nos traÇos das primeiras letras: um perfil sÓcio … · 2020-01-17 · 2 garantir a moralização...

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1 NOS TRAÇOS DAS PRIMEIRAS LETRAS: UM PERFIL SÓCIO-RACIAL DAS ESCOLAS PRIMÁRIAS DO PARANÁ, ENTRE A ESCRAVIDÃO E O PÓS-ABOLIÇÃO 1 Noemi Santos da Silva 2 Introdução Pensar historicamente no intercâmbio educacional da população negra desde os tempos da escravidão é acessar um assunto repleto de interações com os debates atuais que versam os direitos básicos dos cidadãos brasileiros. A defesa da educação enquanto um direito universal passou dos debates ilustrados às pautas de governantes, sendo ainda bandeira de lutas políticas no plano social, protagonizadas não apenas por elites letradas, mas também por sujeitos do cotidiano como professores, pais de alunos e demais interessados pela educação escolar. Principalmente depois que a alfabetização foi incorporada como condição para o alistamento eleitoral em 1881, o direito à escolarização passou a se relacionar com a cidadania política, passando a figurar nas pautas reivindicatórias de trabalhadores, deixando de estar restrito aos assuntos da infância 3 . As lutas pela universalização do ensino ocorreram em um momento crucial de reorganização da sociedade brasileira. Com o fim gradual do regime de escravidão, governos e elites pensavam em medidas de assimilação dos libertos que não rompessem com as estruturas hierárquicas de dominação do contexto escravista. Nesse sentido, promover o acesso à instrução 4 era também 1 Texto apresentado no 9º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Florianópolis (UFSC), de 14 a 18 de maio de 2019. Anais completos do evento disponíveis em http://www.escravidaoeliberdade.com.br/ 2 Doutoranda em História Social Cecult/Unicamp. Bolsista Fapesp (processo nº 2017/ 11628-1) e-mail: [email protected] 3 Sobre a expansão da ideia de “instrução popular” durante o século XIX, Cf. SCHUELER, Alessandra Frota Martinez. Educar e instruir: a instrução popular na Corte imperial 1870-1889. Dissertação (mestrado em História). Programa de mestrado e doutorado em História da UFF. Niterói, 1997. 4 A ideia de “instrução” estava agregada ao ideal de “educação” na medida em que compreendia a escola como principal vetor de inserção educacional das novas e velhas gerações. Esses preceitos se encontram definidos em Luciano Mendes de Faria Filho. “Instrução elementar no século XIX”. In: Eliane M. T. Lopes; Luciano M. Faria Filho; Cynthia G. Veiga (Orgs.). 500 anos de educação no Brasil. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

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NOS TRAÇOS DAS PRIMEIRAS LETRAS: UM PERFIL SÓCIO-RACIAL

DAS ESCOLAS PRIMÁRIAS DO PARANÁ, ENTRE A ESCRAVIDÃO E O

PÓS-ABOLIÇÃO1

Noemi Santos da Silva2

Introdução

Pensar historicamente no intercâmbio educacional da população negra desde os tempos da

escravidão é acessar um assunto repleto de interações com os debates atuais que versam os direitos

básicos dos cidadãos brasileiros. A defesa da educação enquanto um direito universal passou dos

debates ilustrados às pautas de governantes, sendo ainda bandeira de lutas políticas no plano social,

protagonizadas não apenas por elites letradas, mas também por sujeitos do cotidiano como

professores, pais de alunos e demais interessados pela educação escolar. Principalmente depois que

a alfabetização foi incorporada como condição para o alistamento eleitoral em 1881, o direito à

escolarização passou a se relacionar com a cidadania política, passando a figurar nas pautas

reivindicatórias de trabalhadores, deixando de estar restrito aos assuntos da infância3.

As lutas pela universalização do ensino ocorreram em um momento crucial de reorganização

da sociedade brasileira. Com o fim gradual do regime de escravidão, governos e elites pensavam em

medidas de assimilação dos libertos que não rompessem com as estruturas hierárquicas de

dominação do contexto escravista. Nesse sentido, promover o acesso à instrução4 era também

1 Texto apresentado no 9º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Florianópolis (UFSC), de 14 a 18 de maio de 2019. Anais completos do evento disponíveis em http://www.escravidaoeliberdade.com.br/ 2 Doutoranda em História Social – Cecult/Unicamp. Bolsista Fapesp (processo nº 2017/ 11628-1) e-mail:

[email protected] 3 Sobre a expansão da ideia de “instrução popular” durante o século XIX, Cf. SCHUELER, Alessandra Frota Martinez.

Educar e instruir: a instrução popular na Corte imperial – 1870-1889. Dissertação (mestrado em História). Programa

de mestrado e doutorado em História da UFF. Niterói, 1997. 4 A ideia de “instrução” estava agregada ao ideal de “educação” na medida em que compreendia a escola como

principal vetor de inserção educacional das novas e velhas gerações. Esses preceitos se encontram definidos em Luciano

Mendes de Faria Filho. “Instrução elementar no século XIX”. In: Eliane M. T. Lopes; Luciano M. Faria Filho; Cynthia

G. Veiga (Orgs.). 500 anos de educação no Brasil. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

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garantir a moralização e o controle necessários à ordem social naquela era de transformações5. Já do

ponto de vista dos que deixavam a escravidão, o acesso às primeiras letras era carregado de

significados positivos como a facilitação do trabalho, a autonomia e até mesmo a respeitabilidade6.

Nesse espaço, pretendemos debater a escolarização da população negra, da escravidão ao

pós-abolição, partindo de um estudo minucioso sobre a composição das escolas públicas de

instrução primária do Paraná. Para cumprir com esse propósito, faremos inicialmente uma revisão

historiográfica com os principais trabalhos que debateram essa questão. Seguiremos com um quadro

geral da escolarização infantil na segunda metade do século XIX paranaense, somaremos dados

relativos à educação de adultos no final do século para, assim, chegar a um perfil sócio-racial das

escolas primárias do Paraná, privilegiando a escolarização de escravizados, libertos e negros livres

na província. Esse levantamento numérico ajudará a conhecer as diversas faces da inclusão/

exclusão institucional que permearam o acesso à escola básica, tais como os fatores ligados à faixa

etária, gênero, ocupação, entre outros, ajudando a vizualisar quais as barreiras interpostas àqueles

que buscaram assegurar esse direito na infância ou idade adulta.

O corpus documental trabalhado é composto majoritariamente de ofícios da instrução

pública alocados no Arquivo Público do Paraná. Esses documentos abrangem listas elaboradas

sobretudo por professores, com fim de informar a regularidade de suas aulas, a frequência e o

desempenho dos alunos e por vezes a condição social, filiação, sexo e idade dos mesmos às

autoridades da instrução ou do governo. Essas fontes serviram de base para a elaboração de um

banco de dados com a catalogação de todas as listagens encontradas no acervo7, abarcando o

período de 1854 até 1890, correspondente com a fundação da província e primeiros anos após a

abolição. Esperamos que essa discussão traga subsídios para debates que versam a desigualdade no

acesso ao ensino básico no país e a construção dos direitos dos libertos na era da emancipação.

5 SILVA, Noemi S. “O batismo na instrução”: projetos e práticas de instrução formal de escravos, libertos e ingênuos

no Paraná provincial. Dissertação (Mestrado em História) apresentada ao PPGHIS – Universidade Federal do Paraná.

Curitiba, 2014, pp. 67-79. 6 MAC CORD, Marcelo. Artífices da cidadania: mutualismo, educação e trabalho no Recife oitocentista. Campinas-

SP: Editora da Unicamp, 2012. 7 Até o momento, o referido banco de dados conta com o levantamento de aproximadamente 159 escolas, de 28

localidades, com um total de 6.768 registros de alunos.

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Sobre a educação dos negros: caminhos da historiografia

A percepção dos escravos e libertos como sujeitos absolutamente afastados do mundo das

letras, vem há alguns anos sendo desconstruída pela historiografia. Tem sido crescentes os esforços

de historiadores preocupados em demonstrar como o acesso a escola foi uma demanda da população

negra desde os tempos da escravidão8, prosseguindo depois da abolição a partir de diversas frentes,

em especial no interior das agremiações negras fundadas com ideais mutualistas9. Igualmente

significativas são as pesquisas que atualmente abordam as intelectualidades negras atuantes

sobretudo na literatura e imprensa 10.

A trajetória de valorização dessa temática de estudos deve muito à historiografia da

educação. As primeiras pesquisas desse campo, preocupadas com a composição racial das escolas

no período de escravidão tiveram de lidar com uma vasta tradição de estudos que buscava justificar

a desigualdade no acesso ao ensino pelas proibições relativas à escolarização de escravizados. A

normativa mais recuperada nesse intuito era o Decreto nº 1.331 de 1854, também conhecido como

“Regulamento Couto Ferraz”11. Nele, os indivíduos escravizados estariam vetados de qualquer

participação em escolas públicas, assim como os portadores de “moléstias contagiosas” e os “não

vacinados”12.

Os olhares historiográficos voltados para além dos preceitos legislativos permitiram grandes

avanços nas investigações sobre a escolarização dos negros. Há pouco mais de uma década que os

estudos passaram a enfocar no agenciamento desses sujeitos para a garantia da instrução para si ou

seus filhos13. Isso implicou na diversificação dos instrumentos de pesquisa, como a consulta a

8 Uma das mais recentes publicações nesse sentido, reúne autores que trataram do tema da escolarização durante o

regime escravista: MAC CORD, Marcelo; GOMES, Flavio; ARAÚJO, Carlos Eduardo Moreira (org). Rascunhos

Cativos: educação, escolas e ensino no Brasil escravista. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2017. 9 A título de exemplo, consultar: RIBEIRO, Jonatas Roque. Escritos da liberdade: trajetórias, sociabilidade e instrução

no pós-abolição (1988-1930). Dissertação (Mestrado em História) defendida no IFCH/Unicamp. Campinas, 2015. 10 Exemplar nesse sentido é o estudo de Ana Flavia Magalhães Pinto. Cf, PINTO, Ana Flavia Magalhães. Escritos de

liberdade: literatos negros, racismo e cidadania no Brasil Oitocentista. 1. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2018. 11 “Regulamento Couto Ferraz”. Decreto nº 1.331-A, de 17 de Fevereiro de 1854. Coleção de leis do Império do Brasil.

Vol I, Pt. 1, 1854, p. 45. 12 Id. Art. 69. 13 Pioneiros nessa nova onda de abordagens sobre a história da educação dos negros são os estudos de FONSECA,

Marcus Vinícius. A educação dos negros: uma nova face do processo de abolição da escravidão no Brasil. Bragança

Paulista: EDUSF, 2002; SILVA, Adriana Maria Paulo da. “A escola de Pretextato dos Passos e Silva: questões a

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fontes seriais e o cruzamento com as documentações produzidas pela administração escolar nas

várias regiões brasileiras. Esse foi o método empregado por Marcos Vinícius Fonseca e Cynthia

Greive Veiga para investigação das escolas mineiras no período Oitocentista14.

Outro desafio imposto aos investigadores do assunto foi a pluralidade de experiências

decorridas da amplitude territorial brasileira, limitação explicada pela descentralização

administrativa nos assuntos de instrução pública, vigente no país desde o Ato Adicional de 183415.

Essa normativa fez com que as várias regiões do Império produzissem circuntâncias bastante

diversas com relação à escolarização dos negros. Se por um lado, eles somavam a maioria dos

alunos em localidades marcadas pela presença massiva da população negra livre - geralmente em

zonas de decadência do escravismo – como Minas Gerais, Alagoas e Cuiabá16, por outro, eles

enfrentavam dificuldades para matricular-se em escolas regulares, como atesta o estudo de Surya

Pombo, para a cidade de São Paulo17 e o de Adriana Maria Paulo da Silva, para a Corte18.

Essas pesquisas, sobretudo no interior do campo da História da Educação, tem se somado ao

interesse crescente da historiografia social com o assunto das práticas escolares direcionadas aos

negros livres, libertos ou escravizados. Esse olhar valoriza a experiência escolar ou a luta pela

instrução como parte importante das trajetórias dos que viveram o cativeiro e o racismo estrutural,

intensificado conforme avançavam as políticas de emancipação19. A partir desses esforços, temos

um cenário complexo dessas práticas escolares, que vão desde as iniciativas filantrópicas apoiadas

ou não pela Igreja, até aquelas encaminhadas na esteira do abolicionismo por professores públicos

ou particulares, com ou sem apoio de agremiações engajadas no movimento. Há ainda um número

respeito das práticas de escolarização no mundo escravista” In: Revista Brasileira de História da Educação. Edição de

Julho/ Dezembro, 2002 e VEIGA, Cynthia Greive. “Escola Pública para os negros e os pobres no Brasil: uma invenção

imperial”. Revista Brasileira de Educação, v. 13, p. 502-517, 2008. 14 FONSECA, Marcus Vinícius. Pretos, pardos, crioulos e cabras nas escolas mineiras do século XIX. Tese (Doutorado

em Educação) apresentada à FE-USP/Universidade de São Paulo. São Paulo, 2007; VEIGA, Cynthia Greive . “Escola Pública para os negros e os pobres no Brasil: uma invenção imperial”. op. cit. 15 Lei nº 16 de 12 de Agosto de 1834. Coleção de Leis do Império do Brasil. Vol 1, 1834, p. 15. 16 FONSECA, Marcus Vinicius. Idem; SANTOS, Monica Luise. A escolarização de negros: particularidades históricas

de Alagoas (1840-1890). Dissertação de Mestrado, – UFAL. Maceió, 2011; e SÁ, Elizabeth Figueiredo; RIBEIRO,

Mary Diana da Silva. “Trabalho e escolarização: o universo das crianças negras em Cuiabá (1871-1890)” in: Educativa.

V. 14, n. 2. Goiânia: Jul-Dez., 2011. 17 BARROS, Surya Aaronovich Pombo. “A presença negra e escrava em escolas públicas de São Paulo”. In MAC

CORD, Marcelo, ARAÚJO, Carlos Eduardo Moreira e GOMES, Flavio (orgs). Rascunhos cativos, op. Cit. 18 SILVA, Adriana Maria Paulo da. “A escola de Pretextato dos Passos e Silva”, op. Cit. 19 MAC CORD, Marcelo. Artífices da cidadania, op. Cit; entre outros já citados

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considerável de pesquisas sobre as trajetórias de professores negros e os desafios enfrentados na

execução da carreira docente20.

Com todos os avanços, um desafio ainda permanece latente nas abordagens sobre o assunto:

a raridade dos registros de “cor” nas documentações oficiais escolares. Como já apontamos, o

silêncio das fontes motivou e ainda incita por manobras dos historiadores para a localização do

pertencimento racial dos sujeitos escolares. Essa não é uma barreira enfrentada somente pelos que

investigam a educação, está presente também nas pesquisas dedicadas às experiências negras do

pós-abolição, que raramente contam com menções explícitas à identificação racial dos atores

históricos. Nossa tarefa com o estudo que por ora apresentamos é mostrar como construímos

alternativas às limitações documentais do Paraná , conforme passaremos a comentar.

A “cor” e a “condição” nos registros de escolas regulares do Paraná (1854-1890)

Em 19 de Maio de 1874, Jordão Homem Pedroso, possivelmente um inspetor paroquial da

freguesia de Guaratuba, no litoral do Paraná, enviava ao diretor geral da instrução João Franco de

Oliveira e Sousa um esclarecimento em relação ao andamento das escolas daquela localidade. Havia

chegado até ele a informação de que Guilhermina, “de cor parda e criada” não havia sido admitida

na escola sob supervisão da professora Priscilliana Castro Valle. Certamente a “denúncia” partiu do

próprio tutor de Guilhermina, Lidolpho de Siqueira Bastos, também professor da localidade a quem

a menor prestava serviços. O autor da correspondência havia se certificado daqueles fatos,

chegando à conclusão que eram mal fundamentados, afinal era bom conhecedor “de todos e da

mesma [professora]”, com quem havia se informado sobre a regularidade da frequência de

Guilhermina21.

20 Essa amplitude de pesquisas pode ser conferida nas duas coletâneas mais recentes de artigos que reúnem estudiosos

da temática: MAC CORD, Marcelo, ARAÚJO, Carlos Eduardo Moreira e GOMES, Flavio (orgs). Rascunhos cativos,

op. Cit. Nesta, contribuímos com o capítulo “Um passo para a liberdade: experiências de instrução de escravos, libertos

e ingênuos no Paraná provincial (1871-1888)”, pp. 139-160. Ver também: FONSECA, Marcus Vinícius; BARROS,

Surya A. P. de (Orgs.) A História da Educação dos Negros no Brasil. Niteroi/RJ: EdUFF, 2016. 21 DEAP-PR. Ofício encaminhado a João Franco de Oliveira e Sousa, diretor geral da instrução pública, por Jordão

Homem Pedroso. 19/05/1874. Ref AP 439, p. 213.

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Não é possível saber se as acusações de recusa da menina parda na escola de D. Priscilliana

foram ou não infundadas, como alegou Jordão Pedroso, pois não identificamos a listagem de alunas

da docente, que atestaria se Guilhermina frequentou efetivamente a escola, sem restrições. O que

sabemos, é que o caso contribui para uma série de indagações no que diz respeito ao andamento das

escolas regulares diurnas e a menção às qualidades de “cor” nesse tipo de documentação oficial.

De fato, diante da totalidade da documentação levantada, para as escolas regulares diurnas,

registros de pertencimento racial e/ou condicional dos estudantes, como no caso acima foram raros.

De um total de 163 mapas escolares consultados, apenas 10 deles fizeram referência à “cor”,

enquanto somente oito deles trouxeram informações relativas à “condição”. O ocultamento de

identificações raciais em documentos oficiais é um fenômeno condizente com os esforços

homogeneizantes e modernizadores vigentes na sociedade brasileira no decorrer do século XIX.

Enquanto que nos documentos judiciários e criminais, analisados por Hebe Mattos, esse

ocultamento sistemático da cor se impulsionou por volta das décadas de 1850 a 186022, na

documentação escolar essa “invisibilização” é encontrada em algumas províncias desde os anos

1830, conforme Veiga23. Esse silenciamento, não necessariamente deve ser entendido como

branqueamento. Para Mattos, seus significados representam uma tentativa de assimilação dos

libertos, negros ou mestiços, na sociedade livre, na medida em que “cor” deixava de representar

condição social e sua indicação em documentos dessa espécie já não tinha a funcionalidade de

outrora24.

Mesmo assim, é interessante indagar sobre as ocasiões em que a “cor” foi elencada e qual o

perfil de alunos abarcados nessa categoria. Esses dados podem ser conferidos no quadro a seguir.

Alunos Cor Local Escola Ano

Anna Alvino Pereira

Branca Curitiba E. P. de 1ªas letras do sexo feminino

1854

Anna Faustina Parda Curitiba E. P. de 1ªas letras do sexo

feminino

1854

Balbina Maria de Parda Paranaguá E. de 1ªas letras da 2ª 1854

22 Sobre o assunto, consultar: MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste

escravista. 3ª ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2013, pp. 101-111. 23 VEIGA, Cynthia. “Escola pública para negros e pobres...” op. Cit, p. 510. 24 MATTOS, Hebe. Op. Cit, p. 107.

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Brito Cadeira do sexo feminino

Antonio Bley Branco Rio Negro E. de 1ªas letras da freguesia do Rio Negro

1861

Joaquina da Costa Branca Antonina A.P. de instrução primária

do sexo feminino

1866

Maria Damasia Parda Antonina A.P. de instrução primária do sexo feminino

1866

Joaquim Lopes

Cardoso

Moreno Saco do Tamburutaca A.P. de instrução primária

do sexo masculino

1874

Adelino Ferreira Preto Saco do Tamburutaca A.P. de instrução primária do sexo masculino

1874

Pedro Lopes

Ferreira

Branco Guaraqueçaba Escola Primária 1878

Antonio Soares Branco Guaraqueçaba Aula de instrução primária 1882 Quadro 1: Quadro ilustrativo das classificações de “cor” em mapas escolares da província do Paraná (1854-

1890)25

Pela consulta à documentação, sabemos que a atribuição de “cor”, por parte dos professores,

para a descrição de seus alunos foi feita livremente, independente de normativas a esse respeito.

Eles eram obrigados a encaminhar às autoridades provinciais um “mapa” contendo as informações

sobre seus alunos para comprovarem a assiduidade de suas aulas e assim garantirem seus

vencimentos. Para tanto, seguiam um padrão que contemplava a descrição dos nomes, filiação,

idade, época de matrícula e, por vezes aproveitamento escolar dos estudantes. Era nessas ocasiões

que alguns dos docentes sentiram necessidade de alocar também “cor” e “condição”, permitindo

assim, um detalhamento ainda maior do corpo estudantil.

A partir dos dados, em parte expostos na tabela ilustrativa, percebemos que, mesmo de

caráter esporádico, as indicações de “cor” seguiram alguns padrões. O primeiro é o da

temporalidade. Classificações de “cor” foram mais presentes nos anos iniciais de fundação da

província, tornando-se mais rarefeitos conforme se avançava no fim do século, não havendo

nenhuma menção à “cor” nos documentos produzidos após a abolição. O segundo padrão é

regional. Os registros estiveram concentrados em três regiões da província: planalto, com destaque

para a capital; litoral, em especial as cidades de Antonina, Guaraqueçaba e Paranaguá, de onde

pertencia o povoado do “Saco do Tambarutaca”; e sul da província, onde estava localizada a

Freguesia do Rio Negro. As duas primeiras regiões destacavam-se na concentração de mão-de obra

25 Referências: DEAP-PR, IIP100.6, p. 2; IIP 570.7, p. 20; AP 240, p. 107; AP 460, p. 222; AP 598, p. 121.

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escrava, já a última, curiosamente, era um dos pólos de recepção de imigrantes alemães. Em relação

ao sexo, houve um equilíbrio entre escolas femininas e masculinas na produção de documentos com

indicação de “cor”.

Adentrando no interior dessas salas de aula, podemos ainda fazer um levantamento

proporcional dos alunos elencados enquanto “brancos”, “pardos”, “morenos” e “pretos”, conforme

o quadro abaixo:

Local Escola Alunos

“brancos”

Alunos “Pardos”/

“Morenos”

Alunos

“pretos”

Total

Curitiba Escola Pública de 1ªas

Letras do sexo feminino

22 6 - 28

Paranaguá Escola de 1ªas Letras

da 2ª Cadeira do sexo

feminino

11 5 - 16

Rio Negro Escola de 1ªas Letras

da Freguesia do Rio

Negro

14 5 - 19

Antonina Aula Pública de Instrução Primária do

sexo feminino

18 9 - 27

Saco do Tamburutaca

Aula Pública de Instrução Primária do

sexo masculino

17 7 1 25

Guaraqueçaba Escola Primária 50 - - 50

Guaraqueçaba Escola Primária do sexo feminino

22 - - 22

Quadro 2. Quadro ilustrativo da distribuição de alunos brancos, pardos/morenos e pretos.

A estimativa oferecida pelo quadro conduz a outras constatações interessantes a respeito da

distribuição racial nas escolas regulares do Paraná. A principal delas é a quase inexistência de

crianças classificadas com a cor “preta”. É um fato não condizente com a demografia da província,

que na época apresentava cerca de 5,8% de indivíduos livres com essa designação. O quadro dessas

escolas sugere uma divisão racial das turmas com o predomínio médio de 79,3% de alunos brancos,

frente a 20% de pardos e 0,5% de pretos, números discrepantes, especialmente quando se leva em

consideração as duas escolas de Guaraqueçaba compostas totalmente por alunos brancos. O

contraste com os dados demográficos da província só confirmam essa desigualdade, quando

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sabemos que o Paraná tinha em torno de 58,3% de população livre “branca” e 26,3% de “parda”,

com o restante de habitantes somando “pretos” e “caboclos”, conforme as categorias do censo de

187226.

Quando exploramos o aspecto “condicional” das escolas que trouxeram essa categoria na

descrição de seus alunos nos deparamos com um cenário de quase “sumiço” dos possíveis alunos

“libertos” e “ingênuos”. Apenas duas alunas libertas foram elencadas com esta designação no mapa

escolar produzido pela professora Diocleciana Augusta Rocha, da cidade de Antonina, no ano de

1866. As meninas eram Jacintha Maria e Joaquina Maria, ambas com seis anos de idade, nascidas

em Antonina e de “pais incógnitos”27. A mesma docente, que também havia incorporado a

descrição da “cor” de suas alunas, classificou as duas libertas enquanto “pardas”. Em relação a

alunos escravizados, a totalidade de listas consultadas não evidenciou a participação dos mesmos

nos bancos escolares dessas escolas diurnas, ao contrário do que encontramos nas escolas noturnas,

conforme comentaremos oportunamente.

Sobre os “ingênuos”, como eram chamados os filhos livres de mulheres escravas nascidos

após a Lei do Ventre Livre, foram apenas 34 crianças designadas com essa categoria no total de

5.649 alunos registrados após 1879, quando as mesmas crianças já teriam completado a idade

escolar. Há de se ponderar que muitos professores podem ter deixado de nomeá-las com a categoria,

entendo-as como livres, sem a necessidade de atribuir uma classificação específica. Mas também há

de se levar em conta que a existência dessas crianças causou confusões em professores que não

sabiam diferenciá-las dos escravos28.

Elas foram localizadas mais facilmente nos chamados “Mapas de população escolar”

produzidos pela administração da instrução pública, dos quais só identificamos os documentos

relativos à Curitiba. Era um levantamento realizado para verificar a efetividade da Lei de

Obrigatoriedade Escolar, que apesar de vigente desde os anos iniciais da província, tornara-se mais

rigorosa com o passar dos anos. A partir de 1883, os ingênuos foram incorporados nessa legislação

26 BRASIL. Diretoria Geral de Estatística. Recenseamento Geral do Império de 1872. Rio de Janeiro: Typografia de G.

Leuzinger e Filhos, 1876, p. 111. 27 APPR, Mappa das alumnas que frequentam a aula pública de Antonina. 19/08/1866. Ref AP 240, pp. 107-108. 28 Uma discussão mais aprofundada dessa questão é feita em: SILVA, Noemi Santos. O baptismo na instrução. Op. Cit,

pp. 148-154. ANJOS, Juarez. Uma trama na história: a criança no processo de escolarização primária nas últimas

décadas do período imperial. Curitiba: Ed. UFPR, 2018, pp. 90-127.

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como sujeitos atingidos pela obrigatoriedade. Era um fato inusitado quando analisamos esse aparto

legislativo em outras províncias29. Mesmo assim, não teve grandes respercussões se observarmos o

baixo índice de ingênuos mencionados no levantamento, conforme os exemplos a seguir.

Nome do chefe de

residência

Profissão Nome do ingênuo(a) Idade Escola em que esteve

matriculado(a)

Joaquim Virgílio

Gomes Barbosa

Empregado

Público

Josephina 8 Ensino na família

José Pinto Rebello Negociante Ermelino P. Rebello 12 1ª Cadeira

D. Escolastina da Silva Ribas Franco

Proprietária Maria Augusta Franco 8 3ª Cadeira

Manoel Euphrasio

Correia

Advogado Getulino 10 2ª Cadeira

Francisco de Almeida Guimarães

Magistrado Faustino 10 2ª Cadeira

Francisco José

Gonçalves

Proprietário Agostinho 9 1ª Cadeira

José de Almeida Barreto

Coronel do exército

Prudencio 9 Externato São José

Quadro 3. Quadro elucidativo dos ingênuos identificados em Mapas de População Escolar de Curitiba (1883-

1884) Ref. AP 637, pp. 188-195; pp. 191-195; AP 686, pp. 16-17.

Os ingênuos foram numericamente pouco expressivos na listagem, levando-se em conta que

Curitiba registrava cerca de 2500 cativos na época de implementação da Lei do Ventre Livre30.

Além disso, esse levantamento mostra outro dado interessante sobre essas crianças. Dadas as

profissões dos chefes de residência, temos a evidência de que as mesmas ficaram sob a

responsabilidade dos senhores de suas mães, sendo estes os incumbidos da matrícula dos menores

em escolas de Curitiba. Os chefes de residência pertenciam a um extrato social abastado, com

destaque para o notável Manoel Euphrasio Correia, político e advogado, cujo nome batiza uma

praça central da cidade. Isso não consiste em novidade, já que os estudos garantem que quase a

totalidade dos menores viveram sob supervisão senhorial, com cotidianos quase idênticos ao

29 ANJOS, Juarez J. T. dos; SOUZA, Gizele. “A criança, os ingênuos e o ensino obrigatório no Paraná”. In: VIDAL,

Diana G.; SÁ, Elizabeth F.; SILVA, Vera L. G. (orgs). Obrigatoriedade escolar no Brasil. Cuiabá – MT: Edufmt, 2013. 30 PENA, Eduardo Spiller. O jogo da face: a astúcia escrava frente aos senhores e a lei na Curitiba provincial.

Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1999, p. 33.

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cativeiro31. Isso nos leva a inferir ainda que o baixo índice de ingênuos matriculados também seja

explicado pelo fato de estarem tendo seus serviços explorados durante o dia, o que também motiva

investigar em que medida os eles estiveram matriculados em escolas noturnas, como comentaremos

mais adiante.

Outras situações indicadas nas fontes ajudam no mapeamento sócio-racial desses espaços

escolares. A existência de uma escola primária no Aldeamento indígena São Pedro de Alcântra,

registrada em 1862, com a frequência de 10 crianças “livres”32 e a matrícula de filhos de africanos

livres e indígenas na aula pública da Colônia Militar do Jataí33. Ambos os núcleos populacionais

eram situados no norte do Paraná, região de baixo povoamento, tendo sido criados na década de

1850 como fruto de um projeto imperial de ocupação dos sertões34. Os africanos livres foram

direcionados pelo governo imperial rumo a colônia no Jataí para a execução de serviços em geral,

muitas vezes, especializados35. Eles também estiveram presentes no Aldeamento indígena São

Pedro de Alcântra, onde exerciam trabalhos juntamente com indígenas aldeados. O fato de

existirem filhos de indígenas frequentando a escola na Colônia do Jataí pode demonstrar que o

intercâmbio entre os dois povoamentos foi significativo, e que apesar de a maioria dos africanos

livres terem sido transferidos desses locais para outras repartições públicas quando de sua

emancipação decretada pelo Império em 1864, alguns deles, como Honorio e Crispim,

permaneceram na colônia, constituindo família e matriculando seus filhos Boaventura e Rogerio na

escola na década de 1880.

Há indícios de que outros filhos de africanos livres tenham sido matriculados em uma escola

em Curitiba. “João Africano” foi registrado em um mapa escolar de da capital como chefe de

residência, carpinteiro, residente na “Rua 7 de Setembro”, cujos filhos Desidério de 11 anos e Clara

31 Um levantamento bibliográfico sobre a experiência dos ingênuos foi feito em SILVA, Noemi S. O baptismo na

instrução. Op. Cit, pp. 21-37. 32 DEAP-PR. Mapa demonstrativo dos alunos que frequentam esta aula do aldeamento indígena de São Pedro de

Alcântra. Ref. AP 147, p. 32. 33 DEAP-PR. Mapa dos alunos que frequentaram a escola pública do sexo masculino do Jataí. 1884. Ref.AP728, p. 54 34 Cf. BEZERRA, Jéssica de Aquino. Civilizar os sertões, consolidar o Estado: a Colônia Militar do Jataí e os

Aldeamentos indígenas do Tibagi (1845-1897). Dissertação (Mestrado em História. UNIFESP. Guarulhos, 2015. 35 MAMIGONIAN, Beatriz. Africanos livres: A abolição do tráfico de escravos no Brasil. 1ª Edição. São Paulo, Cia

das Letras, 2017, p. 311.

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de 8 anos estiveram matriculados na 2ª Cadeira do sexo masculino e na Escola de D. Narcisa,

respectivamente36.

Isso mostra que, apesar de esparsos, os registros das escolas regulares infantis trazem boas

pistas sobre a escolarização no final do regime escravista. As evidências reforçam que o complexo

quadro social montado nesse período, onde escravizados, ao lado de libertos, negros livres, brancos

pobres, imigrantes europeus, indígenas e também africanos livres, compunham o cenário de

trabalho, era apenas em parte refletido nas escolas infantis. A incidência quase nula de crianças

“pretas”, ou com a designação de “libertas” ou “ingênuas” só confirma que a exploração do

trabalho, especialmente dos filhos de escravizados ou descendentes pode ter anulado as chances de

obtenção do letramento na infância. Conforme se aproximava a abolição, ou mesmo depois dela,

essa documentação pulverizou notificiações de abertura de escolas infantis em colônias de

imigrantes, fosse em núcleos rurais ou urbanos37. Em contrapartida, as notificações que tivessem a

população negra egressa do cativeiro como público alvo estiveram restritas ao período noturno,

visando alunos na idade adulta, conforme passaremos a comentar.

As escolas noturnas

O Paraná contou com duas iniciativas destinadas à instrução de escravizados e libertos

durante o período escravista. Uma delas, aconteceu em Paranaguá a partir de 1871, sob direção do

professor abolicionista José Cleto Silva38 e a outra, foi encaminhada pelo capitão da guarda

Damasio Correia Bittencourt em Curitiba, no ano de 1874. O processo de abolição, as mudanças no

mercado de trabalho dele decorrentes e a lei de reforma eleitoral de 1881 foram os grandes

acontecimentos que motivaram a inserção da ideia de “instrução popular” na agenda de luta dos

trabalhadores na transição entre os séculos XIX e XX. Também foram as motivações elencadas por

36 DEAP-PR. População escolar de Curitiba – 14º distrito. 1883. Ref. AP 686, pp. 16-17. 37 Sobre as demandas por instrução, por parte dos imigrantes europeus em Curitiba, Cf. MASCHIO, Elaine Cátia

Falcade. A escolarização dos imigrantes e seus descendentes nas colônias italianas de Curitiba, entre táticas e

estratégias de italianitá e brasilita (1875-1930). Tese (Doutorado em Educação) apresentada ao PPGE – UFPR.

Curitiba, 2012. 38 A maior parte das informações discutidas nesta seção foram trabalhadas em estudo anterior, já citado: SILVA, Noemi

S. da. O baptismo da instrução. Op. Cit.

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governantes para impulsionar a abertura de escolas de adultos, especialmente após a década de

1880, ajudando criar um cenário de ampliação das oportunidades de instrução para esses setores.

As iniciativas sofreram com a instabilidade, pois tiveram um caráter esporádico,

concentrando-se entre as décadas de 1870 e 1880, e em geral se constituindo enquanto resultado de

parcerias do governo provincial com as Camaras Municipais. Em sua maioria essas parcerias eram

encerradas, tão logo eram findados os mandatos dos presidentes provinciais, provocando ampla

reação dos setores atendidos, que fizeram mobilizações para a garantia da regularidade de suas

aulas. Quando observamos o perfil de alunos dessas escolas, encontramos um quadro bastante

diverso das escolas regulares diurnas. Além da faixa etária, os padrões de “cor”, “condição”

alteraram-se radicalmente, ainda que com menções escassas, sendo acrescidos agora com os

qualitativos de “profissão”.

Do total de 46 registros com indicação de “cor”, podemos chegar a seguinte estimativa:

Alunos “brancos” Alunos “mulatos” Alunos “pretos” Alunos “fulos” Outras categorias

36,9% 28,2% 17,3% 10,8% 4,3% Quadro 4. Estimativa das cateogrias de “cor” encontradas em mapas escolares das escolas noturnas do Paraná

(1874-1885). DEAP-PR.

Nesse novo quadro de análise, além da redução considerável do predomínio de alunos

“brancos”, as categorias que buscaram classificar alunos “miscigenados” variaram. A nomenclatura

“pardo” esteve extinta nas descrições elaboradas por professores de escolas noturnas, dando lugar às

qualificações “mulato”, “fulo” e “cor trigoza”39. As duas últimas foram empregadas em situações

específicas. O professor Damasio Correia de Bittencourt, que lecionava apenas para escravos e

libertos em Curitiba, na década de 1870, denominou “fullos”, cinco alunos escravos. Já o qualitativo

“trigoza” foi dado a indivíduos livres da escola noturna da Vila do Arraial Queimado, nas

proximidades de Curitiba em 1882.

Adjetivações de “cor” foram observadas nos documentos produzidos por escolas de

Paranaguá, Curitiba e Morretes, mais uma vez contemplando o litoral e a capital. Já em relação à

periodicidade, a produção desses registros não obedeceu uma época específica, estando correntes

39 DEAP-PR. AP 445, p. 30-31; AP 447, p. 43; AP 665, p. 128; AP 667, p. 277 e p. 242;

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ainda na década de 1880. No entanto, como ocorreu no caso das escolas diurnas, o período de pós-

abolição não apresentou registros de cor na documentação escolar, deixando vaga a questão de

quais teriam sido as possibilidades educacionais da população negra, mesmo em escolas noturnas.

Os professores das escolas noturnas também se sentiram mais estimulados a empregar os

qualitativos de “condição” para a descrição dos alunos. Ao todo, somamos 452 nomes

acompanhados de classificações condicionais, de um total de 660 registros:

Condição Percentual

Alunos livres 70,7%

Alunos escravos 26,7%

Alunos libertos 8,8%

Alunos ingênuos 2%

Quadro 5. Perfil dos alunos das escolas noturnas, conforme classificações de condição. DEAP-PR

O “sumiço” de alunos não livres observado para as escolas regulares não se repetiu nessa

modalidade de escolarização, mesmo havendo normativas contrárias à frequencia de escravos em

escolas públicas. O que também chama atenção é o baixo índice de alunos ingênuos e libertos, ou

ao menos, assim classificados pelos produtores da documentação, dando a entender que a atribuição

dessas qualificações se desse ao sabor do acaso.

Aficanos e indígenas, por sua vez não foram identificados na documentação, com exceção

do caso do africano livre Sebastião Pinheiro, barbeiro de 48 anos, matriculado em uma escola

noturna de Paranaguá. A iniciativa escolar em questão era regida por José Cleto Silva, o mesmo

professor que havia aberto uma escola para escravos na cidade. Ele auxiliava na justiça indivíduos

escravizados ilegalmente, que haviam chegado ao Brasil após a lei de proibição do tráfico40. Seria

Sebastião um dos contemplados com as ações do professor abolicionista?

Outro traço que distingue as experiências de escolas noturnas em comparação às regulares é

em relação à instrução do sexo feminino. Majoritariamente essas aulas contemplavam apenas

40SILVA, Noemi S. “O professor José Cleto Silva e o Abolicionismo em Paranaguá”. In: Hilton Costa, Milton

Stanczyk Filho e Jonas W. Pegoraro. (orgs) O Paraná pelo caminho: histórias, trajetórias e perspectivas. Vol. II:

Justiças. 1ª ed. Curitiba: Ed. Máquina de Escrever, 2017, pp. 246-275.

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homens, com uma média de faixa etária entre 10 e 60 anos. Apenas um caso pareceu indicar a

possibilidade de instrução de mulheres no período noturno. Partiu de Porto de Cima, litoral da

província, de uma professora interessada em lecionar para “moças em idade adolescente”41, sem

que saibamos se chegou a se efetivar, por não obtermos notificações nos anos seguintes.

Por fim, outro aspecto de relevância para o estudo das caracterísiticas dessas escolas é em

relação à profissão. Os adultos que procuraram esses espaços formavam um perfil específico dos

trabalhadores. Eles exerciam ofícios especializados, próprios dos meios urbanos, com uma

predominância de pedreiros, sapateiros e carpinteiros42. Não significa que trabalhadores rurais não

estiveram nessas escolas, muito pelo contrário. Em localidades menos urbanizadas como São João

da Graciosa, Campo Largo, São José dos Pinhais, Rio Negro, mas também na cidade de Morretes,

os lavradores, entre livres e escravizados, formavam um número expressivo das turmas interessadas

em aulas no período de descanso. Isso ajuda a problematizar a hipótese de que a demanda por

instrução para adultos tenha sido derivada apenas das necessidades de trabalho. É cada vez mais

evidente que seus significados tenham transcendido o sentido prático.

Considerações Finais

Nossa incursão nos interiores das escolas primárias revelou aspectos interessantes para o

estudo da escolarização da população negra, entre a escravidão e o pós-abolição. São fortes as

evidências de que o ensino regular diurno, voltado à educação infantil, tenha se configurado como o

mais restritivo à população egressa da escravidão e seus descendentes. Ainda que com

representatividade da população mestiça – e aí é interessante indagar sobre os parâmetros

empregados pelos redatores dos documentos que se utlizaram da categoria “pardo” – a quase

inexistência de alunos classificados com a cor “preta”, ou com a condição de “libertos” ou

“ingênuos” é elucidativa da segregação produzida pelo espaço escolar, aos que buscaram a

instrução nas etapas iniciais da vida. Certamente os cotidianos de trabalho e as barreiras raciais

estão entre os fatores que explicam essa exclusão institucional, mas somente um rastremento

41 DEAP-PR. Ofício, professora Amélia Maria Nascimento. 1875. Ref. AP 471, p. 12. 42 Do total de 274 registros com indicação de profissão, 44 alunos exerciam a profissão de pedreiro, 38, de carpinteiro e

33, de sapateiros. Fonte: DEAP-PR. Mapas escolares das escolas noturnas (1874-1885)

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cuidadoso desses estudantes e o cruzamento com outras fontes que tragam a qualificação racial

pode trazer respostas de como foram suplantados esses percalços para a obtenção do letramento em

escolas públicas.

O quadro díspar encontrado nas escolas noturnas sugere que essa modalidade de instrução

tenha sido mais favorável aos que quisessem se interar de noções de primeiras letras. O índice mais

elevado de escravizados, libertos e negros livres indica que, ao menos no final do período escravista

essas chances de escolarização foram aproveitadas por essa população, quem sabe entendendo a

instrução como um direito ou uma ferramenta de melhoria das condições de vida nos desafiantes

anos que estavam por vir. Todavia, essa abertura nas chances de educação também teve suas

limitações. Dependeram de recursos públicos quase inexistentes, enfrentaram os contínuos

fechamentos arbitrários e, sobretudo, não tinham o potencial de atendimento da maior parte de

adultos possivelmente interessados em adquirir intrução, a começar pelas mulheres, que não se

viram contempladas nessas possibilidades. Esperamos que a continuidade desse levantamento traga

maiores subsídios para o debate da questão tendo o pós-abolição como recorte analítico, ajudando a

responder se as gerações egressas da escravidão contaram com chances similares de educação ou

como contruíram suas próprias alternativas educacionais.

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