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1 cadernos da IReS | n.º1 - jan/jun 2016 | pag. Nota de abertura SERVIÇO DE INSPECÇÃO: GARANTIR A QUALIDADE E O HUMANISMO | Pag. 4 António Arnaut Artigos PROTECÇÃO DE DADOS PESSOAIS: CONCILIAR DIREITOS COM INTERESSES PÚBLICOS | Pag. 6 Gonçalo Forjaz ALGUMAS DAS PRINCIPAIS QUESTÕES EM REDOR DA RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA | Pag. 16 Rui Pestana de Almeida ABERTURA DE POSTO MÓVEL DE FARMÁCIA DEPENDENTE DE FARMÁCIA NÃO LOCALIZADA NO MESMO MUNICÍPIO NEM EM MUNICÍPIO LIMÍTROFE | Pag. 25 Carlos de Almeida Farinha Casos decididos RELATÓRIO FINAL DE INQUÉRITO (proc. 3.4/2014/2) | Pag. 46 Negligência médica, consentimento informado, consentimento presumido e hipotético, acesso ao ficheiro clínico, regras de conduta.

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1cadernos da IReS | n.º1 - jan/jun 2016 | pag.

Nota de abertura

SERVIÇO DE INSPECÇÃO: GARANTIR A QUALIDADE E O HUMANISMO | Pag. 4António Arnaut

Artigos

PROTECÇÃO DE DADOS PESSOAIS: CONCILIAR DIREITOS COM INTERESSES PÚBLICOS | Pag. 6 Gonçalo Forjaz

ALGUMAS DAS PRINCIPAIS QUESTÕES EM REDOR DA RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA | Pag. 16Rui Pestana de Almeida

ABERTURA DE POSTO MÓVEL DE FARMÁCIA DEPENDENTE DE FARMÁCIA NÃO LOCALIZADA NO MESMO MUNICÍPIO NEM EM MUNICÍPIO LIMÍTROFE | Pag. 25Carlos de Almeida Farinha

Casos decididos

RELATÓRIO FINAL DE INQUÉRITO (proc. 3.4/2014/2) | Pag. 46

Negligência médica, consentimento informado, consentimento presumido e hipotético, acesso ao ficheiro clínico, regras de conduta.

FICHA TÉCNICA

PROPRIEDADE: GOVERNO DOS AÇORES – SECRETARIA REGIONAL DA SAÚDEEDIÇÃO: INSPEÇÃO REGIONAL DE SAÚDEPAGINAÇÃO: VITOR MELO

ISSN 2183–8143

SERVIÇO DE INSPECÇÃO: GARANTIR A QUALIDADE E O HUMANISMO | Pag. 4António Arnaut

Nota de abertura

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Qualquer Serviço de Inspecção tende a ser olhado mais pelo lado repressivo do que pelo lado preventivo e pedagógico. De facto, competindo-lhe detectar as anomalias comportamentais e propor a sua correcção, é esta faceta que vulgarmente o identifica. No sector da saúde, tão complexo e abrangente, onde subsistem muitas insuficiências, a faceta punitiva pode aparecer aos olhos dos utentes como prioritária.

Contudo, parece-me errado que os cidadãos ou os profissionais vejam nos Inspectores de Saúde uma “máquina temerosa de compressão”, no dizer de Antero, como seria errado ver nas forças públicas de segurança meros agentes de repressão em vez de garantes do cumprimento da lei. Num Estado civilizado de direito democrático todos os serviços, incluindo os que detêm poder punitivo, têm a obrigação de defender os direitos, liberdades e garantias do cidadão. Assim, a sua autoridade (autoritas e não potestas) só será reconhecida e respeitada se for exercida com razoabilidade e sentido construtivo, tendo em vista o bem-comum.

Por isso, qualquer órgão inspectivo de saúde deve procurar preferencialmente prevenir e não punir, deve actuar com o objectivo primacial de garantir a qualidade, a eficiência e o humanismo dos cuidados prestados. Havendo ainda tantas deficiências evitáveis no SNS português, embora o Serviço Regional dos Açores tenha alcançado padrões elevados, é nesse plano de eficiência compreensiva e de uma ética que assume a dignidade humana como valor supremo que as inspecções devem actuar. Deste modo, os Serviços de Inspecção em Saúde surgirão aos olhos dos utentes com a sua verdadeira face: garantia dos seus direitos e factor de qualidade e humanismo.

Artigo escrito com a ortografia prévia ao Acordo Ortográfico de 1990

*Advogado.Ministro dos Assuntos Sociais no II Governo Constitucional de Portugal

SERVIÇO DE INSPECÇÃO: GARANTIR A QUALIDADE E O HUMANISMOInspection service: ensuring quality and humanism

António Arnaut*

PROTECÇÃO DE DADOS PESSOAIS: CONCILIAR DIREITOS COM INTERESSES PÚBLICOS | Pag. 6 Gonçalo Forjaz

ALGUMAS DAS PRINCIPAIS QUESTÕES EM REDOR DA RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA | Pag. 16Rui Pestana de Almeida

ABERTURA DE POSTO MÓVEL DE FARMÁCIA DEPENDENTE DE FARMÁCIA NÃO LOCALIZADA NO MESMO MUNICÍPIO NEM EM MUNICÍPIO LIMÍTROFE | Pag. 25Carlos de Almeida Farinha

Artigos

Todos os textos publicados nesta secção apenas vinculam os seus autores, não representando qualquer posição oficial ou institucional da entidade a que pertencem, exceto se tal for expressamente indicado

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PROTECÇÃO DE DADOS PESSOAIS: CONCILIAR DIREITOS COM INTERESSES PÚBLICOSPersonal data protection: balancing rights with public interests

Gonçalo Forjaz*

ResumoA protecção dos dados pessoais é uma matéria da maior actualidade e importância, estando

consagrada constitucionalmente bem como em diversos documentos internacionais constitutivos dos direitos humanos.

No âmbito do n.º 1 dos Cadernos da IReS, inaugurado na comemoração do 5º aniversário da Inspeção Regional de Saúde da Região Autónoma dos Açores pretende-se, com a presente expo-sição, fazer uma breve descrição dos principais instrumentos jurídicos e legislativos que regem a protecção dos dados pessoais, quer a nível da União Europeia em geral quer a nível de Portugal em particular, incluindo o futuro enquadramento desta matéria a partir da reforma iniciada pela Co-missão Europeia, em 2012. Também se especificará como, na legislação em vigor, os dados pessoais podem ser usados para fins de investigação histórica, estatística e científica. No final, tomar-se-á como exemplo o caso concreto dos registos de cancro, estruturas que, por natureza da sua função, fazem uso especificamente dos dados pessoais e de saúde, considerados sensíveis do ponto de vista da confidencialidade.

AbstractThe protection of personal data is a subject of greater relevance and importance, enshrined constitu-

tionally as well as in various international legal instruments about human rights.For the purpose of the n.º 1 of the this publication, launched by the 5th anniversary of the Regional

Health Inspection of the Azores, I intend, with this paper, to take a brief description of the main legal and legislative instruments governing protection of personal data, both within the European Union and Portugal, including the future framework of the reform initiated by the European Commission in 2012. I also specify how, in the current legislation, the personal data can be used for the purpose of historical, statistic and scientific research. In the end, I will be present as an example the cancer registries, structures that, by the nature of their function, specifically make use of personal and health data, classified as sensitive from the confidentiality viewpoint.

Sumário: I. Enquadramento legal; II. A revisão proposta pela Comissão Europeia; III. O tratamento de dados pessoais para determinados fins; IV. O caso concreto dos registos de cancro europeus; V. Nota final

Palavras-chave: proteção de dados; privacidade; tratamento de dados; registo de cancro europeus.

Keywords: data protection; privacy; data protection; european cancer register.

(*) Responsável pelo Registo Oncológico da Região Açores — Centro de Oncologia dos Açores

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I. Enquadramento legal

O conceito do direito à protecção da vida pri-vada, que virá a materializar o direito à protecção dos dados pessoais, surge pela primeira vez num instrumento jurídico internacional em 1948, mais concretamente na Declaração Universal dos Direi-tos do Homem, considerado um dos documentos fundadores dos direitos humanos (1). No seu artigo 12.º pode ler-se: “ninguém sofrerá intromissões ar-bitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a protecção da lei.” Apesar de desprovida de força legislativa, esta De-claração tem sido sempre uma referência no pro-cesso jurídico e legislativo de todos os instrumen-tos sobre direitos humanos na Europa (2).

Em 1949, a criação do Conselho da Europa (3), que tem como missão a promoção da democra-cia e do Estado de direito, a protecção dos direitos humanos e o desenvolvimento social na Europa, levou a que os seus Estados-Membros fundadores (Bélgica, Dinamarca, França, Irlanda, Itália, Lu-xemburgo, Noruega, Países Baixos, Reino Unido e Suécia) lançassem a Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Funda-mentais, mais conhecida por Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) (4). Tal iniciativa resultou da necessidade de existir um acordo que traduzisse o empenho do Conselho na instituição e prossecução dos direitos humanos a nível da Eu-

(1) Adoptada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas na sua Resolução 217A (III) de 10 de Dezembro de 1948. A primeira tradução oficial para Português foi feita em Diário da República, I Série A, n.º 57/78, de 9 de Março.(2) European Union Agency for Fundamental Rights. Handbook on European data protection law. Brussels, 2014; p. 14.(3) Organização internacional estabelecida em Estrasburgo a 5 de Maio de 1949 e composta actualmente por 47 Estados, incluindo os 28 Estados-Membros da União Europeia. (4) Council of Europe, European Convention on Human Rights. Strasbourg, 1950. A versão Portuguesa, não oficial, está disponível em http://www.echr.coe.int/Documents/Convention_POR.pdf (acedido a 11-04-2016).

ropa, decerto inspirado na mencionada Declaração Universal. Todos os Estados-Membros do Conse-lho da Europa são obrigados a dar cumprimento à CEDH, através da sua incorporação no respec-tivo direito nacional. Parte da função do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, criado em 1959, passa por garantir que os Estados-Membros signa-tários cumprem com o estipulado na Convenção.

Para além de manter a garantia que se deve dar à protecção da vida privada, a CEDH refere já a possibilidade de ingerência na esfera privada desde que tal esteja previsto na lei e se constitua como providência necessária à protecção da saúde (5). De certo modo, vislumbra-se já aqui algo que virá a ser desenvolvido muito mais tarde e que se prende com a possibilidade de os dados pessoais serem su-jeitos a tratamento para determinados fins, desde que tal esteja devidamente enquadrado na lei.

Na década de 70, o direito à protecção da vida privada foi consagrado na Constituição da Repú-blica Portuguesa (6), por sinal a primeira a nível mundial a proteger expressamente os dados pes-soais, apesar dos pressupostos desta protecção te-rem sido progressivamente especificados em três das sete revisões a que a Lei Fundamental foi sujei-ta, desde a sua aprovação em 2 de Abril de 1976 (7). Em Portugal, o compromisso com a protecção da vida privada começou, deste modo, a tomar forma, não obstante a inexistência de legislação específica para a protecção dos dados pessoais, legislação essa que só virá a conhecer a luz do dia cerca de duas décadas mais tarde (ver adiante).

Com vista a melhor caracterizar e definir o direito pelo respeito à vida privada no âmbito do processa-mento automatizado dos dados de carácter pessoal, o Conselho da Europa abre à assinatura dos seus

(5) Cf. artigo 8.º da Convenção. (6) Cf. artigo 35.º (Utilização da informática).(7) O artigo 35.º foi revisto e alterado na primeira, segunda e quarta revisão constitucional (respectivamente, Lei n.º 1/82, de 30 de Setembro, Lei n.º 1/89, de 8 de Julho e Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro).

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PROTECÇÃO DE DADOS PESSOAIS: CONCILIAR DIREITOS COM INTERESSES PÚBLICOS

Estados-Membros, a 28 de Janeiro de 1981, a co-nhecida Convenção 108 (8), que virá a constituir-se como um documento de referência para o posterior enquadramento legislativo sobre esta matéria nos Estados-Membros signatários. Apesar de Portugal só a ter aprovado e ratificado em 1993 (9), a publica-ção, em 1991, daquela que virá a ser a primeira lei portuguesa de protecção de dados pessoais – Lei n.º 10/91, de 29 de Abril (10) – foi profundamente inspi-rada nesta Convenção.

Na década de 90, a defesa da vida privada e da protecção dos dados pessoais conhece um novo instrumento legislativo com a adopção, pelo Parla-mento Europeu e pelo Conselho da União Europeia, da Directiva 95/46/CE (11). Este documento regula, pela primeira vez, a protecção de dados a nível da União Europeia, tendo como fins, entre outros, a harmonização nos seus Estados-Membros da res-pectiva legislação a ser produzida (12). Através da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro (Lei de Protecção de Dados Pessoais), Portugal transpõe para o ordena-mento jurídico interno o estipulado nesta Directiva, revogando assim a Lei n.º 10/91, de 29 de Abril.

Finalmente, a 7 de Dezembro de 2000, é procla-mada a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia pelo Parlamento Europeu, pelo Conselho Europeu e pela Comissão Europeia, que consagra a protecção dos dados pessoais como um direito fun-damental. Os Artigos 7.º e 8.º da Carta, juntamente com o Artigo 16.º do Tratado sobre o funcionamen-to da União Europeia (13) formam, presentemente, a (8) Conselho da Europa, Convenção para a Protecção das Pessoas relativamente ao Tratamento Automatizado de Dados de Carácter Pessoal, Estrasburgo, 1981.(9) Resolução da Assembleia da República n.º 23/93, de 12 de Maio.(10) Esta lei sofreu algumas alterações com a Lei n.º 28/94, de 29 de Agosto, que aprova medidas de reforço da protecção de dados pessoais.(11) Parlamento Europeu, Protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados – Directiva 95/46/CE, de 24 de Outubro de 1995. Luxemburgo, 1995.(12) À data, a Alemanha e a Suécia eram os únicos países europeus a dispor já de legislação relativa à protecção de dados, desde 1970 e 1973, respectivamente.(13) Artigo introduzido pelo Tratado de Lisboa.

base jurídica para a adopção das regras em matéria de protecção de dados.

II. A revisão proposta pela Comissão Europeia

A harmonização que se pretendia ver instituída nos Estados-Membros com a Directiva 95/46/CE resultou, no entanto, numa fragmentação na pró-pria execução da protecção dos dados pessoais na União Europeia, passando cada Estado-Membro a ter a sua própria legislação, ainda que inspirada numa única Directiva. Tal levou à criação de inú-meros obstáculos na circulação dos dados pessoais, nomeadamente entre empresas, à excessiva buro-cratização do processo de autorização para recolha e tratamento desses mesmos dados e a dispendiosos encargos administrativos.

A revisão da Directiva tornou-se assim imperativa e em 25 de Janeiro de 2012 a Comissão Europeia, à luz da rápida evolução tecnológica e da globali-zação, apresentou duas iniciativas de carácter le-gislativo com vista à reforma e modernização da protecção dos dados pessoais na União Europeia: uma proposta de Regulamento sobre a protecção de dados (destinada a substituir a Directiva 95/46/CE) e uma proposta de Directiva sobre a protecção de dados no domínio policial (destinada a substituir a Decisão-Quadro 2008/977/JAI) (14). No que se refere à primeira, destacam-se as seguintes inovações (15):

— O Regulamento, ao contrário de uma Directiva, tem força de lei a partir do momento que é publica-do no Jornal Oficial da União Europeia, ficando os Estados-Membros obrigados a aplicá-la. Para além (14) No presente artigo consideramos somente a proposta de Regulamento, disponível em http://register.consilium.europa.eu/doc/srv?f=ST+5853+2012+INIT&l=pt (acedido a 11-04-2016).(15) Calvão F., «O modelo de supervisão de tratamento de dados pessoais na União Europeia: da atual Diretiva ao futuro Regulamento», Comissão Nacional de Protecção de Dados. Forum de Protecção de Dados, n.º 1, Lisboa, 2015, p. 36-48; European Commission, Questions and Answers: Data protection reform – Fact Sheet, Brussels, 2015.

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de poupar os mesmos à transposição para o direi-to nacional, passará a existir uma única legislação para a protecção de dados ao nível dos 28 países da União Europeia;

— Todo o indivíduo ou entidade, público ou privado, incluindo subcontratante (16), que seja de-tentor de dados pessoais de terceiros, passa a ser responsável, por defeito, pela protecção dos mes-mos. Isto significa que uma eventual violação de dados (17), como é o caso do acesso indevido não previsto por lei, será da sua responsabilidade. Se tal ocorrer, o titular dos dados poderá reclamar junto da autoridade de controlo ou mesmo recorrer ju-dicialmente. Os responsáveis pelo processamento/tratamento dos dados podem incorrer em multas que poderão ascender a 4% do volume total de ne-gócios anual;

— É reforçada a primazia do consentimento do titular para o tratamento dos seus dados pessoais, devendo aquele ser o mais explícito possível e ba-seado em informação simples e facilmente com-preensível, nomeadamente através de logótipos e ícones normalizados;

— Passa a existir, por parte do titular dos dados, o direito a ser esquecido. Assim, em qualquer altura, poderá requerer a eliminação da sua informação pessoal de qualquer base de dados ou rede social. Exceptuam-se aqui os casos onde o titular deu o consentimento para a publicação dos seus dados, a qual, uma vez efectivada, torna-se irreversível (18);

— Passa também a existir, por parte do titular dos dados, o direito à portabilidade, isto é, à transmis-são dos seus dados de uma plataforma ou prestador de serviços (e.g., rede social ou operador telefóni-co) para outra, o que reforçará o mercado concor-rencial, beneficiando, em último lugar, o próprio (16) Um exemplo é o dos fornecedores de serviços em nuvem (‘cloud providers’).(17) No inglês ‘data breach’.(18) Como veremos mais à frente, estão previstas excepções em relação não só a este direito como a outros, os quais, a serem mantidos como absolutos, impossibilitariam qualquer tipo de investigação para fins históricos, estatísticos ou científicos.

titular, aqui visto como consumidor;— A notificação geral à autoridade de controlo

(19), que deve ser feita antes do tratamento de dados, deixa de ser obrigatória, mas é imposta, contudo, a obrigação de notificação de violações dos dados pessoais.

Em Dezembro de 2015, após três anos de nego-ciações, o Parlamento Europeu e o Conselho che-garam a um acordo em matéria de redacção final da proposta apresentada pela Comissão Europeia, prevendo-se agora a sua aprovação em meados de 2016 e a sua aplicação em meados de 2018 (20).

Com este novo quadro legislativo (Regulamento e Directiva) serão actualizados e modernizados os princípios estabelecidos na Directiva 95/46/CE e na Decisão-Quadro 2008/977/JAI, estimando-se uma poupança anual com os encargos adminis-trativos na ordem dos €2.3 mil milhões, algo que também contribuirá para reforçar a oportunidade de negócios no chamado mercado único digital (21).

III. O tratamento de dados pessoais para determinados fins

Ocupámo-nos até aqui da descrição dos prin-cipais instrumentos jurídicos e legislativos que regem a protecção dos dados pessoais na União Europeia e em Portugal e da referência à reforma iniciada pela Comissão Europeia em 2012, que ra-pidamente caminha para a sua conclusão, não obs-tante ter de se aguardar até 2018 pela sua efectiva aplicação. De seguida passamos a salientar o que nos instrumentos citados se refere mais concreta-

(19) No caso de Portugal falamos da Comissão Nacional de Protecção de Dados.(20) Para consulta só está disponível a Proposta original da Comissão Europeia, de 25 de Janeiro de 2012, bem como o Relatório da Comissão das Liberdades Cívicas, da Justiça e dos Assuntos Internos, de 21 de Novembro de 2013, referente à aprovação, em primeira leitura, do projecto de resolução legislativa do Parlamento Europeu sobre a proposta da Comissão.(21) European Commission, Questions and Answers: Data protection reform – Fact Sheet. Brussels, 2015.

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PROTECÇÃO DE DADOS PESSOAIS: CONCILIAR DIREITOS COM INTERESSES PÚBLICOS

mente ao tratamento de dados pessoais para fins de investigação histórica, estatística e científica, objec-to do presente artigo.

Com excepção do direito à vida, considerado como inviolável na Lei Fundamental (22), quaisquer outros direitos devem ter sempre em linha de conta a articulação entre o bem individual e o bem co-mum. Este argumento garante que determinadas matérias, ainda que pertençam à esfera privada, não deixem de poder ser tratadas, sobretudo quan-do daí vem um benefício maior para a sociedade e, claro, para o sujeito em particular. No que respeita à protecção dos dados pessoais, convém assim que haja um justo equilíbrio entre o respeito pela auto-nomia e pelo direito à vida privada e o interesse e utilidade que poderá decorrer do tratamento des-ses mesmos dados. Na secção seguinte retomare-mos este tema, trazendo aqui o caso concreto dos registos de cancro. Por agora, focar-nos-emos nos princípios gerais que deverão orientar o tratamento de dados pessoais por entidades públicas ou priva-das e das obrigações a que as mesmas estão sujeitas, baseados na legislação em vigor.

Tomando como referência a já citada Convenção 108 do Conselho da Europa (23), os dados pessoais que sejam objecto de tratamento automatizado deverão ser, no que concerne à sua qualidade, 1) obtidos de forma leal e lícita, 2) registados para fins específicos e legítimos, não podendo ser uti-lizados de forma incompatível com esses fins, 3) adequados, pertinentes e não excessivos em rela-ção às finalidades para as quais foram registados, 4) exactos e actualizados sempre que necessário e 5) conservados de maneira a permitir a identificação individual por tempo somente necessário aos fins para que são registados (24). Por outro lado, no que (22) Cf. n.º 1 do artigo 24.º.(23) Que alguns consideram poder ser elevada a norma universal, dado o seu carácter aberto a qualquer país, mesmo que não seja membro do Conselho.(24) Cf. artigo 5.º da Convenção 108 do Conselho da Europa. O artigo 12.º da Lei n.º 10/91, o artigo 6.º da Directiva 95/46/CE e o artigo 5.º da Lei n.º 67/98 (actualmente em vigor) preservam, com algumas

respeita a dados de especial categoria, a Convenção 108 aponta como informação particularmente sen-sível (que, por isso, deverá ser alvo de especial pro-tecção), os dados que revelem 1) a origem racial, 2) as opiniões políticas, 3) as convicções religiosas ou outras, 4) o estado de saúde ou vida sexual e 5) eventuais condenações penais (25).

Os dois princípios atrás enunciados (qualidade dos dados e dados de especial categoria ou dados ditos ‘sensíveis’) norteiam, por um lado, os fins do tratamento da informação e, por outro, clarificam qual o tipo de informação a que se deve prestar maior atenção, dada a complexidade e delicadeza da mesma. Interessa-nos agora salientar, à luz da legislação, o modo como entidades do sector pú-blico ou privado poderão vir a tratar e processar dados de saúde (objecto da presente exposição e incluídos, como vimos, na categoria de dados ‘sen-síveis’), para um determinado fim.

Comecemos pela actual Constituição, cuja pri-meira versão (1976) é anterior à Convenção 108 (1981). Naquela se refere que a lei deverá, por um lado, definir as condições por que se deve reger o tratamento automatizado dos dados e, por outro, prever as situações em que o tratamento se poderá dar sem que seja necessário o consentimento ex-presso do titular (26). Se tal não fosse previsto na Lei Fundamental, qualquer tratamento de dados pes-soais sem autorização prévia do seu titular seria, virtualmente, impossível. A já mencionada Lei n.º 10/91, de 29 de Abril (com as alterações introduzi-das pela Lei n.º 28/94, de 29 de Agosto), inspirada quer na Constituição quer na Convenção, mate-rializa este preceito constitucional ao referir que o tratamento automatizado dos dados pessoais refe-rentes a estado de saúde pode ser realizado por ser-viços públicos mediante autorização por lei especial

nuances, os mesmos princípios relativos à qualidade dos dados.(25) Cf. artigo 6.º da Convenção 108 do Conselho da Europa. Na Lei n.º 10/91, na Directiva 95/46/CE e na Lei n.º 67/98 tais matérias são tratadas, respectivamente, no artigo 11.º, no artigo 8.º e no artigo 7.º. (26) Cf. n.º 2 e n.º 3 do artigo 35.º.

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e com parecer prévio da então designada Comissão Nacional de Protecção de Dados Pessoais Informa-tizados (27). Em vigor temos actualmente a Lei n.º 67/98, decorrente da transposição para o direito nacional da Directiva 95/46/CE, que é clara ao afir-mar que o tratamento de dados como os de saúde é possível desde que haja enquadramento legal para tal (e.g., para fins de cumprimento de atribuições legais ou estatutárias do seu responsável) ou autori-zação pela Comissão Nacional de Protecção de Da-dos (28). Para além destes requisitos, as entidades de tratamento de dados deverão garantir ao titular dos mesmos o direito de acesso à informação para fins de rectificação/actualização ou mesmo eliminação dos dados (29). Note-se, contudo, que a rectificação/actualização só podem ser invocadas quando os dados são incompletos ou inexactos e que a elimi-nação (medida irreversível) só pode ser requerida quando os mesmos estão a ser conservados/trata-dos de modo incompatível com os  fins legítimos (30). Como a seguir veremos, isto faz pleno sentido pois caso contrário passaria a haver a possibilidade de qualquer titular de dados requerer, por exem-plo, a uma estrutura como um registo de cancro, mesmo quando legitimamente constituído, a eli-minação da sua informação da respectiva base de dados, desvirtuando o próprio objectivo do registo e enviesando qualquer resultado por si produzido.

No novo Regulamento proposto pela Comissão, mantém-se a possibilidade de tratamento de dados pessoais para determinados fins (artigo 6.º), sendo que os especificamente relacionados com a saúde ficam sujeitos ao estipulado no artigo 81.º e os que se destinam à investigação histórica, estatística e científica ao estipulado no artigo 83.º.

(27) Substituída pela Comissão Nacional de Protecção de Dados aquando da entrada em vigor da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro.(28) Cf. n.º 2 do artigo 7.º.(29) O “direito ao esquecimento” consagrado na nova proposta de Regulamento da Comissão Europeia vem evidenciar e reforçar ainda mais esta possibilidade.(30) Cf. n.º 2 do artigo 50.º da Lei 67/98.

IV. O caso concreto dos registos de cancro europeus

O registo de cancro refere-se à colheita contínua e sistemática da informação inerente a um diag-nóstico de cancro, com o fim último de se conhecer a distribuição da doença na população, normal-mente através da publicação de relatórios contendo as estatísticas oficiais de incidência, mas também através da participação em estudos epidemiológi-cos, sejam estes descritivos ou analíticos. O cum-primento deste objectivo é crucial para o papel que os registos de cancro desempenham no controlo e combate à doença, algo que nenhuma outra estru-tura ou instituição poderá ou conseguirá satisfazer. Assim, aspectos fundamentais como o conheci-mento das causas do cancro, a monitorização de programas de rastreio organizado e a avaliação do impacto da introdução de novas modalidades tera-pêuticas, só estão assegurados quando o registo da doença oncológica está devidamente implementa-do e em funcionamento (31).

Em Portugal, com a publicação da Portaria n.º 35/88, de 16 de Janeiro, os então chamados Centros Regionais do Instituto Português de Oncologia de Francisco Gentil serviram de sede à implementa-ção dos Registos Oncológicos Regionais de Lisboa, do Porto e de Coimbra (actualmente designados, respectivamente, por ROR-SUL, RORENO e ROR-CENTRO). Entre nós, o Registo Oncológico da Re-gião Açores (RORA) é criado através da Portaria n.º 36/93, de 15 de Julho, apesar de somente em 2007 se terem criado as condições necessárias ao seu fun-cionamento (32). Qualquer uma destas estruturas está autorizada pela Comissão Nacional de Protec-ção de Dados a registar dados pessoais e de saúde para fins de registo oncológico (isto é, estatísticos e

(31) Parkin D. M., «The role of cancer registries in cancer control», Int. J. Clin. Oncol., 2008, 13, pp. 102-11.(32) Centro de Oncologia dos Açores, Incidência do Cancro na Região Autónoma dos Açores 2000-2002, Angra do Heroísmo, 2008, p. 11.

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PROTECÇÃO DE DADOS PESSOAIS: CONCILIAR DIREITOS COM INTERESSES PÚBLICOS

científicos) (33). Dos dados registados normalmente constam as seguintes variáveis: identificação pes-soal do doente (e.g., nome, data de nascimento, nº de identificação, residência), informação clínica da doença (e.g., data do diagnóstico, localização do tumor, tipo de tumor, base de diagnóstico, estadia-mento) e fonte de onde os dados são originários (e.g., hospital, laboratório, certificado de óbito). Por aqui se vê como é absolutamente crucial poder ter a possibilidade de receber ou aceder aos dados pessoais e de saúde, já que de outro modo seria impossível distinguir informação proveniente de diferentes fontes, ainda que respeitante ao mesmo indivíduo. A título de exemplo, vejamos o caso de um diagnóstico de cancro de mama: 1) a suspeita clínica do tumor poderá ocorrer durante uma pri-meira consulta, 2) a punção aspirativa ao nódulo mamário poderá ocorrer num laboratório priva-do, 3) a biópsia para confirmação do resultado da punção poderá ocorrer num hospital público e 4) a mastectomia ou tumorectomia poderá, finalmen-te, realizar-se num hospital privado. Temos assim quatro momentos distintos, mas sempre respeitan-tes ao mesmo caso de cancro de mama. Encontran-do-se o registo de cancro impossibilitado de aceder à informação pessoal e de saúde (cenário hipotéti-co mas ainda assim possível, como se pode ver pelo exemplo da Estónia, adiante apresentado), este caso seria contabilizado quatro vezes, desvirtuando qual-quer estatística a ser produzida pelo registo.

Há muito que os registos de cancro viram na confidencialidade dos dados por si registados e na importância de adoptar medidas especiais de protecção algo fundamental para a sua credibilização junto das autoridades que os tutelam, dos legisladores, da comunidade científica e dos cidadãos em geral. Aliás, é interessante ve-rificar como os primeiros registos de cancro (e.g., Hamburgo, Alemanha, em 1929 ou Connecticut,

(33) No caso do RORA, cf. autorização n.º 157/2008, de 21 de Janeiro, daquela Comissão.

EUA, em 1939) tratavam esta questão: ao invés de possuírem normas próprias para os dados que re-gistavam, a informação notificada pelos médicos aos registos de cancro era vista como uma extensão do cuidado ao doente, devendo por isso ser sujei-ta ao mesmo nível de confidencialidade e protec-ção de que gozavam os próprios registos médicos e clínicos (34). Desde então, a evolução tem sido no sentido de distinguir os dados usados para fins mé-dicos dos dados usados para fins históricos, estatís-ticos ou científicos, nos quais se enquadram os aqui em causa (35). Contudo, tal não alterou a obrigação de sigilo a que qualquer profissional de registo de cancro está sujeito no cumprimento das suas fun-ções. A este respeito, a Lei de Protecção de Dados Pessoais é categórica: “os responsáveis do tratamen-to de dados pessoais, bem como as pessoas que, no exercício das suas funções, tenham conhecimento dos dados pessoais tratados, ficam obrigados a sigilo profissional, mesmo após o termo das suas funções” (36). Também as actuais orientações para os registos que são membros da European Network of Cancer Registries abordam esta temática de forma muito rigorosa e exaustiva, com o devido enquadramento legal e científico (37).

Poder-se-á argumentar que o indivíduo perde alguma autonomia ao não poder exercer o direi-to de autorizar ou não o registo da sua informação pessoal e de saúde numa estrutura como um regis-to de cancro (38). Sobre esta matéria, um Euroba-rómetro realizado em 2015 para sondar a opinião

(34) Coleman M. P., Muir C.S., Ménégoz F., «Confidentiality in the Cancer Registry», Br. J. Cancer, 1992, 66, pp. 1138-49. (35) Cf. por exemplo alíneas b) e c) do artigo 6.º e n.º 3 do artigo 8.º da Directiva 95/46/CE. (36) N.º 1 do artigo 17.º. (37) Storm H., Buiatti E., Hakulinen T., Ziegler H., «Guidelines on confidentiality in population-based cancer registration in the European Union», Standards and Guidelines for Cancer Registration in Europe. The ENCR Recommendations, vol. I., Tyczynski J.E., Démaret E., Parkin D.M., eds., (IARC Technical Publication No. 40), Lyon, 2003, pp. 27-50. (38) Não esquecer, contudo, que existe o direito à rectificação/actualização e eliminação da informação, conforme já referido anteriormente.

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dos cidadãos relativamente à protecção dos seus dados pessoais aponta as instituições de saúde e médicas (como é o caso de um registo de cancro) como aquelas que merecem a sua maior confian-ça (39). Também no Reino Unido, um inquérito na-cional conduzido em 2005 concluiu que 83% dos inquiridos era a favor da existência de legislação que autorizasse o registo de cancro a receber dados pessoais e de saúde, para fins de investigação em saúde pública e sem necessidade de consentimento por parte dos titulares dos dados (40).

Como já mencionado, a aplicação da Directiva 95/46/CE a nível dos Estados-Membros não foi uniforme. Enquanto Estados houve, nomeadamen-te Portugal, onde a transposição para o direito na-cional não afectou a actividade de instituições ou estruturas responsáveis pelo tratamento de dados pessoais, como é o caso dos registos de cancro, ou-tros houve em que a interpretação da Directiva foi feita à luz de uma posição mais restritiva, dir-se-ia até ideológica, em termos de acesso e tratamento deste tipo de dados. Este foi claramente o caso da Estónia, onde a simples suspeita, até hoje por fun-damentar, de existirem casos de pagamentos em numerário em troca, por exemplo, de informação clínica levou a que o Ministério do Interior, através do Departamento de Protecção de Dados (actual Inspecção de Protecção de Dados), restringisse ao máximo o uso de informação pessoal para qual-quer tipo de fim, com a agravante de tal posição ter sido espelhada na própria legislação (41). A primei-ra lei neste país a enquadrar a protecção de dados pessoais é de 1996 e já aqui se encontra inúmeros obstáculos ao tratamento dos dados. Esperava-se, contudo, que, aquando da sua revisão, ocorrida em

(39) Comissão Europeia, Eurobarómetro n.º 83.1., 2015. (40) Barret G., Cassell J. A., Peacock J. L., Coleman M. P., «National survey of British public’s views on use of identifiable medical data by the National Cancer Registry», BMJ, 332, 2006, pp. 1068-72. (41) Rahu M., McKee M., «Epidemiological research labelled as a violation of privacy: the case of Estonia», Int. J. Epidemiol., 2008, 37, pp. 678-82.

2003, o Ministério do Interior de certo modo flexi-bilizasse as suas posições e, sobretudo, valorizasse algo tão fundamental como é o uso da informação para fins de interesse público. No decorrer deste processo de revisão da lei de 1996 foram promo-vidos debates e publicados artigos por investiga-dores de renome, bem como lançada uma petição envolvendo 14 instituições, com vista a sensibilizar a opinião pública e os próprios governantes para a importância da revisão legislativa ser mais favorá-vel ao uso da informação pessoal. No final prevale-ceu a posição da Inspecção de Protecção de Dados, cujos fundamentos apresentados revelam bem a natureza das suas preocupações: por um lado con-sidera que o uso da informação pessoal para fins estatísticos e de investigação não cabe no âmbito de uma legislação de protecção de dados (em nenhum outro Estado-Membro se verifica tal interpretação) e por outro foi impelida a dificultar a existência de registos contendo dados pessoais pela simples ra-zão de haver pessoas em altos cargos governativos que não queriam que a sua informação individual fosse registada. Uma das estruturas mais afectadas por esta legislação foi precisamente o Registo de Cancro da Estónia.

Fundado em 1978, este Registo já chegou a ser re-conhecido a nível internacional pela qualidade dos seus dados e pelo contributo para o planeamento dos serviços de saúde. Com a criação da lei de pro-tecção de dados (sobretudo a revisão de 2003) pas-sou a ser impossível, por exemplo, o cruzamento dos dados do Registo com os dados da mortalida-de bem como a revisão da informação clínica (i.e., processo clínico) para efeitos de validação dos ca-sos notificados ao Registo. Ambos estes processos contribuem consideravelmente para a qualidade da informação registada e, em última análise, dos resultados produzidos (42). No caso do cruzamento

(42) Note-se que os registos de cancro de base populacional são responsáveis por produzir dois importantes indicadores de saúde: incidência e sobrevivência. Nenhuma outra estrutura detém tal competência.

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PROTECÇÃO DE DADOS PESSOAIS: CONCILIAR DIREITOS COM INTERESSES PÚBLICOS

com a informação da mortalidade, a consequência mais directa foi o aumento (artificial) da sobrevi-vência por cancro no País (43).

Com o exemplo acima apresentado ficamos bem cientes de como algo tão fundamental para o pro-gresso de um país pode ser corrompido por posi-ções ideológicas e de interesse, que nada têm que ver com o fim para que a lei deverá ser criada. O que reforça ainda mais a importância do futuro Re-gulamento enquadrar devidamente estas matérias, algo que chegou a ser ameaçado.

No tempo decorrido entre o anúncio da reforma do regime de protecção de dados feito pela Comis-são Europeia e a sua aprovação pelo Parlamento Europeu, várias foram as vozes que se levantaram contra a perspectiva da nova legislação poder vir a criar sérios obstáculos ao tratamento de dados pes-soais para fins históricos, estatísticos ou científicos. Em causa estava sobretudo as alterações que foram propostas aos artigos 81.º e 83.º pela Comissão de Liberdades Cívicas, Justiça e Assuntos Internos do Parlamento Europeu (LIBE), em Outubro de 2013 (44). Tais alterações obrigariam ao consentimen-to prévio do titular dos dados mesmo quando em causa estivessem estudos históricos, estatísticos ou científicos, de enorme utilidade pública.

Na sequência destas propostas, a Science Euro-pe publicou uma carta aberta em Agosto de 2014, assinada por 28 cientistas representantes de várias instituições de investigação a nível europeu, entre os quais o então Presidente da Fundação para a Ciência e Tecnologia, Prof. Doutor Miguel Seabra, apelando à não inclusão na proposta final do Re-gulamento das alterações avançadas pela LIBE (45).

(43) Coleman M.P., Gatta G., Verdecchia A., et al. «EUROCARE-3 summary: cancer survival in Europe at the end of the 20th century», Ann. Oncol., 2003, 14, pp. 128-49. (44) O artigo 81.º obriga os Estados-Membros, para além das condições aplicáveis a categorias especiais de dados, a assegurar garantias específicas para o tratamento de dados no domínio da saúde. O artigo 83.º estabelece condições específicas para o tratamento de dados pessoais para efeitos de investigação histórica, estatística e científica. (45) Science Europe, EU Data Protection Regulation: Vital economic

Também a própria European Network of Cancer Re-gistries, numa clara antevisão do problema, já havia circulado em Junho de 2012 uma carta a todos os registos membros a apelar para que estes se posi-cionassem a favor da manutenção dos artigos 81.º e 83.º, tal como apresentados na sua versão original. Estas e outras petições (46), incluindo recomenda-ções feitas pela própria Science Europe (47), parecem ter dado os seus frutos já que, no final, as negocia-ções interinstitucionais em trílogo (48) tiveram em linha de conta os contributos provenientes das re-feridas petições tendo, em princípio, sido aprovado um Regulamento que mantém as excepções para toda e qualquer investigação de cariz histórico, es-tatístico ou científico (49).

V. Nota final

Apraz-nos registar que o futuro enquadramento legal da protecção de dados a nível da União Eu-ropeia conduzirá não só a um reforço na protec-ção dos direitos dos seus cidadãos, mas também a uma clarificação e harmonização das regras a apli-car em todos os Estados–Membros, sem prejuízo de se manter um elevado nível de investigação em áreas tão importantes como a da saúde pública bem como o funcionamento de estruturas vitais como são os registos de cancro.

Na prática, do ponto de vista da investigação

and social research could be prevented, Brussels, 2014.(46) Cf. Wellcome Trust. Protecting health and scientific research in the Data Protection Regulation – Position of non-commercial research organisations and academics, United Kingdom, 2014.(47) Science Europe, Science Europe Position Statement on the Proposed European General Data Protection Regulation. Brussels, 2013, pp. 8-9.(48) Reuniões informais sobre propostas legislativas entre representantes do Parlamento, do Conselho e da Comissão com vista a um acordo sobre alterações a essas mesmas propostas. Cf. Direção-Geral das Políticas Internas da União, Codecisão e Conciliação – Guia sobre o Parlamento Europeu enquanto colegislador no âmbito do processo legislativo ordinário. Estrasburgo, 2014; p. 20. (49) Conselho Europeu, Reforma da proteção de dados na UE: Conselho confirma acordo com Parlamento Europeu. Comunicado de Imprensa 951/15, de 18 de Dezembro, disponível em http://www.consilium.europa.eu/pt/press/press-releases/2015/12/18-data-protection/ (acedido a 11-04-2016).

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científica, manter a possibilidade de se tratar dados pessoais e de saúde sem que para tal seja necessá-rio o consentimento dos seus titulares, garantindo sempre as regras de segurança e de sigilo profis-sional a que se fica sujeito, só contribuirá, no final, para um melhor planeamento dos cuidados de saú-de e para o avanço da ciência e da medicina.

A protecção dos dados pessoais deverá manter-se sempre como um direito fundamental dos ci-dadãos, não obstante a possibilidade, enquadrada legalmente, de se poder vir a fazer uso dos mesmos para fins que acabam por ser do interesse dos pró-prios cidadãos.

Artigo escrito com a ortografia prévia ao Acordo Ortográfico de 1990

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ALGUMAS DAS PRINCIPAIS QUESTÕES EM REDOR DA RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICASome of the main issues around the civil liability in medicine

Rui Pestana de Almeida (*)

Resumo1

A responsabilidade civil pela prática de atos médicos coloca múltiplas questões e convoca dife-rentes temáticas que revelam a riqueza deste instituto. Questões como a competência do tribunal; a espécie de responsabilidade civil (contratual ou extracontratual) a aplicar no caso de atos médi-cos praticados em hospitais públicos; a natureza jurídica das obrigações assumidas pelo médico; conceitos nucleares em redor da culpa e da violação dos deveres objetivos de cuidado; são algumas das questões que nos propomos a examinar, sem pretensões de exaustividade. Pretendemos, mo-destamente, descrever as principais normas e tendências jurisprudenciais em redor do tema da responsabilidade civil na prática de atos médicos.

AbstractThe liability born of the practice of medical procedures poses multiple questions and calls for diffe-

rent themes that reveal the richness of this institute. Issues such as jurisdiction of the court ; what type of liability (contractual or tort law) apply in the case of medical acts performed in public hospitals; the legal nature of the obligations assumed by the physician; the core concepts around the malpractice and the violation of duties of care; are some of the issues that we propose to examine, without claiming to be exhaustive. We modestly pretend to describe the main rules and jurisprudential trends around the civil liability in the practice of medical acts.

Sumário: I. Introdução; II. A responsabilidade civil; III. Concurso de tipos de responsabilidade civil; IV. Tribunal competente; V. A responsabilidade civil e o ato médico; VI. A culpa em especial; VII. O ato médico: obrigação de meios e obrigação de resultado; VIII. Conclusão

Palavras-chave: responsabilidade civil, responsabilidade contratual, responsabilidade extracon-tratual, concurso de responsabilidades, tribunal competente, leges artis, obrigação de meios, obri-gação de resultados.

Keywords: civil liability, contract liability, tort law, concurrent liability, court jurisdiction, leges artis, obligation of means, obligation as to the result to achieve.

(*) Jurista da Comissão de Ética do Hospital de Santo Espírito da Ilha Terceira, EPER.

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I. Introdução

Em Portugal a relação médico-paciente não é re-gulada por lei especial. Os diretos e os deveres dos pacientes encontram-se previstos na Lei de Bases da Saúde (base XIV da Lei n.º 48/90, de 21 de agos-to, com as alterações da Lei n.º 27/2002, de 8 de novembro). Encontram-se também no Código Pe-nal e noutros diplomas de direito da saúde e estão sintetizados na Carta dos Direitos e Deveres dos Utentes, carta essa que não tem força vinculativa.

Apontam-se como exemplos de diplomas do di-reito da saúde, as Leis de Proteção de Dados Pes-soais (Lei n.º 67/98, de 26 de outubro), da Informa-ção Genética Pessoal e Informação de Saúde (Lei n.º 12/2005, de 26 de janeiro), da Investigação Clínica (Lei n.º 21/2014, de 16 de abril que revogou a Lei n.º 46/2004, de 19 de agosto), dos Transplantes de Órgãos e Tecidos (Lei n.º 12/93, de 22 de abril, com alterações de 2007, 2009 e 2013), da Saúde Mental (Lei n.º 36/98, de 24 de julho, com alteração de 99), da Educação Sexual e Planeamento Familiar (Lei n.º 3/84, de 4 de março), da Procriação Medica-mente Assistida (Lei n.º 32/2006, de 26 de julho), da Exclusão da Ilicitude nos casos de Interrupção Voluntária da Gravidez (Lei n.º 16/2007, de 17 de abril), o Código Deontológico da Ordem dos Mé-dicos (Regulamento n.º 14/2009, de 13 de janeiro) e o Código Deontológico da Ordem dos Enfermei-ros (Decreto-Lei n.º 104/98, de 21 de abril, alterado pela Lei n.º 111/2009, de 16 de setembro)

Convém também lembrar os direitos fundamen-tais previstos na Constituição da República Portu-guesa — artigo 25º, direito à integridade moral e física e a Convenção dos Direitos do Homem e da Biomedicina, publicada no Diário da República, 1ª Série, de 3 de janeiro de 2001.

A responsabilidade médica abrange as modali-dades civil, penal e disciplinar. Trataremos da pri-meira, a responsabilidade civil, por ser a que talvez

possa levantar maiores dúvidas.

II. A responsabilidade civil

Na responsabilidade civil, cabe tanto a responsa-bilidade proveniente da falta de cumprimento das obrigações emergentes dos contratos, de negócios unilaterais ou da lei (responsabilidade contratual), como a resultante da violação de direitos absolu-tos ou da prática de certos atos que, embora lícitos, causam prejuízo a outrem (responsabilidade extra-contratual).

Sob vários aspetos, responsabilidade contratual e responsabilidade extracontratual funcionam como verdadeiros vasos comunicantes. Por um lado, elas podem nascer do mesmo facto e facilmente se transita do domínio de uma delas para a esfera normativa própria da outra. Por outro lado, é bem possível que o mesmo ato envolva para o agente (ou o omitente), simultaneamente, responsabilida-de contratual por violar uma obrigação e respon-sabilidade extracontratual por infringir ao mesmo tempo um dever geral de abstenção ou o direito absoluto correspondente, tal como é possível que a mesma ocorrência acarrete para o autor, quer res-ponsabilidade civil, quer responsabilidade crimi-nal, consoante o prisma sob o qual a sua conduta seja observada.

III. Concurso de tipos de responsabilidade civil

E será que na responsabilidade médica pode ha-ver concurso de responsabilidades?

Entre o médico e o paciente gera-se um con-trato consensual (artigo 219.º do Código Civil), marcadamente pessoal (o elemento decisivo é a confiança que o médico inspira ao doente e que tem como correlativo o princípio de livre escolha),

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ALGUMAS DAS PRINCIPAIS QUESTÕES EM REDOR DA RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA

de execução continuada, em regra sinalagmático e oneroso e sempre suscetível de rescisão.

Sem embargo da regra da natureza contratual da responsabilidade médica, existem casos em que a conduta do médico pode configurar uma situação de responsabilidade extracontratual, v.g., ofensas corporais, prática ilegal de aborto, violação de si-gilo profissional, bem como as situações em que os danos causados pelo médico no decurso do trata-mento não têm nenhuma conexão funcional com o mesmo.

O médico que realiza, por observação descuidada do paciente, um diagnóstico errado ou que descura negligentemente os cuidados técnicos adequados à operação, responde tanto obrigacionalmente por violação de um contrato de prestação de serviços médicos, como delitualmente por ofensa à integri-dade física do paciente (artigo 70.º, n.º 1 e artigo 483º, n.º1, ambos do Código Civil).

Nessa medida, importa averiguar se o doente - perante conduta do médico que integra simulta-neamente violação do contrato e ilícito extracon-tratual – poderá recorrer a ambas as tutelas ou se apenas a uma. Ou seja, poderá o lesado invocar si-multaneamente as normas correspondentes a uma e outra espécie de responsabilidade, consoante a que lhe seja mais favorável?

A questão não é nada despicienda entre nós, atentas as diferenças de regime entre a responsabi-lidade contratual e a extracontratual como veremos à frente.

Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, «A res-ponsabilidade médica em Portugal», BMJ nº 332, 1984, p. 40, raciocinam assim:“ (...) se as partes con-cluíram um contrato, isso significa que querem que para as relações entre elas valham apenas as regras que disciplinam esse contrato; a disciplina particular do contrato absorveria o regime mais geral da lei. Mas, em sentido contrário, pode-se argumentar que o facto de terem concluído um contrato não tem de

forma alguma de significar que se presuma terem querido renunciar à proteção que em geral lhes é garantida pela lei; dir-se-á até que a proibição ge-ral de lesar os direitos de outrem é individualizada e fortalecida pelo dever contratual visando o mesmo objetivo. (...) Pensamos que, na inexistência de uma norma que especificamente venha dizer o contrário, se deve aceitar, como a “solução natural”, a da con-corrência (rectius, cúmulo) de responsabilidade.

E, de facto, facultar ao lesado a escolha entre os regimes que melhor o protejam no caso concreto é a solução que melhor se coaduna com o princípio do favorecimento da vítima. Admitir que, ao abrigo de um contrato de prestação de serviços sui gene-ris, fossem impunes condutas que - na ausência de contrato - integrariam responsabilidade aquiliana, constituiria o paradigma da não proteção do doente. Pelo contrato, as partes não pretendem renunciar à proteção geral que a lei lhes confere: o que pretendem é criar uma proteção acrescida.”

A jurisprudência começou a pronunciar-se sobre a questão nos anos oitenta, dando a entender a ad-missibilidade da tese do concurso de responsabili-dades.

Mais recentemente foi expressamente admitido “o concurso de pretensões, por cumulação de respon-sabilidades” (acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 4.4.2005), admitiu-se a opção entre as duas responsabilidades (acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24.4.2006 e do Supremo Tribunal de Justiça, de 4.3.2008), notando-se que a tutela contratual é a que mais favorece o lesado na sua pretensão indemnizatória em face das regras em matéria de ónus da prova (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 5.7.2001).

O regime da responsabilidade civil em hospitais públicos ou em hospitais ou estabelecimentos pri-vados é diferente. De referir que o consultório mé-dico privado se inclui nestes últimos.

Pergunta-se: qual será o tribunal competente

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Rui Pestana de Almeida

para dirimir litígios nos hospitais públicos?

IV. Tribunal competente

No que tange aos atos médicos praticados em serviços hospitalares de natureza pública, have-rá que aquilatar se a competência para litígio daí emergente deve ser deferida ao tribunal adminis-trativo ou ao tribunal comum. Esta questão adqui-re renovada pertinência face à evolução legislativa recente, no sentido de o Estado, em matéria de saúde pública, atuar cada vez mais com recurso a formas de gestão empresarial societária (cf. Lei nº 27/2002, de 8 de Novembro, instituindo o regime de gestão hospitalar).

Anteriormente a esta evolução legislativa, consti-tuía entendimento reiterado que, apesar de idênti-cos aos atos praticados em qualquer estabelecimen-to hospitalar privado, os atos de assistência médica praticados num hospital público são de gestão pú-blica, pelo que o tribunal competente para ajuizar da responsabilidade civil decorrente desses atos é o administrativo – cf., a título exemplificativo, o acórdão da Relação, de Évora de 4.7.91.

Esta solução é reforçada pelo Estatuto do Médico, aprovado pelo Decreto-Lei nº 373/79, de 8 de Se-tembro, que dispõe no seu artigo 8.º, n.º3 que “Em casos de responsabilidade civil, tem aplicação a lei reguladora da responsabilidade extracontratual do Estado no domínio dos atos de gestão pública”.

Em abono da competência dos tribunais admi-nistrativos invocam-se pertinentemente os seguin-tes argumentos:

1.º A vinculação do hospital público, perante utentes ou terceiros, assume a natureza de uma relação de serviço público, devendo o serviço hospitalar agir com zelo e diligência, adequados à situação particular dos utentes a que se destina, assumindo tal obrigação carácter geral e dando

azo, quando omitida culposamente, ao dever de indemnizar. Assim, a responsabilidade em que o hospital incorra assume, necessariamente, carácter extracontratual;

2.º A circunstância de qualquer pessoa poder utilizar os serviços públicos ou de interesse público (nas condições gerais e impessoais dos respetivos estatutos ou regulamentos) sem possibilidade da sua recusa ou de negociação de cláusulas particulares, apenas se compagina com uma responsabilidade de natureza extracontratual, em que a obrigação de indemnizar nasce da violação de uma disposição legal ou de um direito absoluto, por outras palavras, quem recorre a um estabelecimento de saúde pública fá-lo ao abrigo de uma relação jurídica administrativa de utente, modelada pela lei, submetida a um regime jurídico geral e estatutário pré-estabelecido, aplicável em igualdade a todos os utentes daquele serviço público, que define o conjunto dos seus direitos, deveres e sujeições, que não pode ser derrogado por acordo, com introdução de discriminações positivas ou negativas;

3.º A função administrativa compreende o conjunto de atos de execução de atos legislativos, traduzida na produção de bens e na prestação de serviços a satisfazer as necessidades coletivas que, por virtude de prévia opção legislativa, se tenha entendido que incumbe ao poder do Estado-Coletividade. E tal função tanto pode ser direta-mente praticada pelos organismos e serviços inte-grados na sua pessoa e sob a gestão imediata dos seus órgãos, como por pessoas coletivas que lhe são exteriores, públicas ou privadas, mas que a ele estão ligadas;

4.º Os atos ou omissões praticados pelos hospitais públicos, mesmo que integrados na administração

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ALGUMAS DAS PRINCIPAIS QUESTÕES EM REDOR DA RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA

indireta do Estado, destinados à satisfação do interesse público, constitucionalmente consagrado como a proteção e defesa do direito à saúde (artigo 64.º, n.º1 da Constituição da República Portugue-sa), devem ser qualificados como atos de gestão pú-blica, e, por isso, praticados a coberto de normas de direito administrativo;

5.º Os atos de hospitais, integrados que estão no Serviço Nacional de Saúde e no Serviço Regional de Saúde, devem ser considerados como integrados na função administrativa, independentemente des-ta envolver ou não o exercício de meios de coação.

A Lei nº 27/2002, de 8 de Novembro, veio insti-tuir o regime jurídico de gestão hospitalar, preven-do que os hospitais integrados na rede de prestação de cuidados de saúde podem revestir a figura ju-rídica de sociedades anónimas de capitais exclusi-vamente públicos (artigo 2.º, n.º2, alínea c)) ou de estabelecimentos privados.

Os Hospitais, S.A., regem-se pelos respetivos di-plomas de criação, pelo regime jurídico do sector empresarial do Estado, pela lei reguladora das so-ciedades anónimas, bem como pelas normas espe-ciais cuja aplicação decorra do seu objeto social e do seu regulamento (artigo 19.º, n.º1 da referida lei). Sendo sociedades de capitais exclusivamente públicos, tais hospitais são empresas públicas na classificação do Decreto-Lei nº 558/99, de 17 de Dezembro, regendo-se – nessa medida – pelo di-reito privado, salvaguardado o que se encontra dis-posto no regime do sector empresarial do Estado e nos diplomas que tenham aprovado os respetivos estatutos (artigos 3.º, n.º1 e 7.º, n.º1).

Pergunta-se: este novo enquadramento legal re-flete-se numa alteração do tribunal competente para apreciação de litígios decorrentes de atos mé-dicos aí praticados?

A resposta tem sido negativa com fundamento na

seguinte ordem de considerações:

1.º O critério constitucionalmente delimitador do âmbito da justiça administrativa (artigo 212.º, n.º3 da Constituição da República Portuguesa) ra-dica na noção de relação jurídica administrativa, pelo que todas as questões que se possam afirmar como emergentes de tal relação são julgadas pelos tribunais administrativos, independentemente de conhecerem consagração em qualquer das alíneas do n.º1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais;

2.º Apesar de revestirem a qualidade de pessoas coletivas privadas, tais hospitais estão submetidos a deveres, sujeições ou limitações impostas por motivos de interesse público, encontrando-se a prossecução do respectivo objeto social vinculada a normas de direito administrativo. Tais hospitais encontram-se submetidos às orientações relativas à execução da política nacional de saúde e também da política regional de saúde, cujo cumprimento é fiscalizado pelas autoridades de saúde (v.g. artigo 6.º da referida lei),pelo que se infere que a relação jurídica estabelecida entre o utente, profissional de saúde e hospital assume a natureza de relação jurí-dica administrativa;

3.º Conforme tem sido reafirmado no preâmbu-lo dos diplomas que têm criado os Hospitais, EPE, (v.g. Decreto-Lei n.º 294/2002, de 11 de Dezem-bro), o que se pretende alterar com a instituição dos mesmos é apenas e tão-só o modelo de gestão para se alcançar um sistema mais moderno e efi-ciente, mantendo-se intacta a responsabilidade do Estado pela prestação dos cuidados de saúde. Esta responsabilidade é uma imposição constitucional, uma responsabilidade pública de que o Estado não pode alhear-se;

4.º Os atos praticados em tais hospitais, para além

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Rui Pestana de Almeida

do carácter técnico que os caracteriza, são atos que devem considerar-se de gestão pública, porque se regulam, também, por normas de direito adminis-trativo, visando a satisfação do interesse público. De acordo com o art.º 12.º da Lei do Serviço Nacional de Saúde (Lei n.º 56/79, de 15 de Setembro): “…, os utentes, sempre que sejam lesados nos seus direitos pelos órgãos ou pessoal do SNS, têm direito a ser in-demnizados pelos danos causados, nos termos da lei reguladora da responsabilidade extracontratual do Estado no domínio dos atos de gestão pública”. Des-te modo, estarão preenchidas as previsões das al. a) e h) do nº 1 do art.º 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais;

5.º Ocorre um ato de gestão pública se o agente se encontrar a cumprir deveres ou sujeito a restrições especificamente administrativas, isto é, próprios dos agentes administrativos. Nestas situações o que ocorre de especificamente administrativo é a pres-tação de serviços no âmbito do Serviço Nacional de Saúde, ou Serviço Regional de Saúde. Tal prestação é um ato de gestão pública.

São pois os Tribunais Administrativos os com-

petentes para julgar os litígios existentes em hos-pitais públicos, relativos à responsabilidade civil extracontratual do Estado e outras pessoas coleti-vas públicas, pois o exercício da medicina pública tem sido considerado um ato de gestão pública, como se apontou atrás. Recorde-se o artigo 22.º da Constituição que prevê “O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, fun-cionários ou agentes, por ações ou omissões pratica-das no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resultem violação dos direitos, liber-dades e garantias ou prejuízo para outrem” e tam-bém no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de fe-

vereiro e posteriores alterações, nomeadamente o artigo 4.º alíneas g), h) e i), e na Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro.

Este tem sido o entendimento da jurisprudência, conforme se pode ver em recente acórdão do Su-premo Tribunal Administrativo, de 16.01.2014.

V. A responsabilidade civil e o ato médico

Os profissionais de saúde estão “protegidos” face a uma ação de responsabilidade civil, pois o hospi-tal responde perante o paciente lesado no caso de o profissional ter agido com culpa.

Quando a culpa seja leve o profissional não é cha-mado a responder.

Apenas responde em via de regresso, quando tiver agido com negligência grosseira, ou seja, quando não tenha agido com diligência e zelo manifesta-mente inferiores àqueles a que se achava obrigado em razão do cargo.

Só existe responsabilidade pessoal e direta do médico quando este tiver atuado com dolo - arti-go 8.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro - ou quando tiver excedido os limites da sua função (a administração hospitalar responde neste caso solidariamente). Este tem sido o entendimento maioritário da doutrina e que a jurisprudência tem seguido, como se pode ver no acórdão 5/2005 do Tribunal Constitucional: A. em representação de seu filho menor B., intentou, em 24 de Outubro de 2000, no Tribunal Administrativo de Coim-bra, ação de indemnização por responsabilida-de civil extracontratual contra C. e D. médicos, bem como contra os Hospitais E., por deficiências de assistência médica, logo sem dolo, antes e durante o parto do qual veio a nascer aquele filho, provocando-lhe paralisia cerebral grave. Seu pai, F. ratificou em tempo o processado. A decisão foi a absolvição de C. e D.

No âmbito de uma atuação médica em estabe-

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ALGUMAS DAS PRINCIPAIS QUESTÕES EM REDOR DA RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA

lecimento privado, os tribunais competentes para apreciar as ações são os tribunais judiciais, aplican-do-se as normas do Código Civil, incluindo as nor-mas referentes ao contrato de prestação de serviços. Assim decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa em acórdão de 19.4.2005: “a responsabilidade civil mé-dica admite ambas as formas de responsabilidade, pois o mesmo facto poderá, ao mesmo tempo, repre-sentar a violação de um contrato e um facto ilícito extracontratual. Em regra a relação entre o médico de clínica privada e o doente que o procura configura uma relação contratual, um contrato de prestação de serviços, ou um contrato médico, pelo que lhe serão aplicáveis as regras da responsabilidade contratual. Na maior parte dos casos, a responsabilidade do mé-dico exercendo clínica em regime de profissão libe-ral, é de natureza contratual, sendo, tal obrigação, de meios e não de resultados”.

À responsabilidade civil extracontratual, delitual ou aquiliana, aplicam-se os artigos 483.º e seguintes do Código Civil e à responsabilidade contratual, negocial ou obrigacional, aplicam-se as normas re-lativas ao incumprimento das obrigações, artigos 798.º e seguintes do Código Civil.

Os artigos 562.º e seguintes – obrigação de in-demnização – têm normas comuns aos dois tipos de responsabilidade, nomeadamente no que se re-fere ao nexo de causalidade – artigo 563.º, cálculo da indemnização - artigo 564.º e culpa do lesado – artigo 570.º, todos do Código Civil.

Há no entanto algumas diferenças entre estas duas formas de responsabilidade, sendo o regime contratual mais favorável ao lesado (credor /pa-ciente), por exemplo no que respeita ao ónus da prova da culpa, ao prazo da prescrição e à respon-sabilidade por facto de outrem.

No regime contratual incumbe ao devedor (mé-dico) provar não ter culpa no incumprimento (ar-tigo 799.º n.º 1), no regime extracontratual o lesado (paciente) tem o ónus da prova da culpa (artigo

487.º n.º 1).O prazo de prescrição no regime contratual é de

20 anos (artigo 309.º) e no regime extracontratual é de 3 anos (artigo 498.º).

A responsabilidade por facto de outrem no re-gime contratual rege-se pelo artigo 800.º n.º 1 do Código Civil, o devedor é responsável perante o credor pelos atos dos seus representantes como se tais atos fossem praticados pelo próprio devedor e, no regime extracontratual, aplica-se o artigo 500.º do Código Civil, o comitente responde pelos dados do comissário desde que este também tenha a obrigação de indemnizar.

Os requisitos ou pressupostos da responsabilida-de são comuns aos dois regimes, ao contratual e ao extracontratual e são:

1.º O facto voluntário do agente, que se pode tra-duzir numa ação ou omissão. (“agem com negligên-cia os serviços de certo hospital que tomam a deci-são de não induzir o parto de certa parturiente às 42 semanas, quando o mesmo é recomendado pelo ginecologista assistente, se aquela decisão não é fun-damentada em meios complementares de diagnósti-co, que não foram realizados, tratando-se para mais no caso de parturiente com sequelas de poliomielite – acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 9.3.99.);

2.º A ilicitude;

3.º O nexo de imputação, que abrange a imputa-bilidade e a culpa, que se subdivide em dolo ou ne-gligência;

4º O nexo de causalidade;

5º O dano, que pode ser de natureza patrimonial ou não patrimonial;

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Rui Pestana de Almeida

VI. A culpa em especial

O critério de apreciação da culpa está previsto no artigo 487.º do Código Civil em termos objetivistas, ou seja segundo a teoria da culpa em abstrato e, dentro desta, da culpa como deficiência da conduta e não apenas como deficiência da vontade, incluin-do na culpa portanto não apenas a falta de cuidado, de zelo, de aplicação (a incúria, o desleixo, a preci-pitação, a leviandade ou ligeireza), mas também a falta de senso, de perícia ou de aptidão (a incompe-tência, a incapacidade natural, a inaptidão, a ina-bilidade). O grau de diligência exigível é a de um homem normal, prudente, avisado e cuidadoso, o chamado bonus pater famílias.

Há casos de presunção de culpa na responsabili-dade extracontratual, nomeadamente:

— Artigo 491º do CC: responsabilidade das pes-soas obrigadas à vigilância de outrem;

— Artigo 492º do CC: danos causados por edifí-cios ou outras obras;

— Artigo 493º do CC: danos causados por coisa, animais ou atividades (perigosas).

A medicina não é, em geral, considerada uma atividade perigosa para efeitos do artigo 493º n.º 2 do CC, conforme tem sido opinião unânime da jurisprudência do nosso país. Porém, a utilização de instrumentos ou aparelhos médicos, enquanto coisas móveis, as infeções nosocomiais (acórdão do Supre-mo Tribunal Administrativo, de 29.11.2005, infeção com a bactéria “serratia” no período pós-operatório, ficando o doente cego de um olho), ou quedas no edifício hospitalar (acórdão da Relação de Lisboa, de 9.5.2002 – “a entidade hospitalar responde pelos danos decorrentes da queda duma utente dos serviços na casa de banho do hospital por ter o piso molhado”), são casos em que o artigo 493º n.º 1 tem aplicação, preenchen-do as presunções de culpa aí previstas. As decorrentes de coisas imóveis preenchem também as presunções de culpa previstas nesse mesmo artigo.

VII. O ato médico: obrigação de meios e obrigação de resultado

A doutrina portuguesa acolhe a distinção entre obrigações de meios e obrigações de resultado.

Na atividade médica encontramos, em regra, obrigações de meios: o médico não se vincula à ob-tenção de determinado resultado (a cura), apenas se obriga a empregar a diligência, o cuidado devi-do, com vista ao tratamento do doente.

As obrigações de resultado, em que se procura obter um determinado resultado, apenas ocorrem em casos excecionais, como por exemplo, na rea-lização de próteses ou na realização de exames la-boratoriais ou de radiologia de rotina e na cirurgia estética.

Tendo o médico uma obrigação de meios, para se poder assacar um juízo de ilicitude à sua conduta, precisamos de comparar a sua ação (ou omissão) com a ação (ou omissão) devida, ou seja a esperada pela ordem jurídica. É necessário portanto conhe-cer as leges artis, correspondendo estas a um con-junto de regras de conduta técnica e científica que um médico competente e prudente tem de conhe-cer e usar corretamente, tendo em conta o estado atual da ciência e a situação específica do doente.

O conceito de leges artis é realçado pelo legislador penal português – artigo 150.º do Código Penal e o artigo 4.º da Convenção da Biomedicina veio re-forçar o valor jurídico dos “protocolos” das “guide-lines”, das reuniões de consenso. Estes documentos criados pelos médicos contribuem decisivamente para a definição das regras de conduta.

Nesta matéria, deve entender-se que a respon-sabilidade médica termina onde começam as dis-cussões científicas. Por outras palavras, sempre que determinados problemas da medicina suscitem discussão científica com existência de opiniões mé-dicas díspares na comunidade científica, não cabe ao juiz tomar partido por uma delas. O médico

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ABERTURA DE POSTO MÓVEL DE FARMÁCIA DEPENDENTE DE FARMÁCIA NÃO LOCALIZADA NO MESMO MUNICÍPIO NEM EM MUNICÍPIO LIMÍTROFE

não responderá pelo facto de ter seguido uma das orientações em conflito, atendíveis na comunida-de científica, desde que formule o diagnóstico de acordo com as leges artis.

Há que reconhecer a dificuldade ínsita à realiza-ção de qualquer diagnóstico face à variedade in-finita de processos patológicos, à equivocidade e semelhança dos sintomas. O médico move-se aqui numa área de múltiplas hipóteses, em cujo terreno o juízo intuitivo (“olho clínico”) pode ser mais útil que os conhecimentos científicos mais profundos.

Constituirão exemplos de situações violadoras das leges artis em sede de realização de diagnóstico e portanto podendo assacar-se um juízo de ilicitu-de à sua conduta:

a) O estabelecimento de diagnóstico sem se ter visto e examinado o paciente (podendo enquadrar-se aqui o diagnóstico feito por telefone);

b) Se para a emissão do diagnóstico, o médico não se socorre de todos os instrumentos e apare-lhos que podem ser utilizados na sua atividade;

c) O desdém por um sintoma evidente;

d) A não realização de todos os exames e comprovações (disponíveis na altura dos factos face à evolução da ciência) que o estado clínico impõe para emitir o diagnóstico (ligeireza na ela-boração do diagnóstico);

e) A não consideração dos resultados de tais exames ou a sua insuficiente valoração no momento da emissão do diagnóstico.

VIII. Conclusão

Não sendo a emissão do diagnóstico uma ope-ração de índole matemática, intervindo na formu-lação do mesmo um fator aleatório inexpugnável, dependendo o mesmo de uma maior ou menor perspicácia humana (“olho clínico”), e com ressal-va do que ficou dito supra, deverá entender-se que a responsabilidade médica por erro de diagnóstico só ocorrerá quando o erro contenha uma notória gravidade ou conclusões absolutamente erradas, tomando como paradigma as que teriam sido al-cançadas no mesmo contexto por um médico nor-mal.

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Resumo1

O texto que ora se publica corresponde, no essencial, ao nosso parecer jurídico, de 5 de Maio de 2014, pedido pelo Senhor Secretário Regional da Saúde do Governo Regional dos Açores. O pedido foi efetuado com urgência, pelo que o parecer, a que corresponde o presente texto, foi redigido num curto lapso de tempo, em face de uma situação de falha na distribuição e acesso a medicamentos por parte da única farmácia instalada na ilha Graciosa. Pretendia-se saber se seria juridicamente possível instalar um posto farmacêutico numa ilha diferente daquela em que farmácia estava instalada.

AbstractThis paper corresponds to my legal opinion, written in May 5th, 2014, at the request of the Secretary of Health of the Regional Government of Azores. The request was classified as urgent, so the writing was made in a short period of time, towards a situation of failure in the drug access and distribution from the only pharmacy installed on Graciosa Island - Azores. The aim was to find out whether it would be legally possible to install a drugstore station in a different island where the pharmacy was installed.

Sumário: I. Enquadramento factual; II. Quadro normativo relevante e os princípios subjacentes; III. Os postos farmacêuticos à luz do quadro normativo aplicável na Região Autónoma dos Açores; IV. Dos requisitos de funcionamento dos postos móveis de farmácia estabelecidos concretamente pela Administração no âmbito da portaria n.º 76/2012, de 6 de Julho; V. Do respeito devido ao direito comunitário, em sede do princípio da liberdade de estabelecimento, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia; VI. Conclusões

Palavras-chave: farmácia, posto farmacêutico, requisitos de funcionamento, área de atuação, acesso a medicamentos, discricionariedade, proporcionalidade.

Keywords: pharmacy, drugstore station, operating conditions, occupation area, access to medicament, administrative discretion, proportionality.

(*) Advogado. Advogado especialista em Direito Administrativo pela Ordem dos Advogados

ABERTURA DE POSTO MÓVEL DE FARMÁCIA DEPENDENTE DE FARMÁCIA NÃO LOCALIZADA NO MESMO MUNICÍPIO NEM EM MUNICÍPIO LIMÍTROFE The openning of a drugstore station connected to a drugstore not placed in the same city or in a neighboring city

Carlos de Almeida Farinha (*)

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ABERTURA DE POSTO MÓVEL DE FARMÁCIA DEPENDENTE DE FARMÁCIA NÃO LOCALIZADA NO MESMO MUNICÍPIO NEM EM MUNICÍPIO LIMÍTROFE

I. Enquadramento factual

É-nos solicitado parecer com carácter urgente, o que necessariamente demanda que sejamos breves na resposta, sem prejuízo, naturalmente, do rigor propugnado na solução jurídica a conferir ao pre-sente assunto.

A questão fundamental a esclarecer, objecto do presente parecer, é a seguinte (tal qual foi a mesma objectivamente colocada em parecer, de 15 de abril 2014, que nos foi remetido, sobre a questão sub iu-dicio, da autoria de Paulo Jorge Gomes, eminente jurista, no exercício presente das funções de Ins-pector Regional da Saúde):

— Pode uma farmácia sedeada numa ilha do ar-quipélago dos Açores abrir um posto farmacêutico noutra ilha desse arquipélago?

— Em caso de resposta positiva, de que modo?

Factualmente, a questão sobressai (i) pela exis-tência de uma única farmácia de oficina na ilha Graciosa, do Arquipélago dos Açores; de (ii) as cir-cunstâncias locais actuais evidenciarem carências muito significativas ao nível da dispensa de medi-camentos à população (por factores atinentes com o funcionamento dessa mesma farmácia – de que não cuidaremos no presente parecer, por não ser esse o objecto da solicitação que ora nos motiva); de, segundo julgamos saber, (iii) estar, presente-mente, a culminar um processo administrativo de adjudicação e potencial abertura de uma nova farmácia na ilha Graciosa (que, pela morosidade inerente, não é, porém, factor imediatamente ha-bilitante a dirimir as carências que actualmente se verificam na ilha ao nível da dispensa de medi-camentos à população); de (iv) o estabelecimento de saúde público local estar, excepcionalmente, a providenciar o atendimento das carências medica-mentosas que se verificam na ilha; e de (v) existir

interesse (pedido já formalizado, nos termos legais) de uma farmácia, pertença da Santa Casa da Mise-ricórdia, sedeada na Ilha Terceira, do Arquipélago dos Açores, em abrir um posto móvel desta mesma farmácia na ilha Graciosa.

Temos presente, sobre o referido pedido de aber-tura do mencionado posto móvel de farmácia pela Santa Casa, o supra citado parecer, datado de 15 de abril 2014, do Inspetor Regional da Saúde, que con-clui no sentido afirmativo, fundamentando-se, em síntese, (i) no princípio da juridicidade, enquanto padrão de compatibilidade e conformidade das de-cisões administrativas, (ii) na constatação de que o atual regime jurídico das farmácias de oficina na Região Autónoma dos Açores é lacunar quanto à questão ora controvertida e que, nesta medida, (iii) merece a lacuna em causa ser preenchida, nos ter-mos gerais de direito, (iv) convocando-se, prima-cialmente, a salvaguarda do interesse público, mas (v) sem se colidir, no entanto, com os legítimos in-teresses da farmácia localmente já instalada, pelo que (vi) a norma de decisão administrativa confor-me o bloco de legalidade por si preconizado seria a seguinte: “em todos os casos excecionais, suscetíveis de comprometer o acesso a medicamentos, nomea-damente risco de descontinuidade nas condições de fornecimento e distribuição, pode ser autorizada a instalação de posto farmacêutico móvel sub-rogado a farmácia instalada em ilha diferente, enquanto as circunstâncias excecionais permanecerem”.

Sobre o mesmo pedido de abertura do mencio-nado posto móvel de farmácia, temos igualmente presente o parecer emitido pela Direção Regional da Saúde, em Abril de 2014, que conclui no senti-do negativo, e nos termos do qual se propugna o seguinte:

“1. O processo de autorização para instalação de

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Carlos de Almeida Farinha

um posto farmacêutico inicia-se através de requeri-mento do interessado (artigo 17º nº 1 da Portaria nº 76/2012, de 6 de julho).

2. O requerimento deve ser acompanhado de plan-ta topográfica, planta das instalações e documento que titule a utilização das instalações, para além de elementos adicionais que a DRS entenda necessários (artigo 17º nº 2 da Portaria nº 76/2012, de 6 de ju-lho).

3. Podem requerer a instalação de postos farma-cêuticos os titulares de farmácias localizadas no mes-mo município ou em municípios limítrofes (artigo 11º nº 3 da Portaria nº 76/2012, de 6 de julho).

4. Estão impedidas de instalar novo posto as far-mácias que já tiverem dois postos averbados nos respetivos alvarás (artigo 11º nº 4 da Portaria nº 76/2012, de 6 de julho).

5. A autorização depende ainda de o local da ins-talação se situar a mais de 5 km dos limites da loca-lidade sede de concelho e da verificação de reconhe-cida necessidade de cobertura farmacêutica (artigo 11º nº 3 da Portaria nº 76/2012, de 6 de julho).

6. O requerimento da SCM de Angra do Heroís-

mo não está instruído com os documentos indicados acima.

7. Por outro lado, a farmácia de que é proprietária a SCMAH não está localizada no município do local do posto pretendido nem em município limítrofe.

8. As instalações propostas também não se situam à distância exigida pela regulamentação.

9. Finalmente, a farmácia da SCMAH pode já ter dois postos farmacêuticos (a verificar pelo serviço

competente).

10. Assim, o pedido deve ser desde já indeferido, ao abrigo do disposto no artigo 83º do CPA.”

Nestes termos, quid iuris (?)

II. Quadro normativo relevante e os princípios subjacentes

Sem prejuízo de podermos abordar outra legis-lação, o quadro normativo que reputamos de mais pertinente para nos ajudar na melhor solução a conferir ao presente assunto é, desde logo, o iden-tificado com o Decreto Legislativo Regional n.º 6/2011/A, de 10 de Março, na redacção do Decreto Legislativo Regional n.º 29/2012/A, de 26 de Junho (estabelece o regime jurídico das farmácias de ofi-cina na Região Autónoma dos Açores (doravante simplesmente RJFORAA); a Portaria n.º 76/2012 de 6 de Julho de 2012 (que, entre outras particu-laridades, para o que ora nos move, em concreti-zação do n.º 5 do artigo 45.º do referido DLR n.º 6/2011/A, define os requisitos de funcionamento dos postos farmacêuticos móveis); e o Decreto-Lei n.º 206/2000, de 1 de Setembro (diploma que ins-titui um regime de autorização excepcional de dis-pensa de medicamentos ao público pelas farmácias hospitalares e outros estabelecimentos e serviços de saúde, públicos e privados).

A existência, na Região Autónoma dos Açores (RAA), de um quadro legal próprio no âmbito da matéria ora em apreço justifica-se, como evidencia o legislador regional logo nas disposições pream-bulares do RJFORAA, pelo facto de “...a realidade arquipelágica da Região Autónoma dos Açores, asso-ciada às especificidades muito próprias de cada uma das ilhas que a compõem, e a possibilidade, estatuta-

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ABERTURA DE POSTO MÓVEL DE FARMÁCIA DEPENDENTE DE FARMÁCIA NÃO LOCALIZADA NO MESMO MUNICÍPIO NEM EM MUNICÍPIO LIMÍTROFE

riamente consagrada, da Região legislar em matéria de política de saúde, designadamente no que respei-ta ao regime de licenciamento e funcionamento das farmácias, aconselharem a uma adequação do atual regime” (este último, no plano nacional, fundamen-talmente reportado ao disposto no Decreto Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto).

Assim, o legislador veio estabelecer o regime le-gal específico das farmácias de oficina sedeadas na Região Autónoma dos Açores, ao abrigo do qual se consagraram princípios gerais e deveres fundamen-tais, de que evidenciamos, nesta sede, os seguintes (cfr. artigos 2.º e segs. do RJFORAA): dos (i) fins públicos (de as farmácias asseguram a continuida-de da prestação de serviços aos cidadãos e prosse-guirem uma atividade de saúde); da (ii) liberdade de instalação (a instalação das farmácias respeita o princípio da liberdade de instalação, desde que ob-servados os requisitos estabelecidos na legislação em vigor); da (iii) livre escolha (os cidadãos têm o direito à livre escolha da farmácia, sendo proibido o encaminhamento ou angariação de clientes por qualquer entidade, inclusive pelos serviços de saú-de, públicos ou privados, bem como pelos profis-sionais de saúde prescritores de medicamentos); da (iv) igualdade (o princípio da igualdade deve ser observado no relacionamento entre as farmácias e os cidadãos); do (v) dever de dispensa de medi-camentos (as farmácias têm o dever de dispensar medicamentos nas condições legalmente previstas; e o os medicamentos sujeitos a receita médica só podem ser dispensados aos cidadãos que a apre-sentem, salvo casos de força maior, devidamente justificados); entre outros.

Em matéria atinente com os locais de dispensa de medicamentos, dispõe o artigo 10.º do mesmo diploma que a dispensa de medicamentos ao pú-blico só pode ser efectuada (i) pelas farmácias, nas

suas instalações, ao domicílio ou através da Inter-net de acordo com a legislação sobre a matéria; e (ii) pelos locais de venda de medicamentos não sujeitos a receita médica, nas suas instalações, ao domicílio ou através da Internet de acordo com a legislação sobre a matéria.

Subjacente ao licenciamento e funcionamento das farmácias de oficina na Região Autónoma dos Açores (como, de resto, relativamente a qualquer farmácia no País) está um outro princípio funda-mental, enformador, tal seja o da persecução do interesse público na dispensa de medicamentos à po-pulação, o que demanda a apreciação, pela Admi-nistração Pública, das denominadas necessidades de cobertura farmacêutica.

São as necessidades de cobertura farmacêutica que presidem à materialização do interesse público no âmbito da questão que ora nos ocupa, o que, tradu-zindo-se por um conceito relativamente indiscrimi-nado (tal como a matéria da discricionariedade tem sido consagrada pela doutrina e jurisprudência mais relevantes), há-de impor que a Administração prossiga pelo menos um dos caminhos legais pos-síveis que, no seu próprio entendimento da questão concreta, melhor se adeque à efectivação do inte-resse público.

Temos, pois, que é com base na inerente avalia-ção, necessariamente discricionária, das necessi-dades efectivas feitas sentir ao nível da cobertura farmacêutica numa dada área do território regional que a Administração Pública tomará as melhores decisões e (com o recurso a ponderações várias, v.g. de natureza geográfica, dimensão da população abrangida, população-alvo e patologias verificadas, melhor adequação de prescrições e de terapêuticas às respectivas patologias, aferição local do grau de satisfação da população em medicamentos, consta-

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Carlos de Almeida Farinha

tação local de carência ou não carência efectiva de determinados medicamentos, face às solicitações e necessidades reais, outras razões de natureza social entre diversos outros possíveis) atenderá ou não, como in casu, às solicitações do mercado quanto à abertura de postos móveis de farmácia.

Portanto, um primeiro ponto a reter é o atinen-te com a consideração, pela Administração Pú-blica, das necessidades de cobertura farmacêuti-ca.

É este o primeiro critério, se quisermos, a levar em consideração pela Administração Pública e que nos parece dever enquadrar, à partida, a melhor solução a conferir à questão ora em apreço – natu-ralmente, a Administração norteará a sua actuação com base na legislação em vigor, em obediência ao princípio da legalidade, transversal a toda a acti-vidade administrativa (Administração Pública em sentido material).

Podemos descortinar aquele critério plasmado, directa ou indirectamente, um pouco por toda a legislação acima identificada, em diversos dos seus preceitos legais.

Confira-se, por exemplo, o artigo 27.º do RJFO-RAA, em matéria respeitante às condições gerais e específicas de abertura e transferência de farmácias na Região Autónoma dos Açores, ali se estipulando que:

“1 — A abertura de novas farmácias obedece às seguintes condições cumulativas:

a) Capitação mínima de 3500 habitantes por far-mácia aberta ao público no município, com exceção das ilhas com um só município e uma só farmá-cia, em que a capitação mínima é de 2500 habi-tantes por farmácia, salvaguardando-se sempre a

possibilidade de duas farmácias por ilha;b) Distância mínima de 250 m entre farmácias,

contados, em linha reta, dos limites exteriores das farmácias;

c) Distância mínima de 250 m entre a farmácia e uma extensão de saúde, um centro de saúde ou um estabelecimento hospitalar, contados, em linha reta, dos respetivos limites exteriores, salvo em localidades com menos de 3000 habitantes.

2 — A transferência de farmácia no município de-pende do preenchimento cumulativo das alíneas b) e c) do número anterior.

3 — A distância prevista na alínea b) do n.º 1 apli-ca-se também à abertura ou transferência de far-mácia em relação a farmácia situada em município limítrofe.

4 — A determinação do número de habitantes é feita em função dos dados mais recentes disponibi-lizados pelo Serviço Regional de Estatística dos Aço-res.”

Ou o artigo 27.º-A, n.º 1, do mesmo diploma, quando confere ao departamento da administra-ção regional autónoma competente em matéria de saúde a possibilidade de ponderar e proceder à abertura de concurso para a instalação de uma nova farmácia quando se verifiquem os requisitos previstos no citado artigo 27.º e o interesse público na acessibilidade dos cidadãos à dispensa de me-dicamentos demande, precisamente, uma melhor cobertura farmacêutica.

Ou o artigo 27.º-Q do mesmo RJFORAA, no que tange à instalação da farmácia, quando, no seu n.º 2, impõe que o concorrente selecionado no proce-dimento concursal dispõe, como regra, do prazo de um ano para instalar a farmácia e solicitar a com-petente vistoria.

Também no artigo 11.º, n.º 3 da Portaria n.º

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ABERTURA DE POSTO MÓVEL DE FARMÁCIA DEPENDENTE DE FARMÁCIA NÃO LOCALIZADA NO MESMO MUNICÍPIO NEM EM MUNICÍPIO LIMÍTROFE

76/2012, de 6 de Julho de 2012, onde se evidencia que podem ser instalados postos (móveis) de far-mácia “(…) onde se verifique reconhecida necessida-de de cobertura farmacêutica, a apreciar pela Dire-ção Regional da Saúde.”

E no artigo 16.º, n.º 3, da mesma Portaria, onde se evidencia que a autorização de instalação e fun-cionamento do posto é concedida pelo prazo de 5 anos, renovável por iguais períodos, na sequência de solicitação do interessado, até 60 dias antes do termo do prazo, mediante prévia vistoria e avalia-ção pela Direção Regional da Saúde, consideran-do-se, uma vez mais, as necessidades de cobertura farmacêutica.

Ou, ainda, no artigo 1.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 206/2000, de 1 de Setembro, quando se estabelece, em matéria respeitante à dispensa de medicamen-tos pelas farmácias hospitalares, que:

“1 — Sem prejuízo do disposto no artigo 61.º do Decreto-Lei nº 72/91, de 8 de Fevereiro, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 272/95, de 23 de Outubro, no artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 44 204, de 22 de Fevereiro de 1962, e no artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 48 547, de 27 de Agosto de 1968, o Ministro da Saúde pode autorizar as farmácias hospitalares e ou-tros estabelecimentos e serviços de saúde, públicos e privados, a dispensar medicamentos ao público:

a) Quando surjam circunstâncias excepcionais susceptíveis de comprometer o normal acesso aos medicamentos, nomeadamente o risco de desconti-nuidade nas condições de fornecimento e distribui-ção, com as implicações sociais decorrentes;

b) Quando por razões clínicas resultantes do aten-dimento em serviço de urgência hospitalar se revele necessária ou mais apropriada a imediata acessibili-

dade ao medicamento.”

São, deste modo, sublinha-se, as necessidades de cobertura farmacêutica que presidem à ma-terialização do interesse público no âmbito da questão que ora nos ocupa.

Preconizamos, todavia, que a avaliação que a Administração Pública faz dessas mesmas neces-sidades de cobertura farmacêutica deve nortear-se apenas e só por critérios objectivamente aferidos do lado das necessidades e não propriamente das causas que pontualmente tiverem dado azo a essas mesmas necessidades.

Ou seja, não se tratará tanto, no nosso entendi-mento, de se decidir com base numa situação de ponderação das razões concretas que estão na base de um alegado mau funcionamento (pontual, es-trutural, ou não) de uma dada farmácia existente localmente, no que toca ao atendimento ou dis-pensa de medicamentos à população (correndo-se o risco de, assim, impropriamente, se fazer relevar - ou relevar apenas ou “em excesso” - as condições específicas dessa situação concreta); mas sim, an-tes pelo contrário, em nossa opinião, deverá aquela mesma decisão estribar-se apenas e só na consta-tação, objectiva, de que é um facto, em si mesmo considerado, a não dispensa adequada, na ilha, de medicamentos à população, não pelo deficiente funcionamento desta ou daquela farmácia em con-creto, mas sim enquanto necessidade/carência que se faz efectivamente sentir.

Se quisermos, pelo facto da existência, em si mes-ma considerada, de uma situação de ruptura em determinados medicamentos com relevância para a população, situação assim não compaginável com o interesse público que, em geral, preside à pon-deração (exclusivamente cometida pelo legislador

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à Administração Regional de Saúde) quanto ao que entende ser uma adequada cobertura farmacêutica.

É a adequada cobertura farmacêutica (que, de res-to, já está pensada e havia, anteriormente à situação actual de carência, sido objectivamente ponderada pela Administração Pública para a ilha Graciosa, v.g. em matéria de número e postos de farmácia ali existentes) que demanda que se pondere recorrer ou não a outros instrumentos legais destinados a assegurar e/ou a repôr os padrões anteriores no atendimento ou dispensa de medicamentos à po-pulação o que deve efectivamente motivar a deci-são a tomar.

Ou seja, ainda, a motivação da decisão concreta não tem de entrar com apreciação, necessariamente subjectiva (logo, também com potencial necessa-riamente controvertido, gracioso ou contencio-so…), quanto à alegada qualidade de determina-do serviço prestado à população por determinada entidade farmacêutica concreta. Terá apenas de se centrar na verificação da carência, efectiva e objec-tivamente demonstrável.

Não estamos, com isto, a querer significar que o ponto de partida que preconizamos não possa de-linear-se, ele próprio, na constatação factual de que algo vai mal no funcionamento de determinada farmácia local. Claro que esse será um pressupos-to. Mas não é, quanto a nós, um pressuposto com efectiva relevância jurídica para a integralidade ob-jectiva da legalidade da decisão.

A boa decisão a tomar deve, em nossa opinião e salvaguardada a devida vénia a entendimento con-trário, focalizar-se apenas na necessidade, objecti-vamente verificada, e não na qualificação subjecti-va que lhe deu azo.

O apuramento – e eventual sancionamento – das causas preside, isso sim, a plano de decisão distin-to do presentemente em equação: como é bom de ver, desde logo, respeitará a matéria de natureza contra-ordenacional, nos termos da legislação em vigor (e de que não cabe cuidar quando, como no caso ora em apreço, a Administração avalia, tão só, como deve, os pressupostos legais objectivos para o deferimento ou indeferimento de um pedido de abertura de um posto móvel de farmácia - e formu-lado por entidade terceira; terceira, relativamente, também, aos próprios factos da eventual contra-or-denação).

Do contrário, correr-se-ia o risco, como dizemos, de eventual imputação de desvio quanto aos pres-supostos decisórios estritamente jurídicos subja-centes, eventualmente sobressaindo um vício de violação de lei, por eventual erro quanto aos pres-supostos de facto.

In casu, não será, pois, tanto a causa, mas mais a consequência o que, verdadeiramente, deverá, em nosso entendimento, nortear e fundamentar a de-cisão quanto ao pedido ora submetido à apreciação da Administração Pública.

III. Os postos farmacêuticos à luz do quadro normativo aplicável na Região Autónoma dos Açores

O RJFORAA distingue entre postos farmacêuti-cos permanentes e postos farmacêuticos móveis.

Diz-nos o artigo 44.º daquele diploma que se considera posto farmacêutico permanente o esta-belecimento destinado à dispensa ao público de medicamentos, a cargo de um farmacêutico, de um técnico ou de um técnico auxiliar de farmácia

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ABERTURA DE POSTO MÓVEL DE FARMÁCIA DEPENDENTE DE FARMÁCIA NÃO LOCALIZADA NO MESMO MUNICÍPIO NEM EM MUNICÍPIO LIMÍTROFE

e dependente de uma farmácia em cujo alvará se encontra averbado.

Por seu turno, o artigo 45.º, n.os 1 a 3 do mesmo Decreto Legislativo Regional estabelece que (i) cada farmácia pode deter dois postos farmacêuticos mó-veis; que (ii) a abertura de postos farmacêuticos móveis depende de autorização do departamento da administração regional autónoma competente em matéria de saúde; e que (iii) os postos farma-cêuticos móveis são objeto de averbamento no al-vará da farmácia a que respeitam.

Depois, nos seus n.os 4 e 5, o citado artigo 45.º estipula que (iv) o departamento da administra-ção regional autónoma competente em matéria de saúde define, em relação a cada posto farmacêutico móvel, a respetiva área geográfica de atuação; e que (v) os requisitos de funcionamento dos postos far-macêuticos móveis são definidos pelo departamen-to do Governo Regional competente em matéria de saúde, através de portaria.

Detenhamo-nos, antes do mais, quanto aos pos-tos móveis e para o efeito do que ora nos move, no citado n.º 4 do artigo 45.º do RJFORAA: verifica-se, como bem se apreenderá, que o legislador clara-mente ali preconiza que seja a Administração Re-gional de Saúde a, precisamente, definir a respetiva área geográfica de atuação.

Porém, concretizando-o apenas e só à luz de cada situação que concretamente lhe for dada apreciar, pois essa definição (manda o legislador que seja fei-ta) resultará, literalmente, em relação a cada posto farmacêutico móvel (sic).

Uma primeira regra/conclusão/princípio se deve extrair daquela expressa cominação legal: o legis-lador, de modo nenhum, condiciona a abertura de um posto móvel de farmácia à circunstância da

respectiva farmácia-mãe estar apenas localizada na mesma ilha do Arquipélago pretendida para o res-pectivo posto móvel.

São as circunstâncias concretas de cada situação que hão-de, fundamentadamente, claro está, influir na apreciação que a Administração fará sobre qual, em concreto, a área geográfica de actuação do pos-to móvel em equação.

O legislador deixa ao critério da Administração Regional de Saúde a definição concreta quanto a saber o que seja a área de actuação de um dado posto móvel concreto – em função, claro está, da apreciação que a Administração deva fazer quanto às necessidades de cobertura farmacêutica, como vi-mos propugnando.

Ou seja, se cabe à Administração, como manda o legislador, definir a respetiva área geográfica de atuação dos postos móveis de farmácia apenas e só à luz dos casos concretos, relativamente a cada posto móvel (já que, precisamente, o legislador de-termina que o faça em relação a cada posto farma-cêutico móvel), esse poder de definição não poderá significar, desde logo, que a Administração esteja, à partida, limitada a circunscrever a actuação de um posto móvel exclusivamente à realidade da própria ilha em que se localiza a respectiva farmácia-mãe.

Por imperativo lógico, mais não fosse, do contrá-rio estaria a Administração cerceada na sua própria possibilidade de avaliação quanto à extensão das efectivas necessidades de cobertura farmacêutica.

Área geográfica de actuação, relativamente a cada posto móvel e requisitos de funcionamen-to não podem, assim, querer significar a mesma coisa, como nos parece evidente.

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Opor-se-á que o supra identificado comando le-gal (n.º 4 do artigo 45.º) conhece verdadeira densi-ficação com a regra estabelecida no n.º 5 do mesmo artigo 45.º do RJFORAA, quando comina que “os requisitos de funcionamento dos postos farmacêu-ticos móveis são definidos pelo departamento do Governo Regional competente em matéria de saú-de, através de portaria” e que, deste modo, quan-do exista essa mesma definição, a Administração como que se auto-vincula e auto-limita aos respec-tivos pressupostos.

Note-se, no entanto, desde logo, um argumento de natureza literal, porém com implicações subs-tantivas, tal seja a existência, clara, de dois enuncia-dos normativos distintos dentro do mesmo corpo da norma: (i) o n.º 3 do citado artigo 45.º, que se reporta, à definição da respetiva área geográfica de atuação dos postos móveis de farmácia (apenas e só à luz dos casos concretos, relativamente a cada pos-to móvel, não é de mais acentuá-lo); e (ii) o n.º 4 do mesmo artigo, que, então sim, se reporta aos requi-sitos de funcionamento de cada posto móvel (estes requisitos – e apenas estes, segundo o legislador, a densificar mediante portaria da Administração Regional, nos termos legais. Não assim a definição da área de actuação respectiva, que com aqueles se não confunde nem pode confundir).

Concordamos, deste modo, que a Portaria em re-ferência densifica requisitos de funcionamento dos postos móveis de farmácia.

Discordamos, no entanto, que o faça, sequer, em colisão com o comando legal do n.º 4 do artigo 45.º do RJFORAA, no sentido de poder ser interpreta-d(o)a como apenas legitimando o funcionamento de um posto móvel se a respectiva farmácia-mãe se encontrar localizada na mesma ilha.

Não foi essa a intenção do legislador regional -

nem isso resulta da referida Portaria, como infra ainda melhor se desenvolverá.

É que, como é bom de ver, sob pena de flagrante violação de lei (princípio da hierarquia das leis e dos actos normativos), nunca poderia a Adminis-tração, por Portaria, contrariar o Decreto Legisla-tivo Regional que está na base da sua emissão; ou seja, ao definir, por Portaria, os requisitos de fun-cionamento dos postos farmacêuticos móveis, a Administração não poderá fazê-lo em colisão com o comando legal-mãe.

Assim, relativamente à possibilidade jurídica de autorizar a abertura de um posto móvel de farmá-cia, colocar-se-á esta sempre, como possibilidade legal não excluída pelo RJFORAA, quer se trate de um posto móvel a averbar a uma farmácia existente na própria ilha, quer se trate de um posto móvel a averbar a uma farmácia existente noutra ilha do Arquipélago, por acto administrativo, em igualda-de de circunstâncias relativamente aos requisitos de funcionamento estabelecidos na Portaria, não distinguindo o legislador entre ilhas; antes apenas acentuando o legislador que o poder de apreciação e de decisão se fará à luz das circunstâncias de cada caso e relativamente a cada posto móvel de farmá-cia, sem distinção.

Por outras palavras, em síntese, requisitos de fun-cionamento e definição da área de actuação de cada posto móvel de farmácia não são, nem podem ser, em nosso entendimento, conceitos sinónimos.

A segunda, situa-se no plano da instalação, in-trinsecamente associada à ponderação quanto às necessidades de cobertura farmacêutica, os pri-meiros, como o nomen iuris respectivo também o revela, no plano do funcionamento.

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Tudo dependerá, pois, acentua-se de novo, das circunstâncias do caso concreto – e o legislador, no quadro do nosso ordenamento jurídico, de onde relevam igualmente preceitos constitucionais e de direito da União Europeia que não podem ser esca-moteados (como infra melhor desenvolveremos e se perceberá), não poderia, de resto, preconizar so-lução diferente da acima apontada, porque, do con-trário, resultaria a violação de elementares princí-pios de legalidade e de igualdade de tratamento.

É este, igualmente, o nosso ponto de partida para a apreciação, então,

IV. Dos requisitos de funcionamento dos postos móveis de farmácia estabelecidos concretamente pela Administração no âmbito da portaria n.º 76/2012, de 6 de Julho

No artigo 11.º daquela Portaria — em aparente sintonia (embora possamos discordar da técnica legislativa empregue, que se confunde com o con-ceito legal de posto permanente, nos termos aci-ma identificados) com o estabelecido nos n.os 1 a 3 do artigo 45.º do RJFORAA —, estipula-se que “para efeitos da presente portaria, considera-se posto farmacêutico móvel, adiante designado por “posto”, o estabelecimento destinado à dispensa de medica-mentos ao público, a cargo de um farmacêutico, de um técnico de farmácia ou de um técnico auxiliar de farmácia e dependente de uma farmácia em cujo alvará se encontra averbado”.

Nada mais.

Sendo que, conforme o n.º 2 do mesmo preceito, os postos são identificados pela designação da far-mácia de que dependem.

A Portaria confirma e dá plena execução à regra contida na norma legal habilitante do mencionado RJFORAA.

Estipula, depois, o n.º 3 do mesmo artigo 11.º da Portaria ora em referência que “podem ser ins-talados postos, dependentes de farmácia do mesmo município ou de municípios limítrofes, em locais dis-tantes mais de 5 km dos limites da localidade sede de concelho e onde se verifique reconhecida necessidade de cobertura farmacêutica, a apreciar pela Direção Regional da Saúde”.

Nada mais, igualmente — pois, como é bom de ver, a Portaria não entra na questão de distinguir, verdadeiramente, entre farmácias localizadas numa ilha e farmácias localizadas noutra ilha.

Nem tinha de o fazer, à luz da regra geral a que devia já obediência, quanto a dever ser a Adminis-tração Regional de Saúde a ponderar a área de ac-tuação de um dado posto móvel em concreto, em função das circunstâncias de cada caso.

A Portaria, no citado n.º 3 do seu artigo 11.º, apenas toma posição relativamente aos postos mó-veis de farmácias dependentes de farmácia do mes-mo município ou de municípios limítrofes.

Só para esses casos é que na Portaria se define, então, que devam os mesmos situar-se em locais distantes mais de 5 km dos limites da localidade sede de concelho e onde se verifique reconhecida necessidade de cobertura farmacêutica – tal dever-se-á, desde logo, ao respeito, que sempre se deve convocar, dos princípios gerais a que no início alu-dimos e, bem assim, às limitações naturalmente decorrentes das próprias “condições gerais e espe-cíficas de abertura e transferência” de farmácias, designadamente plasmadas no supra citado artigo

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27.º do RJFORAA.

Não assim para toda e qualquer situação que seja dada apreciar e decidir à Administração Regional de Saúde, nomeadamente não assim relativamente a postos de farmácia de farmácias-mãe localizadas noutras ilhas, maxime de postos dependentes de farmácias não localizadas no mesmo município nem em municípios limítrofes, apenas dependen-tes da apreciação que a mesma Administração Re-gional de Saúde fizer das necessidades efectivas de boa cobertura farmacêutica.

Preconizamos, por consequência, que não che-gará, sequer, a existir uma verdadeira situação lacunar, pois a Portaria não poderia contrariar — nem contraria — a lei geral habilitante, como supra se evidenciou já.

Acentua-se, a Portaria n.º 76/2012, de 6 de Julho, no n.º 3 do seu artigo 11.º, apenas condiciona a abertura de postos móveis de farmácias (em locais distantes mais de 5 km dos limites da localidade sede de concelho e onde se verifique reconhecida necessidade de cobertura farmacêutica) relativa-mente a postos móveis dependentes de farmácia do mesmo município ou de municípios limítrofes.

Não assim quanto às demais situações de outros postos de farmácias de outras farmácias que não sejam nem do mesmo município, nem de municí-pios limítrofes.

É tudo quanto da mesma disposição legal da re-ferida Portaria n.º 76/2012 se pode legitimamente extrair.

Depois, no n.º 4 do mesmo artigo 11.º, dispõe-se, ainda, que “cada farmácia não pode ter mais de dois postos averbados no seu alvará, incluindo os postos de medicamentos já averbados antes da entrada em

vigor da presente portaria” (quanto a este último as-pecto, não dispomos, in casu, de informação que nos habilite a uma melhor pronúncia, pelo que re-metemos para a boa informação e melhor aprecia-ção que a Administração Regional de Saúde fizer da situação concreta).

Uma vez mais, não estabelece a Portaria qualquer distinção entre posto móvel a averbar a uma far-mácia existente na própria ilha ou noutra ilha do Arquipélago, em igualdade de circunstâncias, não se distinguindo entre ilhas ou entre postos de far-mácias de outras farmácias que não sejam nem do mesmo município, nem de municípios limítrofes.

Em abono do assim propugnado, cfr., igualmen-te, a redacção do próprio artigo 16.º da Portaria n.º 76/2012, de Julho, quando estabelece que a autorização concedida para os postos móveis caduca quando vier a ser deferida a instalação de farmácia para o mesmo local, podendo a Direção Regional da Saúde cancelar a autorização a todo o tempo, caso se verifique que o posto não assegu-ra convenientemente a assistência farmacêutica ou não cumpre as condições de funcionamento com que foi autorizado.

V. Do respeito devido ao direito comunitário, em sede do princípio da liberdade de estabelecimento, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia

Com efeitos decisivos para o âmbito da solução legal interpretativa que preconizamos em todo o ponto precedente do presente parecer, convocamos nesta sede a aplicabilidade do princípio do prima-do ou do efeito directo do direito comunitário sobre as jurisdições nacionais, no caso concretamente

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derivada da melhor jurisprudência do Tribunal de Justiça, nomeadamente nos seguintes Acórdãos – e que ora convocamos, naturalmente com as devidas adaptações:

Acórdão (Grande Secção), de 1 de Junho de 2010 (José Manuel Blanco Pérez e María del Pilar Chao Gómez contra Consejería de Salud y Servicios Sa-nitarios (C-570/07) e Principado de Asturias (C-571/07). Pedidos de decisão prejudicial: Tribunal Superior de Justicia de Asturias - Espanha. artigo 49.º TFUE - Directiva 2005/36/CE - Liberdade de estabelecimento - Saúde pública - Farmácias - Pro-ximidade - Fornecimento de medicamentos à po-pulação - Autorização de exploração - Repartição territorial das farmácias - Instituição de limites assentes num critério de densidade demográfica - Distância mínima entre as farmácias - Candida-tos que exerceram a actividade profissional numa parte do território nacional - Prioridade - Discri-minação. Processos apensos C-570/07 e C-571/07, in Colectânea da jurisprudência, 2010 I-04629, po-dendo ser consultado em http://curia.europa.eu/juris; e

Acórdão (Quarta Secção), de 13 de feverei-ro de 2014, processo C-367/12, in JO C  331, de 27.10.2012, podendo igualmente ser consultado em http://curia.europa.eu/juris

Dos mesmos resulta, em síntese, o respeito devi-

do às pertinentes disposições do Tratado Sobre o funcionamento da União Europeia (TFUE).

Reza, na verdade, o artigo 49.º do TFUE, e para o que ora concretamente releva, que “são proibidas as restrições à liberdade de estabelecimento dos na-cionais de um Estado-Membro no território de outro Estado-Membro. Esta proibição abrangerá igual-mente as restrições à constituição de agências, sucur-

sais ou filiais pelos nacionais de um Estado-Membro estabelecidos no território de outro Estado-Membro. A liberdade de estabelecimento compreende tan-to o acesso às actividades não assalariadas e o seu exercício, como a constituição e a gestão de empresas e designadamente de sociedades, (...), nas condições definidas na legislação do país de estabelecimento para os seus próprios nacionais (...).”

Em conformidade, nos supra mencionados acór-dãos do Tribunal de Justiça da União Europeia, re-sulta, em síntese, que:

1) O artigo 49.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que, em princípio, não se opõe a uma legislação nacional, que impõe limites à emissão de autorizações para o estabelecimento de novas far-mácias, estipulando que:

— em cada zona farmacêutica, em princípio, só pode ser criada uma nova farmácia por módulo de 2 800 habitantes;

— só pode ser criada uma farmácia adicional quando seja ultrapassado este limiar, sendo essa farmácia criada para uma fracção superior a 2 000 habitantes; e

— cada farmácia deve respeitar uma distância mínima relativamente às farmácias já existentes, sendo essa distância, regra geral, de 250 metros.

Contudo, o artigo 49.° TFUE opõe-se a essa legis-lação nacional na medida em que as regras de base de 2 800 habitantes ou de 250 metros impeçam, nas zonas geográficas com características demográficas particulares, a criação de um número suficiente de farmácias susceptível de assegurar uma assistência farmacêutica adequada, o que compete ao órgão jurisdicional nacional verificar.

2) O artigo 49.° TFUE, em conjugação com o ar-tigo 1.°, n.os 1 e 2, da Directiva 85/432/CEE do Con-selho, de 16 de Setembro de 1985, relativa à coorde-

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nação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes a certas actividades do sector farmacêutico, e o artigo 45.°, n.º 2, alíneas e) e g), da Directiva 2005/36/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de Setembro de 2005, relativa ao reconhecimento das qualificações pro-fissionais, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a critérios, como os enunciados nos pon-tos 6 e 7, alínea c), do anexo do Decreto 72/2001 relativo às farmácias e postos farmacêuticos do Principado das Astúrias (Decreto 72/2001 regula-dor de las oficinas de farmacia y botiquines en el Principado de Asturias), de 19 de Julho de 2001, de acordo com os quais são seleccionados os titulares de novas farmácias.

Portanto, e em síntese, o artigo 49.º TJUE opõe-se a tal regulamentação nacional na medida em que as regras de base respectivas possam impedir, em qualquer zona geográfica que tenha características demográficas particulares, a criação de um núme-ro suficiente de farmácias susceptíveis de assegurar um serviço farmacêutico adequado (o que cabe ao órgão jurisdicional verificar).

Como ora se demonstra, aquela disciplina jurí-dica tem plena razão de ser igualmente convocada para o efeito da questão que ora concretamente nos motiva, porquanto não poderia o legislador regio-nal, por qualquer meio, impedir, por um lado, que a Administração Pública pudesse, ainda que excep-cional e casuisticamente, ficar impedida de apreciar e decidir sobre os meios mais adequados a uma efectiva cobertura ou suprimento de necessidades em farmácia (assim o demanda o interesse público fundamental das populações, que à Administração se impõe sempre prosseguir); e, por outro lado, em desrespeito do primado do princípio da liberdade de estabelecimento, que a autorização para a abertu-ra de um posto móvel de farmácia na RAA ficasse

dependente da circunstância – (que não encontra acolhimento nem na legislação regional, nem no Direito Comunitário) – de a farmácia-mãe respec-tiva estar localizada na mesma ilha de preconizada instalação do posto móvel.

Também os particulares, nas relações que esta-belecem com a Administração, podem invocar, em juízo se necessário, aquele princípio — cfr., na ju-risprudência, v.g. os Acórdãos do TJUE proferidos no caso Gebroeders Beentjes BV contra o Estado dos Países Baixos, de 20/9/1988, e no caso Transporou-te, de 10/2/1982.

E, por todos, o Acórdão Marshal, de 26/2/1986, no qual o TJUE estabeleceu que “em todos os casos em que as disposições de uma directiva aparecem - do ponto de vista do seu conteúdo - como incondicio-nais e suficientemente precisas, os particulares po-dem invocá-las contra o Estado...” - na doutrina, cfr. Mário Esteves de Oliveira, Rodrigo Esteves de Oliveira, Concursos e outros Procedimentos de Adjudicação Administrativa - das fontes às garan-tias, Coimbra, Almedina, 2003, pp. 26-35.

E na jurisprudência nacional, cfr., v.g. o Acórdão 00756/07.0BEPRT, de 30/3/2012, proferido pelo Tribunal Central Administrativo Norte, de acordo com o qual:

“I. Conforme vem sendo reiteradamente afirmado pelo TJUE do primado do Direito da União sobre o Direito nacional decorre a recusa de aplicação do direito nacional incompatível com o direito da UE, a supressão ou reparação das consequências de um ato nacional contrário ao direito da União e a obri-gação dos Estados-membros o fazerem respeitar, o princípio do efeito direto das normas europeias, o princípio da interpretação conforme e o princípio da responsabilidade do Estado por violação das obriga-

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ABERTURA DE POSTO MÓVEL DE FARMÁCIA DEPENDENTE DE FARMÁCIA NÃO LOCALIZADA NO MESMO MUNICÍPIO NEM EM MUNICÍPIO LIMÍTROFE

ções europeias.

II. Em consonância com o princípio da interpreta-ção conforme ou compatível com o Direito da União o intérprete e aplicador do direito nacional devem atribuir às disposições nacionais um sentido con-forme ou compatível com as disposições europeias, sendo que todo o direito nacional aplicável deve ser interpretado em conformidade com o Direito da União.

III.É que qualquer juiz, no quadro da respetiva competência tem por missão, enquanto órgão dum Estado membro, assegurar e proteger os direitos con-feridos aos particulares pelo direito da União, deven-do interpretar o direito nacional em conformidade com o direito da União, estando proibido de o inter-pretar em sua desconformidade, sob pena infração ao princípio do primado e fazer incorrer o Estado em responsabilidade.”

Ainda na doutrina: “nos procedimentos adminis-trativos adjudicatórios devem proporcionar-se e ga-rantir-se iguais condições de acesso e de participação dos interessados, não podendo ser feita qualquer dis-criminação ilegítima entre esses interessados, nem se admitindo desvios ao dever de interpretação e apli-cação iguais das normas e juízos procedimentais... - cfr. Rodrigo Esteves de Oliveira, «Os princí-pios gerais da contratação pública», in Estudos de Contratação Pública - I, Coimbra Editora, pp. 92.

Prossegue o ilustre Professor, op. cit. pp. 92, “entre outras coisas, resulta dele a proibição da discrimina-ção em razão da nacionalidade (ou lugar da sede), também chamada proibição das “compras nacio-nais”, sendo por isso ilegítimas todas as medidas adoptadas pelas entidades adjudicantes para favore-cerem, mesmo que de forma velada, como é normal, as empresas nacionais ou o mercado nacional (...)

naturalmente, é também proibida a “compra con-celhia ou autárquica”, sendo ilegítimas as medidas adoptadas pelas entidades adjudicantes para favore-cerem injustificadamente as empresas com sede ou presença local”.

O mesmo, mutatis mutandis, relativamente às “compras regionais”.

Sem embargo do que acabamos de preconizar, sempre poderíamos, no limite, aderir à douta tese preconizada no Parecer emitido pelo Inspector Re-gional de Saúde, a que acima aludimos, quando o mesmo preconiza a existência de uma lacuna na Portaria n.º 76/2012, a integrar nos termos gerais de direito, v.g. por não ter previsto o tipo de situa-ções como aquele de que ora se cuida, a integrar de acordo com a norma, candidata, do n.º 1 do artigo 27.º do RJFORAA.

Não vamos, no entanto, por aí, em atenção aos motivos supra preconizados.

Acresce que, nas circunstâncias do caso – e como muito bem é sustentado no mesmo Parecer do Ins-pector Regional de Saúde a que temos vindo a fazer referência – além do mais sempre se convocarão (i) a salvaguarda do interesse público, prima facie, mas (ii) igualmente se acautelarão os legítimos in-teresses da farmácia localmente já instalada, e (iii) ponderando-se o deferimento do pedido até que a nova farmácia seja instalada.

Com efeito, a págs. 53 do referido Parecer, pode-mos descortinar:

“13.11. (…) O posto móvel tem natureza temporá-ria e não pode transformar-se em farmácia. A ins-talação de nova farmácia não fica prejudicada pois quando ocorrer o posto móvel deve encerrar (artigo

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16.º, n.º 1 da portaria). Ao invés, a hipótese concreti-za o direito fundamental à proteção da saúde, atra-vés da não perturbação no acesso aos medicamentos; acautela o hiato temporal suscetível de ocorrer entre a homologação do candidato vencedor do concurso e a instalação da farmácia (1 ano); e afiança a possi-bilidade de a nova farmácia vir a não ser instalada (…).”

Tal, de resto, como o aponta o artigo 16.º n.º 1 da Portaria n.º 76/2012, onde se evidencia que a au-torização concedida para os postos móveis caduca quando vier a ser deferida a instalação de farmácia para o mesmo local, podendo a Direção Regional da Saúde cancelar a autorização a todo o tempo, caso se verifique que o posto não assegura con-venientemente a assistência farmacêutica ou não cumpre as condições de funcionamento com que foi autorizado.

Mais se estriba o douto Parecer no facto de o deferimento do pedido ora em apreço respeitar igualmente o princípio da proporcionalidade (cfr. a conclusão xvi: “Considerando a ponderação dos interesses potencialmente em conflito – interesse da população no acesso ao medicamento, interesse da proprietária da farmácia instalada e interesse do vencedor do concurso para a instalação de nova far-mácia – a admissão da instalação de posto móvel sub-rogado a farmácia sedeada noutra ilha afigura-se como uma medida proporcional”).

Além de também não assistir ao interessado re-querente, Santa Casa da Misericórdia de Angra do Heroísmo, um especial direito protegido, in casu (cfr. a conclusão xvii: “Sublinhe-se, (…), que o in-teresse da Santa Casa da Misericórdia de Angra do Heroísmo não está protegido por um direito, dado que o interesse da requerente encontra-se instrumen-talizado ou funcionalizado ao interesse público sub-

jacente, como sucederia, aliás, com qualquer outro posto móvel sub-rogado a farmácia dentro ou fora da mesma ilha, através do requisito de ponderação (“…reconhecida necessidade de cobertura farmacêu-tica”)).

Embora em contextos diferentes (já que não pre-conizamos a existência de uma lacuna na Por-taria n.º 76/2012, nos termos supra expostos), propendemos no entanto a concordar com o con-cluído pelo Inspector Regional de Saúde no seu Parecer, nomeadamente quanto à salvaguarda dos diversos interesses na situação controvertida, pri-macialmente quanto ao interesse público a densifi-car pela Administração, e não sobreviência, conco-mitante, de prejuízos para o universo potencial de interessados (e até porque, como também se evi-dencia no referido Parecer, ex vi do artigo 17.º, n.º 3 da Portaria nº 76/2012, “quando, no mesmo dia, tenha havido mais de um candidato à instalação de postos para o mesmo local ou para locais situados a menos de 1 km em linha reta entre si, as candi-daturas são hierarquizadas, considerando o menor número de postos detidos e as melhores condições de funcionamento apresentadas para o futuro posto, atendendo-se, designadamente, ao horário, recursos humanos propostos, sua experiência e qualificação” – curioso será notar que, também neste domínio, uma vez mais não se distingue, na Portaria, entre farmácias localizadas ou não na mesma ilha.

Colocamos apenas reserva, porém, quanto a fa-zer-se depender a prerrogativa pública de decisão (deferimento ou indeferimento do pedido de um posto móvel nas circunstâncias concretas do caso presente) da existência, em si mesma, de um pedi-do particular, reflectido unilateralmente por parte da iniciativa privada, que assim faria ceder a norma geral do artigo 1.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 206/2000, de 1 de Setembro.

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ABERTURA DE POSTO MÓVEL DE FARMÁCIA DEPENDENTE DE FARMÁCIA NÃO LOCALIZADA NO MESMO MUNICÍPIO NEM EM MUNICÍPIO LIMÍTROFE

Ou seja, concretizando, não perfilhamos o en-tendimento de que a disposição, excepcional em-bora, correspondente ao disposto no artigo 1.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 206/2000, de 1 de Setembro, deva, ao menos imediatamente, ceder quando existam (e porque existem), agentes priva-dos interessados em explorar um posto móvel de farmácia, posto esse que, alegadamente, permitiria ao mesmo tempo colmatar deficiências verificadas ao nível da dispensa de medicamentos à população.

Nada (nos) garante que a simples existência de um posto móvel, a acrescer à farmácia local, as-segura, por si só, o desiderato público subjacente. Tal só será mensurável com o decorrer do tempo, o que, por esta mesma razão, não deve constituir premissa inexorável, estabelecida ab initio no pro-cesso decisório.

Nestes termos, em nosso entendimento, não se deverá logo dar por assumido — e, por consequên-cia, a decisão a tomar não deverá reflectir esse as-pecto — que assim iria efectivamente suceder, ou seja que a autorização para o posto móvel peticio-nado já garantiria hoje a inversão das necessidades que se fazem sentir, que assim como que seriam imediatamente dirimidas pela simples existência na ilha do posto móvel em causa.

Pelo contrário, preconizamos que compete — sempre e só — à Administração avaliar, em função do interesse público subjacente, se este se basta ou não com as condições locais efectivamente exis-tentes, independentemente de os medicamentos, ainda que a título excepcional, poderem estar – ou continuar - a ser disponibilizados à população tam-bém por uma unidade de saúde (no caso, pública), a par da autorização para o posto móvel.

Recordemos a regra contida na mencionada dis-

posição legal do citado artigo 1.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei nº 206/2000, de 1 de Setembro, quan-do estabelece, em matéria respeitante à dispensa de medicamentos pelas farmácias hospitalares, que:

1 — Sem prejuízo do disposto no artigo 61.º do Decreto-Lei nº 72/91, de 8 de Fevereiro, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 272/95, de 23 de Outubro, no artigo 11º do Decreto-Lei nº 44 204, de 22 de Fe-vereiro de 1962, e no artigo 29º do Decreto-Lei nº 48 547, de 27 de Agosto de 1968, o Ministro da Saúde pode autorizar as farmácias hospitalares e outros es-tabelecimentos e serviços de saúde, públicos e priva-dos, a dispensar medicamentos ao público:

a) Quando surjam circunstâncias excepcionais susceptíveis de comprometer o normal acesso aos medicamentos, nomeadamente o risco de desconti-nuidade nas condições de fornecimento e distribui-ção, com as implicações sociais decorrentes;

(…)”

É o interesse público e a avaliação que a Administração fará das necessidades efectivas de cobertura farmacêutica que ditam a possibilida-de de se afastar, quando e como, a excepção legal estabelecida pelo legislador do Decreto-Lei n.º 206/2000, que assim funciona como uma autên-tica cláusula de salvaguarda do sistema.

Salvaguardada uma vez mais a devida vénia a en-tendimento contrário, a questão não estará, assim, tanto na amplitude daquela norma, inutilizando-se a figura do posto farmacêutico, mas sim na possi-bilidade de a Administração o fazer (“não inutili-zar”) apenas porque o recurso à autorização, que se pretende “excepcional”, de abertura de um posto móvel de farmácia será também um “instrumento” da própria Administração para suprir uma necessi-dade pública e “utilizando-se”, deste modo, de um operador no mercado.

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Carlos de Almeida Farinha

São, em nosso entendimento, questões distintas:

De um lado, a necessidade pública de se suprirem carências efectivamente sentidas pela população e de respeito dos direitos fundamentais constitucio-nalmente consagrados em matéria de cuidados e assistência de saúde e medicamentosa (cfr. o artigo 64.º, n.º 3, alínea e) da Constituição, e alínea b), n.º 1 da Base II da Lei de Bases da Saúde) determinam que a Administração actue imediatamente; mas,

De outro lado, não aconselha que o faça senão pe-los meios que, também imediatamente, tem efecti-vamente ao seu dispor: como resulta do que vimos defendendo, preconizamos que são possíveis, e assim deve sempre ser ponderado pela Adminis-tração, coexistir quer o recurso à continuidade de disponibilização, ainda que excepcional, de medi-camentos à população, pela própria Administração, através de estabelecimentos de saúde (públicos ou privados); quer a, no caso, até concomitante, pos-sibilidade de autorização de abertura de um pos-to móvel de farmácia de uma farmácia-mãe não localizada na mesma ilha (como o poderão aconse-lhar e/ou possibilitar as circunstâncias da situação concreta ora em apreciação).

Preconizamos, assim, que a Administração não deverá nortear a sua decisão socorrendo-se de um procedimento em concreto, como que o ins-trumentalizando relativamente aos objectivos públicos a atingir (e que devem apenas bastar-se com uma avaliação objectiva sobre as carências sentidas ao nível das necessidades de adequada dis-pensa de medicamentos à população, como acima defendemos) — nenhum operador privado poderá substituir-se à Administração nesta matéria (ava-liação dos próprios pressupostos da existência de uma situação de ruptura que justifique uma auto-rização para que as unidades/estabelecimentos de

saúde possam elas próprias também fornecer me-dicamentos). Só à Administração caberá apreciar.

Do mesmo modo, mutatis mutandis, somos de opinião que para autorizar um posto móvel a Ad-ministração também não terá de ponderar espe-cialmente os interesses da farmácia já localmente instalada, mas tão só nortear a sua decisão pelos critérios e interesses exclusivamente subjacentes às necessidades públicas de cobertura farmacêutica.

Até, porque, e em abono do ora propugnado: uma vez mais o próprio artigo 16.º, n.º 1 da Portaria n.º 76/2012, quando estabelece que a autorização con-cedida para os postos móveis caduca quando vier a ser deferida a instalação de farmácia para o mesmo local, podendo a Direção Regional da Saúde cance-lar a autorização a todo o tempo, caso se verifique que o posto não assegura convenientemente a as-sistência farmacêutica ou não cumpre as condições de funcionamento com que foi autorizado.

Em conformidade com todo o supra explanado, estamos em condições de formular as seguintes

VI. Conclusões:

1) Subjacente ao licenciamento e funcionamen-to das farmácias de oficina na RAA está o princí-pio fundamental, enformador, da persecução do interesse público na dispensa de medicamentos à população, o que demanda a apreciação, pela Ad-ministração Pública, das necessidades de cobertura farmacêutica.

2) São as necessidades de cobertura farmacêutica que presidem à materialização do interesse público no âmbito da questão em apreço, o que, traduzin-do-se por um conceito relativamente indiscrimina-

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ABERTURA DE POSTO MÓVEL DE FARMÁCIA DEPENDENTE DE FARMÁCIA NÃO LOCALIZADA NO MESMO MUNICÍPIO NEM EM MUNICÍPIO LIMÍTROFE

do, há-de impor que a Administração prossiga pelo menos um de vários caminhos legais possíveis e que, no seu próprio entendimento da questão con-creta, melhor se adeque à efectivação do interesse público.

3) A avaliação que a Administração Pública faz dessas mesmas necessidades de cobertura far-macêutica deve, todavia, nortear-se apenas por critérios objectivamente aferidos do lado das ne-cessidades e não propriamente das causas que pon-tualmente tiverem dado azo a essas mesmas neces-sidades.

4) O legislador regional (Decreto Legislativo Re-gional n.º 6/2011/A, de 10 de Março, na redacção do Decreto Legislativo Regional n.º 29/2012/A, de 26 de Junho) não condiciona a abertura de um pos-to móvel de farmácia à circunstância da respectiva farmácia-mãe dever estar obrigatoriamente tam-bém localizada na mesma ilha do Arquipélago.

5) O contrário, significaria, inclusivamente e como é jurisprudência reiterada do Tribunal de Jus-tiça da União Europeia, colidir com os princípios fundamentais do Direito Comunitário, designada-mente plasmados no artigo 49.º do Tratado Sobre o funcionamento da União Europeia (TFUE), de aplicação imediata objectiva no Ordenamento Ju-rídico nacional,

6) porquanto os mesmos princípios se opõem a que a Administração Pública possa, ainda que excepcional e casuisticamente, ficar impedida de apreciar e decidir sobre os meios mais adequados a uma efectiva cobertura ou suprimento de necessi-dades em farmácia;

7) e, por outro lado, impedem (num desrespeito, que não seria legítimo, do primado do princípio

da liberdade de estabelecimento) que a autorização para a abertura de um posto móvel de farmácia na RAA pudesse ficar dependente da circunstância – (que não encontra acolhimento nem na legisla-ção regional, nem no Direito Comunitário) – de a farmácia-mãe respectiva dever estar localizada na mesma ilha de preconizada instalação de um posto móvel por parte de um interessado particular.

8) O legislador regional deixa ao critério da Ad-ministração Regional de Saúde a definição concre-ta quanto a saber (e a aferir sobre) o que seja a área de actuação de um dado posto móvel concreto, a densificar em função da apreciação que a mesma Administração deve fazer quanto às necessidades de cobertura farmacêutica.

9) Ao densificar os requisitos de funcionamento dos postos móveis, a Portaria n.º 76/2012, de 6 de Julho, não o faz em colisão com o comando legal do n.º 4 do art. 45.º do Decreto Legislativo Regional n.º 6/2011/A, de 10 de Março, na redacção do Decreto Legislativo Regional n.º 29/2012/A, de 26 de Junho, no sentido, que refutamos, de poder ser interpreta-d(o)a como apenas legitimando o funcionamento de um posto móvel se a respectiva farmácia-mãe se encontrar localizada na mesma ilha.

10) Área geográfica de actuação, relativamente a cada posto móvel e requisitos de funcionamento respectivos não significam, assim, o mesmo, não são conceitos sinónimos.

11) A Portaria n.º 76/2012, de 6 de Julho, não entra na questão de distinguir, verdadeiramente, entre farmácias localizadas numa ilha e farmácias localizadas noutra ilha, nem tinha de o fazer, à luz da regra geral a que deve obediência, tal seja a de dever ser a Administração Regional de Saúde a ponderar a área de actuação de um dado posto mó-

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Carlos de Almeida Farinha

vel em concreto, em função das circunstâncias de cada caso; e à luz dos princípios e regras do direito comunitário, acima evidenciados.

12) A Portaria n.º 76/2012, de 6 de Julho, no n.º 3 do seu artigo 11.º, apenas toma posição relativa-mente aos postos móveis de farmácias dependentes de farmácia do mesmo município ou de municí-pios limítrofes; e

13) só para esses casos definindo, então, que de-vam os mesmos situar-se em locais distantes mais de 5 km dos limites da localidade sede de conce-lho e onde se verifique reconhecida necessidade de cobertura farmacêutica (o que se deve, desde logo, ao respeito, que sempre se convoca, dos princípios gerais subjacentes à actividade farmacêutica e, bem assim, às limitações naturalmente decorrentes do quadro legal respectivo, designadamente em maté-ria respeitante às “condições gerais e específicas de abertura e transferência” de farmácias).

14) Por consequência, a Portaria n.º 76/2012, de 6 de Julho não enfermará de uma verdadeira e própria situação lacunar.

15) Do mesmo modo, é o interesse público e a avaliação que a Administração fará das necessidades efectivas de cobertura farmacêutica que ditam permanentemente a possibilidade de se afastar, quando e como, a excepção legal estabele-cida pelo legislador do Decreto-Lei nº 206/2000, de 1 de Setembro (ex vi do seu artigo 1º, n.º 1, alínea a)), quando permite que se autorize as farmácias hospitalares e outros estabelecimentos e serviços de saúde, públicos e privados, a dispensar medica-mentos ao público.

16) Aquela disposição, excepcional embora, fun-ciona como uma verdadeira cláusula de salvaguar-

da do sistema e não deve, ao menos imediatamen-te, ceder apenas porque existem agentes privados interessados em explorar um posto móvel de far-mácia, posto esse que, alegadamente, permitiria ao mesmo tempo colmatar deficiências verificadas ao nível da dispensa de medicamentos à população.

17) A simples existência de um posto móvel, a acrescer à existência de farmácias locais, não deve constituir premissa inicial para o processo decisó-rio no caso sub iudicio, porquanto não assegura, por si só, o desiderato público subjacente, deside-rato este que só poderá ser mensurável com o de-correr do tempo.

18) Podem, desta forma, coexistir os mecanismos jurídicos de recurso à continuidade de disponibili-zação, ainda que excepcional, de medicamentos à população, nos termos do Decreto-Lei n.º 206/2000, de 1 de Setembro, através de estabelecimentos de saúde (públicos ou privados) com a possibilida-de de autorização de abertura de um posto móvel de farmácia de uma farmácia-mãe não localizada na mesma ilha (como o poderão aconselhar e/ou possibilitar as circunstâncias da situação concreta ora em apreciação).

Em face das conclusões precedentes,

1) A Administração Regional de Saúde poderá, fundamentadamente, alicerçada nas circunstâncias concretas quanto à avaliação que faz das necessi-dades de cobertura farmacêutica, deferir um pedi-do relativamente a posto móvel de farmácia-mãe localizada noutra(s) ilha(s), ou seja relativamente a posto dependente de farmácia não localizada no mesmo município nem em município limítrofe;

2) possibilidade jurídica aquela tanto mais ro-bustecida quanto, à luz das mesmas circunstâncias

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ABERTURA DE POSTO MÓVEL DE FARMÁCIA DEPENDENTE DE FARMÁCIA NÃO LOCALIZADA NO MESMO MUNICÍPIO NEM EM MUNICÍPIO LIMÍTROFE

concretas e no respeito pelo princípio geral da pro-porcionalidade, igualmente se possa perspectivar que, no caso concreto em apreço, não esteja sequer em causa eventual prejuízo relativo a legítimos interesses de terceiros eventualmente contra-inte-ressados e se encontrem acautelados os princípios da hierarquização de candidaturas potenciais (ex vi do artigo 17.º, n.º 3 da Portaria n.º 76/2012, de 6 de Julho) e do carácter provisório da autorização (ex vi do artigo 16.º, n.º 1 da mesma Portaria n.º 76/2012).

É este o N/ parecer.

Artigo escrito com a ortografia prévia ao Acordo Ortográfico de 1990

RELATÓRIO FINAL DE INQUÉRITO (proc. 3.4/2014/2) | Pag. 46

Negligência médica, consentimento informado, consentimento presumido e hipotético, acesso ao ficheiro clínico, regras de conduta.

Casos decididos

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RELATÓRIO FINAL DE INQUÉRITO (proc. 3.3/2014/2)

Negligência médica; consentimento informado; consentimento presumido; consentimento hipotético; boas práticas clínicas; leges artis; acesso ao ficheiro clínico; regras de conduta

As normas do Código do Procedimento Administrativo indi-cadas no presente caso respeitam ao Código do Procedimen-to Administrativo de 1991, entretanto revogado pelo novo Código do Procedimento Administrativo de 2015.

1. INTRODUÇÃO – DILIGÊNCIAS INSTRUTÓRIAS

1.1. A 26-11-2013, sob o registo IRS-ENT/2013/478, deu entrada na IReS a exposição do utente Sr. Xa, doravante apenas identificado como parti-cipante, na qual se efetuaram um conjunto de observações relativas à prestação de cuidados médicos e assistenciais à utente Xb (doravante identificada apenas como utente) no hospital 1.

1.2. Por despacho do ora relator, de 28-11-2013, no exercício das suas competências de Inspe-tor Regional de Saúde, foi instaurado processo APU – Acompanhamento Setor Público, n.º 3.12/2013/15 – doravante apenas APU – cons-tituído pelas fls. 1 a 36.

1.3. Por ofício SAI-XXX/2014/227, de 03-02-2014, dirigido ao participante e com conhecimento à IReS, o Conselho de Administração (C.A.) do hospital 1 informou a instauração de processo de inquérito com vista ao apuramento de fac-tos (fls. 21 APU).

1.4. Por ofício SAI-XXX/2014/372, de 19-02-2014, o C.A. do hospital 1 informou a IReS de pe-didos de escusa por parte de três inquiridores nomeados por esse órgão de gestão (fls. 27, 29 e 31 APU), pedindo a colaboração da IReS para

a instrução do processo de inquérito (fls. 24 a 25 APU).

1.5. Por despacho do ora relator, de 19-02-2014, no uso das competências atribuídas ao Inspetor Regional de Saúde, informou o Sr. Secretário Regional da Saúde que “não obstante o poder disciplinar ser da competência do C.A. [do hos-pital 1], atendendo às razões invocadas (três escusas pelos instrutores nomeados, médicos), à complexidade dos factos a apurar (…) proponho (…) que seja admitido o pedido do C.A. do hos-pital 1, e a IReS avoque o processo de inquérito instaurado…”

1.6. Por despacho de 20-02-2014, o Sr. Secretário Regional da Saúde aceitou a proposta.

1.7. Neste sentido, a IReS arquivou o processo APU a 20-02-2014 e instaurou processo de in-quérito – doravante apenas INQ – com o n.º 3.3/2014/2, constituído pelo vol. 1 (fls. 1 a 140), apenso 1 (fls. 1 a 335) e apenso 2 (fls. 1 a 135).

1.8. Foram inquiridas 11 pessoas, na qualidade de testemunhas abaixo indicados:

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Nome Função

Testemunha I Médica esp. neurologia

Testemunha Xc Neta da utenteTestemunha G Diretora ClínicaTestemunha S Médico intensivistaTestemunha B Médico neurocirurgião

Testemunha PMédica de serviço no Serviço de Urgência a 09-09-2013

Testemunha C Médico neurologistaTestemunha F Médico neurologistaTestemunha Xd Filha da utenteTestemunha D Médico internistaTestemunha Xa Participante

1.9. A 21-02-2014, o ora relator solicitou ao C.A. do hospital 1 o envio do ficheiro clínico, de enferma-gem e de todos os elementos documentais refe-rentes à utente, nos termos da prerrogativa fixada no artigo 5.º do Decreto Legislativo Regional n.º 40/2012/A, de 8 de outubro (fls. 18, vol. 1).

1.10. A 04-04-2014, o ora relator requisitou o envio do processo clínico integral da utente, por ter verificado omissões quanto aos seguintes ele-mentos: (1) análises clínicas, requeridas no dia XX-09-2013, aquando da ida da utente ao SU do hospital 2; (2) diário clínico (médico e de enfermagem) da utente Xb, aquando do seu in-ternamento na Unidade XXX (UXXX), entre os dias X-09-2013 e XX-09-2013; (3) registo da deslocação da utente para o hospital 3, onde foi internada a XX-01-2012 (fls.25 INQ.).

1.11. No decorrer da apreciação dos elementos proba-tórios carreados nos autos, surgiram dúvidas em relação às quais o ora instrutor não tinha com-petência técnica. Nesse sentido, por ofício IRS-SAI/2015/42, de 28-01-2015, solicitou-se laudo pericial à Inspeção-Geral das Atividades em Saú-de (apenso 2, processo 3.2/2014/2, fls. 1 a 135),

com as questões indicadas no ponto 4 infra.

2. PARTICIPAÇÃO

2.1. O participante vem alegar o seguinte [transcre-ve-se ipsis verbis] (1):

“(…)A utente XXXXX do [hospital 1], Xb, foi enviada

em XX de Janeiro do hospital 3 para uma remoção de um meningioma petroso da fossa posterior (Doc. 1).

No regresso, o avião fez escala em XXXXX, tendo a doente sentindo-se mal no aeroporto e encaminhada para o SU do [hospital 2] (Doc. 2).

Fez RM [ressonância magnética] em XX/01/2013 que declarou a remoção total do meningioma (Doc. 3).

No dia X-09-2013 deu entrada no hospital 1 com o ouvido esquerdo a correr um líquido claro e nada viscoso e com a temperatura vista em casa de 40º.

Feitas as análises, foi diagnosticado uma infeção urinária, medicada com antibiótico e mandada para casa.

O médico de serviço foi alertado para o facto de ter ido à urgência pela temperatura e o corrimento no ouvido e a resposta foi “não vamos tratar ago-ra das doenças todas da senhora, vá ao médico de família”.

Foi o que fizemos: no dia XX fomos ao médico de família (Doc. 4), que marcou consulta para Otorrino para o dia XX/09.

No dia XX, na consulta de Otorrino, foi imedia-tamente enviada para o SU do hospital 1, tendo in-clusive o otorrinolaringologista, Dr. A informado a médica de SU naquele dia, Dra. A1.

Ficou internada na XXX até ao dia XX/09, dia da alta (Doc. 5).

No relatório de alta menciona o exame objetivo “abdómen inocente”.

(1) Corrige-se manifestas gralhas ortográficas e omite-se a parte final da exposição, de conteúdo laudatório, por ser inútil à apreciação do caso.

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Neste período de internamento foi observada pelo neurocirurgião Dr. B e pelo neurologista Dr. C.

A resposta dos dois médicos foi “quem fez porca-ria que a corrija”.

Teve alta em XX/09 e por indicação do Dr. D se a paciente tivesse febre alta que recorrêssemos logo ao hospital, foi o que fizemos no dia XX/09.

O Dr. C entrou em contato com o Dr. E (cirurgião que […] foi quem a operou) e o informou da situa-ção. Ela tinha consulta marcada para o dia XX/10. (Doc. 6).

A situação apresentava-se grave, porque foi cha-mada a filha pelas 00h00 e [foi dito] se preparasse porque a mãe seguiria de helicóptero para o hospital 2. Após vários telefonemas, o Dr. F foi “aconselhado” a não enviar a doente para XXXX. O impasse de não quererem enviar para o hospital 3 prende-se com o facto de sempre terem afirmado que ela tinha sido operada num hospital particular. O que não é verda-de como se pode verificar no Doc. 1.

O Dr. C teve ainda o descaramento de marcar con-sulta para o dia XX/10 (Doc. 7). Neste dia quando fomos falar com o Dr. C apenas nos disse que não enviavam para o hospital público, mais uma vez porque tinha sido operada num hospital particular. Quando quiséssemos, a doente podia ser operada por nossa conta (hospital particular). Logo respondi que não tinha dinheiro para tal operação o que ele encolheu os ombros e mais nada. (será que a Secre-taria Regional da Saúde é que dá essa indicação)?

Resolvi por fim ir à Administração do hospital, fa-lei com a Dra. G.

Primeiro, disse desconhecer o assunto, mas depois de se informar disse-me que a doente estava numa situação estável, estava a ser acompanhada, conti-nuando a afirmar que não tinha sido enviada pelo hospital 1 para o hospital 3. Inclusive, a médica de SU no dia XX/9 afirmou não haver documento a

enviar a doente para o hospital 3 e que tinham um neurocirurgião […] no hospital 1.

Neste mesmo dia, de tarde, mostrei o doc. 1 e a Sra. Diretora Clínica [médica G], mandou marcar passa-gem para o hospital 3 para outro dia (de manhã era estável, de tarde já era urgente?). Ela entrou em con-tato com o Dr. H, deu-lhe o n.º de processo daquele hospital e o Dr. H quis saber a que hora a doente che-garia ao hospital para ele estar à espera, mas quis ver fotos da RM [ressonância magnética] para avaliar a situação. Depois de verificar, devido a uma “bolsa de ar” no cérebro não era aconselhável voar.

Foi-nos transmitido pelas 18 horas pelo Dr. F.Imediatamente fui ter com a Diretora Clínica, Dra.

G, para saber o porquê, tendo ela me dito que para bem da doente, devido aquela situação, era perigo-so voar e que o neurologista do hospital 4 viria com uma equipa no domingo (dia XX/10) e a cirurgia se-ria feita aqui na ilha XXXX, dando a entender que ele vinha de propósito para a operar e para que não corresse perigo. É absolutamente mentira, eu já sa-bia três dias antes que ele vinha nesse dia e naquela semana ia ver doentes e não de propósito para esta situação.

A “bolsa de ar no cérebro” já tinha sido diagnos-ticada na TAC [Tomografia Axial Computadoriza-da] feito a XX/09 (Doc. 8.). Voltei à Sra. Diretora para confrontar com o documento e pedi-lhe que ela mandasse buscar todo o processo à UXXX para veri-ficar e a resposta foi “tenho mais que fazer, não vou perder mais tempo consigo, faça favor e indicou a porta de saída”.

Mas a doente foi operada no dia X de outubro (sa-bíamos que era para ser operada, mas só tivemos conhecimento na hora da visita às XX horas e ela estava na Sala de Recobro). O Dr. B disse-nos que a cirurgia tinha sido bem-sucedida, mas afinal o lí-quido (em menor quantidade) continuou a sair pelo ouvido. O Dr. B informou que ela ficaria com a Dra.

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I e faria uma TAC por semana, se a bolsa de ar dimi-nuísse era enviada para hospital 4, se não seria ope-rada novamente quando o neurocirurgião voltasse ao nosso hospital.

Depois de deixar sair líquido pelo ouvido, começou a ficar retido dentro formando uma “bolsa de água”.

Seguiu-se uma fístula aberta, porta de entrada das bactérias uma infeção grave nos intestinos, depois de feitas análises, RX, colonoscopia verificaram que era uma infeção consequência dos antibióticos que tinham sido administrados. Seguiram-se outras in-feções.

Quem foi negligente, ao criar esta situação?

No dia XX/11, foi-nos preguntado se concordáva-mos que a doente fosse para a unidade de cuidados intensivos, para que ficasse mais resguardada das bactérias e seria acompanhada 24 horas o que na UXXX não era possível.

Sim, com certeza, concordamos se é para bem da doente.

Entrou na [unidade de cuidados intensivos] no fim da tarde do dia XX/11, discreta, consciente, a falar [e a] conhecer as pessoas.

A própria Dra. G esteve com ela.No dia XX/11 de manhã já estava ligada a venti-

lador e em coma induzido. Então quando mudaram para a unidade de cuidados intensivos já sabiam da gravidade. Porque não fomos informados?

No dia XX de manhã estive na unidade de cuida-dos intensivos para saber a situação e uma enfermei-ra apenas me comunicou que o caso era grave.

Marquei reunião com a Sra. Diretora Clínica do hospital 1 que me atendeu no dia XX/11. Qual não é a minha surpresa ela faz-se acompanhar por mais três membros da Direção quando até aquela data ti-nha falado só com ela. Tinha medo de quê? Eu não sou médico, não tinha de ter medo.

Quem me informou que ia inteirar-se da situação foi outro membro da Direção, mas aguardo ainda

a resposta. Porém, um dado concreto ela já tem. A doente faleceu a XX/11.Pergunto:

• Quem estava ao serviço no dia XX/09, quer na triagem, quer no SU [serviço de urgência]? E fez o diagnóstico de infeção urinária, vendo o líqui-do a sair do ouvido, que qualquer pessoa vê não ser normal, a não ser os médicos do SU?

• Porque foi observada pelo Dr. B e não fez a ci-rurgia naquele período?

• Que profissionalismo o médico dá alta no dia XX/09 a uma doente com uma fístula do cérebro aberta, depois de ter estado internada com uma meningite bacteriana?

• É ou não negligência, quando atempadamente o Dr. F quis enviar a doente para o hospital 2 e [não a quiseram] receber?

• Porque o problema do neurologista e neuroci-rurgião era ela ter sido operada num hospital particular, como eles faziam questão de afirmar? Mesmo que tivesse sido, têm todos os utentes di-reito a ser ou não atendidos em hospitais públi-cos?

• Quem assinou a autorização para a cirurgia no dia XX/10?

• Porque não podemos ter acesso ao processo da utente?

• Qual a causa da morte?

(…)”

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3. INFORMAÇÃO CLÍNICA RELEVANTE

3.1. Após análise da informação documental do processo clínico da utente, junto aos autos do processo da IReS, é possível estabelecer o se-guinte historial clínico, de modo diacrónico, incluindo os atos médicos, de enfermagem e analíticos praticados:

[as alíneas a) a mm) do ponto 3.1. são expurga-das por conterem informação clínica da utente]

3.2. Analisados os registos de enfermagem, não se vislumbram aparentes contradições para com o diário clínico ou elementos relevantes dignos de registo (fls. 61, 76 a 92, 189 a 237).

4. LAUDO PERICIAL

4.1. Somos tecnicamente incompetentes para proce-der à avaliação ou discussão de matéria clínica. Havendo dúvidas ou suspeitas fundadas, legíti-mas, plausíveis, decorrentes da análise da prova, em especial do registo clínico e das declarações das testemunhas, que indiciem eventual erro médico ou outra infração do foro disciplinar (ou até criminal), cabe ao instrutor solicitar pedido de peritagem à Inspeção-Geral das Atividades em Saúde, no quadro do Protocolo de Coope-ração Institucional entre a IGAS e IReS – o que se fez – em vista a uma “…justa e rápida decisão do procedimento…” (artigo 87.º, n.º 1, Código do Procedimento Administrativo e artigos 46.º a 48.º, por força do artigo 27.º, n.º 3 do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores da Administra-ção Pública). Naturalmente que o pedido de peritagem origina uma maior delonga proce-dimental, quando comparado com os casos em que a peritagem é liminarmente dispensada.

4.2. Por ofício referência n.º xxxx, de XX-05-2015, a IGAS remeteu laudo pericial assinado pelo Dr. O, Chefe de Serviço de Neurocirurgia do hospital 6, em resposta aos quesitos formula-dos (2).

4.3. Sublinhe-se que toda a informação de suporte ao laudo pericial foi previamente anonimiza-da, isto é, foram retirados todos os elementos nominais das instituições, utente, médicos e reclamantes, por forma a garantir que a perita-gem fosse cega, caucionando assim maior im-parcialidade do perito (cf. apenso n.º 2 proc. 3.3/2014/2).

4.4. Foram efetuados 10 quesitos, a saber (transcre-ve-se ipsis verbis):

Quesitos

1. No atendimento da utente no dia XX-09-2013 no hospital 1, e no contexto de um serviço de urgência e da sintomatologia evidenciada, a médica P de serviço cumpriu com as boas prá-ticas clínicas (cfr. alínea d)? De 0 a 10, consi-derando «0» como manifesto incumprimento e «10» como excelente cumprimento das boas práticas clínicas, que classificação atribuiria?

2. Perante o contexto em concreto, e sopesando os testemunhos X (doc. 32) e X (doc. 31), deveria a médica P ter requerido a intervenção urgen-te de médico especialista em neurologia?

3. Perante o contexto em concreto, e sopesando os testemunhos X (doc. 32) e X (doc. 31), deveria a médica P do serviço de urgência ter interna-do a utente por suspeitas de otorraquia?

4. Deveria a intervenção cirúrgica para encer-

(2) A nomeação do perito foi efetuada pela IGAS. A seleção do perito é feita em função do curriculum e da graduação do perito – usualmente, médicos no topo da carreira médica hospitalar, como foi o presente caso.

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ramento da fístula de liquor (otorraquia) ter sido efetuada antes de XX-10-2013?

5. No caso de resposta positiva à questão ante-rior, seria muito ou pouco provável que a in-tervenção tivesse consequências no estado de saúde da utente? De 0 a 10, considerando «0» como irrelevante e «10» como muito relevante, que classificação atribuiria?

6. Suportando-se no relatório de alta médica, e considerando o testemunho X (doc. 16), do médico D, a alta concedida a XX-09-2013 foi correta ou adequada? De 0 a 10, consideran-do «0» como manifestamente incorreta ou de-sadequada e «10» como e totalmente correta e adequada perante as boas práticas clínicas, que classificação atribuiria?

7. A inexistência de registo clínico entre XX a XX-09-2013, releva na apreciação global do laudo pericial? De 0 a 10, considerando «0» como irrelevante e «10» como muito relevante, que classificação atribuiria?

8. Perante o registo clínico (cfr. alíneas q) a ee) supra), e atendendo ao testemunho n.º X (doc. 30) do médico F a intervenção cirúrgica a XX-10-2013 teve ou não evolução favorável? De 0 a 10, considerando «0» como desfavorável e «10» como favorável, que classificação atribui-ria?

9. Atendendo ao registo clínico de XX-10-2013 (cf. alínea u) supra) e aos testemunhos n.os X (doc. 29 (esp.te linhas 112 e ss.) e X (doc. 30, esp.te linhas 90 e ss.), o líquido que se formou junto do canal auditivo externo, seria a con-tinuação da otorraquia? De 0 a 10, conside-rando «0» como muito provável e «10» como improvável, que classificação atribuiria?

10. Considerando a documentação remetida

para apreciação e o padrão das boas práticas clínicas, de diagnóstico e terapêuticas, há al-gum aspeto que mereça a chamada de aten-ção?

4.5. Em resposta, o perito pronunciou-se do se-guinte modo:

1. A médica P cumpriu a boas práticas clínicas, tendo até anotado que a doente desde a cirur-gia do tumor cerebral mantinha otorreia se-rosa. Não sendo especialista de Neurocirurgia, era muito pouco provável pensar numa fístula de líquor de uma cirurgia efetuada há quase dois anos. Classificação 10.

2. Sendo a médica P de Clínica Geral e Familiar, não tinha obviamente competência em Neu-rocirurgia para estabelecer o diagnóstico de meningite por fístula de líquor pelo que não ter enviado a doente para observação de Neu-rologia não foi má prática médica.

3. Como referido nas respostas aos quesi-tos 1 e 2, a médica P, não sendo especialista de Neurocirurgia, era muito improvável estabelecer o diagnóstico e, como tal, avaliar a sua gravidade e indicar o seu internamento.

4. Em Neurocirurgia qualquer fístula de líquor tem que ser reparada o mais cedo possível pelo elevado risco de meningite bacteriana (que pode ser mortal). A perda de líquor estaria presente desde a altura da cirurgia (de acor-do com o registo clínico inicial da médica P). É estranho que durante quase dois anos, nas consultas de controlo pós-cirurgia do tumor (efetuados por médico neurocirurgião), os familiares ou a própria doente não tenham

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referido esse corrimento pelo ouvido.

5. Pode admitir-se que não seria muito relevan-te pelo facto de a doente já ter meningite. De qualquer modo, as reparações destas fístulas são sempre muito difíceis e o seu resultado muito imprevisível. Classificação 5.

6. O procedimento do médico D foi totalmen-te correto e adequado, tendo até chamado a atenção para a necessidade de nova cirurgia para o encerramento da fístula pela especiali-dade de Neurocirurgia. Classificação 10.

7. Os registos clínicos não deveriam ter desapa-recido, de qualquer modo, o que é de facto re-levante foi a doente ter sido bem tratada da meningite. Classificação 0.

8. A cirurgia efetuada pode ter resolvido o pro-blema essencial: a fístula de líquor. No entan-to, a evolução foi desfavorável pela persistência da meningite, e todo o cortejo de complicações que se sucederam até ao óbito. Classificação 0.

9. Face à dificuldade de encerramento destas fís-tulas, é de admitir que o líquido junto do canal auditivo externo fosse, provavelmente, líquor. Classificação 5.

10. Apenas um aspeto que considero essencial: os doentes operados a patologia neurocirúrgi-ca devem ser observados no “dia-a-dia hospi-talar” por médicos especialistas em Neuroci-rurgia, aplicando-se a todas as especialidades.

5. APRECIAÇÃO

5.1. Os pedidos do expoente resumem-se, no es-sencial, aos seguintes (fls. 1 a 3 APU):

(i) O atendimento da utente no SU, no dia XX-09-2013, cumpriu com as boas práticas clí-nicas?

(ii) Por que a utente foi observada pelo médico B e não fez a cirurgia de modo mais atempado?

(iii) A alta médica concedida a XX-09-2013 res-peitou as boas práticas clínicas?

(iv) Houve negligência médica com o não envio da utente para o hospital 2? O hospital 2 re-cusou-se a receber a utente?

(v) Houve consentimento para a realização da cirurgia a XX-10-2014?

(vi) Por que motivo não foi dado acesso ao fi-cheiro clínico ao expoente?

(vii) Qual a causa de morte da utente?

5.2. Sem embargo de se responder a cada uma das questões, os órgãos administrativos, como é o caso da IReS, não estão submetidos ao disposi-tivo, podendo apreciar todas as situações para além do pedido, no quadro do princípio do inquisitório e da procura da verdade material (artigo 56.º do Código do Procedimento Ad-ministrativo).

5.3. Exceto a prova vinculada ou legal, a prova é de livre apreciação, segundo os juízos de probabi-lidade e as máximas ou regras de experiência do instrutor (artigo 127.º do Código do Pro-cesso Penal e artigo 396.º do Código Civil, ex vi artigo 87.º, n.º 1 do Código do Procedimento

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Administrativo) (3). Precisamente porque exis-te livre apreciação probatória, o instrutor está obrigado a especial fundamentação, suficiente, racional e crítica, de modo a que todas as par-tes envolvidas (participante, tutela, entidade visada, testemunhas, etc.) compreendam o iter cognoscitivo e a motivação da proposta de de-cisão (4).

5.4. A prova testemunhal foi submetida a grava-ção áudio para posterior transcrição em auto. O registo do discurso direto teve em vista re-correr às técnicas de análise de conteúdo (5). A prova carreada no processo foi analisada tendo presente a literatura sobre a credibilidade do testemunho, a prova indiciária e a prova por presunção (6).

5.5. A prova pericial não é vinculativa (artigo 98.º, n.º 2 do Código do Procedimento Administra-

(3) A «livre apreciação» não significa arbitrariedade ou valoração da prova sem critério. Conforme referido no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 31-01-2011, proc. n.º 1149/08.7 GAEPS.G2, a livre convicção “é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade. É uma conclusão livre, porque subordinada à razão e à lógica, e não limitada por prescrições formais exteriores”.(4) Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 1165/96, reiterado pelo acórdão 464/97: “a livre apreciação da prova não pode ser entendida como uma operação puramente subjetiva, emocional e, portanto, imotivável. Há-de traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas de experiência, e dos conhecimentos científicos, que permita (…) objetivar a apreciação dos factos, requisitos necessários para uma efetiva motivação da decisão”. A propósito da decisão judicial, mas igualmente com utilidade para qualquer decisão suportada na livre convicção do julgador, Maria de Fátima Mata-Mouros, Direito à Inocência, Principia, 2007, p.125: “o sistema da íntima convicção (…) comporta riscos consideráveis se não for limitado por uma obrigação estrita de (…) fundamentar a (…) decisão”. (5) Laurence Bardin, L’Analyse de Contenu, Press Universitaires de France, 1977, trad. port. Luís Pinheiro, Análise do Conteúdo, 4.ª ed., Edições 70, Lisboa, 2009; Klaus Krippendorff, Content Analysis: an introdution to is methodology, Sage Publications, London, 2004; Walter Sinnott-Armstrong/Robert J. Fogelin, Understanding Arguments – An Introduction to Informal Logic, 8.ª ed., Wadsworth, Cengage Learning, USA, 2010, pp. 3-16 e 162-178. (6) Luis Filipe Pires de Sousa, Prova Testemunhal, Almedina, Coimbra, 2013, pp. 102 e ss.; idem, Prova por Presunção no Direito Civil, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2013; Ana Sacau, «Credibilidade das Testemunhas: aspetos empíricos da deteção da mentira», in Revista do CEJ, 1.º semestre, n.º 15, Almedina, 2011, pp. 125 e ss.; Manuel Tomé Soares Gomes, «Um Olhar sobre a Prova em Demanda da Verdade no Processo Civil», in Revista do CEJ, 2.º semestre, n.º 3, Almedina, 2005, pp. 127 e ss.; Alberto Augusto Vicente Ruço, Prova Indiciária, Coimbra, 2013, passim, Terence Anderson/David Schum/William Twining, Analysis of Evidence, Cambridge University Press, Cambridge, pp. 65 e ss.; Carlos Ribas, A Credibilidade do Testemunho, (policopiado), Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, Universidade do Porto, 2011; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código do Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª ed., 2009, Universidade Católica Portuguesa, p.451.

tivo) e tem por fim a “…apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários co-nhecimentos especiais que os julgadores não pos-suem…”. A força probatória das respostas do perito é fixada livremente pelo instrutor (arti-gos 388.º e 389.º do Código Civil, por força do artigo 87.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo).

5.6. Analisa-se, em primeiro lugar, as questões co-locadas pelo participante. De seguida, as ques-tões que se suscitam para além do pedido.

(i) O atendimento da utente no SU, no dia XX-09-2013, cumpriu as boas práticas clínicas?

5.7. A resposta é positiva. Um SU tem como fina-lidade, precisamente, atender casos com pa-tologias de resolução urgente, premente, ora mais, ora menos emergentes – donde, o sis-tema de Triagem de Manchester. Conforme testemunho da médica que atendeu a utente, e que reputamos de globalmente credível (7), “…muitas vezes quando um doente recorre ao Serviço de Urgência (…) tem quatro queixas diferentes, em que é uma dor do joelho que já têm há um mês, outra é uma dor de ouvido…e nós [médicos do SU] temos de ver a queixa principal que traz a utente à Urgência, porque não temos muito tempo. Estamos debaixo de muita pressão no nosso trabalho, temos uma fila de espera de muita gente” (fls. 95, linhas 38-45, INQ). Nada há a censurar neste pro-cedimento.

5.8. O depoimento da testemunha Xc, que acom-

(7) Pela razão de ciência, tratando-se de testemunho direto (fls. 94, linhas 4 e 5 INQ). Sem qualquer laço afetivo ou outro com a utente (isenção); com algumas falhas de memória, normais perante o hiato temporal de 6 meses (fls. 94, linhas 9, 38 r 57 a 58 INQ). Discurso simples e espontâneo, sem contradições ou demasiadas hesitações (fls. 95, linhas 22 a 25 INQ). Esforço na recuperação de pormenores. Respeito manifestado pelas partes, nomeadamente a utente.

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panhou a utente ao SU no dia XX-09-2014, é consistente e congruente com o acima referi-do, ao ter declarado que “o médico perguntou-me se ela [a utente] estava a ser acompanhada por um neurologista e eu respondi que sim, que ela acerca de 8 meses tinha ido ao neurologista, tinha feito uma TAC, estava tudo bem, a ope-ração tinha sido bem-sucedida, foi tudo remo-vido, não havia vestígios do tumor. Ao chamar atenção ao corrimento do ouvido, o médico dis-se-me que agora iam tratar do que a minha avó tinha nesse preciso momento e que não iriam tratar das doenças todas da minha avó” (fls. 54, linhas 26 a 32). Mais à frente, refere a mesma testemunha Xc: “eu também comentei que não havia problema, porque no dia seguinte ela tem uma consulta com o seu médico. Ou seja, não me preocupei. Ela estava a ser acompanhada na clínica 5 pelo Dr. Q, a nível particular, pelo que estava descansada que no dia seguinte ele iria estar com o seu médico e o problema ia ser visto” (fls. 54, linhas 39-43 INQ).

5.9. Por conseguinte, a expressão inscrita no pe-dido do participante, de que “o médico foi alertado para o facto de ter ido à urgência pela temperatura e o corrimento do ouvido a resposta foi “não vamos tratar agora das doenças todas da senhora, vá ao médico de família” (ênfase no original) tem um sentido, intenção, ou conteúdo expressivo diferente do conteúdo descritivo que se retira da declara-ção da testemunha que acompanhou direta-mente a utente (fls. 1 APU) (8). A expressão ou

(8) O significado de uma palavra ou expressão linguística pode ser decomposto em duas dimensões distintas: as propriedades que definem o conceito expresso da palavra ou frase; e a classe de entidades que satisfazem essas propriedades e para qual remete o conceito expresso pela palavra. A primeira dimensão denomina-se «sentido», «intensão», «conteúdo expressivo» ou «conotação»; a segunda dimensão qualifica-se como «significado», «extensão», «denotação», «conteúdo descritivo», cfr. AA. VV., Gramática do Português, org. Eduardo Buzaglo Raposo et. alii.¸ vol. I, FCG, 2013, p. 187. A intenção confunde-se com o sentido de uma expressão linguística ou a representação concetual nela contida; a extensão ou denotação, com o objeto sobre a que a expressão se aplica. Por exemplo, as expressões «Mestre de Platão» e «marido de Xantipa» têm a mesma extensão, ambos referem-

proposição enfatizada leva a que um leitor, de boa fé, conclua pela existência de um alerta da acompanhante da utente, seguido de resposta negativa e reencaminhamento para o médico de família em tom diretivo (“…vá ao médico de família). Ou seja, expressa ou intenciona alguma relutância, imperatividade, laivos de prepotência do médico no SU. Da declaração da testemunha que acompanhou a utente, e portanto com conhecimento direto, resulta, contudo, uma convicção diferente: o médico perguntou se a utente estava a ser seguida, não foi uma informação facultada por iniciativa da acompanhante. Ou seja, o médico procu-rou informar-se e perante a resposta da acom-panhante da utente, a testemunha Xc, de que esta encontrava-se a ser acompanhada por médico neurologista, o médico do SU reme-teu o problema do corrimento no ouvido para a consulta da especialidade. A própria teste-munha afirmou que “não havia problema…”.

5.10. O diagnóstico principal para o estado febril da utente foi uma infeção do trato urinário. Segundo a literatura consultada, quer o diag-nóstico, quer o prognóstico, são enquadráveis na sintomatologia verificada, enquanto juízo de diagnose verosímil, provável, segundo o atual estado da técnica – isto é, não reflete in-dícios de má prática médica (9). Não só porque

se a Sócrates, mas diferem no valor intencional ou conotativo: no primeiro caso, uma conotação pedagógica (a relação Mestre/discípulo); no segundo, um significado de parentesco (Xantipa, mulher de Sócrates), do mesmo modo que «ler» e «interpretar», «ver» e «observar» ou «escutar» e «ouvir» têm intensões diferentes, cfr. Joseph Raz, «Why Interpret» in Ratio Juris, vol. 9, n.º 4, 1996, pp. 349-363. (9) A medicina não é uma ciência exata, mas objetiva. Por isso não existem diagnósticos ou prognósticos absolutamente seguros, mas apenas um maior ou menor conhecimento do quadro clínico do doente. O erro faz parte da condição humana e é normal que o médico, como qualquer outro profissional, possa errar. Estando perante um erro, amiúde diabolizado e por isso não assumido, resta então aferir se se trata de um erro censurável ou não censurável. A maior ou menor censurabilidade do erro médico carece de uma apreciação casuística, quer perante as legis artis quer pela lex artis ad hoc, isto é, considerando todo o circunstancialismo objetivo e subjetivo em redor do caso concreto – pois como é comum dizer-se na gíria médica, não há doenças, mas doentes. Como refere Guy Nicolas, La Responsabilité Médicale, trad. A Responsabilidade Médica, Instituto Piaget, 1999, p. 29. “todo o médico cometeu erros de diagnóstico, enganado por vezes

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as infeções do trato urinário são comuns nas pessoas mais velhas – a utente tinha 79 anos –, mas porque assume diferentes formas clí-nicas e bacteriológicas – cistite (bacteriana ou não bacteriana) e pielonefrite – cujo juízo e técnicas diagnósticas aplicadas pela médica estão descritas na literatura (10). Os resultados analíticos (MCDT) confirmaram a suspei-ta, v.g. com “ligeiros vestígios” de eritrócitos, leucócitos e PCR (11) acima dos valores de re-ferência (fls. 28, INQ) (12). A febre, dor abdo-minal ou no flanco, sensibilidade no flanco, náuseas, disúria, são sintomas comuns para a infeção do trato urinário (13) e que foram veri-ficados pelo profissional de saúde (cfr. supra, ponto 3.1., alínea d)).

5.11. A anormalidade do corrimento de líqui-do pelo ouvido e nariz não significa que o médico(a) da SU esteja obrigado a ir além do problema médico que foi diagnosticado como causa para o quadro clínico apresentado – a infeção urinária – e que não se pondere todo o

por sintomas atípicos ou falsamente tranquilizadores, desconcertado por uma evolução imprevisível, surpreendido por uma reação desusada, ou ainda enganado pelo resultado de um exame complementar”. Também António Henriques Gaspar, «A Responsabilidade Civil do Médico», in Coletânea de Jurisprudência, ano III, tomo I, 1978, pp. 335-355 (347): “sendo o diagnóstico formulado uma simples hipótese, uma mera possibilidade, só uma ignorância indesculpável ou esquecimento das mais elementares regras profissionais, que se revelam de modo evidente, poderão determinar a responsabilização por erro de diagnóstico”. Sobre o erro médico, nas suas múltiplas aceções e causas, cfr. José Fragata/Luís Martins, Erro em Medicina, Coimbra, Almedina, 2004; José Fragata, Segurança dos Doentes, Lisboa - Porto, Lidel, 2011; AA. VV. Risco Clínico - complexidade e performance, org. José Fragata, Coimbra, Almedina, 2006; Lucian L. Leape, «Error in Medicine» in Jornal of American Medicine Association, vol. 272, n.º 23, December, Harvard University, 1994; Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, A Negligência Médica Hospitalar na Perspetiva Jurídico-Penal, Almedina, Coimbra, 2013, esp.te pp. 40 e ss.(10) D. J. Propper,«Urinary tract infection in old age» in Urinary Tract Infection – New Clinical Applications Nephrology (G.R.D. Catto, ed.), Kluwer Academic Publishers, Dordrecht/Boston/London, 1989, pp. 87-112; Magnus Grabe, «Diagnosis and Management of Infections of the Urinay Tract», in Urinary Tract Infection – Clinical Perspectives on Urinary Tract Infection, (Abhay Rané/Ranan Dasgupta, ed.), Springer, London/Heidelberg/New York/Dordrecht, 2013, p. 12 e 17 e ss.(11) PCR: Proteína C Reativa, proteína anómala que se encontra no soro sanguíneo em afeções inflamatórias ou em que existe necrose tissular, cfr. Manuel Freitas e Costa, op. cit., p. 1003.(12) Magnus Grabe, op. loc. cit., p. 17: “Urine dipstick test for leukocytes esterase and nitrate is basic, easy, and reliable in most infections. The first demonstrate the presence of leukocytes in the urine or pyuria (≥10 WBC/mm 3). The second displays the presence of bacteria.”(13) Magnus Grabe, op. loc. cit., p. 16.

circunstancialismo em redor da situação con-creta, maxime o prévio acompanhamento da utente por médico especialista em neurologia. Dito de forma coloquial, não cabe ao médico do SU tratar das doenças todas, sobretudo se a utente tinha no dia seguinte uma consulta com o seu médico assistente, sob pena de um serviço de urgência deixar de o ser. Não foi apurada relação causal entre o estado febril da utente e o corrimento do ouvido.

5.12. A estas considerações deve adicionar-se o referido pelo perito: a médica que observou a utente não é especialista em neurologia ou neurocirurgia, mas em medicina geral e fami-liar, pelo que não lhe era exigível o prognós-tico de fístula.

5.13. Ora, tendo em conta esta circunstância, e se o SU é isso mesmo, um serviço médico para ca-sos urgentes, prementes, que podem – e geral-mente são – posteriormente acompanhados por outros profissionais médicos – geralmen-te especialistas; se foi diagnosticado como principal causa para o quadro febril da utente uma infeção urinária; se esse diagnóstico en-quadrava-se nos sintomas referidos na litera-tura da especialidade; se as técnicas empre-gues pela médica não indiciaram desvio das boas práticas clínicas; se a acompanhante da utente referiu inclusivamente não haver pro-blema com a decisão médica em apreciação, até porque a utente no dia seguinte teria uma consulta com o seu médico assistente; não se vislumbram factos fundados, sequer indi-ciários, de violação das boas práticas clíni-cas em SU. Conforme referido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, “um mau resultado não prova, sem mais, um mau tratamento” (14).

(14) Coletânea de Jurisprudência, ano XXIII, tomo IV, 1998, pp. 130 e ss.

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(ii) Por que a utente foi observada pelo médico B e não fez a cirurgia de modo mais atempado?

5.14. Segundo o médico neurocirurgião, testemu-nha B, o caso da utente foi-lhe apresentado a XX-09-2013 (fls. 82, linhas 8). Sublinhe-se que pelas razões referidas supra na alínea k), ponto 3.1., não existe registo clínico entre o período de XX a XX-09-2013 (15). Em todo o caso, a data referida é consistente com todo o trajeto diacrónico da doença da utente – a XX-09-2013 ainda se encontrava internada na UXXX.

5.15. Durante esse período a utente encontrava-se com uma meningite bacteriana, isto é, um quadro inflamatório das meningites cerebrais (16). Conforme refere o médico neurocirur-gião, “…fazer uma cirurgia a um doente in-fetado [ele] corre riscos altíssimos de originar uma infeção generalizada, a que chamamos sépsies, para além dos próprios riscos anes-téticos. Apesar da meningite, a doente estava orientada, colaborante, conversava comigo” (fls. 82, linhas 17 a 20).

5.16. Segundo o perito, “em neurocirurgia qualquer fístula de líquor tem de ser reparada o mais cedo possível…” (fls. 132, apenso 2). Sucede que é do conhecimento comum que os hos-pitais são fonte de infeções nosocomiais, isto é, infeções contraídas no próprio ambiente hospitalar devido ao elevado número de bac-térias nesses locais (17). Perante o quadro clíni-co da utente, já operada a meningioma e com suspeitas de sequelas pós operatórias, com um quadro inflamatório neurológico, qual-quer intervenção cirúrgica, inclusivamente

(15) Situação que adiante merecerá observação autónoma. (16) Manuel Freitas e Costa, op. cit., p. 758. (17) Infeções que parecem impossíveis de uma erradicação completa, mas tão só a atenuação, cfr. Vera Lúcia Raposo, Do Ato Médico ao Problema Jurídico, Almedina, Coimbra, 2013, pp.268 e ss.

exploratória, representaria um ato invasivo, uma agressão, mesmo que para fins curativos. Como refere a testemunha B, médico neuro-cirurgião, “quando uma pessoa está para ser operada, basta ter uma infeção urinária, uma faringite ou uma constipação, que já não é ope-rada” (fls. 83, linhas 26-28).

5.17. É referido que a meningite se encontrava controlada. A utente é internada na UXXX a XX-09-2013, com um diagnóstico de me-ningite. Aguarda 6 dias para ser vista pelo médico neurocirurgião que permanecia tem-porariamente no hospital 1 – no qual não há profissionais médicos dessa subespecialidade. Pese embora a inexistência de registos clíni-cos, as declarações do médico são credíveis com todo o desenvolvimento diacrónico, em particular com o ato médico praticado a XX-09-2013, isto é, 5 dias após a observação e alta médica, ainda que condicionada, com a uten-te referenciada para consulta em neurologia.

5.18. Neste contexto, uma decisão para uma inter-venção cirúrgica – com os riscos anestésicos associados – no contexto situacional atrás apontado, seria, essa sim, desaconselhável. Sublinhe-se que o corrimento no ouvido apa-rentava ser uma sequela de intervenção ci-rúrgica pretérita, ocorrida há algum tempo. Não se vislumbra, assim, indício de erro de diagnóstico, prognóstico ou de planeamento, muito menos de execução, quanto à não reali-zação da cirurgia de modo mais atempado (18). Sublinhe-se que em contexto hospitalar o tra-balho em equipa multidisciplinar é cada vez mais a regra, enquanto manifestação da medi-cina contemporânea, o que não significa que

(18) James Reason, Human Error, Cambridge University Press, Cambridge, 1990, p. 9.

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a pluralidade de centros de imputação impeça de aferir o(s) responsável(eis) pela equipa(s) (19). É o que se constata dos autos: a utente foi acompanhada de modo multidisciplinar e a intervenção cirúrgica não foi realizada com maior antecedência por motivos fundados, que não indiciam má prática clínica.

(iii) A alta médica concedida a XX-09-2013 res-peitou as boas práticas clínicas?

5.19. A inexistência do respetivo ficheiro clínico re-lativo o período em que a utente esteve inter-nada na UXXX, de XX a XX-09-2014 merece censura e vigoroso alerta. Com efeito, é da exclusiva responsabilidade da entidade (hos-pital) e dos profissionais de saúde envolvidos, assegurar a preservação do ficheiro clínico, no quadro do dever de informação e de re-gisto a que estão legalmente obrigados (artigo 3.º, n.º 1 da Lei n.º 12/2005, de 26 de janeiro; artigo 100.º do CDOM) (20).

5.20. A inexistência do obrigatório registo clínico pode ter consequências civis, disciplinares, contraordenacionais e até criminais (v.g. ar-tigo 38.º, n.º 1, alínea b) e artigo 45.º da Lei n.º 67/98, de 26 de outubro – Lei de Proteção de Dados), incluindo a inversão do ónus da prova no caso de processos cíveis (21). Confor-

(19) Álvaro da Cunha Rodrigues, A Negligência Médica Hospitalar na Perspetiva Jurídico-Penal, Almedina, Coimbra, 2013, p.280, Vera Lúcia Raposo, op. cit., p.297. Isto não significa que a alteração da tradicional prestação médica isolada em detrimento da sua integração em equipa não acarrete problemas e dificuldades, nomeadamente falhas, acidentes, erros, ou eventos adversos.(20) André Gonçalo Dias Pereira, «Dever de documentação, acesso ao processo clínico e sua propriedade», in Revista Portuguesa do Dano Corporal, ano XV, n.º 16, 2006, pp. 9-24; Guilherme de Oliveira, «O fim da arte silenciosa», in Temas de Direito da Medicina, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, pp. 91 e ss. (21) Manuel Rosário Nunes, O ónus da prova nas ações de responsabilidade civil por atos médicos, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2007; Luis Filipe Pires de Sousa, «Ónus da prova na responsabilidade civil médica. Questões processuais atinentes à tramitação deste tipo de ações (competência, instrução, do processo, prova pericial)», Revista do CEJ, n.º 16, CEJ, 2011, pp.37-80; André Gonçalo Dias Pereira, Responsabilidade médica e consentimento informado. Ónus da prova e nexo de causalidade, Conferência no Centro de Estudos Jurídicos e Judiciários de Macau, 2008.

me o artigo 344.º, n.º 2 do Código Civil, “há (…) inversão do ónus da prova, quando a par-te contrária tiver culposamente tornado im-possível a prova ao onerado…”. Não obstante a censura que a inexistência de ficheiro clínico merece, e sendo impossível analisar o acompanhamento facultado à utente entre XX e XX-09-2013 é possível, porém, aferir dos indícios da prova carreada (testemunhal, pericial e relatório médico de alta, cfr. alínea l) do ponto 3.1. supra).

5.21. O médico que acompanhou e concedeu a alta médica à utente internada na UXXX referiu ter alertado a família para “…o risco e nova infeção e que estivessem muito atentos, pois se surgisse febre, sonolência ou outro sinal de alarme, fossem imediatamente ao Serviço de Urgência e não esperassem pela data da con-sulta” agendada para o dia XX, com o médi-co neurocirurgião E. Facto confirmado pela acompanhante da utente (fls. 126, linhas 74 a 76 e fls. 56, linhas 118-119). Segundo o mé-dico responsável, foi instituída “…terapêuti-ca antibiótica adequada e a doente respondeu muito bem. Ficou rapidamente sem febre, os parâmetros inflamatórios foram regredindo e ao fim de 10 dias a doente estava completa-mente assintomática: sem febre, com melhoria do estado de consciência e com todos os parâ-metros normalizados” (fls. 124, linhas 13 a 17). Facto corroborado no relatório de alta médica (ponto 3.1., alínea l) supra) e pela testemunha acompanhante (fls. 55-56, linhas 83 a 88).

5.22. Para além da significativa melhoria da utente, outra razão para a alta médica da UXXX foi a de que “…seria pior se ficasse no hospital, uma vez que estaria exposta às bactérias mais agres-sivas do meio hospitalar” até porque a fístula continuava aberta, com ligação ao meio am-

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biente e por isso suscetível de novo processo inflamatório (fls. 125, linhas 23 a 35). Cabe aos profissionais de saúde acautelar o risco as-sociado aos internamentos hospitalares, sob pena responsabilidade pelo risco (22). Subscre-ve-se, pois, o laudo pericial: o procedimento foi “…totalmente correto e adequado…” (fls. 133, apenso 2).

5.23. Para além da alta médica, pode perguntar-se se foi correto remeter a resolução da causa da meningite – a fístula – para o cirurgião que operou a utente no hospital 3. Dá-se como provado que o médico C entrou em contato com o neurocirurgião E (fls. 126, linhas 63 a 67). É boa prática clínica, e até deontologica-mente exigível (artigo 137.º, n.º 1 do Código Deontológio da Ordem dos Médico - CDOM), que as eventuais correções de sequelas pós operatórias sejam, tanto quanto possível, cor-rigidas pelo médico que procedeu à interven-ção pretérita (fls. 86, linhas 127; fls. 88, linhas 77 e 78; fls. 100, linhas 22 e 23; fls. 112, linhas 40,). O que bem se compreende, pois o pro-fissional que operou em primeiro lugar terá à partida melhor conhecimento do caso do que outro médico que não participou na interven-ção. Sucede que o médico neurocirurgião E já não tinha qualquer vínculo com o hospital 1, facto que originou um conjunto de falhas de comunicação, que adiante se analisarão.

5.24. Perante a factualidade apurada, e não obstan-te a censura quanto à inexistência do fichei-ro clínico referente aos períodos de interna-mento entre XX e XX-09-2014, atendendo ao particular contexto em análise, a respos-ta à questão inicial é, pois, negativa: não se vislumbram quaisquer indícios de má prá-tica clínica, quanto à alta médica atribuída

(22) Cf. ponto 5.16 supra.

no dia XX-09-2014.

(iv) Houve negligência médica com o não envio da utente para o hospital 2? O hospital 2 recusou-se a receber a utente?

5.25. Antes de analisar eventuais indícios de ne-gligência, é líquido concluir que houve con-fusão desnecessária, deficiências no circuito de informação, com recorrentes falhas na sua transmissão, todas suscetíveis de correção. Da prova junta aos autos, há que distinguir duas situações: (i) a deslocação para o hospital 3 ou 4; e (ii) a deslocação para o hospital 2.

5.26. (i) A razão para a utente não ter sido deslo-cada para o hospital 3 ou 4 foi exclusivamen-te clínica, nomeadamente pela existência de um pneumoencéfalo (23). Conforme refere o médico cirurgião B, “a doente nunca teve con-dições para sair daqui porque, apesar de per-feitamente lúcida e colaborante, a bolsa de ar que tinha no crânio expandia com o diferen-cial de pressões de uma viagem aérea, e uma expansão da bolha de ar implica uma com-pressão no parênquima cerebral, o que podia provocar um coma” (fls. 87, linhas 171 a 174). Do mesmo modo, o médico H, do hospital 3, referiu à diretora clínica, a médica G, que “…a senhora tem uma situação clínica [que se cha-ma pneumoencéfalo, bolha de ar no cérebro] que não permite fazer viagem aérea!’ (…) (fls. 84, linhas 1 a 26). Em suma, não se colocam

(23) O pneumoencéfalo é suscetível de ocorrer em variadas situações, nomeadamente após neurocirurgia, cfr. I-H. Lee/C-K. How/J-D. Chen/T-F. Hsu, «Spontaneous pneumocephalus», in Internal Medicine Journal, vol. 41, n.º 12, 2011, pp. 842: “Pneumocephalus can occur after head and facial trauma, neurosurgery, neoplasm and from infection with a gas-forming organism”. Clemens M. Schirmer/Carl B. Heilman/Anish Bhardwaj, «Pneumocephalus: case illustrations and review» in Neurocritical Care, vol. 13, n.º 1, 2010, pp. 152-158 (155): “head position, duration of surgery, nitrous oxide (N2O) anesthesia, hydrocephalus, intraoperative osmotherapy, hyperventilation, spinal anesthesia, barotauma, continuous CSF drainage via lumbar drain, epidural anesthesia, infection (otitis media), and neoplasms include some of the intra- and perioperative contributing factors in the development of pneumocephalus.”.

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quaisquer dúvidas de que a impossibilidade de deslocação para os hospitais 3 ou 4 deveu-se a razões objetivas, de natureza clínica.

5.27. (ii) No que concerne à deslocação para o hos-pital 2, o médico F referiu que o médico R, do hospital 2, disse-lhe que “…a situação era complicada e era melhor recorrer ao hospital 4 ou 3 …” onde a utente havia sido operada ini-cialmente (fls.111 e 112, linhas 21 a 24 INQ). Esta recomendação vai de encontro do que foi dito no ponto 5.23 acima, ou seja, sendo possível, é recomendável que o médico que procedeu à primeira intervenção seja quem realize as novas intervenções, por ter melhor conhecimento do caso clínico.

5.28. Segundo a testemunha, médico cirurgião B, “fazer uma viagem de helicóptero para o hospi-tal 2, num voo rasante, até seria possível, mas não traria benefício nenhum, em meu enten-der, sendo que eu vinha cá daí a 15 dias” (fls. 87, linhas 155 a 161). Questionado sobre se o tempo de espera de 15 dias não seria pre-judicial à utente, a testemunha respondeu que era “…o tempo necessário para eliminar a infeção que estava ativa. E estamos a falar de uma doente que durante este tempo todo esteve bem, mesmo quando foi operada e durante o pós-operatório” (fls. 87, linhas 162 a 165 INQ). Aquando do seu internamento, urgente, a XX-09-2013 na UXXX, o quadro clínico da utente manteve-se “…estável, apirética [sem febre], sem queixas, vigil e consciente, ligeira otorraxis de O.E.” (fls. 105, INQ- Apenso). (cf. 3.1., alínea p) supra). Ou seja, as declarações da testemunha, médico B, são consistentes com o inscrito no registo clínico.

5.29. O médico neurocirurgião B deslocava-se ao hospital 1 em poucos dias (a intervenção ocorreu no dia XX-10-2013, 6 dias após o 2.º

internamento); a utente encontrava-se está-vel, ainda que a merecer intervenção cirúr-gica; a intervenção cirúrgica realizou-se sem intercorrências; a deslocação para o hospital 2 implicaria, necessariamente, alguns riscos, típicos da evacuação, quer do ponto de vis-ta logístico, quer clínico (pneumoencéfalo). Donde, não parece que a decisão clínica de intervir a doente no hospital 1, optando por não a deslocar para o hospital 2, tenha sido contrária às boas práticas clínicas, no contex-to em apreciação.

5.30. Não se vislumbra, pois, indícios de ne-gligência médica quanto ao não envio da utente para os hospitais 2, 3 ou 4: ao invés, tratou-se de uma decisão clínica e logística prudente, coerente, adequada. O quadro clí-nico da utente – pneumoencéfalo – implicava riscos na deslocação de avião ou de helicópte-ro, para além de se aceitar que a ponderação para a intervenção fosse efetuada pelo médico E, neurocirurgião que efetuou a primeira in-tervenção mas que, à data dos factos, já não tinha qualquer vínculo com o hospital 1 (fls. 112, linhas 40).

(v) Houve consentimento para a realização da ci-rurgia a XX-10-2014?

5.31. O direito ao consentimento informado está plasmado, direta ou indiretamente, em di-versos preceitos e diplomas: no artigo 5.º da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina; artigo 3.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia; artigo 25.º da Constituição da República Portuguesa; como decorrência do artigo 70.º do Código Civil; artigos 156.º e 157.º do Código Penal; Base XIV, n.º 1, alínea e) da Lei de Bases da

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Saúde – Lei n.º 48/90, de 24 de agosto); e ar-tigo 44.º a 47.º do CDOM. Sublinhe-se igual-mente a recomendação na Norma de Orien-tação Clínica (NOC) da DGS, n.º 015/2013, de 03-10-2013, com última atualização a 14-10-2014, com a epígrafe «consentimento in-formado, esclarecido e livre dado por escrito» (24).

5.32. O hospital 1 não enviou documento no qual conste consentimento escrito da utente, muito menos o seu esclarecimento, nem se vislum-bra a junção de tal documento no registo clí-nico na posse do instrutor. Donde, pergunta-se: foi violado o consentimento informado?

5.33. A forma do consentimento pode ser escri-ta, oral, expressa ou tácita (artigo 48.º, n.º 1 CDOM) (25). Segundo o CDOM, “o consenti-mento escrito ou testemunhado é exigível em casos expressamente determinados pela lei ou regulamento deontológico”. Ou seja, à partida, o regulamento que aprova o CDOM não im-pede o consentimento formulado oralmente nos casos não previstos na lei, como sucede com as intervenções cirúrgicas. Sucede que o CDOM é um regulamento, ainda que reforça-do pela Convenção Sobre os Direitos do Ho-mem e a Biomedicina. E como regulamento administrativo não se sobrepõe à legislação ordinária, estando ao invés obrigado a respei-tá-la (artigo 112.º, n.os 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa). Pelo que deve ser nes-ta sede, da legislação ordinária, que se deve procurar a resposta para o caso concreto (26).

(24) Disponível em http://www.dgs.pt/directrizes-da-dgs/normas-e-circulares-normativas/norma-n-0152013-de-03102013.aspx, última consulta 27-01-2015. (25) Admitindo expressamente o consentimento tácito, cfr. Rabindranath Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, Coimbra, 1995, p. 220, nota 446; João Vaz Rodrigues, O Consentimento Informado para o Ato Médico no Ordenamento Jurídico Português, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, p.26.(26) Pareceres do Conselho Consultivo da PGR n.os 21/2011, de 14 de julho e 35/2012, de 14 de fevereiro, este último apenas disponível no sítio da IReS à data de 26-01-2015.

5.34. O consentimento informado do doente assen-ta numa forte componente bioética, mais do que a mera legalidade estrita (27). O consenti-mento escrito e formal é obrigatório nos casos expressamente previstos na lei: é o que sucede com o diagnóstico pré-natal, nomeadamen-te amniocentese, biópsia das vilosidades co-riónicas, cordocentese, drenagem, amnioin-fusão (Circular Normativa n.º 16/DSMIA, de 5 de dezembro de 2001, da Direção-Geral da Saúde); a interrupção voluntária da gravidez (artigo 142.º, n.os 4, 5 e 6 do Código Penal e Lei n.º 16/2007, de 17 de abril); a procriação medicamente assistida (artigo 14.º, n.º 1 da Lei da Procriação Medicamente Assistida, aprovada pela Lei n.º 32/2006, de 26 de ju-lho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro); esterilização voluntária por laqueação tubar e vasectomia (artigo 10.º da Lei n.º 3/84, de 24 de março, relativa à educação sexual e planeamento fa-miliar); o transplante e colheita de órgãos e tecidos humanos em vida do dador (Lei n.º 12/2009, de 26 de março e Lei n.º 12/93, de 22 de abril); a experimentação e investigação em seres humanos (artigo 16.º, alínea v da Con-venção de Oviedo e Lei n.º 21/2014, de 16 de abril); as intervenções em doentes do foro mental (artigo 5.º, n.º 1, alínea d) e artigo 5.º, n.º 2 da Lei da Saúde Mental, aprovada pela Lei n.º 36/98, de 24 de julho e alterada pela Lei n.º 101/99, de 26 de julho); e nos testes de biologia molecular.

5.35. Para além dos casos legalmente previstos, tem sido entendimento pacífico de que todos os atos médicos de diagnóstico ou terapêuticos que impliquem risco acrescido para o doente

(27) Como refere Wibren Van Der Burg, «Law and Bioethics» in Companion to Bioethics, 2.ª ed., Blackwell Publishing, United Kingdom, 2001, p. 56: “Legal and ethical doctrines on topics like informed consent have been developed through close cooperation between lawyers and ethicists”.

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devem ser precedidos de consentimento por escrito (alíneas q) e r) da NOC n.º 015-2013). É o que sucede com as intervenções cirúrgi-cas, como foi o presente caso.

5.36. Na situação ora em análise, não só não houve consentimento por escrito como não há evi-dência de que, a ter ocorrido o consentimen-to, ele tenha sido informado ou esclarecido. Por conseguinte, pode desde já concluir-se que não foram respeitadas as guidelines ou boas práticas clínicas quando à obtenção do consentimento por escrito e informado, tendo havido tempo ou oportunidade para o efeito, como facilmente se retira do regis-to clínico e das declarações das testemunhas, nomeadamente de que a utente esteve colabo-rante, lúcida, de que não era uma intervenção emergente, ainda que urgente, e que a gene-ralidade do corpo clínico já tinha concluído como impreterível a realização do ato cirúr-gico de encerramento da fístula (cfr. fls. 87, linhas167 e 168 INQ). Houve possibilidade para uma oportuna recolha do consentimen-to escrito da utente.

5.37. Não tendo sido cumpridas as guidelines, per-gunta-se: daqui resulta impreterivelmente a violação do consentimento pela utente? Pro-pendemos pela negativa. É manifesto que o incumprimento das NOC origina um ónus probatório para os profissionais de saúde, pois têm de justificar por que se afastaram do que foi ou é considerado um procedimento padrão. Pese embora as NOC, enquanto re-comendações, tenham relevância jurídica, consentem, porém, que o profissional de saú-de não as siga nos casos devidamente justifi-cados, ou seja, as NOC não são de aplicação irrestrita ou cega, sob pena de violar a auto-nomia técnica e científica do profissional de

saúde (28). No presente caso, sublinhe-se, não se vislumbra situação justificativa para a não obtenção tempestiva do consentimento.

5.38. Independentemente de o ónus da prova de que houve consentimento, presumido ou tá-cito, incidir sobre os profissionais de saúde (29), é possível, contudo, aferir da sua existên-cia a partir da livre apreciação da prova car-reada nos autos e das presunções de facto ou naturais que o instrutor pode socorrer-se (30). Conforme já sublinhado, cabe à Administra-ção Pública a procura da verdade material, no quadro do princípio do inquisitório, no pleno respeito das normas sobre a atividade proba-tória (artigos 56.º e 87.º, n.º 1 e 88.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo) (31).

5.39. Todos os atos médicos praticados ao longo do internamento da utente foram no senti-

(28) Maria João Estorninho/Tiago Macieirinha, Direito da Saúde, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, p.224. (29) Conclusão que não é pacífica, pois também é possível defender o inverso, isto é, de que será o paciente ou os seus familiares a demonstrar que não houve consentimento da utente, cfr. Guilherme de Oliveira, «Prática Médica, informação e consentimento», in Coimbra Médica, n.º 14, 1993, p. 170 e Miguel Teixeira de Sousa, «Sobre o ónus da prova nas ações de responsabilidade civil médica», in Direito da Saúde e Biotética, Lisboa, 1996, pp. 123-144. A partir do momento que existe uma NOC que serve de padrão para aferir o estado da arte (legis artis) ou das boas práticas clínicas, e que recomenda expressamente o consentimento escrito no caso de intervenções cirúrgicas, e considerando a dificuldade do paciente (ou quem atue investido no seu direito) provar factos negativos, a inversão do ónus da prova previsto no artigo 344.º, n.º 2 do Código Civil parece ter plena aplicação (artigo 88º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo). (30) A prova por presunções naturais, de facto ou judiciais, são usualmente trabalhadas na perspetiva do julgador – que não deve ser confundido como «juiz». Ora, o instrutor também julga com a finalidade de propor a decisão final, na medida em que Administração Pública se encontra submetida ao princípio da oficialidade e da verdade material (artigos 56.º e 87.º do Código do Procedimento Administrativo). As presunções são as ilações que se tiram de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido. As presunções naturais ou de facto são as que resultam das regras de vida, das máximas de experiência ou do curso típico dos acontecimentos (cfr. Alberto dos Reis, Código do Processo Civil Anotado, III, Coimbra, 4.ª ed., 1985, pp. 248 e ss.). As presunções naturais assentam em factos-indiciários, ora a partir do procedimento (endoprocessuais) ora fora do processo (exoprocessuais). A prova por presunções é uma decorrência do princípio da verdade material (Manuel Rosário Nunes, op. cit., p.27), pelo que não se vislumbra qualquer impedimento de o instrutor de um processo administrativo de inquérito recorrer às presunções naturais ou de facto – artigo 351.º do Código Civil – por força da remissão da parte final do n.º 1 do artigo 87.º e n.º 1 do artigo 88.º, ambos do Código do Procedimento Administrativo.(31) O formalismo das regras de repartição do ónus é temperado pela livre apreciação da prova, à semelhança do que propugnou Miguel Teixeira de Sousa, op. loc. cit., p. 141: “assiste ao tribunal [leia-se: instrutor] a faculdade de considerar, na própria avaliação da prova, as naturais dificuldades da sua realização e de, nessas circunstâncias, julgar suficiente uma prova que, noutra situação, não seria bastante para a prova do facto.”

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do de debelar a doença da utente, em vista a realizar o ato cirúrgico de encerramento da fístula, procedimento tido por necessário (32). A doente manteve-se colaborante, orientada e os familiares foram informados de que a utente iria ser intervencionada (fls. 82, linhas 19 e 21, fls. 126, linhas 74 a 76; fls. 134, linhas 86 - INQ).

5.40. O participante veio questionar por que a in-tervenção cirúrgica não foi realizada mais cedo. Ora, afigura-se-nos inconsistente vir depois questionar se foi dado o consentimen-to para essa intervenção (33). O consentimen-to por escrito, pelo menos entendido de uma forma cega e abstrata, não é imune à crítica (34); sublinhe-se que o registo clínico da utente encontra-se devidamente documentado – ex-ceto quanto ao internamento de XX a XX-09-2013. Sem descurar o relevante papel da família junto da utente, sobretudo um doente de risco pela patologia e idade (35) e do direi-to a serem informados, no caso em análise, e

(32) O indício da necessitas, no quadro da semiótica probática, refere que a carência de algo que ajuda um organismo a conservar a sua vida, ou bem-estar ou a progredir no seu modo de vida, ativa a conduta, sendo causa desta, cfr. Luis Filipe Pires de Sousa, Prova por presunção…cit., p. 210. (33) O participante tem o direito a exigir a manifestação do consentimento. O que se está apenas aferir é o juízo de verosimilhança e probabilidade na existência de consentimento presumido, através de presunções naturais: se o expoente veio exigir a razão que esteve na base de a intervenção cirúrgica não ter sido realizada mais cedo, é legítimo presumir, segundo as regras lógicas e máximas de experiência, que a intervenção cirúrgica era, então, pretendida; e sendo pretendida, estaria consentida.(34) Relembre-se o que se disse a propósito das NOC, no ponto 5.37 supra. Sobre os limites do consentimento informado, de forma crítica, cfr. Walter Osswald, «Limites do consentimento informado», in Estudos de Direito da Biotética, vol. III, APDI, Almedina, Coimbra, 2009, p.154, sublinhando o “…exagerado e até hiperbólico valor dado à autonomia…” que, devendo ser respeitada, “…necessita de ser equacionada dentro do quadro de outros princípios normativos do agir, tais como a beneficência, a não maleficiência (o primum non nocere hipocrático), a justiça, a solicitude…”; alertando que “entregar a decisão última ao paciente subalterniza a competência e o papel do médico: este assemelha-se um pouco a um empregado de mesa que enuncia ao cliente os itens do menu, para que este escolha no fim o que mais lhe agradar; o doente sairá prejudicado se lhe for confiada a decisão, pois frequentemente escolherá a pior alternativa, por preconceito, falso juízo ou influência de familiares ou amigos; não vale a pena falar tanto de participação do doente no processo de decisão, quando é certo que grande parte dos pacientes não deseja obter informações pormenorizadas e delega de bom grado no profissional de saúde a decisão em causa. ‘Faça como faria se fosse o doente’, ou ‘se este fosse a sua mulher ou seu filho ou outro familiar’ – são expressões que qualquer médico com prática clínica já ouviu muitas vezes”. (35) André Gonçalo Dias Pereira, «Valor do consentimento num estado terminal», in Estudos de Direito da Bioética, (coord. José Oliveira de Ascensão), vol. IV, APDI, Almedina, Coimbra, 2012, pp. 42 e ss.

por toda a factualidade apurada, admite-se o consentimento presumido da utente, tole-rante à intervenção cirúrgica (waiver excep-tion), aliás desejada (36).

5.41. Conforme decorre do n.º 3 do artigo 340.º do Código Civil, “tem-se por consentida a lesão quando esta se deu no interesse do lesado e de acordo com a sua vontade presumível” (37). Do mesmo modo, a NOC n.º 015/2013, no pon-to I, refere que “há consentimento presumido quando as circunstâncias permitem supor que a pessoa titular teria consentido se conhecesse as circunstâncias em que o ato diagnóstico ou terapêutico é praticado”.

5.42. Mas mesmo que, por hipótese, se afastasse o consentimento presumido, sempre seria de aplicar o consentimento hipotético, en-quanto manifestação do comportamento lícito alternativo, ou seja, relevando a causa virtual positiva (38). Dito de outro modo: se o

(36) Orlando de Carvalho, apud João Vaz Rodrigues, op. cit., p. 26 refere o consentimento tolerante como aquele em que não se atribui qualquer direito, nem se faz qualquer compromisso, mas aceita-se a intervenção, legitimando-se um poder factual de agressão que exclui a ilicitude, v.g. a intervenção cirúrgica para a receção de um rim pelo paciente que dele carece (“o médico tem o dever, que não o direito, de intervir…”). Stephen Waer, Informed Consent – Patient Autonomy and Physician Beneficience withins Clinical Medicine, Springer Science+Business Media, Dordrecht, 1993, refere a waiver excetion, como o caso em que “o paciente voluntariamente desiste do direito a ser informado e consente, em adiantamento, no que o médico considera ser a forma de ação adequada” (tradução livre: no original: “…the patient voluntarily gives up the right to be so informed and consents, in advance, to what the physician considers the appropriate form of action). Sobre o consentimento presumido no âmbito penal, cfr. Maria da Conceição Ferreira da Cunha, «Das omissões lícitas no exercício da medicina» in AA. VV., As Novas Questões em Torno da Vida e da Morte em Direito Penal – Uma perspetiva Integrada», org. José de Faria Costa, Inês Fernandes Godinho, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, p.102 (37) Conforme refere Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, p. 577, “cabem na órbita do n.º 3 do artigo 340.º, por exemplo, as intervenções cirúrgicas indispensáveis ao tratamento de pessoas em estado de não poderem manifestar a sua vontade”. No caso concreto, a utente teve oportunidade de manifestar a sua vontade. Sucede, porém, que tendo vindo a falecer, a questão coloca-se nos mesmos moldes: é de presumir que a utente teria consentido na intervenção, tratando-se de um procedimento necessário, o único que permitiria o encerramento da fístula? Consideramos admissível a presunção de resposta positiva.(38) A causa virtual é um facto, real ou hipotético, que tenderia a provocar certo resultado se este não fosse causado por outro facto, neste caso através de uma causalidade antecipada, cfr. Ana Prata, Dicionário Jurídico, vol. I, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, pp. 251-252; Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, Almedina, Coimbra, 3.ª ed., 2003, pp. 348-350; Almeida Costa, op. cit., pp. 767-770; André Gonçalo Dias Pereira, Responsabilidade médica…cit. p. 30-31.

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consentimento informado tivesse sido reque-rido à utente ou seus familiares, seria ou não provável ou verossímil que ele fosse concedido (39)? Mesmo que, por hipótese, não tivesse sido possível obter o consentimento, seria ou não exigível ao médico neurocirurgião a interven-ção cirúrgica? Toda a factualidade aponta no sentido positivo, isto é, de que seria altamente provável ou verosímil que o consentimento tivesse sido concedido ou da exigibilidade da intervenção pelo médico cirurgião.

5.43. A (in)existência do consentimento deve pon-derar a urgência, a necessidade, a perigosida-de, a novidade do tratamento e a gravidade da doença (40). Conforme resulta do registo clínico, da prova testemunhal e da prova pe-ricial, a intervenção cirúrgica era o único procedimento que poderia embargar o qua-dro infecioso das meningites cerebrais, por a fístula detetada ser uma porta de entrada de bactérias.

5.44. Dito isto, não se deve, porém, menorizar a violação dos procedimentos atinentes à ob-tenção do consentimento escrito e informa-do, fosse através da utente, fosse através dos familiares. Pelo que se deve desde logo alertar que as situações de consentimento presumido ou hipotético devem ser a exceção do proce-dimento regra, devendo o C.A. do hospital 1 determinar a obrigatoriedade de consenti-

(39) No âmbito do direito probatório, deve ter-se presente a clara distinção entre certeza, verdade, verosimilhança e probabilidade, conceitos não equivalentes nem redutíveis entre si. A certeza é um estado subjetivo elevado ou muito elevado da intensidade de convencimento quanto à veracidade de um enunciado – o que não significa que seja efetivamente veraz, pois a circunstância de se ter um convencimento errado não transforma o erro em verdade. A verosimilhança corresponde à normalidade de um certo tipo de condutas ou acontecimentos (id quod plerumque accidit), o que ocorre na generalidade dos casos, em situações normais. A probabilidade diz respeito às razões válidas para se inferir um enunciado como verdadeiro ou falso. Finalmente, a verdade depende da realidade do acontecimento a que o enunciado se refere, cfr. Luis Filipe Pires de Sousa, Prova por Presunção…cit., p.139-141.(40) André Gonçalo Dias Pereira, Responsabilidade médica e consentimento informado. Ónus da prova e nexo de causalidade, Conferência no Centro de Estudos Jurídicos e Judiciários de Macau, 2008, p. 12.

mento por escrito em todas as intervenções cirúrgicas – exceto as intervenções simples de curta duração, para tratamento de afeções sobre tecidos ou estruturas de fácil acesso, com anestesia local (alínea q) do ponto 5 da NOC n.º 015/2013), ou em que o utente não tem capacidade para o manifestar. Esta regra assegura, inclusivamente, a posição da insti-tuição e profissionais de saúde em potenciais litígios, administrativos ou jurisdicionais, pois “a existência de um documento mostra que o utente foi posto perante a alternativa de assinar ou não assinar…” (41).

(vi) Por que motivo não foi dado acesso ao fichei-ro clínico ao expoente?

5.45. A informação clínica é propriedade do utente. O titular dessa informação tem direito a co-nhecer o processo clínico, salvo nos casos de privilégio terapêutico (42) (n.os 1 e 2 do artigo 3.º da Lei n.º 12/2005, de 26 de janeiro). Certo é que todos os profissionais de saúde médi-cos estão adstritos ao dever de documentação (artigos 573.º e 575.º do Código Civil, artigo 100.º do CDOM) (43).

5.46. Segundo o participante, ao solicitar à diretora clínica o processo clínico da utente sua fami-liar teve como resposta “tenho mais que fazer, não vou perder mais tempo consigo, faça favor [e indicou a porta de saída]” (fls. 2, APU e fls. 134, linhas 84 a 86). Segundo a diretora clíni-ca, o participante havida dito para que fosse buscar o processo, em tom diretivo (“vá bus-car o processo, vá buscar o processo”), ao que

(41) Guilherme de Oliveira, «Prática…» cit., p. 168. Cf. Wibren Van Der Burg, op. loc. cit., p. 57, “Law emphasizes, partly for reasons of proof, external acts rather than internal intentions, whereas many ethical theories do the reverse”.(42) O privilégio terapêutico ocorre quando o médico considera que a transmissão da informação clínica poderá ser prejudicial ao próprio doente, podendo, assim, não a transmitir – cfr. Stephen Wear, Informed Consent – Patient Autonomy and Physician Beneficience withins Clinical Medicina, Springer Science+Business Media, Dordrecht, 1993, p. 16.(43) André Gonçalo Dias Pereira, «Dever de documentação…», cit., p. 13.

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a médica e diretora clínica havia respondido que “…se quisesse ter acesso, tinha que pedir autorização por escrito aqui na Administra-ção” (fls. 67, linhas 100 a 102 - INQ).

5.47. Antes de apreciar as declarações contraditó-rias de ambas as testemunhas, é conveniente esclarecer se o acesso ao ficheiro clínico era ou não devido. Em primeiro lugar, é muito questionável se no momento em que foi pe-dido o acesso ao ficheiro a diretora clínica estaria obrigada a facultá-lo, pois tratava-se de uma fase extra-processual, ou seja, a utente ainda se encontrava em tratamento, ainda es-tavam a ser ministradas técnicas terapêuticas. A alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º da Lei n.º 67/98, de 26 de outubro, refere que “o titular dos dados tem o direito de obter do responsável pelo tratamento [dos dados], livremente e sem restrições, com periodicidade razoável e sem demoras ou custos excessivos: (…) b) a comuni-cação, sob forma inteligível, dos seus dados su-jeitos a tratamento e de quaisquer informações disponíveis sobre a origem desses dados”. Deste enunciado resulta que o acesso é concedido ao titular dos dados, no caso, a utente e não ao seu familiar, ora participante. Por outro lado, o acesso pressupõe uma periodicidade razoável para a obtenção dos dados, ou seja, no caso concreto não seria exigível à diretora clínica facultar o ficheiro clínico de imediato, ainda que tal não signifique a ocorrência de “demoras” conforme a norma acima transcri-ta. Pelo que se compreende que o acesso fosse limitado por razões temporais e objetivas (44).

5.48. Em segundo lugar, aceita-se que o acesso deve ser feito de modo formal, isto é, por escrito.

(44) O ficheiro clínico, por regra, é composto por vários documentos, sobretudo num contexto multidisciplinar hospitalar, o que obriga, objetivamente, a algum tempo para a sua constituição (diários clínicos das diferentes especialidades intervenientes; diários de enfermagem; MCDT, atos médicos de diagnóstico, etc.)

Pelo que, do mesmo modo, não merece cen-sura que a diretora clínica tivesse indicado ao participante a formalização do pedido.

5.49. Em terceiro lugar, é duvidoso que o partici-pante tivesse legitimidade para aceder ao pro-cesso clínico da utente, sua familiar. Mesmo tratando-se de um pedido efetuado pela filha da utente Xb, o acesso ao ficheiro clínico por terceiros não é líquido, mesmo a título de gestão de negócios (artigo 62.º, n.º 1 Código do Procedimento Administrativo; artigo 3.º, n.º 3 da Lei n.º 12/2005, de 26 de Janeiro e artigo 464.º do Código Civil). Isto não signi-fica que o expoente ou familiares da utente não devessem ser informados. Mas o direito à informação não se confunde com o direito ao acesso ao processo clínico, onde consta a informação clínica. Isto porque a informação clínica tem natureza sensível, pessoal e na ge-neralidade é confidencial.

5.50. Pelo que no momento em que o processo clí-nico foi solicitado pelo participante, a direto-ra clínica não estava obrigada a entrega-lo no mesmo momento ou imediatamente, gozando de um período razoável para o fa-zer, ainda que sem demoras injustificadas. Para além disso, o participante não tinha legitimidade nem o direito de requerer o acesso ao ficheiro clínico, mas tão só o di-reito a ser informado, sem a disponibiliza-ção do ficheiro onde constasse a informação clínica (45).

5.51. Sem embargo do que acima foi dito, não fica afastada a apreciação quanto ao modo como foi recusado o acesso ao ficheiro clínico. E pe-rante as posições contraditórias entre partici-pante e diretora clínica, só através de factos

(45) Alexandre Brandão da Veiga, Acesso à Informação da Administração Pública pelos Particulares, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 60 e ss.

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indiciários, presunções naturais ou de facto e aos correspondentes juízos de probabilidade e verosimilhança, é que se mostra possível re-tirar uma conclusão sobre a credibilidade das afirmações.

5.52. Reconhece-se que perante os elementos pro-batórios carreados ao processo, o participante tem um perfil reivindicativo, dominante, até algo exaltado (fls. 50, linhas 154 e 155, fls. 68, linhas 124 a 127; fls. 77, linhas 48 a 56; fls. 88, linhas 204 a 207; fls. 103, linhas 107 a 110; fls. 112, linhas 51 a 53; fls. 117, linhas 20 a 22). E conceda-se igualmente que perante uma série de confusões no que respeita à transmissão e tratamento da informação – que se analisará adiante – o participante, com o seu concre-to perfil, facilmente se exasperasse, até por pressão da situação familiar, gerando ilações erradas, observações despropositadas, des-confianças e declarações sem fundamento (46).

5.53. Cabe, então, aos profissionais de saúde, e em particular à direção clínica enquanto elo de ligação com as diferentes especialidades mé-dicas, dominar noções básicas ou técnicas de gestão de conflitos, ainda que rudimentares. E não as dominando, remeter para quem as domine. Mesmo que por hipótese o expoente tivesse pedido o processo clínico em tom di-retivo ou mais exaltado, a diretora clínica não se deveria ter dirigido ao expoente como se

(46) Espelhadas, inclusivamente, na própria participação, nomeadamente quanto à confusão ocorrida sobre se a utente tinha ou não sido operada num hospital particular. O participante levanta uma questão infundada, de certa forma até conspirativa: “será que a Secretaria Regional da Saúde é que dá essa indicação?”. Outros indícios referem-se à discussão do diagnóstico clínico, sem que o participante tenha conhecimentos técnicos para o efeito, ou sem se suportar em razão de ciência ou em literatura: “no relatório da alta menciona no exame objetivo abdómen inocente” (fls. 1 – APU); “gostaria de chamar a atenção que o relatório de alta menciona no exame objetivo “abdómen inocente” (fls. 329, INQ-Apenso) – ênfases no original; ou “e fez o diagnóstico de infeção urinária, vendo o líquido a sair do ouvido, que qualquer pessoa vê não ser normal, a não ser os médicos do SU?” (fls. 3, APU). Retirar ilações de quadros clínicos observáveis ou da utilização de linguagem técnica (abdómen inocente) sem qualquer domínio de ciência, ou sem termos de guarda, revelam imprudente temeridade. Sublinhe-se que abdómen inocente significa, tão só, inexistência de sintomatologia de infeção na zona abdominal.

dirigiu. Dá-se como veraz o depoimento do participante sobre a resposta da diretora clíni-ca (“tenho mais que fazer, não vou perder mais tempo consigo, faça favor e indicou a porta de saída” (fls. 2, APU e fls. 134, linhas 84 a 86) por um conjunto de indícios que descredibili-zam o testemunho da diretora clínica quanto a este facto em particular: não soube respon-der qual foi a reação do queixoso após ter sido informado de que teria de pedir o acesso ao ficheiro por escrito (47), quando seria provável que o participante efetuasse o pedido e não que se ausentasse, a não ser por ter efetiva-mente recebido indicação de expulsão do lo-cal; a própria diretora clínica reconhece que “…posso ter dito para ele [o participante] sair de uma forma mais exacerbada...”, embora não se recordando das palavras em concreto (fls. 67, linhas 108 a 115, INQ) (48).

5.54. Conforme referido pelo próprio utente – e confirmado por outras testemunhas – “eu queixo-me é da maneira como fomos tratados e como empataram isto tudo. (…) Acho que isso é uma conversa muito triste para uma diretora clínica” (fls. 134, linhas 84 e 87.), sentimento corroborado por outras testemunhas insus-peitas, de que os familiares estavam “…muito saturados e revoltados…acham que não lhes foi dada alguma informação…” (fls. 49, linhas 148). Em suma: não esteve bem a diretora clínica no quadro de uma potencial gestão de conflitos com o participante quando este solicitou o processo clínico – mesmo que o participante não tivesse, no momento, legi-timidade para o efeito.

(47) A testemunha recordou-se do pormenor de o pedido do expoente ter sido feito em tom diretivo (“vá buscar o processo, vá buscar o processo!”); recordou-se do pormenor em relação à sua resposta ao expoente, isto é, para que ele efetuasse o pedido por escrito à Administração; mas à questão imediatamente seguinte, feita pelo instrutor, sobre a reação do expoente à sua resposta, a diretora clínica respondeu “não me lembro exatamente qual foi a reação na altura”, concentrando-se sempre na agressividade do expoente.(48) Quanto à seletividade da lembrança, cfr. nota anterior.

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(vii) Qual a causa de morte da utente?

5.55. A resposta encontra-se plasmada no certifica-do de óbito, referido na alínea mm) do pon-to 3.1 supra: choque séptico; colite pseudo-membranosa; patologia da tiróide, fístula de liquor pós-operatória por meningioma (fls. 104 INQ-Apenso).

5.56. O quadro infecioso pré e pós-operatório não levantam indícios de má prática clínica, aten-dendo às diversas comorbilidades da utente.

6. OUTROS FACTOS PARA ALÉM DO PEDIDO

6.1. Conforme referido acima, o instrutor pode apreciar outros factos para além do pedido. Destacam-se três: (i) a confusão na prestação de informação ao expoente e familiares quan-to à deslocação da utente e à circunstância da mesma ter recebido tratamento em hospital particular; (ii) a conduta do médico C; (iii) (in)sucesso da intervenção cirúrgica de encer-ramento da fístula, realizada a XX-10-2013.

(i) Informação sobre a deslocação da utente

6.2. Esta questão foi parcialmente analisada nos pontos 5.25 a 5.30 supra: existiram falhas de informação que também contribuíram para a exacerbação do expoente.

6.3. As sucessivas falhas de comunicação induzi-ram em erro o participante, a acompanhante da utente e a filha da utente. A começar pelo telefonema do médico F a informar a acom-panhante da utente, testemunha Xc, para que os seus pais “…se preparassem porque prova-velmente ela [a utente] teria de ser evacuada

durante a noite de helicóptero”. Facto que foi confirmado pela acompanhante da utente: “Desliguei o telemóvel, fiquei um bocado sem saber o que fazer e voltei a ligar para o hospital. Estive a falar com o Dr. F novamente e pergun-tei-lhe: ‘ó doutor F, é mesmo assim, temos mesmo de fazer as malas?’ e ele disse ‘tem, tem. Façam já as malas, venham já para o hospital porque esta senhora vai ser evacuada ainda hoje para o hospital 2 de urgência’ ” (fls. 57, linhas 136 a 143). Sucede que o médico em questão, quan-do por nós questionado, omitiu ter chamado os familiares da utente para uma deslocação de urgência para o hospital 2 (fls. 111 e 112).

6.4. A omissão do médico F quanto ao telefonema efetuado e à recomendação aos familiares para se dirigirem ao hospital para uma deslocação de urgência para o hospital 2, é indiciador, so-bretudo se se aliar a qualidade do testemunho: vago, genérico, sem indicação de quaisquer pormenores; sem indicação de estados tem-porais ou espaciais. O testemunho da acom-panhante da utente, acima transcrito, consi-dera-se ao invés muito credível. O testemunho do médico, embora não indiciando falsidade é manifestamente incompleto. Refere o médi-co ter telefonado para o diretor do serviço de neurocirurgia do hospital de 3 e de que esse médico (sem nunca mencionar o seu nome) lhe havia informado que a doente só podia via-jar de avião de baixa altitude (fls. 112, linhas 29 a 31). Sucede que esse contato foi efetuado após sugestão da diretora clínica do hospital 1, que antes havia contatado o referido diretor de serviço, o médico H, do hospital 3, e ao ler as informações na sua posse o médico referiu “ ‘ó colega, mas a senhora tem uma situação clí-nica [que se chama pneumo encéfalo, bolha de ar no cérebro] que não permite fazer viagem aé-rea!’ (…) Perguntei [ao médico H] se não tinha

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havido um contato prévio do médico assistente, Dr. F, com o Dr. H a explicar o caso, ao que ele respondeu ‘não, não, não’. Combinámos então que o Dr. F falaria com ele (…). Nesse dia, 3 de outubro, informei o Dr. F da indicação do Dr. H…” (fls. 84, linhas 1 a 26).

6.5. Ou seja, o médico F precipitou-se ao telefonar para os familiares da utente, a fim de se prepa-rarem para uma deslocação que, por motivos clínicos e logísticos, não era aconselhável. Si-tuação, aliás, que o médico F estaria obrigado a saber por já ter conhecimento desse quadro clínico através de TAC de XX-09-2013 (fls. 305 INQ Apenso).

6.6. A responsabilidade pela confusão gerada pode ser imputada às seguintes pessoas, por ordem de relevância: ao médico F, por ter dado infor-mação intempestiva; o médico C, ao questio-nar se a deslocação para o hospital 3 teria sido feita pelo hospital 1 ou a título particular (fls. 56, linhas 91 a 94, fls. 102, linhas 78 a 81-INQ), quando tal informação era irrelevante – infor-mação e articulação que cabia à diretora clínica e não ao médico C (alíneas c) e g) do artigo 9.º do Apêndice II do Decreto Legislativo Regio-nal n.º 2/2007, de 24 de janeiro – Estatutos dos Hospitais EPER); à diretora clínica, sem infor-mação completa da história clínica da utente, desconhecendo o pneumoencéfalo e sem uma articulação entre todos os intervenientes (fls. 65 e 66, linhas 54 a 63); a que se deve adicio-nar também o participante, com desconfianças infundadas, dado que as deslocações para o hospital 3 e para o hospital 2 só não ocorreram pelo estado clínico da utente.

6.7. Se o médico F tivesse consultado, de forma ponderada e pormenorizada o relatório da TAC de XX-09-2013, na qual já se concluía pela existência de uma pneumoencéfalo, ou ti-

vesse discutido o caso com colegas seus neuro-cirurgiões e só depois entrasse em contato com os familiares do utente (49); se o médico C se tivesse abstido de observações laterais, irrele-vantes, quanto ao título da deslocação pretérita para o hospital 3 – ou, não sabendo, então que tivesse aguardado para obter mais informação e que a própria acompanhante da utente dis-ponibilizou-se a dar, através de contato com o participante, mas ignorada pelo médico C (fls. 56, linhas 96, fls. 102 linhas 81 a 84 INQ); se a diretora clínica tivesse acompanhado o caso em articulação com os diferentes intervenien-tes; se o expoente fosse mais prudente nas con-clusões que foi retirando; toda esta situação seria evitável.

6.8. Em suma: houve manifestas falhas na trans-missão e tratamento da informação quanto à deslocação da utente para o hospital 3 e 2 e que, afinal, nunca poderia ocorrer por razões clínicas. As falhas/confusão na transmissão da informação são imputáveis, por ordem de relevância, aos médicos F, C, diretora clínica e, em menor relevância, ao próprio expoente.

(ii) Conduta do médico C

6.9. Finalmente, cabe sublinhar que a conduta do médico C foi, a todos os títulos, incorreta. Em primeiro lugar, por recorrer a expressões coloquiais: se tais expressões ainda se podem admitir num contexto particular entre cole-gas, são porém inadmissíveis se verbalizadas à frente dos familiares da utente – no caso, a acompanhante da utente. A expressão “quem fez a porcaria que resolva”, indicando que a intervenção cirúrgica deveria ser efetuada

(49) Contato que, afinal, nunca seria efetuado. Duvida-se mesmo se este tipo de contatos com os utentes deveria ser feito pelo próprio médico assistente ou se pelos serviços do hospital, de modo a evitar, precisamente, a transmissão de informação contraditória como veio a suceder.

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pelo médico que fez a primeira interven-ção à utente no hospital 3, viola o dever de correção a que o médico está obrigado, po-dendo, inclusivamente, originar responsa-bilidade disciplinar e deontológica (artigo 73.º, n.º 1 alínea h) e n.º 10 do Anexo à Lei n.º 35/2014, de 20 de junho; artigo 128.º, n.º 2 do CDOM).). Dever de correção, quer em relação ao utente quer em relação aos colegas médicos.

6.10. O médico C imputou essa expressão ao médi-co neurocirurgião. (fls. 105, linhas 160). Tes-temunho manifestamente contraditório com o da acompanhante da utente que presenciou o facto (fls. 56, linhas 102 a 104). Sopesando, porém, a conduta do médico perante a filha e sogro da utente, não surpreende atribuir maior credibilidade ao testemunho da acom-panhante da utente – até por este se ter reve-lado bastante consistente.

6.11. Com efeito, o médico C informou a filha e sogro da utente de que a deslocação para o hospital 3 não poderia ser efetuada por não haver protocolo com o hospital 1 quando, na realidade, essa situação não só deveria ser es-tranha ao médico como estaria afastada por razões clínicas. Perante os testemunhos ana-lisados, no que concerne ao facto em apre-ciação, reputa-se como muito credíveis os testemunhos do participante e da sua esposa, e como muito pouco credíveis o testemunho do médico (fls. 102, linhas 74 a 84; 118, li-nhas 40 a 43; fls. 135, linhas 113 a 115). As testemunhas demonstraram assertividade nas declarações, inclusivamente com perdas de memória, naturais, em especial atendendo ao perfil da filha da utente, mais passivo, mas que apresentou forte convicção quanto a este facto – inclusivamente suportado em âncoras

(fls. 119, linhas 57 e 58 INQ). Ao contrário do médico C que nunca soube responder quem lhe tinha dado a informação de a utente ter sido deslocada para um hospital privado; nunca respondeu diretamente às perguntas do instrutor; não negou a conversa tida com ambas as testemunhas; apresentou perda de memória seletiva (fls. 104, linhas142 a 144), remetendo sempre para expressões genéricas e vagas, como “embrulhadas”, “confusões”, ora com vitimização, ora culpabilizando o perfil do expoente (fls. 101, linhas 50 a 53, fls. 103, linha 94 e 111 a 115).

6.12. Não bastasse, afigura-se como muito credível o testemunho de que o médico em questão sugeriu ao expoente e à sua esposa para que, se quisessem, levassem a utente do hospital 1 a fim de ser operada a suas expensas (fls. 104, linhas 142 a 144; fls. 118, linhas 49 a 51; fls. 134, linhas 76 a 83). Esta conduta é inad-missível, de todo censurável, suscetível de infração disciplinar e deontológica.

(iii) (In)Sucesso da intervenção cirúrgica a XX-10-2013

6.13. Uma dúvida que se colocou ao expoente e familiares foi quanto ao (in)sucesso da in-tervenção cirúrgica. Segundo o expoente, “o Dr. B disse-nos que a cirurgia tinha sido bem sucedida, mas afinal o líquido (em menor quantidade) continuou a sair pelo ouvido (…) Depois de deixar sair pelo ouvido, começou a ficar retido dentro formando uma “bolsa de água. Seguiu-se, com fístula aberta, porta de entrada das bactérias, uma infeção grave nos intestinos (…) verificaram que era uma infeção consequência dos antibióticos que tinham sido administrados. Seguiram-se outras infeções.

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Quem foi negligente, ao criar esta situação” (fls. 2 APU).

6.14. Segundo o perito, “…é de admitir que o líqui-do junto ao canal auditivo externo fosse, pro-vavelmente, líquor”, dando uma classificação de 5 numa escala de probabilidade de 0 a 10. Também existe registo clínico quanto à dúvi-da se a intervenção cirúrgica fora bem-suce-dida (cf. alínea u) ponto 3.1. supra).

6.15. Em todo o caso, destaca-se que o eventual insucesso da intervenção cirúrgica sempre se enquadraria no risco próprio da ativida-de, sem que existam indícios de violação das boas práticas clínicas. Embora o perito refira que “…os doentes operados a patologia neuro-cirúrgica devem ser observados no “dia-a-dia” hospitalar por médicos especialistas em Neu-rocirurgia…” há que apreciar o caso à luz da concreta realidade (lex artis ad hoc): um hos-pital insular, com um número de habitantes reduzidos, sem profissionais de todas as espe-cialidades (…). Donde, mesmo que se atri-bua mediana probabilidade de insucesso da cirurgia à fístula, no dia XX-10-2013, não se verificam indícios de erro médico e ou de má prática clínica, tratando-se, tão só, do risco clínico inerente à intervenção.

7. CONCLUSÕES, RECOMENDAÇÕES E PROPOSTAS

7.1. Analisada a prova carreada nos autos, conclui-se pelo seguinte:

a) Não se vislumbram indícios fundados de vio-lação regras da boa prática clínica em SU.

b) A utente foi acompanhada de modo multi-

disciplinar e a não intervenção cirúrgica de modo mais atempado não levantam dúvidas ou suspeitas.

c) A inexistência de registo clínico, por extra-vio, pode ter consequências civis, disciplina-res, contraordenacionais e até criminais.

d) Não obstante a censura quanto à inexistên-cia do ficheiro clínico referente ao período de internamento entre XX e XX-09-2014, aten-dendo ao particular contexto em análise, não se vislumbram indícios de má prática clínica quanto à alta médica atribuída no dia XX-09-2014.

e) Não há indícios de negligência médica pela decisão de não enviar a utente para o hospi-tal 2; nem o hospital 2 se recusou a receber a utente, assumindo uma posição prudente em face do melindre clínico do caso concreto.

f) Não foram respeitadas as guidelines ou boas práticas clínicas quando à obtenção do con-sentimento por escrito e informado.

g) Não obstante, no caso em análise, e por toda a factualidade apurada, admite-se o consenti-mento presumido da utente, tolerante quanto à intervenção cirúrgica, aliás desejada.

h) Mas mesmo que, por hipótese, se afastasse o consentimento presumido, sempre seria de aplicar o consentimento hipotético, enquan-to manifestação do comportamento lícito al-ternativo, ou seja, relevando a causa virtual positiva.

i) O expoente não tinha legitimidade para re-querer o acesso ao ficheiro clínico, a não ser a filha da utente – partindo do pressuposto que a utente se encontrava incapacitada para o pedido; e mesmo nesse caso seria discutível

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se perante a fase extra-processual seria de en-tregar o processo clínico ou apenas cumprir com o dever de informação, mas sem a dis-ponibilização do ficheiro clínico.

j) Não esteve bem a diretora clínica na gestão de conflito com o participante quando este solicitou acesso o processo clínico – mesmo que o participante não tivesse legitimidade para o efeito.

k) A causa da morte da utente foi choque sép-tico; colite pseudomembranosa; patologia da tiróide, fístula de liquor pós-operatória por meningioma.

l) Houve várias falhas na transmissão e no tratamento da informação quanto às deslo-cações da utente para o hospital 3 e 2 que, afinal, nunca poderiam ocorrer por razões objetivas, de natureza clínica.

m) As condutas praticadas pelo médico C apon-tam para a violação do dever de correção a que o médico estava adstrito, podendo ori-ginar responsabilidade disciplinar e deonto-lógica.

7.2. Tendo por base as conclusões e respetivos fun-damentos, recomenda-se:

a) Que o C.A. do hospital 1, ou pessoa por com funções delegadas, assegure, junte da respeti-va direção clínica, a averiguação e correção do extravio da informação clínica da utente, re-lativa ao internamento de XX a XX-09-2014.

b) Que o C.A. do hospital 1, ou pessoa por com funções delegadas, assegure impreterivel-

mente, junto das respetivas direções de ser-viços, o cumprimento da NOC n.º 015/2013 relativa à obtenção do consentimento infor-mado, por escrito – exceto nas situações pre-vistas na lei ou de impedimento devidamente justificado – de modo a evitar futuras situa-ções de responsabilização do hospital ou dos médicos intervenientes.

c) Que o C.A. do hospital 1, ou pessoa por com funções delegadas, implemente circuitos de transmissão e tratamento da informação, em vista a evitar comunicações precipitadas, ge-radoras de expetativas infundadas junto nos utentes e seus familiares.

d) Que o C.A. do hospital 1, ou pessoa por com funções delegadas, admoeste, alerte ou ins-taure procedimento disciplinar ao médico C, por indícios fortes de violação do dever de correção.

Angra do Heroísmo, 20 de maio de 2015

O relator

Paulo Jorge Gomes

Jurista. Inspetor Regional da Saúde

Regras de estilo dos artigos a submetidos aos Cadernos da IReS

Os Cadernos da IReS aceitam a submissão de artigos analíticos enviados para o endereço de correio eletrónico [email protected]. Os textos são submetidos a avaliação pelo Conselho Redatorial, tendo em conta os seguintes critérios:1. Pertinência e interesse do tema;2. Atualidade;3. Capacidade argumentativa;4. Clareza e correção, quer a nível ortográfico quer expositivo;5. Cumprimento das regras de estilo.

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3. Os artigos têm como limite máximo 15.000 palavras.4. O título do artigo deverá constar em português e inglês.5. O autor deve elaborar um resumo em português e inglês com o

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15. A abreviação da palavra «número» deve igualmente respeitar a regra anterior (n.º e não nº).

16. Incentiva-se a utilização da indicação dos diplomas legais por extenso (v.g. v.g. Constituição da República Portuguesa, Código Civil, Código dos Contratos Públicos, Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas).

17. No caso de serem utilizadas abreviaturas, siglas ou acrónimos, independentemente da área científica a que respeitam (direito, medicina, enfermagem, gestão, etc.) – v.g. CRP, CC, CCP, LGTFP, TAC, AVC, MCDT, PCR, ICD-9-CM – a expressão deve ser descodificada na sua primeira utilização, consoante o idioma da abreviatura (v.g. Constituição da República Portuguesa, Código Civil, Código dos Contratos Públicos, Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, Tomografia Axial Computadorizada, Acidente Vascular Cerebral, Meios Complementares de Diagnóstico e Tera-pêutica, International Classification Diseases, 9th Revision, Clinical Modification) – v.g. “…realizou uma Tomografia Axial Computa-dorizada (TAC)…”

18. A regra antecedente por ser substituída por um pequeno quadro no início do texto, com a descodificação das abreviaturas, ou ao longo do texto através de notas de rodapé na primeira utilização da abreviatura, sigla ou acrónimo.

19. A citação de manuais/monografias de autores, textos em obras coletivas ou obras feitas em colaboração, obras estrangeiras (tra-duzidas ou não), obras de autoria de instituições, jurisprudência, casos decididos ou de hipernexos (hiperlinks) devem respeitar as regras 32 a 47 do MANUAL DE PROCEDIMENTOS da IReS (pp. 15-19), disponível em linha no endereço http://www.azores.gov.pt/Portal/pt/entidades/srs-irs/ .

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