nos traÇos das primeiras letras: um perfil sÓcio … · 2020-01-17 · 2 garantir a moralização...
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NOS TRAÇOS DAS PRIMEIRAS LETRAS: UM PERFIL SÓCIO-RACIAL
DAS ESCOLAS PRIMÁRIAS DO PARANÁ, ENTRE A ESCRAVIDÃO E O
PÓS-ABOLIÇÃO1
Noemi Santos da Silva2
Introdução
Pensar historicamente no intercâmbio educacional da população negra desde os tempos da
escravidão é acessar um assunto repleto de interações com os debates atuais que versam os direitos
básicos dos cidadãos brasileiros. A defesa da educação enquanto um direito universal passou dos
debates ilustrados às pautas de governantes, sendo ainda bandeira de lutas políticas no plano social,
protagonizadas não apenas por elites letradas, mas também por sujeitos do cotidiano como
professores, pais de alunos e demais interessados pela educação escolar. Principalmente depois que
a alfabetização foi incorporada como condição para o alistamento eleitoral em 1881, o direito à
escolarização passou a se relacionar com a cidadania política, passando a figurar nas pautas
reivindicatórias de trabalhadores, deixando de estar restrito aos assuntos da infância3.
As lutas pela universalização do ensino ocorreram em um momento crucial de reorganização
da sociedade brasileira. Com o fim gradual do regime de escravidão, governos e elites pensavam em
medidas de assimilação dos libertos que não rompessem com as estruturas hierárquicas de
dominação do contexto escravista. Nesse sentido, promover o acesso à instrução4 era também
1 Texto apresentado no 9º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Florianópolis (UFSC), de 14 a 18 de maio de 2019. Anais completos do evento disponíveis em http://www.escravidaoeliberdade.com.br/ 2 Doutoranda em História Social – Cecult/Unicamp. Bolsista Fapesp (processo nº 2017/ 11628-1) e-mail:
[email protected] 3 Sobre a expansão da ideia de “instrução popular” durante o século XIX, Cf. SCHUELER, Alessandra Frota Martinez.
Educar e instruir: a instrução popular na Corte imperial – 1870-1889. Dissertação (mestrado em História). Programa
de mestrado e doutorado em História da UFF. Niterói, 1997. 4 A ideia de “instrução” estava agregada ao ideal de “educação” na medida em que compreendia a escola como
principal vetor de inserção educacional das novas e velhas gerações. Esses preceitos se encontram definidos em Luciano
Mendes de Faria Filho. “Instrução elementar no século XIX”. In: Eliane M. T. Lopes; Luciano M. Faria Filho; Cynthia
G. Veiga (Orgs.). 500 anos de educação no Brasil. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
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garantir a moralização e o controle necessários à ordem social naquela era de transformações5. Já do
ponto de vista dos que deixavam a escravidão, o acesso às primeiras letras era carregado de
significados positivos como a facilitação do trabalho, a autonomia e até mesmo a respeitabilidade6.
Nesse espaço, pretendemos debater a escolarização da população negra, da escravidão ao
pós-abolição, partindo de um estudo minucioso sobre a composição das escolas públicas de
instrução primária do Paraná. Para cumprir com esse propósito, faremos inicialmente uma revisão
historiográfica com os principais trabalhos que debateram essa questão. Seguiremos com um quadro
geral da escolarização infantil na segunda metade do século XIX paranaense, somaremos dados
relativos à educação de adultos no final do século para, assim, chegar a um perfil sócio-racial das
escolas primárias do Paraná, privilegiando a escolarização de escravizados, libertos e negros livres
na província. Esse levantamento numérico ajudará a conhecer as diversas faces da inclusão/
exclusão institucional que permearam o acesso à escola básica, tais como os fatores ligados à faixa
etária, gênero, ocupação, entre outros, ajudando a vizualisar quais as barreiras interpostas àqueles
que buscaram assegurar esse direito na infância ou idade adulta.
O corpus documental trabalhado é composto majoritariamente de ofícios da instrução
pública alocados no Arquivo Público do Paraná. Esses documentos abrangem listas elaboradas
sobretudo por professores, com fim de informar a regularidade de suas aulas, a frequência e o
desempenho dos alunos e por vezes a condição social, filiação, sexo e idade dos mesmos às
autoridades da instrução ou do governo. Essas fontes serviram de base para a elaboração de um
banco de dados com a catalogação de todas as listagens encontradas no acervo7, abarcando o
período de 1854 até 1890, correspondente com a fundação da província e primeiros anos após a
abolição. Esperamos que essa discussão traga subsídios para debates que versam a desigualdade no
acesso ao ensino básico no país e a construção dos direitos dos libertos na era da emancipação.
5 SILVA, Noemi S. “O batismo na instrução”: projetos e práticas de instrução formal de escravos, libertos e ingênuos
no Paraná provincial. Dissertação (Mestrado em História) apresentada ao PPGHIS – Universidade Federal do Paraná.
Curitiba, 2014, pp. 67-79. 6 MAC CORD, Marcelo. Artífices da cidadania: mutualismo, educação e trabalho no Recife oitocentista. Campinas-
SP: Editora da Unicamp, 2012. 7 Até o momento, o referido banco de dados conta com o levantamento de aproximadamente 159 escolas, de 28
localidades, com um total de 6.768 registros de alunos.
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Sobre a educação dos negros: caminhos da historiografia
A percepção dos escravos e libertos como sujeitos absolutamente afastados do mundo das
letras, vem há alguns anos sendo desconstruída pela historiografia. Tem sido crescentes os esforços
de historiadores preocupados em demonstrar como o acesso a escola foi uma demanda da população
negra desde os tempos da escravidão8, prosseguindo depois da abolição a partir de diversas frentes,
em especial no interior das agremiações negras fundadas com ideais mutualistas9. Igualmente
significativas são as pesquisas que atualmente abordam as intelectualidades negras atuantes
sobretudo na literatura e imprensa 10.
A trajetória de valorização dessa temática de estudos deve muito à historiografia da
educação. As primeiras pesquisas desse campo, preocupadas com a composição racial das escolas
no período de escravidão tiveram de lidar com uma vasta tradição de estudos que buscava justificar
a desigualdade no acesso ao ensino pelas proibições relativas à escolarização de escravizados. A
normativa mais recuperada nesse intuito era o Decreto nº 1.331 de 1854, também conhecido como
“Regulamento Couto Ferraz”11. Nele, os indivíduos escravizados estariam vetados de qualquer
participação em escolas públicas, assim como os portadores de “moléstias contagiosas” e os “não
vacinados”12.
Os olhares historiográficos voltados para além dos preceitos legislativos permitiram grandes
avanços nas investigações sobre a escolarização dos negros. Há pouco mais de uma década que os
estudos passaram a enfocar no agenciamento desses sujeitos para a garantia da instrução para si ou
seus filhos13. Isso implicou na diversificação dos instrumentos de pesquisa, como a consulta a
8 Uma das mais recentes publicações nesse sentido, reúne autores que trataram do tema da escolarização durante o
regime escravista: MAC CORD, Marcelo; GOMES, Flavio; ARAÚJO, Carlos Eduardo Moreira (org). Rascunhos
Cativos: educação, escolas e ensino no Brasil escravista. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2017. 9 A título de exemplo, consultar: RIBEIRO, Jonatas Roque. Escritos da liberdade: trajetórias, sociabilidade e instrução
no pós-abolição (1988-1930). Dissertação (Mestrado em História) defendida no IFCH/Unicamp. Campinas, 2015. 10 Exemplar nesse sentido é o estudo de Ana Flavia Magalhães Pinto. Cf, PINTO, Ana Flavia Magalhães. Escritos de
liberdade: literatos negros, racismo e cidadania no Brasil Oitocentista. 1. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2018. 11 “Regulamento Couto Ferraz”. Decreto nº 1.331-A, de 17 de Fevereiro de 1854. Coleção de leis do Império do Brasil.
Vol I, Pt. 1, 1854, p. 45. 12 Id. Art. 69. 13 Pioneiros nessa nova onda de abordagens sobre a história da educação dos negros são os estudos de FONSECA,
Marcus Vinícius. A educação dos negros: uma nova face do processo de abolição da escravidão no Brasil. Bragança
Paulista: EDUSF, 2002; SILVA, Adriana Maria Paulo da. “A escola de Pretextato dos Passos e Silva: questões a
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fontes seriais e o cruzamento com as documentações produzidas pela administração escolar nas
várias regiões brasileiras. Esse foi o método empregado por Marcos Vinícius Fonseca e Cynthia
Greive Veiga para investigação das escolas mineiras no período Oitocentista14.
Outro desafio imposto aos investigadores do assunto foi a pluralidade de experiências
decorridas da amplitude territorial brasileira, limitação explicada pela descentralização
administrativa nos assuntos de instrução pública, vigente no país desde o Ato Adicional de 183415.
Essa normativa fez com que as várias regiões do Império produzissem circuntâncias bastante
diversas com relação à escolarização dos negros. Se por um lado, eles somavam a maioria dos
alunos em localidades marcadas pela presença massiva da população negra livre - geralmente em
zonas de decadência do escravismo – como Minas Gerais, Alagoas e Cuiabá16, por outro, eles
enfrentavam dificuldades para matricular-se em escolas regulares, como atesta o estudo de Surya
Pombo, para a cidade de São Paulo17 e o de Adriana Maria Paulo da Silva, para a Corte18.
Essas pesquisas, sobretudo no interior do campo da História da Educação, tem se somado ao
interesse crescente da historiografia social com o assunto das práticas escolares direcionadas aos
negros livres, libertos ou escravizados. Esse olhar valoriza a experiência escolar ou a luta pela
instrução como parte importante das trajetórias dos que viveram o cativeiro e o racismo estrutural,
intensificado conforme avançavam as políticas de emancipação19. A partir desses esforços, temos
um cenário complexo dessas práticas escolares, que vão desde as iniciativas filantrópicas apoiadas
ou não pela Igreja, até aquelas encaminhadas na esteira do abolicionismo por professores públicos
ou particulares, com ou sem apoio de agremiações engajadas no movimento. Há ainda um número
respeito das práticas de escolarização no mundo escravista” In: Revista Brasileira de História da Educação. Edição de
Julho/ Dezembro, 2002 e VEIGA, Cynthia Greive. “Escola Pública para os negros e os pobres no Brasil: uma invenção
imperial”. Revista Brasileira de Educação, v. 13, p. 502-517, 2008. 14 FONSECA, Marcus Vinícius. Pretos, pardos, crioulos e cabras nas escolas mineiras do século XIX. Tese (Doutorado
em Educação) apresentada à FE-USP/Universidade de São Paulo. São Paulo, 2007; VEIGA, Cynthia Greive . “Escola Pública para os negros e os pobres no Brasil: uma invenção imperial”. op. cit. 15 Lei nº 16 de 12 de Agosto de 1834. Coleção de Leis do Império do Brasil. Vol 1, 1834, p. 15. 16 FONSECA, Marcus Vinicius. Idem; SANTOS, Monica Luise. A escolarização de negros: particularidades históricas
de Alagoas (1840-1890). Dissertação de Mestrado, – UFAL. Maceió, 2011; e SÁ, Elizabeth Figueiredo; RIBEIRO,
Mary Diana da Silva. “Trabalho e escolarização: o universo das crianças negras em Cuiabá (1871-1890)” in: Educativa.
V. 14, n. 2. Goiânia: Jul-Dez., 2011. 17 BARROS, Surya Aaronovich Pombo. “A presença negra e escrava em escolas públicas de São Paulo”. In MAC
CORD, Marcelo, ARAÚJO, Carlos Eduardo Moreira e GOMES, Flavio (orgs). Rascunhos cativos, op. Cit. 18 SILVA, Adriana Maria Paulo da. “A escola de Pretextato dos Passos e Silva”, op. Cit. 19 MAC CORD, Marcelo. Artífices da cidadania, op. Cit; entre outros já citados
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considerável de pesquisas sobre as trajetórias de professores negros e os desafios enfrentados na
execução da carreira docente20.
Com todos os avanços, um desafio ainda permanece latente nas abordagens sobre o assunto:
a raridade dos registros de “cor” nas documentações oficiais escolares. Como já apontamos, o
silêncio das fontes motivou e ainda incita por manobras dos historiadores para a localização do
pertencimento racial dos sujeitos escolares. Essa não é uma barreira enfrentada somente pelos que
investigam a educação, está presente também nas pesquisas dedicadas às experiências negras do
pós-abolição, que raramente contam com menções explícitas à identificação racial dos atores
históricos. Nossa tarefa com o estudo que por ora apresentamos é mostrar como construímos
alternativas às limitações documentais do Paraná , conforme passaremos a comentar.
A “cor” e a “condição” nos registros de escolas regulares do Paraná (1854-1890)
Em 19 de Maio de 1874, Jordão Homem Pedroso, possivelmente um inspetor paroquial da
freguesia de Guaratuba, no litoral do Paraná, enviava ao diretor geral da instrução João Franco de
Oliveira e Sousa um esclarecimento em relação ao andamento das escolas daquela localidade. Havia
chegado até ele a informação de que Guilhermina, “de cor parda e criada” não havia sido admitida
na escola sob supervisão da professora Priscilliana Castro Valle. Certamente a “denúncia” partiu do
próprio tutor de Guilhermina, Lidolpho de Siqueira Bastos, também professor da localidade a quem
a menor prestava serviços. O autor da correspondência havia se certificado daqueles fatos,
chegando à conclusão que eram mal fundamentados, afinal era bom conhecedor “de todos e da
mesma [professora]”, com quem havia se informado sobre a regularidade da frequência de
Guilhermina21.
20 Essa amplitude de pesquisas pode ser conferida nas duas coletâneas mais recentes de artigos que reúnem estudiosos
da temática: MAC CORD, Marcelo, ARAÚJO, Carlos Eduardo Moreira e GOMES, Flavio (orgs). Rascunhos cativos,
op. Cit. Nesta, contribuímos com o capítulo “Um passo para a liberdade: experiências de instrução de escravos, libertos
e ingênuos no Paraná provincial (1871-1888)”, pp. 139-160. Ver também: FONSECA, Marcus Vinícius; BARROS,
Surya A. P. de (Orgs.) A História da Educação dos Negros no Brasil. Niteroi/RJ: EdUFF, 2016. 21 DEAP-PR. Ofício encaminhado a João Franco de Oliveira e Sousa, diretor geral da instrução pública, por Jordão
Homem Pedroso. 19/05/1874. Ref AP 439, p. 213.
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Não é possível saber se as acusações de recusa da menina parda na escola de D. Priscilliana
foram ou não infundadas, como alegou Jordão Pedroso, pois não identificamos a listagem de alunas
da docente, que atestaria se Guilhermina frequentou efetivamente a escola, sem restrições. O que
sabemos, é que o caso contribui para uma série de indagações no que diz respeito ao andamento das
escolas regulares diurnas e a menção às qualidades de “cor” nesse tipo de documentação oficial.
De fato, diante da totalidade da documentação levantada, para as escolas regulares diurnas,
registros de pertencimento racial e/ou condicional dos estudantes, como no caso acima foram raros.
De um total de 163 mapas escolares consultados, apenas 10 deles fizeram referência à “cor”,
enquanto somente oito deles trouxeram informações relativas à “condição”. O ocultamento de
identificações raciais em documentos oficiais é um fenômeno condizente com os esforços
homogeneizantes e modernizadores vigentes na sociedade brasileira no decorrer do século XIX.
Enquanto que nos documentos judiciários e criminais, analisados por Hebe Mattos, esse
ocultamento sistemático da cor se impulsionou por volta das décadas de 1850 a 186022, na
documentação escolar essa “invisibilização” é encontrada em algumas províncias desde os anos
1830, conforme Veiga23. Esse silenciamento, não necessariamente deve ser entendido como
branqueamento. Para Mattos, seus significados representam uma tentativa de assimilação dos
libertos, negros ou mestiços, na sociedade livre, na medida em que “cor” deixava de representar
condição social e sua indicação em documentos dessa espécie já não tinha a funcionalidade de
outrora24.
Mesmo assim, é interessante indagar sobre as ocasiões em que a “cor” foi elencada e qual o
perfil de alunos abarcados nessa categoria. Esses dados podem ser conferidos no quadro a seguir.
Alunos Cor Local Escola Ano
Anna Alvino Pereira
Branca Curitiba E. P. de 1ªas letras do sexo feminino
1854
Anna Faustina Parda Curitiba E. P. de 1ªas letras do sexo
feminino
1854
Balbina Maria de Parda Paranaguá E. de 1ªas letras da 2ª 1854
22 Sobre o assunto, consultar: MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste
escravista. 3ª ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2013, pp. 101-111. 23 VEIGA, Cynthia. “Escola pública para negros e pobres...” op. Cit, p. 510. 24 MATTOS, Hebe. Op. Cit, p. 107.
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Brito Cadeira do sexo feminino
Antonio Bley Branco Rio Negro E. de 1ªas letras da freguesia do Rio Negro
1861
Joaquina da Costa Branca Antonina A.P. de instrução primária
do sexo feminino
1866
Maria Damasia Parda Antonina A.P. de instrução primária do sexo feminino
1866
Joaquim Lopes
Cardoso
Moreno Saco do Tamburutaca A.P. de instrução primária
do sexo masculino
1874
Adelino Ferreira Preto Saco do Tamburutaca A.P. de instrução primária do sexo masculino
1874
Pedro Lopes
Ferreira
Branco Guaraqueçaba Escola Primária 1878
Antonio Soares Branco Guaraqueçaba Aula de instrução primária 1882 Quadro 1: Quadro ilustrativo das classificações de “cor” em mapas escolares da província do Paraná (1854-
1890)25
Pela consulta à documentação, sabemos que a atribuição de “cor”, por parte dos professores,
para a descrição de seus alunos foi feita livremente, independente de normativas a esse respeito.
Eles eram obrigados a encaminhar às autoridades provinciais um “mapa” contendo as informações
sobre seus alunos para comprovarem a assiduidade de suas aulas e assim garantirem seus
vencimentos. Para tanto, seguiam um padrão que contemplava a descrição dos nomes, filiação,
idade, época de matrícula e, por vezes aproveitamento escolar dos estudantes. Era nessas ocasiões
que alguns dos docentes sentiram necessidade de alocar também “cor” e “condição”, permitindo
assim, um detalhamento ainda maior do corpo estudantil.
A partir dos dados, em parte expostos na tabela ilustrativa, percebemos que, mesmo de
caráter esporádico, as indicações de “cor” seguiram alguns padrões. O primeiro é o da
temporalidade. Classificações de “cor” foram mais presentes nos anos iniciais de fundação da
província, tornando-se mais rarefeitos conforme se avançava no fim do século, não havendo
nenhuma menção à “cor” nos documentos produzidos após a abolição. O segundo padrão é
regional. Os registros estiveram concentrados em três regiões da província: planalto, com destaque
para a capital; litoral, em especial as cidades de Antonina, Guaraqueçaba e Paranaguá, de onde
pertencia o povoado do “Saco do Tambarutaca”; e sul da província, onde estava localizada a
Freguesia do Rio Negro. As duas primeiras regiões destacavam-se na concentração de mão-de obra
25 Referências: DEAP-PR, IIP100.6, p. 2; IIP 570.7, p. 20; AP 240, p. 107; AP 460, p. 222; AP 598, p. 121.
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escrava, já a última, curiosamente, era um dos pólos de recepção de imigrantes alemães. Em relação
ao sexo, houve um equilíbrio entre escolas femininas e masculinas na produção de documentos com
indicação de “cor”.
Adentrando no interior dessas salas de aula, podemos ainda fazer um levantamento
proporcional dos alunos elencados enquanto “brancos”, “pardos”, “morenos” e “pretos”, conforme
o quadro abaixo:
Local Escola Alunos
“brancos”
Alunos “Pardos”/
“Morenos”
Alunos
“pretos”
Total
Curitiba Escola Pública de 1ªas
Letras do sexo feminino
22 6 - 28
Paranaguá Escola de 1ªas Letras
da 2ª Cadeira do sexo
feminino
11 5 - 16
Rio Negro Escola de 1ªas Letras
da Freguesia do Rio
Negro
14 5 - 19
Antonina Aula Pública de Instrução Primária do
sexo feminino
18 9 - 27
Saco do Tamburutaca
Aula Pública de Instrução Primária do
sexo masculino
17 7 1 25
Guaraqueçaba Escola Primária 50 - - 50
Guaraqueçaba Escola Primária do sexo feminino
22 - - 22
Quadro 2. Quadro ilustrativo da distribuição de alunos brancos, pardos/morenos e pretos.
A estimativa oferecida pelo quadro conduz a outras constatações interessantes a respeito da
distribuição racial nas escolas regulares do Paraná. A principal delas é a quase inexistência de
crianças classificadas com a cor “preta”. É um fato não condizente com a demografia da província,
que na época apresentava cerca de 5,8% de indivíduos livres com essa designação. O quadro dessas
escolas sugere uma divisão racial das turmas com o predomínio médio de 79,3% de alunos brancos,
frente a 20% de pardos e 0,5% de pretos, números discrepantes, especialmente quando se leva em
consideração as duas escolas de Guaraqueçaba compostas totalmente por alunos brancos. O
contraste com os dados demográficos da província só confirmam essa desigualdade, quando
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sabemos que o Paraná tinha em torno de 58,3% de população livre “branca” e 26,3% de “parda”,
com o restante de habitantes somando “pretos” e “caboclos”, conforme as categorias do censo de
187226.
Quando exploramos o aspecto “condicional” das escolas que trouxeram essa categoria na
descrição de seus alunos nos deparamos com um cenário de quase “sumiço” dos possíveis alunos
“libertos” e “ingênuos”. Apenas duas alunas libertas foram elencadas com esta designação no mapa
escolar produzido pela professora Diocleciana Augusta Rocha, da cidade de Antonina, no ano de
1866. As meninas eram Jacintha Maria e Joaquina Maria, ambas com seis anos de idade, nascidas
em Antonina e de “pais incógnitos”27. A mesma docente, que também havia incorporado a
descrição da “cor” de suas alunas, classificou as duas libertas enquanto “pardas”. Em relação a
alunos escravizados, a totalidade de listas consultadas não evidenciou a participação dos mesmos
nos bancos escolares dessas escolas diurnas, ao contrário do que encontramos nas escolas noturnas,
conforme comentaremos oportunamente.
Sobre os “ingênuos”, como eram chamados os filhos livres de mulheres escravas nascidos
após a Lei do Ventre Livre, foram apenas 34 crianças designadas com essa categoria no total de
5.649 alunos registrados após 1879, quando as mesmas crianças já teriam completado a idade
escolar. Há de se ponderar que muitos professores podem ter deixado de nomeá-las com a categoria,
entendo-as como livres, sem a necessidade de atribuir uma classificação específica. Mas também há
de se levar em conta que a existência dessas crianças causou confusões em professores que não
sabiam diferenciá-las dos escravos28.
Elas foram localizadas mais facilmente nos chamados “Mapas de população escolar”
produzidos pela administração da instrução pública, dos quais só identificamos os documentos
relativos à Curitiba. Era um levantamento realizado para verificar a efetividade da Lei de
Obrigatoriedade Escolar, que apesar de vigente desde os anos iniciais da província, tornara-se mais
rigorosa com o passar dos anos. A partir de 1883, os ingênuos foram incorporados nessa legislação
26 BRASIL. Diretoria Geral de Estatística. Recenseamento Geral do Império de 1872. Rio de Janeiro: Typografia de G.
Leuzinger e Filhos, 1876, p. 111. 27 APPR, Mappa das alumnas que frequentam a aula pública de Antonina. 19/08/1866. Ref AP 240, pp. 107-108. 28 Uma discussão mais aprofundada dessa questão é feita em: SILVA, Noemi Santos. O baptismo na instrução. Op. Cit,
pp. 148-154. ANJOS, Juarez. Uma trama na história: a criança no processo de escolarização primária nas últimas
décadas do período imperial. Curitiba: Ed. UFPR, 2018, pp. 90-127.
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como sujeitos atingidos pela obrigatoriedade. Era um fato inusitado quando analisamos esse aparto
legislativo em outras províncias29. Mesmo assim, não teve grandes respercussões se observarmos o
baixo índice de ingênuos mencionados no levantamento, conforme os exemplos a seguir.
Nome do chefe de
residência
Profissão Nome do ingênuo(a) Idade Escola em que esteve
matriculado(a)
Joaquim Virgílio
Gomes Barbosa
Empregado
Público
Josephina 8 Ensino na família
José Pinto Rebello Negociante Ermelino P. Rebello 12 1ª Cadeira
D. Escolastina da Silva Ribas Franco
Proprietária Maria Augusta Franco 8 3ª Cadeira
Manoel Euphrasio
Correia
Advogado Getulino 10 2ª Cadeira
Francisco de Almeida Guimarães
Magistrado Faustino 10 2ª Cadeira
Francisco José
Gonçalves
Proprietário Agostinho 9 1ª Cadeira
José de Almeida Barreto
Coronel do exército
Prudencio 9 Externato São José
Quadro 3. Quadro elucidativo dos ingênuos identificados em Mapas de População Escolar de Curitiba (1883-
1884) Ref. AP 637, pp. 188-195; pp. 191-195; AP 686, pp. 16-17.
Os ingênuos foram numericamente pouco expressivos na listagem, levando-se em conta que
Curitiba registrava cerca de 2500 cativos na época de implementação da Lei do Ventre Livre30.
Além disso, esse levantamento mostra outro dado interessante sobre essas crianças. Dadas as
profissões dos chefes de residência, temos a evidência de que as mesmas ficaram sob a
responsabilidade dos senhores de suas mães, sendo estes os incumbidos da matrícula dos menores
em escolas de Curitiba. Os chefes de residência pertenciam a um extrato social abastado, com
destaque para o notável Manoel Euphrasio Correia, político e advogado, cujo nome batiza uma
praça central da cidade. Isso não consiste em novidade, já que os estudos garantem que quase a
totalidade dos menores viveram sob supervisão senhorial, com cotidianos quase idênticos ao
29 ANJOS, Juarez J. T. dos; SOUZA, Gizele. “A criança, os ingênuos e o ensino obrigatório no Paraná”. In: VIDAL,
Diana G.; SÁ, Elizabeth F.; SILVA, Vera L. G. (orgs). Obrigatoriedade escolar no Brasil. Cuiabá – MT: Edufmt, 2013. 30 PENA, Eduardo Spiller. O jogo da face: a astúcia escrava frente aos senhores e a lei na Curitiba provincial.
Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1999, p. 33.
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cativeiro31. Isso nos leva a inferir ainda que o baixo índice de ingênuos matriculados também seja
explicado pelo fato de estarem tendo seus serviços explorados durante o dia, o que também motiva
investigar em que medida os eles estiveram matriculados em escolas noturnas, como comentaremos
mais adiante.
Outras situações indicadas nas fontes ajudam no mapeamento sócio-racial desses espaços
escolares. A existência de uma escola primária no Aldeamento indígena São Pedro de Alcântra,
registrada em 1862, com a frequência de 10 crianças “livres”32 e a matrícula de filhos de africanos
livres e indígenas na aula pública da Colônia Militar do Jataí33. Ambos os núcleos populacionais
eram situados no norte do Paraná, região de baixo povoamento, tendo sido criados na década de
1850 como fruto de um projeto imperial de ocupação dos sertões34. Os africanos livres foram
direcionados pelo governo imperial rumo a colônia no Jataí para a execução de serviços em geral,
muitas vezes, especializados35. Eles também estiveram presentes no Aldeamento indígena São
Pedro de Alcântra, onde exerciam trabalhos juntamente com indígenas aldeados. O fato de
existirem filhos de indígenas frequentando a escola na Colônia do Jataí pode demonstrar que o
intercâmbio entre os dois povoamentos foi significativo, e que apesar de a maioria dos africanos
livres terem sido transferidos desses locais para outras repartições públicas quando de sua
emancipação decretada pelo Império em 1864, alguns deles, como Honorio e Crispim,
permaneceram na colônia, constituindo família e matriculando seus filhos Boaventura e Rogerio na
escola na década de 1880.
Há indícios de que outros filhos de africanos livres tenham sido matriculados em uma escola
em Curitiba. “João Africano” foi registrado em um mapa escolar de da capital como chefe de
residência, carpinteiro, residente na “Rua 7 de Setembro”, cujos filhos Desidério de 11 anos e Clara
31 Um levantamento bibliográfico sobre a experiência dos ingênuos foi feito em SILVA, Noemi S. O baptismo na
instrução. Op. Cit, pp. 21-37. 32 DEAP-PR. Mapa demonstrativo dos alunos que frequentam esta aula do aldeamento indígena de São Pedro de
Alcântra. Ref. AP 147, p. 32. 33 DEAP-PR. Mapa dos alunos que frequentaram a escola pública do sexo masculino do Jataí. 1884. Ref.AP728, p. 54 34 Cf. BEZERRA, Jéssica de Aquino. Civilizar os sertões, consolidar o Estado: a Colônia Militar do Jataí e os
Aldeamentos indígenas do Tibagi (1845-1897). Dissertação (Mestrado em História. UNIFESP. Guarulhos, 2015. 35 MAMIGONIAN, Beatriz. Africanos livres: A abolição do tráfico de escravos no Brasil. 1ª Edição. São Paulo, Cia
das Letras, 2017, p. 311.
12
de 8 anos estiveram matriculados na 2ª Cadeira do sexo masculino e na Escola de D. Narcisa,
respectivamente36.
Isso mostra que, apesar de esparsos, os registros das escolas regulares infantis trazem boas
pistas sobre a escolarização no final do regime escravista. As evidências reforçam que o complexo
quadro social montado nesse período, onde escravizados, ao lado de libertos, negros livres, brancos
pobres, imigrantes europeus, indígenas e também africanos livres, compunham o cenário de
trabalho, era apenas em parte refletido nas escolas infantis. A incidência quase nula de crianças
“pretas”, ou com a designação de “libertas” ou “ingênuas” só confirma que a exploração do
trabalho, especialmente dos filhos de escravizados ou descendentes pode ter anulado as chances de
obtenção do letramento na infância. Conforme se aproximava a abolição, ou mesmo depois dela,
essa documentação pulverizou notificiações de abertura de escolas infantis em colônias de
imigrantes, fosse em núcleos rurais ou urbanos37. Em contrapartida, as notificações que tivessem a
população negra egressa do cativeiro como público alvo estiveram restritas ao período noturno,
visando alunos na idade adulta, conforme passaremos a comentar.
As escolas noturnas
O Paraná contou com duas iniciativas destinadas à instrução de escravizados e libertos
durante o período escravista. Uma delas, aconteceu em Paranaguá a partir de 1871, sob direção do
professor abolicionista José Cleto Silva38 e a outra, foi encaminhada pelo capitão da guarda
Damasio Correia Bittencourt em Curitiba, no ano de 1874. O processo de abolição, as mudanças no
mercado de trabalho dele decorrentes e a lei de reforma eleitoral de 1881 foram os grandes
acontecimentos que motivaram a inserção da ideia de “instrução popular” na agenda de luta dos
trabalhadores na transição entre os séculos XIX e XX. Também foram as motivações elencadas por
36 DEAP-PR. População escolar de Curitiba – 14º distrito. 1883. Ref. AP 686, pp. 16-17. 37 Sobre as demandas por instrução, por parte dos imigrantes europeus em Curitiba, Cf. MASCHIO, Elaine Cátia
Falcade. A escolarização dos imigrantes e seus descendentes nas colônias italianas de Curitiba, entre táticas e
estratégias de italianitá e brasilita (1875-1930). Tese (Doutorado em Educação) apresentada ao PPGE – UFPR.
Curitiba, 2012. 38 A maior parte das informações discutidas nesta seção foram trabalhadas em estudo anterior, já citado: SILVA, Noemi
S. da. O baptismo da instrução. Op. Cit.
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governantes para impulsionar a abertura de escolas de adultos, especialmente após a década de
1880, ajudando criar um cenário de ampliação das oportunidades de instrução para esses setores.
As iniciativas sofreram com a instabilidade, pois tiveram um caráter esporádico,
concentrando-se entre as décadas de 1870 e 1880, e em geral se constituindo enquanto resultado de
parcerias do governo provincial com as Camaras Municipais. Em sua maioria essas parcerias eram
encerradas, tão logo eram findados os mandatos dos presidentes provinciais, provocando ampla
reação dos setores atendidos, que fizeram mobilizações para a garantia da regularidade de suas
aulas. Quando observamos o perfil de alunos dessas escolas, encontramos um quadro bastante
diverso das escolas regulares diurnas. Além da faixa etária, os padrões de “cor”, “condição”
alteraram-se radicalmente, ainda que com menções escassas, sendo acrescidos agora com os
qualitativos de “profissão”.
Do total de 46 registros com indicação de “cor”, podemos chegar a seguinte estimativa:
Alunos “brancos” Alunos “mulatos” Alunos “pretos” Alunos “fulos” Outras categorias
36,9% 28,2% 17,3% 10,8% 4,3% Quadro 4. Estimativa das cateogrias de “cor” encontradas em mapas escolares das escolas noturnas do Paraná
(1874-1885). DEAP-PR.
Nesse novo quadro de análise, além da redução considerável do predomínio de alunos
“brancos”, as categorias que buscaram classificar alunos “miscigenados” variaram. A nomenclatura
“pardo” esteve extinta nas descrições elaboradas por professores de escolas noturnas, dando lugar às
qualificações “mulato”, “fulo” e “cor trigoza”39. As duas últimas foram empregadas em situações
específicas. O professor Damasio Correia de Bittencourt, que lecionava apenas para escravos e
libertos em Curitiba, na década de 1870, denominou “fullos”, cinco alunos escravos. Já o qualitativo
“trigoza” foi dado a indivíduos livres da escola noturna da Vila do Arraial Queimado, nas
proximidades de Curitiba em 1882.
Adjetivações de “cor” foram observadas nos documentos produzidos por escolas de
Paranaguá, Curitiba e Morretes, mais uma vez contemplando o litoral e a capital. Já em relação à
periodicidade, a produção desses registros não obedeceu uma época específica, estando correntes
39 DEAP-PR. AP 445, p. 30-31; AP 447, p. 43; AP 665, p. 128; AP 667, p. 277 e p. 242;
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ainda na década de 1880. No entanto, como ocorreu no caso das escolas diurnas, o período de pós-
abolição não apresentou registros de cor na documentação escolar, deixando vaga a questão de
quais teriam sido as possibilidades educacionais da população negra, mesmo em escolas noturnas.
Os professores das escolas noturnas também se sentiram mais estimulados a empregar os
qualitativos de “condição” para a descrição dos alunos. Ao todo, somamos 452 nomes
acompanhados de classificações condicionais, de um total de 660 registros:
Condição Percentual
Alunos livres 70,7%
Alunos escravos 26,7%
Alunos libertos 8,8%
Alunos ingênuos 2%
Quadro 5. Perfil dos alunos das escolas noturnas, conforme classificações de condição. DEAP-PR
O “sumiço” de alunos não livres observado para as escolas regulares não se repetiu nessa
modalidade de escolarização, mesmo havendo normativas contrárias à frequencia de escravos em
escolas públicas. O que também chama atenção é o baixo índice de alunos ingênuos e libertos, ou
ao menos, assim classificados pelos produtores da documentação, dando a entender que a atribuição
dessas qualificações se desse ao sabor do acaso.
Aficanos e indígenas, por sua vez não foram identificados na documentação, com exceção
do caso do africano livre Sebastião Pinheiro, barbeiro de 48 anos, matriculado em uma escola
noturna de Paranaguá. A iniciativa escolar em questão era regida por José Cleto Silva, o mesmo
professor que havia aberto uma escola para escravos na cidade. Ele auxiliava na justiça indivíduos
escravizados ilegalmente, que haviam chegado ao Brasil após a lei de proibição do tráfico40. Seria
Sebastião um dos contemplados com as ações do professor abolicionista?
Outro traço que distingue as experiências de escolas noturnas em comparação às regulares é
em relação à instrução do sexo feminino. Majoritariamente essas aulas contemplavam apenas
40SILVA, Noemi S. “O professor José Cleto Silva e o Abolicionismo em Paranaguá”. In: Hilton Costa, Milton
Stanczyk Filho e Jonas W. Pegoraro. (orgs) O Paraná pelo caminho: histórias, trajetórias e perspectivas. Vol. II:
Justiças. 1ª ed. Curitiba: Ed. Máquina de Escrever, 2017, pp. 246-275.
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homens, com uma média de faixa etária entre 10 e 60 anos. Apenas um caso pareceu indicar a
possibilidade de instrução de mulheres no período noturno. Partiu de Porto de Cima, litoral da
província, de uma professora interessada em lecionar para “moças em idade adolescente”41, sem
que saibamos se chegou a se efetivar, por não obtermos notificações nos anos seguintes.
Por fim, outro aspecto de relevância para o estudo das caracterísiticas dessas escolas é em
relação à profissão. Os adultos que procuraram esses espaços formavam um perfil específico dos
trabalhadores. Eles exerciam ofícios especializados, próprios dos meios urbanos, com uma
predominância de pedreiros, sapateiros e carpinteiros42. Não significa que trabalhadores rurais não
estiveram nessas escolas, muito pelo contrário. Em localidades menos urbanizadas como São João
da Graciosa, Campo Largo, São José dos Pinhais, Rio Negro, mas também na cidade de Morretes,
os lavradores, entre livres e escravizados, formavam um número expressivo das turmas interessadas
em aulas no período de descanso. Isso ajuda a problematizar a hipótese de que a demanda por
instrução para adultos tenha sido derivada apenas das necessidades de trabalho. É cada vez mais
evidente que seus significados tenham transcendido o sentido prático.
Considerações Finais
Nossa incursão nos interiores das escolas primárias revelou aspectos interessantes para o
estudo da escolarização da população negra, entre a escravidão e o pós-abolição. São fortes as
evidências de que o ensino regular diurno, voltado à educação infantil, tenha se configurado como o
mais restritivo à população egressa da escravidão e seus descendentes. Ainda que com
representatividade da população mestiça – e aí é interessante indagar sobre os parâmetros
empregados pelos redatores dos documentos que se utlizaram da categoria “pardo” – a quase
inexistência de alunos classificados com a cor “preta”, ou com a condição de “libertos” ou
“ingênuos” é elucidativa da segregação produzida pelo espaço escolar, aos que buscaram a
instrução nas etapas iniciais da vida. Certamente os cotidianos de trabalho e as barreiras raciais
estão entre os fatores que explicam essa exclusão institucional, mas somente um rastremento
41 DEAP-PR. Ofício, professora Amélia Maria Nascimento. 1875. Ref. AP 471, p. 12. 42 Do total de 274 registros com indicação de profissão, 44 alunos exerciam a profissão de pedreiro, 38, de carpinteiro e
33, de sapateiros. Fonte: DEAP-PR. Mapas escolares das escolas noturnas (1874-1885)
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cuidadoso desses estudantes e o cruzamento com outras fontes que tragam a qualificação racial
pode trazer respostas de como foram suplantados esses percalços para a obtenção do letramento em
escolas públicas.
O quadro díspar encontrado nas escolas noturnas sugere que essa modalidade de instrução
tenha sido mais favorável aos que quisessem se interar de noções de primeiras letras. O índice mais
elevado de escravizados, libertos e negros livres indica que, ao menos no final do período escravista
essas chances de escolarização foram aproveitadas por essa população, quem sabe entendendo a
instrução como um direito ou uma ferramenta de melhoria das condições de vida nos desafiantes
anos que estavam por vir. Todavia, essa abertura nas chances de educação também teve suas
limitações. Dependeram de recursos públicos quase inexistentes, enfrentaram os contínuos
fechamentos arbitrários e, sobretudo, não tinham o potencial de atendimento da maior parte de
adultos possivelmente interessados em adquirir intrução, a começar pelas mulheres, que não se
viram contempladas nessas possibilidades. Esperamos que a continuidade desse levantamento traga
maiores subsídios para o debate da questão tendo o pós-abolição como recorte analítico, ajudando a
responder se as gerações egressas da escravidão contaram com chances similares de educação ou
como contruíram suas próprias alternativas educacionais.
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