como anda essa relação?
O “amor ao Rio Grande”, após um período de silêncio ou exílio,
está voltando ao começo. Não fui eu que me separei dele, pois
o levo sempre na terra do coração e do poema. Mas acontece
que minha terra é bairrista e trata mal os que têm de deixar
o pampa para outras terras. Se ficasse no Rio Grande, não en-
traria na ABL, nem faria a obra que fiz – porque a distância da
terra é o que nos sedimenta e fecunda. Todavia, o que sou é o
pampa. Falei de um retorno, e é verdade. Recebi no ano pas-
sado, com Scliar, a comenda Ponche Verde. O atual governador,
Tarso Genro, é um velho amigo, poeta, determinou o recital de
meu Hino à Liberdade (homenagem aos heróis dos Farrapos) na
grande cerimônia cívica do Palácio Piratini. Sairá também um
livro meu, Um Homem do Pampa, com poemas dedicados à
vida e ao povo do Rio Grande. Tive o meu nome na feira do livro
de São Sepé e em Candelária – o que me honrou imensamen-
te. Recordo os versos de meu filho Fabrício diante da injustiça:
“Volta ao pampa, pai / pai, volta ao pampa”. Estou retornando.
Mais de uma vez, o senhor disse que o interior do Rio Grande
do Sul costuma lhe receber muito mais fraternalmente do
que a capital. Se fosse convidado para patrono da Feira do
Livro, aceitaria?
Amo Porto Alegre, minha cidade natal, logicamente. Sou seu
“cidadão honorário” e só guardo gratidão à terra, lembrança
saudosa das suas praças e ruas, imensa ternura. Não tenho es-
paço para mágoas. Quanto à Feira do Livro, onde fui boicotado
estranhamente por 40 anos, não faço nenhuma questão. Como
na canção de Chico Buaque, “o tempo passou na janela/ só
Madalena não viu”.
HiSTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA
Carlos Nejar LeYa e Fundação
Biblioteca Nacional 1.104 páginas
(esgotado)
entrevista