nos subsolos de uma rede -...
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i
VITOR PEQUENO
NOS SUBSOLOS DE UMA REDE:
Sobre o ideológico no âmago do técnico
CAMPINAS - SÃO PAULO
2014
iii
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS DA LINGUAGEM
LABORATÓRIO DE ESTUDOS AVANÇADOS EM JORNALISMO
VITOR PEQUENO
NOS SUBSOLOS DE UMA REDE:
Sobre o ideológico no âmago do técnico
Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto
de Estudos da Linguagem e ao Laboratório de
Estudos Avançados em Jornalismo, da
Universidade Estadual de Campinas, para a
obtenção do título de mestre em Divulgação
Científica e Cultural, na área de Divulgação
Científica e Cultural.
Orientadora: Prof. Dra. Cristiane Pereira Dias
CAMPINAS - SÃO PAULO
2014
v
BANCA EXAMINADORA:
Cristiane Pereira Dias
Rafael de Almeida Evangelista
Verli Fátima Petri da Silveira
Claudia Regina Castellanos Pfeiffer _____________________________
Nádia Régia Maffi Neckel _____________________________
IEL/UNICAMP
2015
vii
RESUMO
Essa pesquisa centrou suas investigações sobre as redes de relacionamento
como dispositivos tecnológicos de comunicação e estabelecimento das relações
sociais. Por meio da apropriação e aplicação de diversos dispositivos teóricos da teoria
discursiva e do materialismo histórico, buscou analisar aspectos técnicos dessas redes
como produções de cunho ideológico, desconstruindo as formulações de sujeito,
relação social e circulação do sentido implícitas em sua estruturação. Essa pesquisa
também se apoiou fortemente no método filosófico de Jean Baudrillard para repensar
certas operações nocionais de dualização, principalmente no caso de online e off-line, e
sua relevância, tanto epistêmica, quanto social, na contemporaneidade. Nos
apropriamos aqui da noção de Arquivo como princípio ideológico de circulação do
sentido, e desenvolvemos a noção de clivagens subterrâneas, que Pêcheux sugere em
Ler o Arquivo Hoje (1982). Apesar da intensa heterogeneidade possibilitada pela
materialidade do online, o que de predominante que acabamos por encontrar na
estrutura técnica das redes de relacionamento foi a forma-histórica do capitalismo
contemporâneo, estruturando as relações sociais, e a própria constituição da
subjetividade, através do que acabamos por categorizar como relações de consumo.
ix
ABSTRACT
This research centered its investigation on social networks as technological
devices for communication and the establishment of social relations. By means of the
appropriation and application of several theoretical dispositifs from discursive theory and
historical materialism, this paper sought to analyze technical aspects of these networks
as ideologically structured, deconstructing the implied formulations for subjects, social
relations, and the circulation of meaning imbedded in this structuring. This research also
heavily relied on the philosophical methods of Jean Baudrillard in order to rethink certain
notional operations of duality, especially in the case of online/off-line, and their
relevance, both epistemic and social, for the present. This research appropriates itself of
the notion of Archive as an ideological principal for the circulation of all meaning, and
develops the idea of subterranean cleavages, which Pêcheux suggests in Lir L’archive
Aujourd’hui (1982). In spite of intensely heterogeneous material possibilities intrinsic of
the online environment, what we have predominantly found in the technical structure of
social networks is the historic-form of contemporary capitalism, structuring social
relations, and even the constitution of subjects, through what we have come to
categorize as relationships of consumption.
xi
SUMÁRIO
RESUMO ......................................................................................................................................... VII
ABSTRACT ......................................................................................................................................... IX
AGRADECIMENTOS ......................................................................................................................... XV
APRESENTAÇÃO: SOBRE O PESQUISADOR EM NOSSO PERCURSO DE PESQUISA .............................. 1
INTRODUÇÃO: SOBRE A PESQUISA, SEUS PROBLEMAS E OBJETIVOS ................................................ 5
Da episteme ............................................................................................................................................................... 8
Da análise................................................................................................................................................................... 9
1ª PARTE ......................................................................................................................................... 11
Arquivo: efeito ou Princípio de Circulação ............................................................................................................ 12
Arquivo como princípio de circulação ..................................................................................................................... 16
O Arquivo e o Online ................................................................................................................................................ 27
Clivagens Subterrâneas: sobre as materialidades de Produção Técnica da Leitura ............................................... 29
Simulação: Sobre o fim da representação e a precessão dos modelos .................................................................. 37
2ª PARTE ......................................................................................................................................... 46
O Filtro: Sobre os modos tecnologicamente produzidos de circulação .................................................................. 47
O Avatar: Sobre a condição de possibilidade de circulação dos sujeitos nas redes de relacionamento ................. 60
O Na-Linha: Sobre as condições de possibilidade de constituição da subjetividade em relação a certos aspectos da
materialidade online. ............................................................................................................................................ 75
Tempo e Presente .................................................................................................................................................... 76
Espaço e Presença ................................................................................................................................................... 83
xii
CONCLUSÃO: SOBRE O FIM DA AUSÊNCIA, DA LATÊNCIA, DO ENCONTRO. .................................... 91
BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................................. 99
xiii
Às minhas crianças amadas. Luiza, Alice, todos
os filhos e sobrinhos que nem mesmo chegaram
ainda. Que eles sejam capazes de encontrar um
lugar nas dobras dos tempos e dos espaços, onde
ainda seja possível o silêncio, a demora, o
percurso. E que quando o encontrarem, que ainda
tenham a paciência para nos apontar o caminho.
xv
AGRADECIMENTOS
À FAPESP, pela oportunidade de me dedicar exclusivamente a um trabalho que
não teria sido possível de outra forma.
À todos os meus professores e, mais numerosamente, professoras: Cristiane,
Rafael, Lauro, Nina, e tantos mais. O percurso pantanoso se provou um desafio
além de minha capacidade solitária.
Acima de tudo à Solange, minha primeira e mais amada professora, sem a qual
tudo seria para sempre coberto por véus: respostas prontas, almas silenciadas e
portas fechadas.
xvii
[...] e essa mentalidade, essa condição; por mais invisível que seja; por mais
intangível que seja; pode funcionar, de fato, como arame farpado. Cada um deve,
no espírito da humanidade; em nome da comunhão; alcançar por entre os fios; com
mãos estendidas.
Lawson Fusao Inada – To This Day [tradução nossa]
1
APRESENTAÇÃO: SOBRE O PESQUISADOR EM NOSSO PERCURSO DE
PESQUISA
Eu sou um ávido usuário das novas tecnologias. Como muitos em minha
geração, como muitos de condições econômicas e sociais similares, minha vida diária
gira na órbita da conexão (às vezes até o ponto da profunda alienação), da informação
(às vezes até a exaustão e o excesso), do contato com o mundo que se dá por via
dessa pequena janela azul e branca.
Um número vasto de meus amigos se perderia sem deixar traços se meus
perfis fossem, repentinamente, deletados. Uma grande parte do que aprendo sobre o
dia que se passa e sobre o mundo que me cerca aconteceria sem meu conhecimento.
Antes de qualquer coisa, não é possível deixar de notar que aquele que escreve aqui é
já constituído dentro desses aparatos que busca elucidar.
Mas, claro, como o sujeito está já sempre inserido nos meios de significar, e
como, mesmo assim, é necessário que faça seu próprio recorte, se localizando na
ordem das coisas, fazemos assim nosso movimento inicial em adentrar um campo tão
amplamente estudado, novo, e desconhecido.
Ao nosso ver, parece claro que as condições materiais de possibilidade dos
sujeitos no âmbito da internet se constituem como uma quebra com aquelas que
estavam disponíveis até então. Sabemos que essa quebra radical se revela, antes de
qualquer outra coisa, nas próprias concepções de tempo e espaço a partir das quais
funcionamos. Ou seja: entendemos que o que criamos com o online é também uma
nova materialidade física, que habitamos, mas que os modelos das leis Newtonianas já
não nos ajudam mais a compreender. Como Dias1 nos lembra: “Nós somos os sujeitos
desses novos espaços”.
E, entretanto, como um querido amigo, programador, e importante consultor
para a realização dessa pesquisa defendeu inúmeras vezes: “sim, o programador deixa
1 DIAS, C. P. (2012). Sujeito, Sociedade e Tecnologia: a discursividade da rede (de sentidos). São Paulo: Hucitec, p.
117.
2
um pedaço dele mesmo no código”. É o verdadeiro fantasma que se instaura finalmente
na máquina. Que apropriado que ele seja, inevitavelmente, um fantasma discursivo,
ideológico, histórico, simbólico.
Pensar sobre esse novo contexto ao longo dessa pesquisa exigiu, portanto, o
mesmo tipo de exercício que se pede dos astrônomos e dos físicos da mecânica
quântica: demandar de si próprio a capacidade de imaginar objetos para além da
experiência evolucional da raça e de nosso senso comum. De outra forma poderíamos
dizer: o próprio pensar sobre o online (da forma como vem se intensificando como
objeto científico nas últimas décadas) pode ser entendido também como
acontecimento, ou seja, um evento de constituição, elaboração e distribuição do sentido
fora da ordem estabilizada dos discursos.
É necessário, nos parece, desenvolver a capacidade de desenhar mapas
desse novo espaço, o que se trata de um desafio na medida em que esse espaço não
ocupa dimensões. Da mesma forma, se trata de realizar arqueologias de um tempo que
não passa em segundos ou anos. Esse constituiu ao longo da pesquisa - e claramente
ainda é - nosso desafio e dificuldade principal: um novo paradigma exige também novas
formas de pensar e dizer mesmo enquanto a Análise do Discurso (AD) está ai
justamente para nos lembrar que absolutamente nenhum sentido é possível fora dos
limites da memória, daquilo que, de uma forma ou de outra, já foi dito. Estamos, ao que
tudo indica, fadados a usar velhas palavras para novos mundos, e andar – tanto no
percurso dessa pesquisa quanto no desenvolvimento desse novo paradigma – na
dobra, como Pêcheux já nos avisou, entre o que está posto, e aquilo que, o tempo
inteiro, incita a desordem e a reorganização.
A pesquisa que você encontra aqui portanto, parte e se apoia no
materialismo histórico, na perspectiva discursiva, e até em certa medida na filosofia
pós-estruturalista (na medida em que Baudrillard nos foi imprescindível no processo de
pesquisa) para responder às questões a que se propôs: o modo de constituição do
sujeito, e seus laços sociais, na medida em que se constituem dentro do âmbito das
redes sociais. Finalmente, entretanto, acabamos por nos enlaçar em uma tentativa de
analisar o aspecto técnico das redes de relacionamento, apostando na ideia de que,
3
justamente, há pedaços humanos presos no código, fantasmas na máquina, ou: que o
aspecto tecnológico de produção dos contextos da rede acusaria as posições
ideológicas a partir das quais as redes, elas próprias, são produzidas.
Experimentamos, no progresso dessa pesquisa, inversões, esfarelamentos,
paradoxos insolúveis com relação a condição de possibilidade do sujeito nas redes. O
experimentamos quando tentamos, por exemplo, precisar a condição do espaço, do
tempo, da presença, da latência, da distância, da saudade, do sujeito propriamente dito
da rede. Experimentamos também a vertigem do acesso e do excesso, os infinitos
simulacros pelos quais circulamos com tamanha naturalidade. E de frente a toda essa
impossibilidade, buscamos formular modos de coabitar realidades conflitantes entre
sujeitos e seus avatares, entre a circulação do sentido e seus filtros, entre o tempo-
espaço tridimensional e a linha. É, principalmente um ensaio analítico sobre esse
embate, o nosso trabalho.
Foi nos apoiando no trabalho científico do materialismo histórico sobre os
objetos do online, que lembramos de George Politzer, que em seu livro sobre os
fundamentos epistemológicos da psicologia, nos avisa:
Se ninguém pensa em protestar contra a afirmação geral de que as teorias são mortais e que a ciência só pode avançar sobre suas próprias ruínas, não é possível fazer com que seus representantes constatem a morte de uma teoria atual. A maioria dos cientistas compõe-se de pesquisadores que, não tendo o sentido da vida nem o da verdade, só podem trabalhar à sombra de princípios oficialmente reconhecidos: não se pode pedir que reconheçam uma evidência que não é dada, mas a ser criada.2
Suspeitamos, na medida que realizamos essa pesquisa, justamente dessa
evidência que hoje, nas datas de seu encerramento, ainda não enxergamos. Essa
evidência que nos parece pedir para ser criada. Falhamos em expô-la aqui. Nesse
momento, nesse trabalho, buscamos simplesmente permitir nosso estranhamento e nos
mantemos atentos à direção que ele nos aponta. Não nos propomos aqui a construir
modelos, nem a analisar ou predizer modos de ser ou se relacionar. Nosso percurso é
2 POLITZER, G. (2004). Crítica dos Fundamentos da Psicologia: a psicologia e a psicanálise, 2ª edição. Piracicaba:
Editora UNIMEP, p. 37.
4
simples: nos apoiamos (como é de nossa competência acadêmica) na episteme
materialista (especificamente em Althusser, Pêcheux, Foucault, Orlandi) para
pensarmos a produção técnica das redes de relacionamento como dispositivos
ideológicos: buscamos descrever, o quanto for possível, esse fantasma na máquina.
Não seria razoável, entretanto, esperar desse trabalho alguma elaboração ou
descoberta importante sobre a constituição do sujeito dentro ou em relação às redes
sociais. Nem mesmo produzimos aqui uma descrição e definição completa do que
seriam essas redes de relacionamento e a internet que as abriga. Este artefato
historiográfico não coube às nossas competências produzir. Gostaríamos de, na escrita
dessa pesquisa, plagiar seu objeto de estudo e ser um espaço de embates, encontros;
um espaço de vãos, silêncios, perguntas, paradoxos. Acreditamos que isso garanta,
inclusive, nossa participação, já que mesmo enquanto escrevo essa pesquisa espero
poder ser, também, um de seus leitores, fanaticamente interessado em uma perspectiva
sobre esse mundo que eu já, tão bem, também habito.
5
INTRODUÇÃO: SOBRE A PESQUISA, SEUS PROBLEMAS E OBJETIVOS
A Análise do Discurso, como disciplina acadêmica, se desenvolve na França,
na década de 60 e 70, predominantemente sob o domínio da Linguística, do
materialismo dialético do Marxismo e no encontro que seus fundadores propõe com a
Psicanálise. No desenvolvimento que sofreu entre 1969, quando Pêcheux escreve Por
Uma Análise Automática do Discurso (1969), até seus últimos escritos em 1983
(incluindo O Discurso: Estrutura ou Acontecimento (2012a) a Análise do Discurso (AD)
sofre grandes reelaborações, como Maldidier nos descreve em A Inquietação do
Discurso3:
Ele, progressivamente, o amadureceu, explicitou, retificou [o discurso]. Seu percurso encontra em cheio a virada da conjuntura teórica que se avoluma na França a partir de 1975. Crítica da teoria e das coerências globalizantes, desestabilização das positividades, de um lado. Retorno do sujeito, derivas na direção do vivido e do indivíduo, de outro. Deslizamento da política para o espetáculo! Era a grande quebra. Deixávamos o tempo da “luta de classes na teoria” para entrar no do “debate”. Nesse novo contexto, Michel Pêcheux tentou, até o limite do possível, re-pensar tudo o que o discurso, enquanto conceito ligado a um dispositivo, designava para ele.
E entretanto, a AD nunca deixou de ser uma disciplina que gira,
predominantemente, não só na órbita do discurso, mas também na órbita das
textualidades. Nos referimos aqui às materialidades significantes frequentemente
associadas com análises discursivas: imagens, filmes e documentários, músicas, livros,
revistas, panfletos, conversas, e enunciados em geral. Porém o que diversos analistas e
suas pesquisas não cansam de nos lembrar é que o sentido, como efeito produzido na
conjuntura sujeito/história/linguagem, não é consequência do texto, mas muito antes, é
consequência da própria condição histórica e material de ser-sujeito ou, mais
precisamente, de estar-já-sempre-sendo-sujeito; que é a condição de estar
3 MALDIDIER, D. (2003). A Inquietação do Discurso: (re)ler Michel Pêcheux Hoje; tradução Eni P. Orlandi.
Campinas, SP: Pontes, p. 16
6
inevitavelmente inscrito dentro da realidade simbólica que - e na qual - a linguagem
opera e na qual o sentido é possível. Dias já aponta que:
[...] por mais que o discurso seja interesse de tantas outras teorias e que haja uma “generalização da Análise do Discurso”, a filiação materialista da definição de discurso, que coloca o analista na relação com a ideologia e com o político, é o que dá a singularidade à Análise do Discurso que Eni Orlandi desenvolve, juntamente com uma equipe de pesquisadores espalhados em várias instituições brasileiras4.
Se tornou portanto o objetivo dessa pesquisa, durante nosso percurso de
dois anos, a descrição de como a produção dos dispositivos tecnológicos que
constituem as redes de relacionamento são, também, produções do âmbito do
ideológico, já que são operadas por sujeitos, por instituições, etc.. Essa proposta, é
claro, não é nova:
Compreender a tecnologia discursivamente, na esteira de todo esse trabalho desenvolvido anterior e contemporaneamente ao que proponho, é compreender como, ao longo do desenvolvimento das sociedades, a tecnologia foi assumindo um lugar primordial ao ponto de ser um conceito gestor da economia, da política, da administração, do lazer, das cidades, da própria constituição dos sujeitos em sociedade, das relações sociais, mas também da linguagem.5
Com toda a herança que a AD traz das Letras e da Linguística, portanto, e
com sua formação sendo predominantemente desenvolvida nos cursos de Letras (e
não, por exemplo, Filosofia), o que temos é uma condição política de desenvolvimento
da disciplina onde o dispositivo teórico acaba por girar, também, na mesma órbita: na
órbita das textualidades. Sabemos, entretanto, mesmo dentro desse contexto, que o
sujeito é sempre sujeito discursivo, ou seja: que quando falamos de linguagem não
falamos sobre ferramentas (históricas, operacionais, do poder, etc.), mas como
demonstra Gadet e Pêcheux em A Língua Inatingível (2004), a própria condição da
4 DIAS, C. P. (2011b). Espaço, Tecnologia e Informação: uma leitura da cidade. In: RODRIGUES E. A.; SANTOS,
G. L.; BRANCO, L. K. A. C. (orgs.) Análise do Discurso no Brasil: pensando o impensado sempre. Uma
homenagem a Eni Orlandi. Campinas: Editora RG, p. 260
5 Idem, p. 262.
7
possibilidade de ser sujeito. Também se configurou objetivo dessa pesquisa, portanto, a
tentativa de, a partir da referência da AD, e em especial do artigo Ler o Arquivo Hoje
(2010), nos instrumentalizar em um deslocamento, a saber, a análise de diversos
dispositivos tecnológicos: de programação, de design, de funcionamento, na medida em
que também os entendemos como artefatos carregados de sentido e produzidos, como
todo sentido, a partir de posições, ideologicamente produzidas, de “dizer”.
Da mesma forma que Cristiane Dias, que orientou esse trabalho,
entendemos que “o mundo passa por um processo de construção de novos paradigmas
para pensar o Homem nas suas relações humanas e sociais”6, e que a tecnologia digital
tem um papel central nesse deslocamento. E entretanto, a neutralidade dos dispositivos
técnicos que condicionam essa mudança é, ainda, amplamente tida como dada, e difícil
de perfurar, perturbar, desconstruir.
Foi desta forma que estruturamos nosso trabalho, a partir de um ímpeto de
estabelecer, se mais nada, em nós mesmos, uma relação menos ingênua com estes
dispositivos tão ubíquos à vida contemporânea. Apresentamos o resultado dessa
investigação em dois grandes capítulos. O primeiro ensaia um deslocamento teórico: a
apropriação dos dispositivos teóricos que entendemos necessários para prosseguir por
esse caminho. O segundo capítulo busca aplicar esses dispositivos em curtas análises,
materializando, através de exemplos e desconstruções críticas, o tipo de pesquisa que
nos foi possível realizar por meio do aparato teórico do materialismo histórico, da teoria
do discurso, e da filosofia contemporânea.
De forma geral, fizemos uso de Pêchuex, da teoria do discurso, alguns de
seus precursores e contemporâneos (centralmente Althusser, Foucault, e Orlandi), na
medida em que foi no dispositivo teórico da Análise do Discurso que nos apoiamos.
Utilizamos também a mesma manobra filosófica que Baudrillard, e nos apoiamos nele
para fazê-la, na medida em que o consideramos inestimável como um historiógrafo
desse nosso presente, quando nos traz sua concepção de simulacro e simulação.
6 DIAS, C. P. (2012). Sujeito, Sociedade e Tecnologia: a discursividade da rede (de sentidos). São Paulo: Hucitec, p.
15.
8
Da episteme
A primeira secção, ou capítulo, dessa pesquisa então se divide em três
partes menores.
Na primeira, nossa discussão gira em torno de especificar a noção de
Arquivo, e como ela pode ser entendida por meio do aparato teórico da AD como mais
do que o resultado (político) da organização dos sentidos, mas como o próprio princípio
(ideológico) ordenador dessa organização. Para realizar essa interpretação da noção,
trazemos alguns autores da Análise do Discurso e, em especial, nos centramos no
artigo Ler o Arquivo Hoje (2010), onde Pêcheux nos apresenta uma direção a ser
seguida em relação ao que pode ser entendido por arquivo.
Na segunda parte do nosso primeiro capítulo, o projeto foi desenvolver a
noção de clivagens subterrâneas, que Pêcheux sugere, mas não desenvolve no texto
citado acima. Foi nossa intenção desenvolver teoricamente essa noção de forma que
ela respondesse ao processo material de controle da circulação dos sentidos. Nesse
sentido, as clivagens subterrâneas estão estreitamente ligadas ao Arquivo, como o
pensamos aqui, na medida em que o materializam tecnicamente, produzindo um tipo (e
não outro) de acesso, e de circulação.
Na terceira e última secção do nosso primeiro capítulo, trazemos Baudrillard
e tentamos demonstrar em que medida sua perspectiva nos é inestimável nesse
trabalho. A noção, pois, de Simulação – como período histórico, como prática social – é
intensamente prolífica ao pensarmos na realidade online. Se trata de entender suas
manobras como a tentativa de demonstrar a natureza e as consequências de um
contexto social no qual a realidade como estruturada a partir de suas oposições (real e
virtual, esquerda e direita, infantil e adulto, selvagem e civilizado, etc.) não opera mais
nenhum efeito, não carregam mais nenhuma força. Tentaremos trazer de Baudrillard o
contexto no qual não se trata mais de determinar a diferença (online e off-line) mas de
determinar as consequências de um âmbito no qual essa diferença é intensivamente
apagada pelo aparato social (que no nosso caso, é vastamente técnico). Através,
9
portanto, do autor, podemos pensar no panorama mais vasto das redes de
relacionamento como realidade social.
Da análise
A segunda secção dessa pesquisa é, também, dividida em três partes. Cada
uma responde a uma coleção de dispositivos tecnológicos (por vezes lógicas de design,
por vezes desenhos de página ou aplicativo, por vezes algoritmos de filtro, etc.)
agrupada pelos gestos de leitura que realizamos aqui. Esses dispositivos tecnológicos
poderiam, como sempre é o caso, ter sido agrupados de outras formas. Entendemos
que central aqui são, não só aquilo que pudemos inferir a partir de nossas análises,
mas também o objeto dessa análise, que não foi aqui nenhuma textualidade ou
discursividade específica dentro do online, mas a arquitetura técnica que as possibilita.
A primeira parte de nossa análise gira em torno do que denominamos de
clivagens de filtro. Não só os algoritmos de filtro, mas todo aspecto técnico de
configuração das possibilidades de circulação do sentido nas redes de relacionamento,
na medida em que o usuário tem acesso a ele. Tentamos aqui investigar a lógica de
funcionamento que regimenta aquilo que cada usuário encontra nas redes.
A segunda parte do nosso capítulo de análise gira em torno da noção de
avatar. Colecionamos, através de exemplos, diversos dispositivos técnicos que
produzem o efeito de uma “representação” do sujeito na rede. Nossa intenção aqui é
não só colocar em questão a noção implícita de representação em contraste com a
noção de simulação que trazemos de Baudrillard, mas também tentamos olhar para a
lógica de fundo que operacionaliza esse “sujeito da rede”, que é o avatar e de que
formas ele também faz um trabalho de interpelação dos sujeitos.
A última secção de nossa pesquisa é centrada em volta das marcas do
tempo e do espaço no online, e nas redes de relacionamento especificamente. Nossa
investigação aqui gira em torno de demonstrar como há, ali, uma relação entre sujeito e
10
tempo/espaço, previamente produzida nos âmbitos técnicos da programação. Tomamos
como tarefa final então explorar um pouco melhor os efeitos dessa concepção técnica
de tempo/espaço, na medida em que ela condiciona também – em uma relação
propriamente Baudrillardiana – a nossa relação com o tempo/espaço off-line.
Poder-se-ia indagar sobre o percurso dessa análise. Agora, na medida em
que escrevemos essa introdução no término da pesquisa, sugerimos ao leitor que
nosso percurso analítico pode ser lido também em ordem inversa: por último falamos da
condição ontológica da realidade online, o tempo e o espaço (como tecnicamente e
simbolicamente construídos). Antes, tentamos descrever a condição do sujeito nesse
contexto ontológico (aquilo que denominamos de avatar). E em primeira instância,
trabalhamos sua relação com o sentido, ao menos, no que diz respeito ao aspecto da
circulação.
Entretanto, nos parece que, justamente nesse aspecto, a pesquisa é feliz na
medida em que segue um percurso de investigação onde o que buscamos foi
desenterrar mais e mais camadas das clivagens que constroem e condicionam nossa
relação com a rede de comunicação, com nós mesmos, e com o outro, online.
12
ARQUIVO: EFEITO OU PRINCÍPIO DE CIRCULAÇÃO
Vocês, o povo, têm o poder – o poder de criar
máquinas. O poder de criar felicidade! Vocês, o
povo, têm o poder de fazer essa vida livre, e linda,
fazer dessa vida uma aventura maravilhosa.
Então, em nome da democracia, usemos esse
poder, vamos nos unir.
Charles Chaplin, O Grande Ditador.
[tradução nossa]
13
A pesquisa que o leitor tem agora em mãos se origina de um ponto teórico
que não só chama nossa atenção para o problema da leitura, como também nos dá, ao
mesmo tempo, pistas sobre como esse problema pode ser pensado no âmbito do online
e das redes de relacionamento. Pêcheux nos diz, e citamos:
Os grandes debates moralistas, filosóficos ou literários (tal qual ressoam no espaço ideológico e cultural francês) são os mais frequentemente estruturados através dos confrontos sobre temas, posições ou, às vezes, sobre métodos de trabalho. Mas, mesmo neste último caso, a questão da leitura permaneceu quase sempre implícita: há, entretanto fortes razões para se pensar que os conflitos explícitos remetem em surdina clivagens subterrâneas entre maneiras diferentes, ou mesmo contraditórias, de ler o arquivo (entendido no sentido amplo de “campo de documentos pertinentes e disponíveis sobre uma questão”)7.
Se há algum eixo do qual essa pesquisa não consegue escapar, este deve
ser o eixo da leitura. Atravessaremos o problema do “como ler” e do “como é lido” até o
fim de nosso percurso. No trecho que citamos acima, Pêcheux fala do funcionamento
político da academia, mas concomitantemente de um funcionamento geral da língua: ao
usar o termo clivagens subterrâneas sugere algo de material no âmago das instituições
que também é constitutivo da possibilidade de leitura. Exploraremos essa possibilidade
a seguir.
Acreditamos, inclusive, que esse movimento de problematização da leitura
não é somente intrínseco ao trabalho de Michel Pêcheux, mas típico do pós-
estruturalismo como corrente filosófica. Como Lotringer8 já nos lembra: o movimento
teórico na França depois de ’68 foi amplamente o de dissolver os binarismos teóricos
que tinham estruturado a lógica de produção acadêmica estruturalista até então. O
sujeito é, nessa perspectiva pós-estruturalista, aquele que circula por um tipo muito
mais instável de território, e que neste território, se interpela em uma figura (em um
modelo teórico) muito mais repleto de contradições e atravessamentos do que, por
exemplo, o sujeito proposto por Althusser ainda em Aparelhos Ideológicos do Estado
7 PÊCHEUX, M. (2010). Ler o Arquivo Hoje. In: ORLANDI, E. P. (org.) Gestos de Leitura: da história no discurso,
3ª edição. Campinas, SP: Editora da Unicamp, p. 51
8 Introdução em: BAUDRILLARD, J. (2007). Forget Foucault. Los Angeles, CA: Semiotext, p. 9.
14
(1985). Demarcar ou categorizar o movimento do pós-estruturalismo nas ciências nos
parece uma tarefa demasiado delicada, complexa, contraditória e não nos proporemos
a realizá-la aqui.
É importante somente ressaltar que se nos propomos a compreender melhor
o online e pelo menos de alguma forma também o sujeito que ali circula através do eixo
da leitura, então devemos levar em conta não só a condição histórica/ideológica da
linguagem e do sujeito da linguagem, mas a contradição embutida no encontro entre
esse sujeito (que é o sujeito do equívoco, da ambiguidade, do esquecimento) e a
materialidade técnica dos sistemas digitais9.
É para tratar da condição de possibilidade do (fazer ou não) sentido, para
lidar com a questão da (ambivalência da) leitura, que nos voltamos a Pêcheux; autor
que ainda nos presenteia com uma fonte inesgotável de conflitos, quebra-cabeças e
problemáticas a resolver e, especificamente na questão da leitura, nos deixa com um
valoroso eixo de discussão em seu Ler o Arquivo Hoje (2010). Ali, coloca em jogo a
questão da posição do sujeito em relação à sua leitura mesmo enquanto nos fornece
um panorama assustadoramente contemporâneo sobre o funcionamento dos bancos de
dados que hoje constituem a fundação arquitetônica que viabiliza nossa existência
online.
Em nosso próprio gesto de leitura, nos valemos desse texto de Pêcheux para
construir a estrutura teórica que fundamenta nossa investigação. Seguindo a lógica de
trabalho que ele mesmo nos propôs em nossa leitura, e apoiado em toda a literatura
auxiliar disponível, nos propomos a, nessa primeira secção, realizar alguns
procedimentos.
O primeiro deve ser uma revisão da noção de arquivo como é circulada por
Pêcheux no próprio artigo, e por alguns outros autores nos quais também nos
9 Consideramos aqui, a princípio, que o dispositivo técnico é da ordem do equívoco, já que é construído como
dispositivo estruturante das relações simbólicas. O que colocamos em questão, e também a princípio excluímos desse
âmbito, são as materialidades técnicas que constituem os blocos de construção mais fundamentais destes dispositivos
(o código de baixo nível, o hardware de processamento, as redes físicas de cabeamento, etc.). São estes que
entendemos não estarem sujeitos ao equívoco no sentido linguístico, já que essas materialidades, da forma como as
entendemos, não se estruturam como linguagem.
15
apoiamos. Fazemos essa revisão como exigência de nosso objeto de estudo. O intuito
é o de pensar uma noção robusta de arquivo, que (acreditamos) o próprio autor sugere
no texto, e que se integre à teoria discursiva em sua base epistemológica e ajude a
responder as perguntas sobre como “ler” o online, na medida em que o pensamos
centralmente como sistema de circulação. Ou seja: como fazer uma análise dos
dispositivos técnicos que agrupamos sob o nome de redes de relacionamento.
O segundo procedimento pelo qual passa nosso percurso é o de pensar isso
que Pêcheux propõe como clivagens subterrâneas. As pensamos como particularmente
integradas à noção que desenvolvemos aqui de arquivo, e entendemos que é através
delas que nos foi possível nesse trabalho tornar opacas e interpretar as redes de
relacionamento como arquiteturas tecnológicas também resultado de posições políticas
e encontros históricos. Defenderemos que é justamente através de clivagens
subterrâneas que o arquivo opera, produzindo e reproduzindo univocidades: modos de
leitura/interpretação.
Entendemos que a função política do arquivo como noção, como Pêcheux já
nos mostrou, é a viabilização de um desafio teleológico. A saber: uma investigação
material que deve abrir qualquer campo (de conhecimento e/ou poder) a questões e
desafios externos a ele próprio, de forma que seu território estabilizado nunca mais
possa ser o mesmo. Pêcheux descreve essa forma de desafio, ou crítica em Reflexões
Sobre a Situação Teórica das Ciências Sociais e, Especialmente, da Psicologia
Social10, a opondo à crítica interna, processo metodológico e permanente de toda
disciplina científica:
Todavia, essa crítica interna que se exerce com severa lucidez sobre os aparelhos de uma prática científica deixa obrigatoriamente intacto o horizonte teleológico sobre o qual esta prática se apoia: a vigilância do território só pode ser exercida sob a condição de não suscitar problemas de fronteiras; a prática interna das práticas científicas deve, se quiser sobreviver como tal, recusar-se a colocar o problema do lugar do território sobre o qual ela tem jurisdição, em relação aos espaços exteriores que o circundam. Em outros termos, a questão “quem é você?” colocada a uma ciência, é ambígua, e um dos dois sentidos da questão, a saber, “por que você está aqui e quais são suas intenções?” é radicalmente inaudível para a ciência em questão; é mesmo uma impertinência
10 PÊCHEUX, M. (2011). Análise de Discurso: Michel Pêcheux. Campinas, SP: Pontes Editores, p 21-22.
16
colocá-la: é claro que ela está aqui porque ela existe – quanto às suas intenções, ela não as tem, só tem problemas a resolver.
O arquivo, como noção, se realiza teoricamente justamente nas questões
teleológicas. Ou seja: na medida em que viabiliza fundamentar teoricamente não as
tradicionais questões científicas de como, quanto, quando; mas também as questões de
por que. É colocar em jogo justamente aquilo que é o tempo todo esquecido ao se
tomar partido: que não só o sentido, enquanto efeito, é sempre função de uma
realidade ideológica, mas também que uma posição é, sempre e antes de qualquer
outra coisa, um gesto de leitura resultante também da materialidade na qual se torna
possível: seu tempo/espaço historicamente produzido, seus sistemas de circulação,
etc.. Na medida em que Pêcheux coloca essas possibilidades teóricas em jogo em Ler
o Arquivo Hoje (2010), partiremos deste ponto em nossas investigações sobre o
arquivo, sobre a leitura, e sobre o online.
Nosso terceiro e último movimento ainda na primeira parte deste trabalho é
um pequeno deslocamento teórico, pois aqui traremos Baudrillard para nos auxiliar a
pensar as questões do online e das redes de relacionamento como processos que são
parte de uma tendência histórica que o autor já denuncia. Buscamos aqui adotar seu
método de aniquilação de dualidades (entre por exemplo esquerda/direita, real/virtual,
coisa/representação), no percurso de nosso trabalho de investigação na segunda
secção desse trabalho. Fazemos essa investigação sobre a ideia de uma radical
mudança na forma de estabelecimento das relações sociais e da constituição dos
sujeitos mesmo enquanto sabemos que ela é sempre parcial: o sujeito, afinal, não está
sempre se relacionando e se constituindo por meio das redes, nem nunca o faz
inteiramente.
Assim, é a partir desse trabalho epistemológico que gostaríamos de abrir um
diálogo sobre as condições tecnicamente produzidas de possibilidade de circulação e
sentido nas redes de relacionamento, e no online.
Arquivo como princípio de circulação
17
Acreditamos ser o arquivo a noção que nos dará entrada e sustentação para
a interpretação das especificidades das redes de relacionamento como artefatos
produzidos política e ideologicamente. Começamos nosso percurso de investigação da
noção de arquivo com a definição original que Pêcheux dá ao arquivo em um simples
parentético: “[o arquivo é] (entendido no sentido amplo de ‘campo de documentos
pertinentes e disponíveis sobre uma questão’)”. Nos atemos a essa primeira definição,
por enquanto, na medida em que ela se prova útil da seguinte forma que propomos: a
ambiguidade da definição acima é precisamente a ambiguidade latente na própria
noção de arquivo. A saber, Pêcheux não deixa claro se descreve o arquivo dessa forma
como crítica à própria noção (pré-construída) de arquivo (“entendido como”), ou se ele
simplesmente passa por ela, desinteressado em defini-la. O resto do parágrafo, e de
fato o resto do artigo, entretanto, sugere que Pêcheux está bem ciente do problema de
entender o arquivo como acumulação ou seriação de documentos. Ainda assim, deixa
sua própria formulação teórica do arquivo somente no silêncio, e na recusa de admitir
seu inverso.
De qualquer forma, entendemos a partir dessa ambiguidade (acreditamos,
proposital) produzida por Pêcheux no texto, que o caminho teórico consiste em dar
passos para tornar (teoricamente) explícita essa noção que é necessária para a
totalidade de Ler o Arquivo Hoje (2010) e, de fato, para a teoria discursiva em geral.
O obstáculo teórico se torna então determinar se o arquivo pode ser, ele
próprio, parte do dispositivo teórico de uma teoria discursiva. A circulação do sentido
(no seu aspecto institucional, das bibliotecas, dos bancos de dados, etc.), pois, é uma
noção que está amplamente trabalhada dentro do âmbito do político, centralmente por
Foucault. E entretanto, nosso objetivo aqui, no percurso de formulação de um aparato
discursivo para a leitura das tecnologias de rede, é formular o processo de circulação
como descritivamente ideológico. Pensamos: da mesma forma em que o dizer, a
textualidade, não se constitui nem se formula acidentalmente ou intencionalmente, mas
a partir de um recorte e de uma posição ideologicamente constituída (e pensamos isso
através das Formações Discursiva), então o que buscamos descrever é como a
circulação atravessa esse mesmo processo, que além de político e institucional, é
18
necessariamente também ideológico. Se à regularidade através da qual se constitui e
se formula o discurso damos o nome de Formação Discursiva, então buscamos aqui
descrever uma outra forma de regularidade, da circulação, a qual damos o nome de
Arquivo. Para isso, nos apoiamos neste texto de Pêcheux, e leituras que o
acompanham, e buscamos retirar dele, nossa fundamentação teórica sobre esse eixo
nocional no qual está o arquivo.
Apesar do impasse no qual nos encontramos, gostaríamos de propor de
início que, o arquivo tem de particular o fato de que ele é (sempre) pego em flagrante já
sendo arquivo, e daí, acreditamos, desponta uma certa dificuldade (já bem prevista por
Pêcheux) em precisar sua condição.
Em Efeitos do Arquivo11 Guilhaumou e Maldidier demonstram, através de
resultados de análises, as condições através das quais o arquivo não só produz um
certo tipo de leitura, em seu âmbito institucional, mas como também condiciona e é
constitutivo do ato de análise. Nesse texto, os autores inscrevem o arquivo no hall
daquilo que deve ser tirado da evidência, da transparência, e posto a ser pensado em
suas especificidades históricas. Quando o fazem, colocam em questão justamente os
efeitos que o arquivo produz sobre o corpus e portanto, sobre a análise:
O arquivo nunca é dado a priori, e em uma primeira leitura, seu funcionamento é opaco. Todo arquivo, principalmente manuscrito, é identificado pela presença de uma data, de um nome próprio, de uma chancela institucional etc.; ou ainda pelo lugar que ele ocupa em uma série. Essa identificação, puramente institucional, é para nós insuficiente: ela diz pouco do funcionamento do arquivo. [...] O arquivo não é um simples documento no qual se encontram referências; ele permite uma leitura que traz à tona dispositivos e configurações significantes.12
Maldidier e Guilhaumou realizam então o trabalho de demonstração dos
efeitos produzidos pelo arquivo. É aqui, entretanto, que propomos (por uma
necessidade que logo demonstraremos) uma segunda possibilidade em relação ao
11 GUILHAUMOU, J; MALDIDIER, D. (2010). Efeitos do Arquivo. In: ORLANDI, E. P. (org.) Gestos de Leitura:
da história no discurso, 3ª edição. Campinas, SP: Editora da Unicamp.
12 Idem, p. 162.
19
arquivo, que se encontra na raiz da possibilidade de uma noção epistêmica do conceito.
Já está claro que o arquivo está o tempo todo produzindo efeitos no corpus e na
análise, mas é aqui que podemos ver que há ainda um efeito anterior e elementar que é
o próprio efeito de arquivo. Lucília Romão nos lembra:
Estudar uma exposição do ponto de vista discursivo sinaliza, na trilha de Pêcheux (1982), um modo de compreender como um campo de documentos sobre certa questão se ordena, de que maneira é dado a ver e ser visto a partir de recortes advindos de diferentes lugares. Mas ainda, refletir sobre como se produz, sob o efeito ideológico de evidência, uma certeza de que aquele foi o modo mais pertinente de apresentar dados e documentos sobre um tema, em que pese a voz da curadoria como lugar de autoridade a garantir tal unidade.13
Ou seja: trata-se aqui do efeito de que há, a priori, um arquivo e de que esse
arquivo possa realmente ser “entendido no sentido amplo de ‘campo de documentos
pertinentes e disponíveis sobre uma questão’”. Na definição anterior, acreditamos,
Pêcheux já nos coloca de frente a esse problema, mesmo pelas vias do seu silêncio.
Vejamos: quando Orlandi nos fala sobre o problema da leitura, como eixo de
desenvolvimento das ciências humanas, diz sobre o arquivo o seguinte: “Pensando-se
em termos de arquivo, eu diria que a ciência também passa a pensar (a construir) seus
arquivos, suas maneiras de ler”14. Aqui fica clara uma adição explícita em relação à
definição que Pêcheux dá em Ler o Arquivo Hoje que, se olharmos atentamente,
também está presente na citação de Guilhaumou e Maldidier. A saber: o arquivo que
Orlandi configura não é somente uma coleção (organizada por sequenciamento ou
estratificação) de materialidades significantes. O arquivo aqui é também uma maneira
de ler, ou seja, a produção (necessariamente nem intencional nem acidental, mas)
ideológica de uma univocidade.
13 ROMÃO, L. M. S. (2013). Exposição em Discurso: gestos de leituras de Rosa em tijolo. In: INDURSKY, F.;
MITTMANN, S.; FERREIRA, M. C. L.; (orgs.) O Acontecimento do Discurso no Brasil. Campinas, SP: Mercado de
Letras, p. 79.
14 ORLANDI, E. P. (2005). Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos, 2ª edição. Campinas, SP:
Pontes, p. 21
20
Sabemos que, como a própria Orlandi nos lembra, o processo discursivo (de
constituição e formulação do sentido) não pode acontecer em etapas, em isolamento,
mas que cada processo é constitutivo do outro. E, entretanto, nos parece claro que a
noção de Arquivo como começamos a formula-la, sendo também atravessada pela
ordem da constituição, e da formulação do discurso (através do pré-construído e da
articulação, como Pêcheux as define15), mesmo assim é centralmente, especificamente
o princípio de funcionamento de outro aspecto constitutivo do discurso. De outra forma
poderíamos dizer: não é nem da ordem do inconsciente, nem do pré-consciente. Mas
se o arquivo é, como dizem Orlandi, Maldidier e Guilhaumou, configurador de uma
forma específica de ler, então ele também deve ser constituído no âmbito do ideológico,
já que não há leitura ou interpretação possível fora dele.
É aqui que nos apoiamos em Discurso e Texto de Eni Orlandi16 para
ressaltar que há, entretanto, uma terceira propriedade essencial para a possibilidade de
que haja discurso: a circulação. E a noção de circulação nos faz todo o sentido quando
consideramos que mesmo a perspectiva discursiva ainda perpetuaria um certo tipo de
idealismo se ignorasse que os enunciados não são constituídos e formulados tão
somente. Precisam, justamente, circular por um certo tipo (específico) de espaço, no
qual há obstáculos; e por um certo tipo (específico) de tempo, no qual há latência.
A natureza desses obstáculos e dessa latência, e portanto, as vicissitudes
dessa circulação, não se dão, em primeiro lugar, no espaço e no tempo a priori, ou: no
espaço e no tempo tais quais objetos de estudo da Física. Sylvain Auroux define esse
tempo-espaço como hiperlíngua, ou: a tapeçaria de artefatos, instituições, gramáticas,
dicionários e sujeitos que constroem nossa possibilidade não só de circulação por
espaços e tempos sociais, mas também nossa possibilidade de produzir sentido:
[...] só existem, em determinadas fracções de espaço-tempo, sujeitos, dotados de determinadas capacidades linguísticas ou ainda dotados de “gramáticas”
15 PÊCHEUX, M. (2009). Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio; tradução Eni P. Orlandi, 4ª
edição. Campinas, SP: Editora da Unicamp, p. 129-168.
16 ORLANDI, E. P. (2005). Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos, 2ª edição. Campinas, SP:
Pontes.
21
(não necessariamente idênticas), envoltos por um mundo e por artefatos técnicos, entre os quais figuram (às vezes) gramáticas e dicionários. Em outros termos, o espaço-tempo, em relação à intercomunicação humana, não é vazio, ele dispõe de uma certa estrutura, conferidas pelos objetos e pelos sujeitos que o ocupam. Denominaremos “hiperlíngua” a este espaço-tempo assim estruturado. 17
Deve-se notar, então, que essa circulação se dá no espaço e no tempo
construído historicamente, ou seja: essa circulação é configurada pelas relações de
poder/dever próprias das formações ideológicas. Foucault explica que o arquivo é:
O sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares. Mas o arquivo é, também, o que faz com que todas as coisas ditas não se acumulem indefinidamente em uma massa amorfa, não se inscrevam, tampouco, em uma linearidade sem ruptura e não desapareçam ao simples acaso de acidentes externos, mas que se agrupem em figuras distintas, se componham umas com as outras segundo relações múltiplas, se mantenham ou se esfumem segundo regularidades específicas; ele é o que faz com que não recuem no mesmo ritmo que o tempo, mas que as que brilham muito forte como estrelas próximas venham até nós, na verdade de muito longe, quando outras contemporâneas, já estão extremamente pálidas. O arquivo não é o que protege, apesar de sua fuga imediata, o acontecimento do enunciado e conserva, para as memórias futuras, seu estado civil de foragido; é o que, na própria raiz do enunciado-acontecimento e no corpo em que se dá, define, desde o início, o sistema de sua enunciabilidade. 18
O que ambos Auroux e Foucault desvelam é que da mesma forma que no
âmbito da constituição e formulação, a circulação do sentido também não é interna,
psicológica, ou individual, mas o resultado de uma superestrutura histórica e material de
funcionamento político e ideológico sempre já dada no espaço e no tempo.
Se fazemos a distinção entre as ideologias e A Ideologia, as memórias e A
Memória, as formações discursivas e A Formação Discursiva; então é necessário
também fazermos uma diferenciação entre os arquivos e O Arquivo (que a partir de
agora marcaremos com a letra maiúscula para facilitação da leitura). Estamos, portanto,
propondo que o Arquivo seja mais do que aquilo que, no âmbito da circulação do
17 AUROUX, S. (2010). A Hiperlíngua e a Externalidade da Referência. In: ORLANDI, E. P. (org.) Gestos de
Leitura: da história no discurso, 3ª edição. Campinas, SP: Editora da Unicamp, p. 243.
18 FOUCAULT, M. (2008). A Arqueologia do Saber; tradução Luiz Felipe Baeta Neves, 7ª edição. Rio de Janeiro:
Forense Universitária. p. 147.
22
sentido, configura as possibilidades de cada leitura. Ao invés, dizemos que o Arquivo é
aquilo que, nesse âmbito da circulação, configura as possibilidades de toda leitura. Ou
seja: que os arquivos, apesar de serem amplamente produzidos nos contextos
institucionais, não são produzidos no nível institucional, ou intencionalmente, mas que
há um sistema geral de produção de arquivos, de circulação do sentido, que opera de
acordo com o princípio histórico-ideológico, e é a esse sistema que damos o nome de
Arquivo.
Romão faz um trabalho similar e bastante completo de tratamento da noção
do arquivo como disposta por Pêcheux (2010), e entretanto, uma vicissitude em sua
formulação nos dá a oportunidade de precisar exatamente sob que condição pensamos
o Arquivo aqui. Romão diz:
Sustento que o recorte de dados e informações compreende essa dimensão de acervo manipulado, construído por outro, remexido pelo filtro alheio, isto é, disponibiliza-se uma zona da memória já lida, recolhida e selecionada por outro(s) sujeito(s) em outro lugar. Tal seleção envolve a dimensão de que há regiões de dizer autorizadas e outras censuradas, inscritas historicamente, que não são quaisquer umas, mas afetadas por relações de poder [...]19
E entretanto, o que gostaríamos de defender é, justamente, que o Arquivo,
como sustentador e configurador das clivagens subterrâneas, não formula os arquivos
(as coleções, os bancos de dados, as bibliotecas) a partir da seleção dos sujeitos que
os “controlam”. Essa, nos parece, é próxima da noção Foucaultiana de arquivo como
dispositivo de controle, e aparato do poder. O que defendemos é que a seleção, o
recorte, a circulação, é operada, justamente, na transparência do aspecto técnico. Ou
seja: não se trata aí, do gesto de leitura de sujeitos, dos recortes realizados por aqueles
que estão no controle dos acervos, dos bancos de dados, dos arquivos. Mas, como
Pêcheux mesmo nos aponta, se trata de que “os conflitos explícitos remetem em
surdina a clivagens subterrâneas entre maneiras diferentes, ou mesmo contraditórias,
19 ROMÃO, L. M. S. (2013). Exposição em Discurso: gestos de leituras de Rosa em tijolo. In: INDURSKY, F.;
MITTMANN, S.; FERREIRA, M. C. L.; (orgs.) O Acontecimento do Discurso no Brasil. Campinas, SP: Mercado de
Letras, p. 81.
23
de ler o arquivo”20. Se trata, portanto, de algo que opera uma seleção anterior ao
acesso dos sujeitos. Essa operação é, ela própria, obviamente, resultado de
dispositivos tecnológicos também produzidos por gestos interpretativos. Daí: clivagens
subterrâneas, entendidas aqui como escavações, operações técnicas de preparação do
terreno onde se formulam as disputas e negociações que Pêcheux descreve em Ler o
Arquivo Hoje (2010).
Reformulando, poderíamos postular nossa concepção de Arquivo a partir de
mais um trecho do artigo de Lucília Romão que nos parece frutífero para esse debate:
Tal questão [do recorte] é política e diz respeito ao fato de que nem um arquivo, nem uma exposição, podem ser tomados apenas do ponto de vista técnico ou de acervo, mas merecem atenção pela instância discursiva (político-ideológica) que os constituem.21
Reafirmaríamos aqui que, com certeza, o acervo, o arquivo deve ser tomado
a partir de uma concepção crítica, a ele devolvendo seu contexto político-histórico-
ideológico. Entretanto, o que nos parece mais importante é notar que: o aspecto técnico
de produção do arquivo é também constituído política-histórica-ideologicamente. É
exatamente aí que entendemos estar o Arquivo, como sistema geral e ideologicamente
constituído de circulação do sentido. Nos interstícios do sistema técnico de disposição,
controle, eliminação, preservação e manutenção da materialidade dos sentidos: dos
textos, dos livros, dos dados, da arte, etc. A produção técnica, a produção dos
dispositivos tecnológicos, portanto, é também um processo que atravessa o ideológico.
É aí que o Arquivo realiza seu trabalho, sob o efeito da neutralidade que Pêcheux tão
bem exemplifica através do caso dos copistas (2010).
Quando Maldidier e Guilhaumou fazem então a análise sobre os efeitos que
o arquivo produz na análise do corpus, o que entendemos é que estes são os efeitos
20 PÊCHEUX, M. (2010). Ler o Arquivo Hoje. In: ORLANDI, E. P. (org.) Gestos de Leitura: da história no discurso,
3ª edição. Campinas, SP: Editora da Unicamp, p. 51.
21 ROMÃO, L. M. S. (2013). Exposição em Discurso: gestos de leituras de Rosa em tijolo. In: INDURSKY, F.;
MITTMANN, S.; FERREIRA, M. C. L.; (orgs.) O Acontecimento do Discurso no Brasil. Campinas, SP: Mercado de
Letras, p. 81.
24
que aquele arquivo produz sobre aquele corpus. Antes disso, entretanto, já há (sobre o
efeito de sempre-já-lá) um arquivo dado. Ou seja: o efeito de que há um arquivo e de
que o arquivo é este.
Mas: de frente ao arquivo, ele sempre se apresenta como o universo
possível de materialidades significantes disponíveis a partir da interrogativa que o
evoca. Como Pêcheux já nos lembra: o “[...] campo de documentos pertinentes e
disponíveis sobre uma questão”. Para encontrarmos esse efeito em funcionamento,
basta olharmos mesmo para os processos metodológicos da própria A.D., onde o
arquivo é entendido, metodologicamente, como o corpo maior de onde o analista extrai
seu corpus. Exatamente como descrevem Maldidier e Guilhaumou em Efeitos do
Arquivo. Ou seja: é um tipo de esquecimento que opera aqui, a saber: o esquecimento
de que este arquivo que se trata como todo o “campo” poderia, sempre, ser outro.
Finalmente é necessário que nos perguntemos: o que, especificamente,
podemos entender como circulação? Orlandi a define somente como o processo de
produção do discurso que: “[...] se dá em certa conjuntura e segundo certas
condições”22. Quando diz “certas”, lemos: “específicas”, ou, “não-acidentais”, mas
contingentes de um certo contexto que é material, histórico, etc.
O Arquivo deve ser pensado então, de certa forma dentro do grande sistema
do interdiscurso, na medida em que é operado através de materialidades
(frequentemente tecnológicas) formuladas por sujeitos do discurso. Seria pensado
como princípio ideológico de funcionamento no âmbito da circulação do sentido. Se
deve, entretanto, dizer que o Arquivo opera esse funcionamento nas contingências de
um encontro, que é o encontro da leitura: o encontro entre sujeito do discurso e
materialidade do sentido. Especificamente: há um nível de operação sistêmico de
patrocínio, regulagem, controle, organização, tratamento, reprodução, manipulação e
extinção acontecendo antes e entre o sujeito do discurso e a materialidade do sentido.
Essa operação, que é técnica, e que vamos adiante atribuir ao que Pêcheux denomina
de clivagens subterrâneas, está inexoravelmente atualizando, redistribuindo e
deslocando as contingências de leitura. Foucault nos diz:
22 Discurso e texto, p. 9
25
Entre a língua que define o sistema de construção das frases possíveis e o corpus que recolhe passivamente as palavras pronunciadas, o arquivo define um nível particular: o de uma prática que faz surgir uma multiplicidade de enunciados como tantos acontecimentos regulares, como tantas coisas oferecidas ao tratamento e à manipulação. Não tem o peso da tradição; não constitui a biblioteca sem tempo nem lugar de todas as bibliotecas, mas não é, tampouco, o esquecimento acolhedor que abre a qualquer palavra nova o campo de exercício de sua liberdade; entre a tradição e o esquecimento, ele faz as regras de uma prática que permite aos enunciados subsistirem e, ao mesmo tempo, se modificarem regularmente. É o sistema geral da formação e da transformação dos enunciados. 23
Entendemos que o Arquivo entra em jogo nesse terceiro momento da
circulação, já que, como Foucault nos lembra acima, ela não é livre dos jogos históricos
do poder. Esse princípio de Arquivo não é idealista, mas uma lógica usualmente
reproduzível e rotineiramente reproduzida dos sistemas de controle, organização e
distribuição do sentido. O sujeito não se relaciona com um Arquivo jamais. As
materialidades significantes que o cercam quando ele busca pelo arquivo engendram
esse efeito sagaz. Uma demanda, uma interrogativa, organiza uma instância, que
chamamos de arquivo (que está também engendrando um efeito de arquivo), e esse
arquivo, agora afirmamos, é sempre uma instância particular, uma formulação
contextual dessa organização ideológica do sentido: nunca se encontram duas vezes
um mesmo arquivo, visto que o arquivo é justamente constituído desse encontro. O
Arquivo propriamente dito, como modo de funcionamento, é sempre diretamente
inacessível ao sujeito exatamente da mesma forma que o pré-construído também o é.
Ele se relaciona sempre com posições ideológicas engendradas como interrogativas,
demandas, ou evocações. É exatamente aqui que é necessária a leitura desse conceito
como dispositivo de análise já que ele se caracteriza, da mesma forma que as
formações discursivas, como subordinado as formações ideológicas. Da mesma forma
que as formações discursivas descrevem o território do poder/dever dizer, o Arquivo
descreve as possibilidades de qualquer clivagem subterrânea. É também subordinado
as formações ideológicas o trabalho de organização e produção da univocidade no
23 FOUCAULT, M. (2008). A Arqueologia do Saber; tradução Luiz Felipe Baeta Neves, 7ª edição. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, p. 148.
26
âmbito de circulação do processo discursivo, e o que defendemos aqui é somente que
é a partir do Arquivo que essa produção se dá.
27
O Arquivo e o Online
Porque vasculhamos tão diligentemente a noção de arquivo? Ora, o fazemos
na medida em que nos parece claro que a nossa forma de entender as redes de
relacionamento como ferramentas técnicas e lógicas sociais ideologicamente
construídas está intrinsicamente ligada a nossa capacidade de entender suas
operações de circulação.
No caso do online, o problema da circulação é particularmente axial, já que –
apesar de toda nossa terminologia – não encontramos, de fato, territórios online. Não
há espaço tridimensional, não há obstáculo físico. Não utilizamos visão estereoscópica,
ou cálculo espacial para circular. Os servidores que possibilitam a circulação do sinal
físico ocupam um lugar na geografia terrestre, mas não há análogo para essa ocupação
online, e uma conexão de banda larga já é tranquilamente capaz de tornar transparente
a diferença entre um sinal oriundo do mesmo país, e outro vindo do outro lado do
mundo. Nossa terminologia nos falha aqui: ciberespaço, domínio, chat room, site. Todas
essas são nomenclaturas que reproduzem uma lógica de espaço, quando o que
queremos demonstrar é que, para além do negligenciável espaço vertical das páginas,
o que se experimenta na rede não é exatamente espaço, mas circulação.
Formularíamos da seguinte forma: enquanto o espaço do off-line é um espaço
materialmente caracterizado pela distância, o espaço online é materialmente
caracterizado pela circulação.
Ou seja: não se experimenta o interim nos âmbitos do online. Se está aqui, e
logo depois se está ali. Se recebe tal informação, ou não se recebe. Se tem acesso a
tal página ou não se tem. Todas essas relações binárias não são da condição do
tempo-espaço, onde os gradientes do obstáculo e da latência devem ser contabilizados.
Essas relações binárias são da condição da circulação, onde, por exemplo, há coisas
dentro e há coisas fora do “‘campo’ de documentos pertinentes a uma questão”.
28
Um motor de procura como o da Google e um filtro de cura de conteúdo
como o do Facebook são dois exemplos de uma lógica de Arquivo condicionando a
circulação do sujeito e do sentido online. Não há território ali, mas simplesmente uma
coleção de dispositivos tecnológicos que constroem nossa possibilidade de acesso.
Essa possibilidade é, como já vimos, produzida sob o efeito de neutralidade. O que
tentaremos descrever em nosso capítulo de análise, é justamente de que formas esses
dispositivos não são neutros. Essa lógica de Arquivo é operacionalizada materialmente,
por aquilo que Pêcheux chama de clivagens subterrâneas, e que interpretamos e
definimos a seguir.
Gostaríamos de ressaltar que não entendemos ser somente no caso do
online que é frutífera essa formulação da noção de Arquivo. As estantes de uma
biblioteca e sua disposição espacial, o formato de um jornal impresso e a forma como é
entregue, e mais tanto exemplos são também oportunidades para pensar no aspecto
técnico da circulação do sentido, como sendo ideologicamente produzido.
As bases teóricas que por enquanto configuram a grande parte de nossa
pesquisa são estruturadas na forma de instrumentos para as leituras que nos permitirão
fazer do online e das redes de relacionamento. Reiteramos que essas leituras serão
desenvolvidas em nosso capítulo de análise, na segunda parte dessa pesquisa.
29
CLIVAGENS SUBTERRÂNEAS: SOBRE AS MATERIALIDADES DE PRODUÇÃO
TÉCNICA DA LEITURA
“No princípio criou Deus o céu e a terra. E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas. E disse Deus: Haja luz; e houve luz. E viu Deus que era boa a luz; e fez Deus separação entre a luz e as trevas. E Deus chamou à luz Dia; e às trevas Noite.”24 [grifo nosso].
24 Bíblia. Português. Bíblia Sagrada. Almeida corrigida e revisada fiel. Disponível em: <
https://www.bibliaonline.com.br/acf/gn/1 > Acesso em 10 Set 2014.
30
A bela alegoria acima nos parece uma metáfora perfeitamente satisfatória
para descrever o funcionamento de nossas clivagens subterrâneas (e, continuando a
metáfora, pode-se dizer de Deus que é o princípio das primeiras clivagens
subterrâneas, ou: das clivagens subterrâneas por execlência). Tentamos, através desta
breve secção, explicar porque nos parece este ser o caso, e determinar como que “em
surdina”, as clivagens subterrâneas configuram “maneiras diferentes, ou mesmo
contraditórias, de ler o arquivo”; exatamente quais as são “evidências práticas que
organizam essas leituras” que devemos “marcar e reconhecer”25.
Devemos começar lembrando que o Arquivo se estende desde o princípio
macroscópico das instituições e dos estados que organizam, atualizam e filtram o
sentido, até o encontro entre o sujeito e seu (efeito de) arquivo. O pensamos como
intrinsecamente relacionado ao interdiscurso (ou não faria parte do processo de
produção do sentido). Se o interdiscurso é entendido por nós como o “todo complexo
com dominante”26, ou seja: como aquilo fora do qual não há como se trabalhar com o
sentido, então todo sistema de possibilidade para o sentido deve estar contido dentro
do interdiscurso. Assim é para o sistema de sustentação, e para o pré-construído (que
se imbricam através da memória e do esquecimento constituindo os processos de
formulação e constituição do sentido), e assim deve ser para o sistema de circulação do
sentido, que aqui denominamos Arquivo. Ou seja: o Arquivo está necessariamente
costurado na tessitura do sistema geral de possibilidade do sentido, já que constituição,
formulação e circulação não são aspectos isolados do sentido, mas um só processo
que separamos somente no âmbito analítico. O Arquivo nos parece constituinte do
sistema geral de possibilidade do sentido já que é, também, constituinte do real
(exterior) do sentido, e, portanto, configurador de leituras. Nota-se que está ai
justamente a inversão sobre a qual propomos pensá-lo: de que o Arquivo não é a
25 PÊCHEUX, M. (2010). Ler o Arquivo Hoje. In: ORLANDI, E. P. (org.) Gestos de Leitura: da história no discurso,
3ª edição. Campinas, SP: Editora da Unicamp, p. 51.
26 PÊCHEUX, M. (2009). Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio; tradução Eni P. Orlandi, 4ª
edição. Campinas, SP: Editora da Unicamp, p. 148-149.
31
coleção material de textualidades, mas o princípio que as organiza. Mas
especificamente como é que, no âmbito da circulação, a leitura é configurada pelo
Arquivo? Como são tecnicamente produzidos os arquivos?
É a partir daqui, de dentro desse contexto epistemológico, que nos parece
útil falar sobre clivagens subterrâneas, já que entendemos que não há somente
constituição (na forma de identificação) e formulação (na forma de textualidade)
produzindo o encontro entre sujeito do discurso e materialidade do sentido, suas
possibilidades de leitura. Há também a materialidade histórica, política, ideológica na
forma de uma arquitetura tecnológica, uma fundação material – resultado de uma
escavação, de um esvaziamento - que viabiliza a produção de um, ou cada arquivo.
Tanto Auroux com a hiperlíngua quanto o próprio Pêcheux quando descreve a história
dos literatos e dos cientistas já nos mostram que: se inscrever em uma posição comum
não é só partilhar de uma memória específica, dizer a partir de formações discursivas
próximas, ler dos mesmos lugares; mas também circular por universos materiais
particulares, distintos e específicos, estar sujeito ao efeito de arquivos similares, ser
atravessado pelo Arquivo por caminhos paralelos. O sentido é também resultado do
universo material onde o encontro da leitura se dá, visto que esse universo também já é
o tempo todo – inclusive seu tempo e espaço – uma produção histórica e ideológica a
partir da qual, e lado a lado da qual, se lê.
Como podemos então pensar em clivagens subterrâneas de acordo com a
direção que Pêcheux nos aponta? Acreditamos, em primeiro lugar, que essa operação
acontece sob um tipo de esquecimento (ele usa a expressão “em surdina”), que não é
nem esquecimento Nº 1, nem Nº 227. Ou seja: que seu processo de produção de leitura
é transparente para todo aquele que lê, e finalmente, propomos aqui que: as clivagens
subterrâneas são então os dispositivos técnicos de configuração das possibilidades
27 Não nos pretendemos investigar a possibilidade teórica de um terceiro tipo de esquecimento já que ele não é
urgentemente necessário para nossos propósitos. Apenas nos é claro que não se trata do mesmo tipo de esquecimento
já que os dois tipos que Pêcheux descreve são referentes aos processos de constituição e formulação do sentido.
Acreditamos que se trata do mesmo tipo de esquecimento que é efeito de toda produção “técnica”, como Pêcheux
exemplifica e citamos mais abaixo, com o caso do copista.
32
materiais dessa leitura. Se, por exemplo, há uma extensa tecnologia de adequação
bibliográfica dos livros, um estudo e uma aplicação biblioteconômica das diversas
técnicas e tecnologias necessárias para a disposição e controle de todos os volumes,
seja em uma respeitada universidade ou uma livraria comercial, sabemos também que
esse estudo e essa prática não aparecem para nós de imediato, e na verdade,
permanecem completamente transparentes a nós, senão através de uma investigação
intencional de nossa parte. A circulação (por exemplo daquilo que vende e daquilo que
não vende, ou, daquilo que é ciências sociais e daquilo que é sociologia) é silenciada
sob o regime da neutralidade, mas o que fica claro a nós, é que não são os tomos que
constituem o arquivo aqui, mas mais importantemente: é o Arquivo que os dispõem.
Desde a organização e disposição dos livros de uma biblioteca até os
complexos algoritmos de filtro, seleção e curadoria de empresas como Google e
Facebook, a materialidade pela qual os sujeitos leitores circulam não é, como explica
Auroux, vazia. Mas não só ela é repleta dos artefatos do sentido, como também esses
artefatos não são dispostos acidentalmente, mas segundo lógicas específicas de
funcionamento. Ora, os filmes em uma locadora não são dispostos acidentalmente, nem
os livros da livraria no exemplo acima. Sem uma pesquisa mais aprofundada, seria justo
dizer pelo menos que em ambos os casos, a organização é feita na intenção de
maximizar consumo, e esse fato é, em si próprio, relevador. Tomemos o EdgeRank
como exemplo mais específico.
EdgeRank é o antigo nome (e a antiga fórmula) para o algoritmo de curadoria
de conteúdo utilizado pela empresa Facebook para determinar o que cada usuário
recebe como conteúdo em sua News Feed (a rolagem principal de “notícias” de sua
página). Se hoje o algoritmo considera centenas de milhares de fatores, o EdgeRank
original era constituído da soma complexa de três fatores centrais (descritos aqui no
léxico original): 1. A afinidade entre usuários (compartilhador e receptor do conteúdo);
2. A qualidade, ou peso, do conteúdo; e 3. Um parâmetro de atualidade, ou perda de
valor baseada no lapso de tempo do conteúdo.
Notemos então que a eleição desses valores indica um princípio ideológico
em jogo. Inicialmente, por exemplo, podemos dizer que há uma posição particular em
33
jogo quando a relevância de um conteúdo é diretamente determinada por quão
recentemente esse conteúdo foi compartilhado e produzido. Não é claro (até porque o
algoritmo é proprietário) se o declínio de valor nesse caso é linear ou exponencial, mas
ele é condicionado por um valor de “tempo”. Relação com o jornalístico e com o
funcionamento da vida nas grandes cidades e nas grandes empresas. Ora, a condição
de “atualidade” de um conteúdo é, problematicamente, referente a uma atualidade
cronológica, e não à memória discursiva. Ou seja: sua forma de seriação, a cadeia na
qual ele é colocado é a cadeia da ordem cronológica. Algo da ordem do funcionamento
do que Orlandi nomeou memória metálica28, não a associação do sentido por sua
constituição ideológica, mas sua aglutinação em uma série infinita.
[...] eu estava chamando de memória metálica (e horizontal) que é uma simulação dessa memória, vamos dizer, que é o interdiscurso, que historiciza, em que pode haver deslocamentos, rupturas, etc. Essa outra, na verdade, a metálica, é estagnadora, quer dizer, ela é uma reprodução do mesmo. [...] a produtividade domina dessa forma29.
Mais importante, entendemos: esse modo de funcionamento da circulação do
sentido é a reprodução técnica de uma posição ideológica (e infraestrutural): aquela da
coleção de técnicos/cientistas, empresas e contextos históricos no qual esse algoritmo
de curadoria é criado. Especificamente e em nosso caso? Os Estados Unidos do
começo do século XXI, a realidade da vida urbana nas grandes metrópoles, as
condições de possibilidade para a jovem força de trabalho de uma classe econômica
específica (que predominantemente é responsável pela produção dessas clivagens
subterrâneas) e o neoliberalismo como dominante das formações ideológicas regendo o
funcionamento dessas relações. Ou seja: como Foucault já sugere quando fala sobre o
arquivo, os dispositivos técnicos são ferramentas políticas (e, defendemos, ideológicas)
também, e a circulação (e aqui estão incluídas todas as formas de censura) é
tecnicamente produzida.
28 ORLANDI, E. P. (2005). Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos, 2ª edição. Campinas, SP: Ponte,
p. 179.
29 ORLANDI, Entrevista. Revista Fragmentum, nº 7. UFSM: 2006, p. 49.
34
A valorização da afinidade entre dois usuários também é característica: é um
processo de mensuração lúdica, cálculo baseado nas ocorrências de um certo tipo de
jogo: quantas vezes alguém postou algo em minha página, quantas mensagens
trocamos, quantas coisas que postei foram gostadas por essa pessoa, etc. Ele se
aproxima mais ainda do jogo já que é experimentado por uma mídia de jogos: uma tela
da qual temos uma certa distância, e da qual temos certas expectativas, também.
Mesmo a criação e uso de um vocabulário próprio denota essa relação lúdica: regras
próprias para operações particulares, destacadas das complexidades da vida comum. A
noção de afinidade ensaia a representação de um sistema social, já que não trata cada
pessoa da rede em equidistância, mas produz organizações, aglutinações, dispersões:
baseadas em interesses, histórico pessoal, de estudo, de trabalho, etc. Entretanto, esse
sistema social que ensaia é extremamente específico: com regras específicas, formas
específicas de relacionamento, e possibilidades específicas de circulação. Notamos:
mesmo esse valor de afinidade é, ele próprio, a soma composta de uma miríade de
fatores também elencados por uma certa decisão empresarial, institucional. Faremos
uma análise mais aprofundada da própria noção de filtro e das propriedades das redes
de relacionamento na segunda secção dessa pesquisa. O EdgeRank nos vale já aqui,
entretanto, como exemplo do que Pêcheux nos explica com o caso dos copistas da
idade média e que aqui, visamos demonstrar:
Desde a Idade Média a divisão começou no meio dos clérigos, entre alguns deles, autorizados a ler, falar e escrever em seus nomes (logo, portadores de uma leitura e de uma obra própria) e o conjunto de todos os outros, cujos gestos incansavelmente repetidos (de cópia, transcrição, extração, classificação, indexação, codificação, etc.) constituem também uma leitura, mas uma leitura impondo ao sujeito-leitor seu apagamento atrás da instituição que o emprega: o grande número de escrivães, copistas e “contínuos”, particulares e públicos, constituiu-se, através da Era Clássica e até nossos dias, sobre esta renúncia a toda pretensão de “originalidade”, sobre este apagamento de si na prática silenciosa de uma leitura consagrada ao serviço de uma Igreja, de um rei, de um Estado, ou de uma empresa. 30
30 PÊCHEUX, M. (2010). Ler o Arquivo Hoje. In: ORLANDI, E. P. (org.) Gestos de Leitura: da história no discurso,
3ª edição. Campinas, SP: Editora da Unicamp, p. 51.
35
O que deve ficar claro, é que as tomadas de posição também acontecem na
manufatura “técnica” das clivagens subterrâneas, e são essas as ferramentas que,
como dispositivos técnicos por trás da leitura, configuram as possibilidades da
circulação de todo sentido.
Se dizemos então que o Arquivo é o sistema geral de circulação ideológica
do sentido, o sistema geral de produção dos arquivos, então as clivagens subterrâneas
são os dispositivos técnicos que encarnam esse funcionamento em sua materialidade.
São elas que, sendo dominantemente expressões do Arquivo ao qual correspondem,
configuram os processos de circulação do sentido. Esse tipo de relação, entendemos,
já é muito bem conhecida em A.D., a saber: entre um princípio ideológico de
funcionamento e sua materialidade corriqueira. Poderíamos pensar, por exemplo, na
relação entre as formações discursivas e os enunciados (que entendemos: são
expressões materiais de um “poder/dever”). A posição pedagógica e o livro didático são
exemplos dessa relação (como dominante de uma formação discursiva), ou também a
relação entre o discurso da autoajuda e o neoliberalismo31. Ou seja: as perguntas que
nos valem fazer sobre que tipos de Arquivo configuram nossa circulação no onlline, se
fazem possíveis somente na medida em que investigamos as clivagens subterrâneas
que constituem a arquitetura tecnológica das redes.
É na materialidade desses dispositivos tecnológicos, clivagens subterrâneas,
que se esconde também, da mesma forma que nos copistas da Idade Média, um gesto
de interpretação, e a produção de um certo tipo de leitura. Apagada sob a índole das
ciências exatas e a posição política dos técnicos, mas ainda sim configurando tanto a
nossa circulação, quanto a circulação do sentido online. É nesse lugar, acreditamos,
que deve começar nossa análise, já que entendemos que as redes de relacionamento
não são o lugar de uma (nova) discursividade específica, mas a nova base material-
técnica para todo um ecossistema de discursividades. Buscamos as bases teóricas
para investigar não uma nova forma de produzir sentido, mas os dispositivos
tecnológicos (clivagens subterrâneas) que fazem possível todas essas novas
31 PEQUENO, V. (2010). O Homem Demasiado Livre: uma crítica ao sujeito do discurso na autoajuda. Monografia
de conclusão de curso. UNISUL, Palhoça.
36
discursividades. Entendemos que estes, também, são peças centrais nos estudos do
online. São essas possibilidades que, depois da terceira parte de nossa secção teórica,
visaremos explorar.
37
SIMULAÇÃO: SOBRE O FIM DA REPRESENTAÇÃO E A PRECESSÃO DOS
MODELOS
“Estamos num universo em que existe cada
vez mais informação, e cada vez menos
sentido”32.
32 BAUDRILLARD, J. (1991). Simulacros e Simulação; tradução Maria João da Costa Pereira. Lisboa: Relógio
d’Água, p. 103.
38
Não nos propomos, no percurso desse trabalho, a revisão aprofundada do
corpo de trabalho de Jean Baudrillard, como também não é de nossa competência fazê-
lo. Especificamente: Não o trazemos aqui para nos valer de sua interpretação dos
objetos de pesquisa pelo qual sua carreira atravessa, mas em vez disso, nos valemos
de um tipo específico de manobra filosófica particular à Baudrillard, que ele realiza
intensamente, e pelo qual é amplamente conhecido. Essa manobra que,
argumentamos, é de cunho tanto histórico quanto é filosófico, trata de descrever o
social contemporâneo como o espaço de dissolução das oposições binárias que, até
então, constituíram o alicerce das sociedades ocidentais contemporâneas. Aqui, nos
parece inevitável que ele esteja no centro dos gestos de interpretação que, nesse
trabalho, realizamos. O autor não só nos fala extensamente sobre o virtual, mas mais
importante, o faz justamente na medida em que coloca o tempo inteiro em xeque não
só nossas interpretações espontâneas do que é real, mas também frequentemente
também o real da/na política, religião, e das ciências humanas. Faz isso quando
explica, por exemplo, que o discurso de Foucault “é um espelho dos poderes que
descreve”33, ou que “para que a etnologia viva é preciso que o seu objeto morra”,
quando demonstra toda a transformação do social em objeto (morto) das ciências
humanas. Ou seja: o consideramos imprescindível também na medida em que seu
trabalho nos lembra que não se trata da investigação filosófica do que venha a ser o
virtual. Não conseguimos nesse trabalho, pois, nos deparar com as operações do online
por essas vias, mas justamente por meio dos métodos que operaram considerando o
online como sua própria simulação, ou seja: algo que desfaz as oposições que pode
muito bem ainda operar como efeito. Algo cuja origem é, em essência, proveniente dos
modelos, de cunho técnico, e oposta a condição representacional.
E entretanto, apesar de sua profunda relevância tanto temática quanto
metodológica, a tarefa de trazê-lo ao nosso texto, por mais justificada que nos pareça é
mesmo assim extremamente delicada, já que exige aqui que o método extremamente
analítico e materialista de Pêcheux se encontre com a metafísica crítica de Baudrillard,
e seu uso particular do léxico filosófico, e com a violência com a qual ele trata o real.
33 BAUDRILLARD, J. (2007). Forget Foucault. Los Angeles, CA: Semiotext, p. 30
39
Sabemos, pois, que como uma disciplina na confluência entre a Psicanálise, a
Linguística e o Materialismo Histórico, a Análise do Discurso como desenvolvida por
Pêcheux não passa por esse real que é, em Baudrillard, uma categoria de construção
social, mas se fundamenta, principalmente, no real da história, e no real da língua que,
nas próprias palavras do autor: “é, portanto, o impossível que lhe é próprio”34.
Propomos desde agora que nosso leitor não espere um acordo
epistemológico entre esses autores, mas uma adição. Sua sinergia está no duplo gesto
de interpretação sobre um mesmo objeto de estudo. Se há uma proposta da qual
nossos trabalhos interdisciplinares se beneficiam, ela é justamente a de poder dispor,
com todo o rigor e respeito a cada autor, de várias frentes de interpretação para um
mesmo objeto.
Escrevemos então, nesse curto trecho dessa dissertação, não para adiantar
o gesto de análise nem descrever uma ligação epistemológica, mas para preparar um
espaço de encontro. Pois, é na medida em que observação encontra interpretação, e
na medida em que a tecnologia encontra o espírito crítico, que algum resultado dessa
pesquisa se torna possível. Nossa capacidade de produzir gestos de interpretação para
tecnologias advém da teoria materialista, pela noção de Arquivo, pelo caminho que
percorre por meio das clivagens subterrâneas para produzir encontros, e leituras.
Invocamos Baudrillard somente na medida em que precisamos também de panoramas
metafísicos tanto quanto análise materiais para pensar a totalidade da rede como novo
âmbito de operação dessas tecnologias do sentido.
Sejamos francos [...] Meu ponto de vista é completamente metafísico. De qualquer forma, eu sou um metafísico, talvez um moralista, mas certamente não um sociólogo. O único trabalho sociológico de que posso me valer é meu esforço a pôr um fim ao social, ao conceito de social35.
É aqui que a minúcia da análise encontra a grandiosidade da metafísica:
duas teorias críticas, nascidas na França dos anos 70, oriundas de polos metodológicos
34GADET, F; PÊCHUEX, M. (2004). A Língua Inatingível, tradução Bethania Mariani e Maria E. C. de Mello.
Campinas, SP: Pontes, p. 52.
35 BAUDRILLARD, J. (2007). Forget Foucault. Los Angeles, CA: Semiotext, p. 85.
40
diametralmente opostos, mas ainda assim de dois intelectuais da extrema esquerda, e
que propomos fazer encontrarem-se no meio do caminho, que é o gesto de
interpretação. A partir daí, imaginamos o resultado de nosso trabalho. É sobre essa
radicalização teórica que Baudrillard nos traz que Lotringer nos lembra36:
Somente uma desterritorialização absoluta da própria teoria seria suficiente para lidar com o desafio absoluto do capital. Era isso que Baudrillard quis dizer com uma revolução total: uma estratégia construída para intensificar o sistema e leva-lo ao seu ponto de quebra.
E é em dois aspectos que invocamos Baudrillard para fazer parte constituinte
desse trabalho. Da mesma forma que com Pêcheux, não só como respaldo ou
fundamentação teórica, mas também como dispositivo, ferramenta metodológica de
trabalho e interpretação de nosso objeto.
O primeiro aspecto do trabalho de Baudrillard que demanda sua presença
aqui é seu interesse específico com aquilo que se relaciona com e atravessa o virtual
(de novo não precisamente como conceito filosófico, mas centralmente como aparato
tecnológico, justamente, foco desse trabalho). Ele diz:
Em sua acepção mais usual, o virtual se opõe ao real, mas sua súbita emergência, pelo viés das novas tecnologias, dá a impressão de que, a partir de então, ele marca a eliminação, o fim desse real. Do meu ponto de vista, como já disse, fazer acontecer um mundo real é já produzi-lo, e o real jamais foi outra coisa senão uma forma de simulação.37
Não se trata, portanto, de deflagrar o fim do real, mas de justamente
desfazer a dicotomia que o pressupõe, e que ao o pressupor envenena a análise e a
compreensão do fenômeno.
É, portanto, também seu corpo de trabalho num escopo mais amplo que nos
interessa na medida em que se relaciona com as categorias e possibilidades para o
real. E é importante lembrar aqui que, justamente, muito do cuidado que temos em ligar
36 BAUDRILLARD, J. (2007). Forget Foucault. Los Angeles, CA: Semiotext, p. 13.
37 BAUDRILLARD, J. (2001). Senhas; tradução Maria Helena Kuhner. Rio de Janeiro, RJ: DIFEL, p. 40.
41
Baudrillard a nossa pesquisa vem do fato que seu uso dos termos correntes nas
ciências humanas é extremamente particular. Como Lotringer nos lembra:
Troca Simbólica e Morte não foi fácil de “localizar” intelectualmente como foram os trabalhos de Foucault. Embora lidava com um número de problemas atuais na época, não se parecia com mais nada sendo publicado na França durante aquele período. Não parecia pertencer ali, nem a nenhum outro lugar, na verdade. Era como se tivesse caído do espaço sideral. Mesmo o uso da palavra “simbólico” de Baudrillard produzia confusão. Não cabia exatamente com a forma que Claude Lévi-Strauss ou Jaques Lacan a usavam na época. 38
A saber, quando falamos do real em Baudrillard, não fazemos referência ao
Real psicanalítico associado com a tríplice Real, Simbólico, Imaginário. Nem mesmo o
Real como Real exterior do sentido que Pêcheux descreve em Semântica e Discurso
(2009). Passamos mais perto, em Baudrillard, de um real que é forma de
estabelecimento das relações sociais, econômicas, ideológicas - diametralmente oposta
daquela que ele considera como simulação, ou seja: o real como um período histórico,
como uma forma de operação.
A passagem dos signos que dissimulam alguma coisa aos signos que dissimulam que não há nada, marca a viragem decisiva. Os primeiros referem-se a uma teologia da verdade e do segredo [...]. Os segundos inauguram a era dos simulacros e da simulação.39
Há, entretanto, uma segunda razão para sua necessidade no nosso trabalho,
subterrânea a essa do conteúdo, que é a instrumentalização da qual Baudrillard se vale
para produzir suas análises. De seus trabalhos mais amplos (como Simulacro e
Simulação) até seus ataques mais específicos (como com relação à noção de poder em
Esqueça Foucault), Baudrillard utiliza um tipo específico de inversão filosófica para
tratar seus objetos de pesquisa, e é esse tipo de inversão que nos parece chave para
realizar nossos gestos de interpretação sobre as redes de relacionamento, e suas
38 BAUDRILLARD, J. (2007). Forget Foucault. Los Angeles, CA: Semiotext, p. 9.
39 BAUDRILLARD, J. (1991). Simulacros e Simulação; tradução Maria João da Costa Pereira. Lisboa: Relógio
d’Água, p. 14.
42
clivagens subterrâneas. A saber: a saída do panorama da “representação” para os
lugares do simulacro, onde a noção do que é real, e portanto a dicotomia entre real e
virtual, passa a se desfazer de forma interessante:
A este poder assassino [o das imagens] opõe-se o das representações como poder dialético, mediação visível e inteligível do Real. Toda a fé e boa fé ocidental se empenharam nesta aposta da representação que um signo possa trocar-se por sentido e que alguma coisa sirva de calção a esta troca – Deus, certamente. Mas e se o próprio Deus pode ser simulado, isto é, reduzir-se aos signos que o provam? Então todo o sistema perde a força da gravidade, ele próprio não é mais que um gigantesco simulacro – não irreal, mas simulacro, isto é, nunca mais passível de ser trocado por real, mas trocando-se em si mesmo, num circuito ininterrupto cujas referência e circunferência se encontra em lado nenhum. Assim é a simulação, naquilo que se opõe à representação. [...] Enquanto que a representação tentar absorver a simulação interpretando-a como falsa representação, a simulação envolve todo o próprio edifício da representação como simulacro40.
E qual é nosso interesse no problema da representação e suas armadilhas?
Ora, é nosso problema central na medida em que as redes de relacionamento são, no
gesto de interpretação que dá início a essa pesquisa, justamente coleções de
tecnologias (clivagens subterrâneas) que se prestam a serem “representações”
humanas em um domínio exótico. Uma “representação” de sujeito onde o sujeito acaba
por acontecer, uma “representação” de relação social onde a relação social acaba por
acontecer, uma “representação” de evento, de geografia, de tempo, de diálogo, de
romance, onde os eventos, a geografia, o tempo, o diálogo, o romance, acabam por
acontecer. Esses constructos tecnológicos que, em sua transparência se prestam a
serem representações são dados tecnologicamente apriori da agência de seus
usuários. Construídos sob a guia da representação humana, mas operando, de fato,
uma simulação.
E é na intenção de colocar em jogo essa noção de “representação”, que
trazemos Baudrillard, cujo ofício nos trabalhos mencionados durante esse capítulo nos
parece ser a inversão e o extermínio das dicotomias estabelecidas pela força da
representação em prol, justamente, de demonstrar onde o sujeito está, de fato, sendo
40 Ibidem, p. 13.
43
produzido, por que forças é agenciado, e sob que ameaças estão suas possibilidades
de ser. Sobre os índios Norte-Americanos, por exemplo, Baudrillard afirma que sua
destruição está em sua sobrevivência:
Assim gabam-se os Americanos de ter conseguido voltar a igualar o número de índios existentes antes da Conquista. Apaga-se tudo e recomeça-se. Gabam-se mesmo de fazer melhor e de ultrapassar o número original. Será a prova da superioridade da civilização: ela produzirá mais índios do que estes eram capazes de produzir. Com uma irrisão sinistra, esta superprodução é ainda ela uma forma de os destruir: é que a cultura índia, como toda cultura tribal, baseia-se na limitação do grupo e na recusa de todo o crescimento “livre”, como se vê em Ishi. Há ai, pois, na sua “promoção” demográfica, mais um passo para a exterminação simbólica.41
Sobre o parque temático da Disney fala que ele existe em toda sua
performance para esconder que é de certa forma ele o verdadeiro Estados Unidos, da
mesma forma que as prisões americanas escondem que todo o sistema social é, na
verdade, um sistema carcerário. Diz:
[...]trata-se de esconder que o real já não é o real e portanto de salvaguardar o princípio de realidade. O imaginário da Disneylândia não é verdadeiro nem falso, é uma máquina de dissuasão encenada para regenerar no plano oposto a ficção do real42.
Ou seja, em seu método não se trata do real como princípio epistemológico,
nem como noção filosófica, mas como valor social, e ao mesmo tempo, um tipo de
esquecimento ou efeito. O real, como aquilo que produzimos simbolicamente, mas que,
social e economicamente também se trata de um grande engodo: “As pessoas já não
se olham, mas existem institutos para isso. Já não se tocam, mas existe
contactoterapia. Já não andam, mas fazem jogging, etc.”43. Ou seja, não é exatamente
o problema ontológico (do que é real ou do que é virtual) que Baudrillard coloca em jogo
quando fala de real, mas um problema político e histórico centrado em volta da fé
41 Ibidem, p. 19.
42 Ibidem, p. 21.
43 Ibidem, p. 22.
44
comum que se deposita na capacidade da representação. É a diferença entre
representação e simulacro que Baudrillard tão precisamente põe em jogo. “Por toda
parte se reciclam as faculdades perdidas, ou o corpo perdido, ou a sociabilidade
perdida, ou o gosto perdido pela comida. Reinventa-se a penúria, a ascese, a
naturalidade selvagem desaparecida: natural foods, health food, yoga”44.
E diz Baudrillard que a era do simulacro é caracterizada por uma reprodução
sem origem possível, e que se dá de acordo com a precessão dos modelos. É de
modelos que falamos quando falamos, por exemplo da “representação” da ordem social
em uma rede de relacionamento. Ou seja: não há origem para essa nova ordem
produzida online. Ela não é nem uma boa nem uma má reprodução, como não poderia
mesmo nunca ser. Falamos sobre o EdgeRank como produzindo um sistema social
específico através de clivagens particulares, mas vejamos: esse sistema não é a cópia
de algum outro. A realidade de um Facebook ou de um Twitter, na medida em que são
resultado dessas tecnologias de programação, design e curadoria, é a precessão de um
modelo. O modelo retorna somente a si mesmo, ele não tem mais nenhuma origem,
nenhuma “realidade” para com qual se (re)encontrar, não representa nada.
Buscamos ressaltar: Baudrillard ataca os problemas da contemporaneidade
de um lugar teórico absolutamente distinto que Pêcheux e Foucault, e isso se reflete na
epistemologia que acaba por construir. Não é importante, que fique claro, que se
agencie um comum acordo epistemológico dos autores que atacam nosso objeto. As
metodologias resultantes dessas teorias são duas formas de atacar um mesmo objeto e
o encontro entre elas acontecerá justamente em nosso gesto de interpretação do
objeto. Trataremos cada autor com seu devido cuidado, e o objeto através de cada
autor. Esta, entendemos, é a fundamentação e o rigor possível para a pesquisa
interdisciplinar que aqui nos propomos a realizar.
Se abusamos aqui dos exemplos foi para deixar claro um tipo de movimento
metodológico de inversões. São essas inversões que nos parece, a rede nos pede a
fazer, mesmo que esse seja ainda um segundo passo que precisa ser feito já com
clivagens de rede em mãos. É necessário deixar claro que estamos tratando aqui do
44 Ibidem, p. 22.
45
lugar social da rede, de que forma opera, e o que faz produzir através de seus modelos
já que eles não são mais referentes a nenhuma realidade social que conhecemos
(como no caso dos amigos de Facebook, os gostos em filmes e música, etc.). Em vez
disso – em seu próprio tempo e espaço – configuram possibilidades radicalmente novas
para o sentido e para o sujeito. Cristiane Dias, em Sujeito, sociedade e tecnologia: a
discursividade da rede (2012), trabalhou extensamente com a constituição do sentido
na medida em que atravessa diferentes configurações de tempo e espaço. Tentamos
desenvolver alguns caminhos para essas possibilidades nos ensaios que seguem, na
medida em que são constituídos por clivagens subterrâneas específicas.
47
O FILTRO: SOBRE OS MODOS TECNOLOGICAMENTE PRODUZIDOS DE
CIRCULAÇÃO
[...] Dessas premissas incontrovertíveis deduziu que a Biblioteca é total e que suas prateleiras registram todas as possíveis combinações dos vinte e tantos símbolos ortográficos (número, ainda que vastíssimo, não infinito), ou seja, tudo o que é dado expressar: em todos os idiomas. Tudo: a história minuciosa do futuro, as autobiografias dos arcanjos, o catálogo fiel da Biblioteca, milhares e milhares de catálogos falsos, a demonstração da falácia dessas catálogos, a demonstração da falácia do catálogo verdadeiro, o evangelho gnóstico de Basilides, o comentário desse evangelho, o comentário do comentários desse evangelho, o relato verídico de tua morte, a versão de cada livro em todas as línguas, as interpolações de cada livro em todos os livros; o tratado que Beda pôde escrever (e não escreveu) sobre a mitologia dos saxões, os livros perdidos de Tácito.45
45 BORGES, J. L. (1998). Obras Completas, vol. 1. Rio de Janeiro: Editora Globo, p. 39.
48
Borges descreve, em A Biblioteca de Babel, um universo inteiramente
constituído por uma biblioteca, dividida em infinitas salas. Nessa biblioteca, só existem
bibliotecários, e Borges descreve seu êxtase absoluto ao descobrirem (não por
verificação, já que a biblioteca é infinita, tornando a verificação nesse caso impossível,
mas) por dedução, que a Biblioteca era verdadeiramente o reservatório de toda
informação; todo conteúdo. O tesouro, Borges nos releva, residia no fato inquestionável
(mesmo que deduzido), de que em algum lugar no intrafegável espaço infinito da
Biblioteca, a solução de qualquer problema já tinha sido produzida. Ele nos aponta para
o que podemos entender como um eixo central da problemática contemporânea, em
sua relação ao online: “O universo estava justificado, o universo bruscamente usurpou
as dimensões da esperança”46. Baudrillard nos diz algo parecido pela via teórica:
Do meu ponto de vista, como já disse, fazer acontecer um mundo real é já produzi-lo, e o real jamais foi outra coisa senão uma forma de simulação. [...] A realidade virtual, a que seria perfeitamente homogeneizada, colocada em números, “operacionalizada”, substitui a outra porque ela é perfeita, controlável e não-contraditória.47
Não há, com certeza, falta nenhuma de acadêmicos na mesma posição que
os bibliotecários de Borges: debatendo infinitamente os prós e contras de um universo
onde, ao contrário de nossa antiga realidade analógica, tudo está disposto ao (possível)
acesso de qualquer usuário. É o que se apresenta por vezes na forma do otimismo
quase ingênuo:
[...] Eis o ciberespaço, a pulpulação de suas comunidades, a ramificação entrelaçada de suas obras, como se toda a memória dos homens se desdobrasse no instante: um imenso ato de inteligência coletiva sincrônica, convergindo para o presente, clarão silencioso, divergente, explodindo como uma ramificação de neurônios.48
Que Eli Pariser descreve com extrema clareza:
46 BORGES, J. L. (1998). Obras Completas, vol. 1. Rio de Janeiro: Editora Globo, p. 39.
47 BAUDRILLARD, J. (2001). Senhas; tradução Maria Helena Kuhner. Rio de Janeiro, RJ: DIFEL, p. 41-42.
48 LÉVY, P. (1999). Cibercultura; tradução Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, p. 250.
49
Para o meu eu pré-adolescente, parecia claro que a internet iria democratizar o mundo, nos conectando com a mais apurada informação e o poder de agir de acordo. Os futuristas Californianos e os tecno-otimistas naquelas páginas [de revista] falavam com uma certeza clara: uma revolução inevitável, irresistível estava logo na esquina, uma revolução que iria achatar a sociedade, destronar as elites, e inaugurar um novo tipo de utopia libertária.49
E que outras vezes se formula em novas (e necessárias) metafísicas para
novos paradigmas de possibilidade:
A rede parece, nos nossos dias, indicar o significado, não mais o da verticalidade da torre da catedral esticada em direção ao supra-natural, mas o da interconexão e da ligação, sem limite. A rede é comparável a uma catedral cuja torre indicaria não mais o além, senão o futuro terrestre prometido. [...] A rede aponta o porvir aqui embaixo, o futuro da sociedade envolta numa rede em cujas malhas já caímos: ela se tornou uma espécie de templo da religião comunicacional mundial.50
Temos inclusive uma formulação dentro da A.D. que nos remete à Biblioteca
de Borges, onde (em algum lugar) tudo está disponível (já que está disposto em
sequências, ou seja, não é passível de ser afetado pelo esquecimento). E embora
Orlandi tenha desenvolvido a noção de memória metálica ainda com a televisão como
objeto, é uma noção que se realiza prolificamente nos âmbitos das redes:
Aí está o fato na história: o do homem se significar por essa linguagem que apaga a memória histórica e a substitui por uma memória metálica. Nesse lugar o homem põe uma combinatória infindável de sinais à qual se liga. E é isto afinal, que se historiciza.51
Entretanto, pelo suporte da AD, sabemos que essa disposição tecnicamente
infinita dos bancos de dados não corresponde ao seu acesso ilimitado por usuários:
49 PARISER, E. (2011). The Filter Bubble: what the internet is hiding from you. London: Penguin Books, p. 7.
50 MUSSO, P. (2004). A Filosofia da Rede. In: PARENTE, A. (org.) Tramas da Rede: novas dimensões filosóficas,
estéticas, e políticas da comunicação. Porto Alegre: Sulina, p. 36.
51 ORLANDI, E. P. (2005). Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos, 2ª edição. Campinas, SP:
Pontes, p. 182.
50
Embora no ciberespaço cada sujeito seja efetivamente um potencial produtor de informação, a Análise do Discurso vai nos mostrar que mesmo que a rede abrigue uma pluralidade de ideias, de pontos de vista, isso não é suficiente para que haja uma democratização dos discursos. Não basta as ideias estarem lá dispostas, é preciso que elas circulem, que elas tomem corpo, que elas reverberem. Isto é, que elas entrem na ordem do discurso e não fiquem apenas “à deriva na superfície das águas”52.
E aqui, a relação com Borges se torna ainda mais interessante e estreita.
Pois, como ele mesmo nos mostra na voz do narrador, a Biblioteca não se trata de uma
acumulação infinitamente acidental:
“Falam (eu o sei) de ‘a Biblioteca febril, cujos fortuitos volumes correm o incessante risco de transformar-se em outros e que tudo afirma, negam e confundem como uma divindade que delira’. Essas palavras, que não apenas denunciam a desordem mas que também a exemplificam, provam, evidentemente, seu gosto péssimo e sua desesperada ignorância.”53
Ao invés dessa aleatoriedade, logo no fim de seu conto, Borges reserva a
esse trecho de descrição um lugar privilegiado, e explica que:
Se um eterno viajante a atravessasse [a Biblioteca] em qualquer direção, comprovaria ao fim dos séculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que, reiterada, seria uma ordem: a Ordem). Minha solidão alegra-se com essa elegante esperança.54
O que Borges nos promete, e que buscamos explicitar aqui, é justamente
que:
1. Há uma ordem, uma disposição regular que governa a distribuição de
todos os livros (no nosso caso, entendemos aqui, o sentido, como
disperso pela rede em suas inúmeras materialidades possíveis).
E que:
52 MELO, C. T. V. (2005). A Análise do Discurso em Contraponto à Noção de Acessibilidade Ilimitada da Internet.
In: MARCUSCHI, L. A.; XAVIER, A. C. Hipertexto e Gêneros Digitais: novas formas de construção do sentido, 2ª
edição. Rio de Janeiro: Lucerna, p. 137.
53 BORGES, J. L. (1998). Obras Completas, vol. 1. Rio de Janeiro: Editora Globo, p. 41.
54 Ibidem, p. 42.
51
2. Tudo não está disposto ao acesso de qualquer usuário, e que acreditar na
infinidade das possibilidades e na onipotência do acesso é estar sob o
efeito de um tipo de engodo espontâneo, consequência da dedução, que
tantos fizemos juntos com bibliotecários de Borges, de que “tudo está
agora ao nosso alcance”, e que “o universo finalmente usurpou os limites
da esperança”.
Borges, afinal, ainda nos avisa:
À desmedida esperança, sucedeu, como é natural, uma depressão excessiva. A certeza de que alguma prateleira em algum hexágono encerrava livros preciosos e de que esses livros preciosos eram inacessíveis afigurou-se quase intolerável.55
É o que Borges chama, no ensaio, de Ordem, que chamamos de Arquivo. E
são as tecnologias materiais que possibilitam essa Ordem, que chamamos de clivagens
subterrâneas. Ou seja: os livros (ou no nosso caso as textualidades, os sentidos
carregados pelas materialidades significantes) não estão combinados e dispostos
aleatoriamente, (o próprio Borges o considera uma desesperada ignorância), mas
através de princípios (ideologicamente construídos) que configuram todo processo de
circulação.
Se um site de relacionamento compreende em si, também, uma “Biblioteca”,
reservatório indecifrável e pragmaticamente sem fim de materialidades significantes
(fotos, links, comentários, propagandas, etc.); sabemos, já de início, que a seleção
desse banco de dados a qual cada usuário tem acesso não é acidental. E entretanto,
também parece bastante claro que ela não é resultado do que entenderíamos em
outras epistemes como “intencionalidade”. Há ai inclusive uma inviabilidade técnica:
não há controle possível para o nível microscópico de circulação do sentido. Como já
descrevemos em nossa secção sobre o Arquivo, e em oposição à descrição inicial
55 Ibidem, p. 40.
52
fornecida por Romão56, não se trata do processo de seleção e recorte realizado no nível
do sujeito, e da posição discursiva, mas no nível técnico, ou seja, a partir de dispositivos
tecnicamente produzidos que engendram esse processo de circulação do sentido. A
circulação do sentido online (como também off-line) deve ser organizada, em todos os
níveis, na forma de princípios programáveis, leis a partir das quais todo tráfego é
dirigido (e é assim que se configura a prática da biblioteconomia, por exemplo, da
mesma forma que da programação em sistemas da computação). A Física e Metafísica
do online são ambas escritas continua e simultaneamente, na língua técnica da
programação57. E é portanto, dentro desse sistema técnico que nos interessa investigar
posições ideologicamente construídas de operação.
O que opera essa Ordem, então? Que tipo de clivagem subterrânea viabiliza
essa repetibilidade em termos da circulação do sentido? Como é que se explica que,
em nossa “navegação”58 pelas redes de relacionamento online, não nos encontramos
com qualquer coisa, aleatoriamente selecionada do banco de dados? O que existe (de
material e tecnológico) entre a experiência do usuário e a aleatoriedade repetitória e
sequencial da memória metálica?
A essas clivagens subterrâneas damos o nome geral de filtro. Filtro como
categoria tecnológica de linguagem de programação e design: aquilo que
determina/constrói a possibilidade de circulação do sentido online. Esse filtro é às
vezes, mas não só necessariamente, um algoritmo de priorização (como no caso do
EdgeRank que avaliamos brevemente na secção sobre Clivagens Subterrâneas). Mas
ele é, antes, toda a clivagem que constrói e condiciona a circulação do sentido online.
Por exemplo: a rede de relacionamento Twitter não possui algoritmo de filtro
de conteúdo em sua página principal: todo conteúdo recebido é aquele que o próprio
56 ROMÃO, L. M. S. (2013). Exposição em Discurso: gestos de leituras de Rosa em tijolo. In: INDURSKY, F.;
MITTMANN, S.; FERREIRA, M. C. L.; (orgs.) O Acontecimento do Discurso no Brasil. Campinas, SP: Mercado de
Letras.
57 Essa operação, por sinal, não parece tão diferente de como o clero se apropriou do Latim para produzir, através de
uma língua inacessível, as leis de funcionamento social de uma outra era histórica inteira.
58 Inserimos as aspas aqui não por função do neologismo, mas da referência que faz ao espaço. Nos parece
interessante notar, desde já e sempre que possível, que nosso vocabulário não nos basta a nossos objetivos.
53
usuário seleciona ao decidir “seguir” outros usuários. Essa disposição dos conteúdos é
feita sem curadoria a não ser a linha cronológica inversa (clivagem sobre a qual
trabalharemos em um próximo capítulo): priorizando aquilo que é mais recente. Mas
isso não é o mesmo que dizer que seu conteúdo não atravessa filtros. A utilização do
Twitter por exemplo, passa por um momento inicial de sugestão, onde cada usuário é
convidado a escolher que outros usuários seguir. Esse dispositivo tecnológico, esse
dispositivo de programação, de usabilidade, de design, faz isso baseado nos
“interesses”, “contatos”, etc. de cada usuário59. Assim, engendra, por meio de um filtro,
o direcionamento de cada usuário para certas direções e não outras: existe um aparato
tecnológico construindo o campo limitado e imediato de possibilidades de um usuário,
com relação ao acesso. O usuário não recebe sugestões para seguir qualquer um, mas
aqueles à quem o dispositivo considera, através de suas operações, relevantes. Outra
característica crucial desse dispositivo é que ele não é proibitivo. Ou seja: ele não
exclui, no caso do Twitter por exemplo, a possibilidade de seguir um usuário que não foi
sugerido. Mas sobre essa não-proibição, como escolha de uso e design, justamente é
que repousa o efeito do acesso. É equivalente à felicidade do bibliotecário que,
extasiado pela abundância de possibilidades, demora para se perceber na depressão
inevitável resultante da falta de acesso real. Se trata de um filtro: mesmo em um âmbito
onde o espaço e o tempo adquirem conotações radicalmente novas, o acesso não é
total, o usuário não é onipresente.
Ainda no Twitter: a estrutura da rede é construída em forma de pirâmide
onde há uma razão entre quantas pessoas seguem cada figura, e quantas pessoas
essa figura segue. Dentro das lógicas engendradas pelo sistema de clivagens
subterrâneas que caracterizamos como Twitter, essa razão entre seguir/ser seguido é
significativa. Falar com um usuário que é seguido por milhões de outros é estar em
evidência, e portanto tem certo peso não só no âmbito da constituição dos dizeres, mas
59 Não sugerimos que essa capacidade de sugestão e previsão se trate de uma leitura, nos moldes que a AD a pensa
sobre o trabalho do sujeito. Mas que se trata sim de algum tipo de operação, predominantemente semântica, mas que
o sujeito é atravessado por essa operação e deve responder a ela. Isso também é constitutivo da relação entre sujeito-
usuário-rede.
54
em sua circulação (principalmente já que estes são sempre aspectos de um mesmo
texto). Ou seja: quem se segue (de quem se recebe conteúdo), e quem não se segue;
com quem se conversa e com quem não se conversa, etc. não são escolhas baseadas
em “interesses” ou círculos sociais, tão somente. Muito antes dessa evidência, essas
são seleções tácitas baseadas no encontro entre o usuário e um filtro estrutural
condicionando o que é que se recebe e o que é que se envia.
No desenho e na modelação (talvez devêssemos falar em constituição e
formulação60) das tecnologias que estruturam as redes de relacionamento, está dado,
embutido no próprio sistema, a forma de circulação do sentido. Nunca essa noção foi
tão claramente verificável quanto por meio de Facebook, Twitter e afins: a cada acesso,
recarregamento de página, a cada hiperlink abandonado, cada ligação, ou seja, a cada
passo dado dentro do universo online, o conteúdo é reprocessado por filtros onde cada
micro decisão e cada click são contabilizados.
A velocidade com que as tecnologias de produção e leitura do arquivo
mudam online, e especialmente nas redes sociais, é estonteante. Se propomos que o
Arquivo é uma lógica ou um princípio (ideológico) de organização da leitura que se
materializa por meio de clivagens subterrâneas, nos encontramos imediatamente de
face à difícil tarefa de descrever esse Arquivo através de clivagens subterrâneas em
fluxo constante: as tecnologias de produção de conteúdo nas redes sociais estão – nos
parece ao estudar e acompanhar seu progresso até agora – em um estado perpétuo de
ameaça: nada parece ser sagrado, nada parece ser estável, e ainda mais: essa
evolução da arquitetura tecnológica que viabiliza uma leitura específica parece
acontecer em grande parte por meio da contribuição de usuários: nas questões de
interface, de princípios e procedimentos de segurança e privacidade, de ferramentas
importantes e dispensáveis, são usuários que - de uma forma muito real – contribuem
60 Frequentemente, durante essa pesquisa, o processo de desenvolvimento das tecnologias de rede nos pareceu
demasiado similar ao processo de constituição dos dizeres. Não foi o trabalho aqui proposto, o estabelecimento da
relação filosófica entre linguagem e tecnologia de computação, nem uma ontologia dos dispositivos técnicos de
programação. Entretanto, resta a ser estudada mais precisamente essa relação entre o processo de desenvolvimento
técnico e o processo de constituição e formulação do sentido.
55
com a arquitetura das redes de relacionamento através de seu uso, mal-uso,
reapropriação, etc..
E entretanto, as redes de relacionamento não se constituem, como não
podem mesmo se constituir, como espaços livres do Arquivo, ou seja: dos princípios
ideológicos de circulação do sentido. Se esse fosse o caso, nosso acesso seria total,
ou, em outras palavras, aleatório. As mudanças tecnológicas das redes de
relacionamento e o estado de perpétua transformação de suas ferramentas de
produção do sentido são marcas da evolução e do aperfeiçoamento de uma série de
efeitos operando na superfície da experiência do usuário. Existe, entretanto, no cerne
de cada rede de relacionamento, uma coleção de clivagens que a caracteriza. Ou seja:
uma série de aparatos técnicos, lógicos, de design e interface que constituem a rede.
Entre eles, estão os filtros. Os filtros (as formas como o sentido circula em uma rede)
são parte da imutabilidade dessa rede quando outros aspectos de seu design e os
dispositivos disponíveis aos usuários estão em perpétua evolução, é também e talvez
principalmente através dos filtros, que o Arquivo pode ser pensado.
Devemos considerar, portanto, que os filtros são parte constituinte do que
chamamos de rede de relacionamento. Até agora, usamos a expressão “rede de
relacionamento” de forma desqualificada. Mas na medida em que trabalhamos para
criar uma interpretação e uma leitura técnica do termo, temos que reconhecer a
inclusão dos filtros como características essenciais da rede de relacionamento, essa
sendo, em primeiro lugar, o espaço de interface entre o inumano da memória metálica,
e os espaços sociais que criamos sobre esse suporte.
O que tentamos descrever entretanto é simplesmente a continuação do que
Eni Orlandi61 já nos disse ao definir a memória metálica: que mesmo esse
funcionamento de sequenciamento que dá forma a um novo tipo de memória, ele
também se historiciza. Ora, como que o sujeito do discurso se relaciona materialmente
com o achatamento do metálico nesse caso? Através de clivagens subterrâneas, entre
elas, o filtro. A própria justificativa do filtro é que sem ele, o acesso seria, justamente,
61 ORLANDI, E. P. (2005). Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos, 2ª edição. Campinas, SP:
Pontes.
56
total. Em outras palavras, impossível, ou aleatório. A retórica de desenvolvimento do
filtro, é a retórica da utilidade. Sem ele, nada seria visto, pois tudo seria demais62.
Colocado de outra forma, mas ainda buscando seguir o que já foi colocado
por Orlandi sobre a memória metálica: o que o filtro opera no nível mais essencial é o
diálogo entre o sujeito da ideologia e do discurso, e a infinidade não-interpretável do
banco de dados. A nossa inserção dentro do sistema técnico de funcionamento do filtro
é também a inserção dentro de um sistema político e ideológico de circulação dos
sentidos.
Outro exemplo desse filtro é o aspecto do algoritmo que Eli Parser63 chamou
de o efeito de Filtro Bolha: alguns algoritmos de filtro online (como pelo exemplo do
próprio autor, o algoritmo de procura do Google e de curadoria da News Feed do
Facebook) são desenhados para “adivinhar seletivamente”. Isto é, produzir através de
um processo de identificação, uma predição: resultados e conteúdo similar com os
quais o usuário já tem um histórico de “interesse”, entendido aqui como aquilo no qual o
usuário clica, quanto tempo passa em cada página, o que compra, o que bloqueia, etc.
Daí o termo Filtro Bolha - um filtro que produz um retorno especificamente seletivo:
desenhado para produzir um tipo de repetição.
Quando Orlandi estuda o processo de mass media por meio da televisão e
nos descreve o funcionamento do que chama de memória metálica, fala também sobre
uma espécie de repetição: a memória metálica é aquela que agencia e seleciona
somente a partir do eixo da formulação. Ou seja: que constitutivamente, os dizeres são
extremamente similares. Cópias em bancos de dados. Circulamos aqui já pela lógica e
pelo léxico das máquinas.
Pariser64, entretanto, lista três características particulares do filtro. A primeira
nos parece um argumento apropriado para responder porque as tecnologias de filtro
62 Um exemplo central desse tipo de retórica é o blog do Facebook sobre seu próprio algoritmo de filtro, cujo
exemplar relacionado a esse problema você encontra aqui: https://www.facebook.com/business/news/News-Feed-
FYI-A-Window-Into-News-Feed
63 PARISER, E. (2011). The Filter Bubble: what the internet is hiding from you. London: Penguin Books.
64 Ibidem, p. 10.
57
são uma cisão radical no processo de circulação do sentido, inclusive com relação à
televisão que é o primeiro objeto de estudo onde a memória metálica é estudada: “Em
primeiro lugar, você está sozinho”65. Ou seja: os meios de mass media são
constitutivamente informados pelo sistema de circulação no qual estão estruturados. A
experiência de circulação do sentido online por outro lado, é, em aspectos muito
importantes, individualizada. E, entendemos, como a tecnologia onde essa circulação
do sentido individualizada é possível, configura um ápice tecnológico dessa lógica de
interpelação justamente do indivíduo como figuram central da estrutura social e
econômica contemporânea. As formas de individuação, como Orlandi nos lembra:
“Resultam em um indivíduo ao mesmo tempo livre e responsável, dono de sua vontade.
[...] A noção de sujeito individuado não é psicológica, mas política, ou seja, a relação
individuo-sociedade é uma relação política”66. É a mesma forma-sujeito do capitalismo
contemporâneo, que, em outros contextos e como parte de outra pesquisa, também se
encontrou no discurso da autoajuda:
É interessante notar, portanto, que a autoajuda constrói um sujeito demasiado livre, que por estar nessa posição individual de existência, não se encontra ao alcance de suas próprias condições de transformação. Ou seja, o sujeito da autoajuda, o sujeito implícito na ideologia que a autoajuda representa, é livre demais para a mudança. A liberdade apagada no campo ideológico do liberalismo é presa em si mesma, capaz de afetar somente o interior vazio e fragmentado (pois não se relaciona), de um indivíduo que, como entendemos, não existe, de fato, nas suas exterioridades, na sua relação com o outro, e com o mundo. Essa impossibilidade de mudança é a condição ideológica necessária para a manutenção da estabilidade das relações de produção do sistema vigente. 67
Afirmamos que os filtros têm essa função na medida em que o movimento de
individuação é, também, a lógica de separação entre sujeitos e suas condições de
produção, apoiado na naturalização do efeito elementar de unidade dos sujeitos.
65 Ibidem.
66 ORLANDI, E. P. (2005). Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos, 2ª edição. Campinas, SP:
Pontes, p. 42.
67 PEQUENO, V. (2010). O Homem Demasiado Livre: uma crítica ao sujeito do discurso na autoajuda. Monografia
de conclusão de curso. UNISUL, Palhoça, p. 75-76.
58
Como todas as evidências, inclusive aquelas que fazem com que uma palavra ‘designe uma coisa’ ou ‘possua um significado’ (portanto inclusas as evidências da ‘transparência’ da linguagem), a evidência de que você e eu somos sujeitos – e que isto não constitui um problema – é um efeito ideológico, o efeito ideológico elementar.68
Defendemos que esse processo é tecnologicamente aperfeiçoado a partir do
advento das tecnologias de filtro, na medida em que, antes delas, os dizeres (por
exemplo da mídia e do marketing) ainda sempre passam por contextos públicos de
circulação.
Devemos finalmente também pensar aqui no banco de dados em suas
diferenças em relação ao interdiscurso. Pois, enquanto os dois são a região onde tudo
ainda está, os recortes do interdiscurso são os recortes das memórias, operados por
sujeitos inscritos em posições discursivas. Os recortes operados nos bancos de dados
são os recortes técnicos: operados tecnologicamente pelo filtro. Enquanto um mobiliza
memórias históricas, o outro mobiliza somente a memória metálica, e enquanto o
primeiro é operado por sujeitos do discurso, o segundo é operado somente e sempre
por um dispositivo técnico.
Se a memória metálica se organiza em novos modos de (não) esquecimento, se a metáfora se dá em outra instância, também a textualização procede diferentemente e carrega consigo outras formas de autoria. [...] Nessas novas formas, mantêm-se a incompletude e a dispersão, embora a vontade de onipotência de um dizer total, omnipresente, se reforce.69
Ou seja: a diferença técnica entre qualquer outra clivagem e o filtro em
específico é que o filtro mobiliza a memória metálica. O que o filtro traz de novo por
meio dessa mobilização é o aperfeiçoamento de um processo particular de constituição
dos sujeitos.
68 ALTHUSSER, L. (1985) Aparelhos Ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos ideológicos do Estado, 2ª
edição; tradução Maria L. V. Castro; Walter J. Evangelista. Rio de Janeiro: Edições Gerais, p. 94.
69 ORLANDI, E. P. (2005). Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos, 2ª edição. Campinas, SP:
Pontes, p. 183.
59
Com relação às esperanças de que seria a função das redes de
relacionamento nos trazer para perto uns dos outros, concretizar esse discurso de Um
da mundialização, como menciona Orlandi70 criticamente, entendemos: o filtro, em
certos aspectos cruciais de seu funcionamento, opera exatamente na direção oposta,
criando sujeitos cada vez mais discursivamente díspares uns dos outros, no que Pariser
aptamente chamou de bolhas. Como o próprio Pierre Lévy formula: “uma frota de
pequenas arcas, barcas ou sampanas, uma miríade de pequenas totalidades [...] sobre
as águas do dilúvio informacional”71.
70 ORLANDI, E. P. (2011). Diluição e Indistinção de Sentidos: uma política da palavra e suas consequências,
sujeito/história e indivíduo/sociedade. In: INDURSKY, F.; MITTMANN, S.; FERREIRA, M. C. L.; (orgs.) Memória
e História na/da Análise do Discurso. Campinas, SP: Mercado de Letras, p. 39.
71 LÉVY, P. (1999). Cibercultura; tradução Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, p. 161.
60
O AVATAR: SOBRE A CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE DE CIRCULAÇÃO DOS
SUJEITOS NAS REDES DE RELACIONAMENTO
Seria profundamente injusto atribuir só aos psicólogos profissionais a responsabilidade desse mito omnipresente do sujeito psicológico: o que eles fizeram foi só dar forma (através de uma série de construções formais-experimentais mais ou menos sofisticadas) às representações que vêm à mente de todo sujeito humano "normal" – ou ao menos de todo ocidental: viajante de comércio, diplomata, empregada, militar, mulher do mundo, capuchinho ou torneiro, desde que ele é levado, por esta ou aquela via, a produzir sua epistemologia espontânea da ação humana. Os universitários não têm, à priori, nenhuma razão para escapar a esta evidência.72
72 PÊCHEUX, Michel. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. Campinas, SP: Pontes, 2011. p, 289.
61
A noção de filtro como aquilo que agencia a relação entre o banco de
dados e o sujeito do discurso nos remete a mais uma questão que está também no
cerne da constituição das redes. Na citação acima, em Sobre os Contextos
Epistemológicos da Análise do Discurso, Pêcheux fala sobre a epistemologia
espontânea que todo sujeito comum é levado a realizar com relação a própria
existência como um fato natural e dado. Essa noção está relacionada com o que
Althusser chama de efeito elementar em Aparelhos Ideológicos do Estado (1985), e que
mencionamos acima. Pois bem, o que gostaríamos de propor aqui é que há uma
operação associada a essa que Pêcheux e Althusser descrevem especificamente
relacionado ao sujeito na e da rede, ou seja: ao sujeito na medida em que ele é
tecnologicamente “representado” na forma de um avatar (um perfil, uma configuração
específica de acesso, um histórico de informações, preferência, interesses, etc.). De
outra forma, abrimos essa investigação com uma pergunta que deve ser respondida a
partir da análise de um outro grupo de clivagens subterrâneas, a saber: Qual é a
condição do sujeito da rede, aquele que se encontra circulando online?
De inúmeras formas, e vindas de diversas epistemes, é incomum encontrar
investigações científicas ou não-científicas sobre as redes sociais que não tomem para
si a tarefa de investigar o papel, os relacionamentos, a circulação, etc. do sujeito nas
redes. Seja por via da presença:
Passarei, agora, a refletir sobre o online por comparação ao ao vivo, e esse online tomado aqui como efeito de sentido entre interlocutores presentes no espaço da internet, efeito esse que se espalha nesse espaço completamente dilacerado pelo excesso, como veremos.73 [grifo nosso]
Ou então mesmo por via da representação:
Assim, neste caso, trabalha-se com representações dos atores sociais, ou com construções identitárias do ciberespaço. Um ator, assim, pode ser representado
73 GALLO, S. (2013). Discursividade Online. In: INDURSKY, F.; MITTMANN, S.; FERREIRA, M. C. L.; (orgs.)
O Acontecimento do Discurso no Brasil. Campinas, SP: Mercado de Letras, p. 201.
62
por um weblog, por um fotolog, por um Twitter, ou mesmo por um perfil no Orkut.74 [grifo nosso]
Seja de uma concepção inatista, estruturalista, ou pós-estruturalista de
sujeito, falamos, e viemos desde sempre falando sobre nossa própria presença online.
Entretanto algo que Pariser fala sobre o filtro nos remete a outra
possibilidade: “Eles são máquinas de previsão [os filtros], constantemente criando e
refinando a teoria de quem você é e do que você fará ou quererá em seguida”75. Aqui
caímos no problema de representação sobre o qual Baudrillard tão bem já nos avisa e
que, consideramos, vale lembrar:
Assim é a simulação, naquilo em que se opõe à representação; Esta parte do princípio de equivalência do signo e do real (mesmo se esta equivalência é utópica, é um axioma fundamental). A simulação parte, ao contrário da utopia, do princípio de equivalência, parte do signo como reversão e aniquilamento de toda a referência. Enquanto que a representação tenta absorver a simulação interpretando-a como falsa representação, a simulação envolve todo o próprio edifício da representação como simulacro. Seriam estas as fases sucessivas da imagem: 1. Ela é o reflexo de uma realidade profunda. 2. Ela mascara e deforma uma realidade profunda. 3. Ela mascara a ausência de realidade profunda. 4. Ela não tem relação com qualquer realidade: ela é o seu próprio simulacro puro.76
O que Baudrillard enquadra aqui, e aquilo que ele nos permite pensar é que
não só o sujeito não está sendo representado (no nosso caso, pela/na rede), mas que
isso que entendemos como a representação do sujeito na rede tem, constitutivamente,
a aura de um perigo: sua existência é a ameaça de aniquilação da diferença entre o
representado e a representação.
‘Eu proibi a existência nos templos de qualquer simulacro porque a divindade que anima a natureza não pode ser representada’. Na verdade pode sê-lo. Mas em que é que se torna quando se divulga em ícones, quando se multiplica em simulacros? Continua a ser a instância suprema que simplesmente se encarna
74 RECUERO, R. (2009). Redes Sociais na Internet. Porto Alegre: Sulina, p. 25.
75 PARISER, E. (2011). The Filter Bubble: what the internet is hiding from you. London: Penguin Books, p. 10.
76 BAUDRILLARD, J. (1991). Simulacros e Simulação; tradução Maria João da Costa Pereira. Lisboa: Relógio
d’Água, p. 13.
63
nas imagens numa teologia visível? Ou será que se volatiliza nos simulacros que, só eles, ostentam o seu fausto e poder de fascinação – com o aparato visível dos ícones substituindo-se à Ideia pura e inteligível de Deus? Era disso justamente que tinham receio os iconoclastas, cuja querela milenária é ainda hoje a nossa. [...] Pode viver-se com a ideia de uma verdade alterada. Mas o desespero metafísico provinha da ideia de que as imagens não escondiam absolutamente nada e de que, em suma, não eram imagens mas de facto simulacros perfeitos, para sempre radiantes no seu fascínio próprio.77
Ou seja: aquilo que aparece na rede sobre o efeito de ser sujeito78 é também
uma negação radical do sujeito como o entendemos. Aquilo que percebemos como nós
mesmos e os outros nas redes são, de fato, um apanhado de dispositivos tecnológicos,
clivagens, cuja função é tornar inteligível um contexto que, de outra forma, seria
inteiramente irracional (o contexto binário das máquinas digitais, a língua de
programação, e os bancos de dados). É isso que, a partir de agora, denominaremos de
avatar: clivagens subterrâneas na medida em que são formuladas para descrever e
fazer operar o sujeito de rede, aquele que, como Eli Pariser lembra, os filtros predizem
e definem, aquele que (através dos filtros) se relaciona com os bancos de dados e as
memórias metálicas, aquele cuja privacidade pode ser invadida, etc.
Veja pois, que o que habita a rede não são os sujeitos, mas seus avatares:
aquilo que gostaríamos de pensar como nossas representações, mas que são, de fato,
simulacros. Ou seja: entidades sem referência, entidades próprias, criadas e animadas
por um modelo, construído inteiramente por clivagens subterrâneas.
Se tomarmos, por exemplo, meu perfil de usuário de Facebook no dia de
hoje, encontramos uma foto de perfil e uma foto de capa dispostas proeminentemente.
Ambas podem ser tageadas e geolocalizadas. O que isso significa? Que as imagens,
mesmo antes de pensarmos nas inúmeras tecnologias de reconhecimento de imagem,
já estão repletas de informações destinadas à rede, ou: ao modo de interpretação
77 BAUDRILLARD, J. (1991). Simulacros e Simulação; tradução Maria João da Costa Pereira. Lisboa: Relógio
d’Água, p. 12.
78 Esse termo difere em alguns aspectos da noção de efeito-sujeito que Gallo desenvolve em Discursividade Online,
especificamente, que esse efeito-sujeito de acordo com a autora é algo inteiramente mais específico, e relacionado
com a presença (status) dos interlocutores. De nossa parte propomos que toda movimentação por uma rede deve ser
feita sobre algo que podemos chamar de um efeito de ser sujeito que logo denominaremos de avatar.
64
particular dos dispositivos tecnológicos. Onde esta foto foi tirada? É do usuário dono da
página? Quem mais está com este usuário?
Ainda em meu perfil, encontramos categorias como meus gostos, lugares
onde estudei, vivi, viajei. Encontramos também a lista de todas as pessoas das quais
sou amigo, conhecido, colega de trabalho, de universidade, etc. A ideia de determinar
de quem sou amigo, de que filmes gosto, por onde viajei, é precisamente oriunda dessa
concepção de individuo elementar, ou seja, do indivíduo anterior aquele que diz, se
apresenta, produz sentido, estabelece relações materiais, etc. Como se meus gostos,
amizades, meu histórico e meus interesses fossem os mesmos independentemente de
meu contexto ou interlocutor. Me é difícil dizer de que filmes gosto (como qualificar
binariamente do quê se gosta e do que não se gosta?), de quem sou amigo (como
qualificar binariamente de quem se é e não amigo?), etc. mas ainda assim, preencho os
campos com o máximo de informação da qual suporto me desfazer. Preencho também
alguns dados pessoais e imediatamente após o processamento dessas informações eu
já passo a me relacionar com tudo o que acontece na rede a partir de uma mediação, a
saber: a mediação dessas clivagens, cuja coleção de dados que contém sobre mim,
somado a um sistema matemático de organização e disposição desses dados pela
rede, tem a função, justamente, de constituir o efeito de minha representação. Assim,
em primeiro lugar o que percebemos é que o avatar e o filtro estão parcialmente
sobrepostos um ao outro. De outra forma poderíamos dizer que o avatar é a pergunta
que o filtro faz ao banco de dados.
Porém, do que se trata o resultado processado de toda essa informação?
Defendemos aqui, justamente a partir do que nos é emprestado de Baudrillard como
método de desconstrução, que não se trata de posição de sujeito, ou recorte. Não se
trata de uma posição discursiva, essa “representação”. Afinal, o que temos como
resultado dessa somatória de dispositivos técnicos, claramente, não é da ordem da
posição discursiva já que não inclui em seu funcionamento a materialidade responsável
pelo deslocamento, pelo equívoco, pelo esquecimento. Defendemos: a linguagem, na
rede, na medida em que os interlocutores se relacionam, acontece na superfície de um
sistema cuja materialidade é estranha ao funcionamento simbólico. Se trata aqui de um
65
ambiente inteiramente simulado. Especificamente: o trabalho de relação com a
mediação desses dispositivos técnicos não é o mesmo trabalho de mediação que, por
exemplo, a linguagem opera. Enquanto a forma de constituição do sujeito (na medida
em que é sujeito da linguagem) opera sob o signo do equívoco, e sob a força do
esquecimento, o que temos nessas clivagens subterrâneas é o acúmulo e a
produtividade, no sentido que Baudrillard usa o termo, na oposição produção/sedução:
O universo da sedução era, a meu ver, o que se contrapunha radicalmente ao da produção. Não se tratava mais de fazer surgir as coisas, de fabricá-las, de produzi-las para um mundo do valor, e sim de seduzi-las, isto é, de desviá-las desse valor e, portanto, de sua identidade, de sua identidade, de sua realidade, para destiná-las ao jogo das aparências, à sua troca simbólica.79
Noção que também nos remete à oposição entre criatividade/produtividade
que Orlandi sugere em Princípios e Procedimentos:
[...] na Análise do Discurso, distinguimos o que é criatividade do que é a produtividade. A "criação” em sua dimensão técnica é produtividade, reiteração de processos já cristalizados. Regida pelo processo parafrástico, a produtividade mantém o homem num retorno constante ao mesmo espaço dizível: produz a variedade do mesmo. [...] Já a criatividade implica na ruptura do processo de produção da linguagem, pelo deslocamento das regras, fazendo intervir o diferente, produzindo movimentos que afetam os sujeitos e os sentidos na sua relação com a história e com a língua. Irrompem assim sentidos diferentes. 80
O que sugerimos aqui é que, ao contrário do funcionamento sugerido acima
por Orlandi descritivo da linguagem, os dispositivos técnicos das redes não se
estruturam constitutivamente a partir do deslocamento, do erro, da polissemia. Ou seja:
existe uma matriz tecnicamente construída de possibilidade para a produção do avatar,
e é justamente por essa razão que o chamamos de avatar e não de sujeito. Não circula
pelas mesmas possibilidades, como avatar, pois sua constituição é feita sob o
imperativo da produtividade, a partir das materialidades da soma, e sob a
operacionalização da repetibilidade. O avatar não opera no esquecimento. Ora, essa 79 BAUDRILLARD, J. (2001). Senhas; tradução Maria Helena Kuhner. Rio de Janeiro, RJ: DIFEL, p. 11.
80 ORLANDI, E. P. (1999). Análise do Discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, p. 37.
66
simplesmente não é uma força constitutiva de sua materialidade. E por isso, não se
trata de mais um perfil, ou posição-sujeito, como encontraríamos nas distinções entre,
por exemplo, forma-sujeito profissional acadêmica e forma-sujeito romântica ou familiar.
O avatar está para a memória metálica, da mesma forma que o sujeito está para a
memória histórica: o último par se constitui na tensão entre a criatividade e a
reprodução enquanto o primeiro é, primariamente, um veículo de produtividade.
E entretanto, o que se mantém transparente ai é, justamente, o efeito de que
o avatar representa o sujeito, do qual depende toda e qualquer participação em uma
rede de relacionamento. Se opera sempre sob o efeito de que há uma coincidência
entre o sujeito e o avatar, pelo menos no nível da representação: que aquela
informação sobre o usuário, de alguma forma, em algum aspecto, representa o sujeito.
O que defendemos aqui é que não há posição-sujeito propriamente dita que seja
possível aí justamente porque só há encontro; só há coincidência: tem-se os meus
amigos, os meus gostos, os meus interesses, mas não se erra aí nesses campos, não
se esquece. E, claro, é a máquina justamente que não esquece, e também não sabe
errar: ela só é capaz de produzir coincidência, não equívoco, e é dentro dessa
materialidade, que buscamos nos “representar” online, constituir esse efeito de unidade
subjetiva que nunca se formulará da mesma forma, já que se formula dentro do âmbito
digital, dentro do âmbito do código, dentro do âmbito possível a partir da programação.
Ou seja: essa coleção de clivagens subterrâneas que entendemos como
avatar, e que são os formulários, a interface gráfica, os algoritmos que “interpretam”
toda essa informação e a faz operar, etc. são aparatos políticos além de técnicos.
Dizemos isso pois sua operação é constituinte dos sujeitos cujas existências estão
indissociáveis das redes nas quais circulam. De fato, o avatar (esse grupo de clivagens
subterrâneas) opera no vetor oposto a seu efeito: o que se está fazendo ao se
preencher um perfil, de Facebook por exemplo, não é (re)produzir-se ou representar-se
na rede, mas produzir em si a rede. Ou então, se incluir em um contexto de dispositivos
tecnológicos onde o sujeito é produzido nos termos que a rede interpreta. A rede está
nos pensando, ou seja. O avatar está nos pensando: os dispositivos que a rede torna
disponível a nós (Status Update, Messages, Retweets, etc.) são as formas não só como
67
produzimos sentido, mas também como estamos sendo produzidos. Veja este post, que
recebi em meu News Feed do Facebook:
Eu ligo meu computador e descubro que lá fora, o mundo foi à merda. Sangue, tirania, racismo, morte, sofrimento inimaginável, a dignidade sendo drenada de alma à alma. Nos Estados Unidos, em Gaza, no Iraque, na Síria, na Ucrânia, no leste da África. Eu abro o Facebook e vejo que todo mundo vive vidas felizes... cuidam de seus jardins, tiram fotos de viagens, lindas fotos de comida, gatos engraçados, produtos britânicos hilários, adoráveis reuniões familiares, bons tempos em bares, seus filhos fazendo as coisas mais bonitinhas, sorrisos e felicidade transbordam. Eu sou o mesmo que todos os outros aqui. Eu exibo o meu progresso em crescimento pessoal e auto melhoramento. Eu divido as minhas ilusões de grandeza mas lembro de equilibrar isso com o momento vulnerável ocasional. Eu “gosto” de uma tirada inteligente. Eu espertamente componho uma contribuição sagaz. Eu contribuo ao nosso amor coletivo pela ironia. Eu espero que as pessoas fiquem impressionadas com o rumo da minha vida que escolho compartilhar. Nesse mundo eu vivo sem horrores, eu não tenho medos, eu tomo cuidado para não ser sincero demais. Eu vou para a cama toda noite com o quarto a uma boa temperatura. Eu durmo livre de distrações externas, e de barriga cheia. Eu não tenho nada a reclamar. A vida, como você a conhece, é perfeita. Jim Bat Cho – Post no Facebook, 14/8/2014 [tradução nossa].
Esse avatar de Facebook que Jim Bat Cho descreve é a realidade corriqueira
de muitos de nós. É uma descrição apta da forma-sujeito do neoliberalismo: livre, de
classe média, desengajado politicamente, reproduzindo continuamente a posição
daquele que é dado: o sujeito da individuação. De outra forma: o sujeito preso no filtro-
bolha de Pariser. O que significa dizer que é o avatar que está nos pensando? Significa
dizer não que há uma intencionalidade por trás do dispositivo, mas justamente o
contrário: que há, como sempre houve no discurso e nas textualidades, uma realidade
ideológica da qual nem mesmo o técnico que desenvolveu o dispositivo escapa. Na
verdade: da qual principalmente o técnico não escapa. Basta lembrarmos do que
Pêcheux disse sobre o trabalho dos técnicos (no caso, dos copistas).
Continuamos: o desenvolvimento (através do design, do marketing, da
programação, etc.) da estrutura tecnológica das redes, suas clivagens subterrâneas,
também se constituem sob essa renúncia e sob a transparência da neutralidade das
tecnologias da comunicação. Como se tudo que fosse relevante fosse seu uso, seus
68
“fins”! A própria modelação arquitetônica da rede como estrutura de nodos (atores ou
sujeitos) ligados por conexões81 é uma modelação que, como o post acima nos lembra,
segue os padrões do indivíduo82 contemporâneo: espontâneo, desde-sempre-já-lá,
livre83.
O site HabitRPG84, cujo o slogan é Gamify Your Life (transforme sua vida em
jogo), revela de uma forma explícita essa operação: se trata de um ótimo exemplo
dessa lógica de avatarização dos sujeitos. No site, cada usuário cria um avatar gráfico
(como em um antigo jogo de RPG eletrônico) com algumas opções limitadas de
customização, (cor de cabelo, pelo, sexo, etc.) e – na página inicial – descreve suas
atividades diárias (divididas em hábitos, a fazeres, e atividades diárias). A cada uma
dessas atividades é atribuído um valor em pontos, e o objetivo (bastante lúdico) do site
é auxiliar usuários com suas tarefas diárias: pontos positivos (ganhados, por exemplo,
por ter lembrado de tirar o lixo naquele dia, ou por ter ido à academia) intitulam um
usuário a recompensas (aumento de nível, ouro, maior leque de opções de
customização, etc.).
81 Sugerida, por exemplo, por Recuero, em Redes Sociais na Internet (2009).
82 Quando falamos sobre indivíduo, entenda-se: o sujeito como funcionando sob a forma-histórica dominante por
meio da lógica da individuação.
83 Realizei um breve estudo desse sujeito na medida em que se constitui como efeito-leitor na bibliografia de
autoajuda (Pequeno, 2010), mas a crítica a esse sujeito é ubíqua na filosofia crítica do século XX, inclusive na
filosofia materialista e na toeira do discurso. Ver: Sobre os Contextos Epistemológicos da Análise do Discurso.
84 https://habitrpg.com/static/front
69
Não se trata, veja bem, de uma rede de relacionamento (além da interface de
customização do avatar e de atribuição dos pontos, o site não é nada além de um
fórum, onde usuários compartilham suas experiências com a ferramenta); mas é notável
o que sugere sobre como as redes operam. Note que a função do site não é o jogo que
o site propõe (a evolução do avatar, os níveis ou o ouro que se ganha): se fosse, o
progresso do jogador seria inteiramente pré-determinado (afinal, o que é um jogo senão
uma série de regras previamente determinadas?). Não, esse progresso pelo “jogo” ali
disposto é a consequência secundária de um outro processo que é o objetivo central do
site: a constituição de um sujeito que atravessa a lógica da qualificação e quantificação
da própria vida. De outra forma: é o jogo que joga o sujeito (com seus hábitos, afazeres,
sua vida diária no caso desse exemplo).
A diferença, clara nesse caso, entre o site HabitRPG e as redes de
relacionamento, é que no caso do primeiro, o funcionamento dessa inversão é retórico,
ou seja, é o usuário que determina as variáveis sob as quais quer ser jogado, é ele que
determina as regras do próprio jogo. É ele que faz certas escolhas sobre o que
quantificar, os valores que são atribuídos a cada atividade que seleciona, quem estará
a par de seu progresso, e talvez ainda mais importante: ele tem a opção de pausar o
processo e ainda fazer parte do site.
70
Orlandi descreveu sobre a posição autoritária: “[...] o referente está ‘ausente’,
oculto pelo dizer; não há realmente interlocutores, mas um agente exclusivo [...]”85.
Lembramos: essa posição autoritária, como a história nos conta com inúmeros
exemplos, não é só discursiva, mas política, social, e também – como ressaltamos para
nossos propósitos – tecnológica. Tome, como exemplo, o número de seguidores que
tenho no Twitter, quantos retweets fazem de meus comentários, quantos likes tenho em
posts de Facebook, para quantas pessoas o filtro envia meus updates. Bom, esses são
todos dispositivos de cunho técnico – e proprietário – cujo desenvolvimento não passa
pelas mãos de seus usuários, mas ao contrário, são pensados e produzidos como
óbvios e como dados. É esse também o núcleo duro de uma rede de relacionamento: o
punhado de tecnologias que engendram, em sua operação, uma simulação que, por
sua vez, retroalimenta a constituição dos sujeitos. Ou, emprestando as palavras de
Orlandi: finalmente, é isto “que se historiciza”. E de novo, por simulação, não queremos
dizer uma má, ou falsa, representação de sujeitos; mas aquilo que existe e opera sem
nenhum referencial, aquilo que se presta a ter, mas não tem nenhuma origem: sua
criação se dá por modelos e é do estatuto de um novo objeto que exige, por sua vez,
novos contextos de operação.
Mas então, devemos, se mais nada, pelo menos perguntar: que sujeito é
esse, que as clivagens subterrâneas da rede engendram? Ou: quais são as regras que
nos jogam?
Para tratarmos essa questão, precisamos retomar a noção do sujeito
individuado da contemporaneidade, e examinar essa condição como relacionada com o
aspecto superestrutural do consumo. Quando dizemos consumo, falamos sobre algo
além de comércio, obviamente. Falamos sobre a infraestrutura material de produção e
reprodução das relações econômicas na medida em que ela constitui também um modo
de funcionamento superestrutural: falamos sobre o consumo como lógica de
constituição das subjetividades. Nesse exemplo que tomamos anteriormente com meu
próprio perfil, devemos notar que ele não é só uma simulação (ou seja, não uma
85 ORLANDI, E. P. (1983). A Linguagem e Seu Funcionamento: as formas do discurso. São Paulo: Editora
Brasiliense, p. 10.
71
representação minha, mas um artefato próprio criado a partir de seus próprios
modelos), mas uma simulação de cunho muito específico. Se retomarmos o post de Jim
Bat Cho que trouxemos um pouco mais acima, podemos nos ater ao que dele para nós
é central, a saber, não o problema social que ensaia denunciar, mas a forma como
descreve o sujeito em sua passagem ao avatar. Em frases como: “Eu exibo o meu
progresso em crescimento pessoal e auto melhoramento”, “Eu divido as minhas ilusões
de grandeza mas lembro de equilibrar isso com o momento vulnerável ocasional”, “Eu
espertamente componho uma contribuição sagaz” e “Eu espero que as pessoas fiquem
impressionadas com o rumo da minha vida que escolho compartilhar” notamos, pois,
uma tendência geral. A saber: a descrição de um processo de formulação que tem
como forma-sujeito justamente esse indivíduo que o sujeito, felizmente, nunca
consegue chegar a ser: o sujeito individuado da contemporaneidade.
Descontextualizado, isolado, enfim: livre.
De outra forma: trouxemos esse post aqui na medida em que ele nos remete
ao fato que aquilo que se experimenta do outro, na rede, tanto quanto aquilo que se
produz sobre si mesmo, sempre foi e está se tornando cada vez mais e
irrevogavelmente, um produto de consumo. Algo secundariamente produzido na
tentativa de representar ou descrever a experiência de um sujeito, mas primariamente
produzido como objeto de consumo de outros usuários. E porque dizemos cada vez
mais? Não porque aumentam as avenidas de comércio, e as oportunidades de
capitalização da plataforma (isso acontece, mas não é disso que falamos), mas porque
são cada vez mais variados os dispositivos de rede através dos quais nos
relacionamos, e cada vez mais ubíquo seu uso e sua presença social (como dado).
Houve algumas versões diferentes desse dispositivo durante os últimos anos
no Facebook, mas enquanto escrevo, no fim de 2014, a empresa lançou mais um
dispositivo de retrospectiva de ano, onde aquilo de mais importante, ou significativo (de
acordo com o site) é disposto em formato de apresentação. Mas o que significa dizer
importante ou significativo? Significa dizer, na lógica da rede: aquilo que foi mais visto,
comentado, “gostado”, enfim: consumido. Do que é circulado sobre o algoritmo de filtro
do Facebook, e em termos gerais, sabemos o mesmo fato: que a função do algoritmo é
72
circular aquilo que já está sendo “gostado”, e aquilo que ainda tem maior chance de ser
“gostado”. Como muitas outras redes, o Twitter funciona também a partir de clivagens
extremamente similares, engendrando uma relação indissolúvel entre circulação e
consumo: o que significa dizer que importa a razão entre quantas pessoas me seguem
e por quantas pessoas eu sou seguido? Significa dizer que importa a razão do quanto o
meu avatar é consumido, e mais importante: faz consumir. Significa dizer que importa
ser consumido. O Twitter não funciona com um algoritmo de filtro, mas a arquitetura de
interface e usabilidade da rede leva seus usuários a fazerem esse trabalho de seleção
do que é relevante tão eficientemente quanto um algoritmo o faria. Existem
profissionais, serviços e inúmeros cursos destinados a empresas e profissionais liberais
cuja função é aumentar o nível de consumo de uma página (ou um perfil, as diferenças
práticas sendo muito pequenas) no Linkedin, no Facebook, etc., mas nós estamos
todos circulando nesse mesmo espaço e há muito pouca diferenciação entre uma
página de uma empresa, de uma personalidade, e o perfil de um usuário.
Na base dessa estrutura, existe uma razão comercial direta e imediata para
que a rede opere nesses moldes: o Facebook, no caso, foi avaliado em Setembro de
2014 em 200 bilhões de dólares86. O valor é relevante por ser um indicador direto da
eficiência com a qual a plataforma agencia a relação produto-consumidor. Entretanto, o
que é preciso ficar claro é que não é primariamente da relação econômica que falamos
quando falamos de consumo, mas de sua consequência superestrutural. O que é
crucial aqui é que a lógica de relação econômica através da qual o estabelecimento das
relações sociais se dá nas redes também não está clara para o técnico que desenha a
plataforma tecnológica. Ele também a produz na transparência de sua posição de
técnico; como todos subsequentemente a experimentamos: sempre-já-dentro das
condições ideológicas de produção.
E na transparência que essas plataformas engendram sobre sua condição, o
que não transparece é que a relação produto/consumidor está já embutida na estrutura
técnica da rede na forma dessa lógica de (re)produção das relações na forma de
86 Você encontra a reportagem em um site satélite da CNN: http://money.cnn.com/2014/09/09/investing/facebook-
worth-200-billion/
73
consumo. Muito antes da avaliação que determina seu valor, ou a inserção de
propaganda direta, sugestão de produtos, etc., o Facebook, nosso exemplo aqui, já é
constitutivamente estruturado através dessas relações que não são acidentais, e ao
mesmo tempo também não são intencionais. O consumo é constitutivo da rede no nível
do ideológico: o programador “deixa um pedaço de si no código”.
Em Diluição e Indistinção dos Sentidos: uma política da palavra e suas
consequências (2011), Eni Orlandi demonstra algo a que Foucault também já alude
quando nos lembra que: “[...] o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas
ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta [...]”87. A saber: que
está no processo discursivo o efeito de homogeneização social característico da lógica
do capitalismo neoliberal. Essa relação, especificamente, eu inclusive demonstro em
meu trabalho de conclusão de curso: que o discurso (de autoajuda, no caso) faz uma
operação social na medida em que se constrói colocando todos os sujeitos de uma
sociedade em pé de igualdade.
Diríamos então: há um outro efeito de diluição sendo operado aqui, não
pelos discursos presentes na rede, mas antes, pela própria rede, ou mais
especificamente, por certas clivagens subterrâneas que dela são constitutivas. Esse
efeito de diluição se dá para desfazer a diferença entre produtos e usuários (ou
consumidores): não é claro quem fala da conta do Twitter de alguma celebridade, por
exemplo. Também não é clara e imediata a diferença entre uma página de venda e um
perfil no Facebook, etc. A diferença entre aquilo que é bem de consumo e aquilo que
não o é não está traçada nas clivagens subterrâneas que constituem a rede e, claro,
isso se dá pois a diferença no campo do ideológico é cada vez menor de fato. Você
pode gostar de uma publicação tanto de uma empresa quanto de outro usuário da
mesma forma, você lê atualizações de canais jornalísticos e amigos na mesma tela, e
da mesma forma que empresas, usuários também podem pagar para que seus posts
alcancem mais pessoas. Como no Twitter, os dois podem seguir e serem seguidos, e
da mesma forma nos dois lugares, não se sabe quem está por trás do usuário. Isso é
87 FOUCAULT, M. (1996). A Ordem do Discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de
dezembro de 1970, 20ª edição. São Paulo: Edições Loyola, p. 10.
74
verdade para empresas, para celebridades, para organizações, mas também para
usuários comuns, como no documentário Catfish onde esse fato é, pelo menos, previsto
senão demonstrado88. Então de novo: as redes não têm como função representar
sujeitos online. Sua operação básica passa por outros caminhos e a indistinção
relevante aqui não é tanto entre empresas e sujeitos (embora esse seja um aspecto
desse funcionamento), mas mais importante, é a indistinção entre sujeito e produto.
Não estamos só consumindo nas redes. Somos também o produto que se vende.
Mais recentemente, o jornalista Mat Honan, da revista Wired, relatou um
experimento no qual ele próprio diligentemente “gostou” de cada post que foi
apresentado em sua News Feed do Facebook89. O resultado de 48 horas do
experimento foi: o jornalista não recebia mais quase nenhum conteúdo de nenhum de
seus amigos. Todo seu News Feed se tornou curado em volta de artigos de revistas,
promoções e link corporativos. No Facebook, ainda, da forma como é estruturada a
lógica de design da News Feed, a própria origem do que se recebe é indistinta:
“Usuário X acho que você gostaria disso”, ou “Usuário Y gostou disso”, etc.. Se são as
corporações que têm o maior interesse investido no maior número possível de pessoas
consumindo seu conteúdo, mesmo assim é cada vez mais a indistinção entre elas e nós
que determina a experiência de usuário nas redes.
88 Catfish é um documentário no qual um jovem nova-iorquino começa e intensifica uma relação com uma mulher
muito jovem e bonita do Meio Oeste dos Estados Unidos. O que se revela ao longo do documentário é que a mulher
não era quem mostrava seu usuário, e que não só seu perfil como o perfil de todos os seus amigos foi inventado e
alimentado por ela para manter a relação pelo máximo de tempo possível.
89 Você encontra a reportagem nesse endereço: http://www.wired.com/2014/08/i-liked-everything-i-saw-on-
facebook-for-two-days-heres-what-it-did-to-me/
75
O NA-LINHA: SOBRE AS CONDIÇÕES DE POSSIBILIDADE DE CONSTITUIÇÃO DA
SUBJETIVIDADE EM RELAÇÃO A CERTOS ASPECTOS DA MATERIALIDADE
ONLINE.
Ó Deus, eu poderia viver preso em
uma casca de noz e me ver como
o rei do espaço infinito, se não
fossem por meus pesadelos.
Hamlet – Ato 2, Cena 2. [tradução
nossa]
76
Tempo e Presente
Como viemos tentando defender até agora, nosso uso de Baudrillard durante
esse trabalho não é de cunho estritamente filosófico, mas histórico. Apesar de
enquadrada dentro do campo da filosofia (como, em sua forma mais geral também está
esse trabalho), e defendida pelo próprio autor como metafísica, sua posição ainda é a
posição de partida de um sociólogo90, descrevendo as condições sociais de seu tempo.
Na nossa perspectiva, não se trata de desenvolver ou importar para esse trabalho uma
teoria do virtual como na tradição filosófica. Nosso objetivo não é estabelecer o real e o
virtual em suas acepções filosóficas, ou diagnosticar sua distância ou proximidade.
Simplesmente, buscamos conceber um período histórico onde a diferenciação entre
online e o off-line já não é mais significativa:
Mas é preciso que se diga que esta expressão “realidade virtual”, é um verdadeiro oximoro. Não estamos mais na boa e velha acepção filosófica em que o virtual era o que estava destinado a tornar-se ato, e em que se instaurava uma dialética entre as duas noções. Agora, o virtual é o que está no lugar do real, é mesmo sua solução final na medida em que efetiva o mundo em sua realidade definitiva e, ao mesmo tempo, assinala sua dissolução.91
Entendemos que Baudrillard fala da dissolução não da materialidade do
mundo, mas da dissolução de nossa capacidade de habitá-lo como primazia da
realidade social, histórica, política, etc. Como ele mesmo explica, não se trata mais nem
de online nem de off-line, mas de entender as condições de possibilidade humana em
um contexto onde essa diferença soberana é quase como desaparecida. Defendemos
que a dissolução dessa diferença já está em andamento: nas nossas eleições, em
90 Baudrillard originalmente se forma em Alemão e Literatura, mas termina seu doutorado no campo da Sociologia,
com O Sistema dos Objetos.
91 BAUDRILLARD, J. (2001). Senhas; tradução Maria Helena Kuhner. Rio de Janeiro, RJ: DIFEL, pg. 42.
77
nossos movimentos políticos e protestos, em nosso sistema econômico e social. A
distinção, pois, entre o âmbito do online e do off-line já não é uma distinção significativa.
Basta que apontemos para as eleições de 2008 nos Estados Unidos, ou de 2014 no
Brasil e a forma como desfizeram os limites entre o “importante do off-line” e o
“secundário do online”. Podemos também olhar para qualquer uma das inúmeras
revoluções industriais/econômicas (de distribuição, de marketing, de sistemas de
consumo) que a tecnologia de comunicação global digitalizada viabilizou dentro dos
enquadramentos de um sistema capitalista (que, verdadeiramente, era outro antes de
seu surgimento). André Parente nos lembra:
As redes são por demais reais. Para verificar nossa dependência das redes basta imaginar uma viagem a um lugar remoto onde tudo o que compõe a galáxia emaranhada de redes e serviços que alimentam os nossos ecossistemas móveis e imóveis vai nos fazer falta: a água, a comida, a eletricidade, os meios de comunicação, os meios de transporte, etc. 92
O que buscamos explorar nesse último trecho de pesquisa é um conjunto de
clivagens subterrâneas cujo funcionamento determina tecnologicamente o
tempo/espaço no qual circulam o sentido e o avatar da rede. Buscamos pensar nesse
tempo/espaço na medida em que se torna indistinguível do tempo/espaço constituído
historicamente e na medida em que organiza também as formas de relação dos
sujeitos.
O primeiro passo que damos nesse trecho, portanto, é o de nos permitir falar
sobre um tempo/espaço diferente e específico das redes sociais. Não pela necessidade
argumentativa, mas pelas evidências analíticas: a escrita da rede, a escritoralidade93
que é de rede, a produção midiática da rede, são todas textualizações particulares,
especificas, à rede. Isso não se dá centralmente como consequência do intermédio do
teclado, ou da tela, mas como consequência da relação que o sujeito é levado a
estabelecer com clivagens que alteram radicalmente as relações estabelecidas com o
92 PARENTE, A. (2004). Enredando o pensamento: redes de transformação e subjetividade. In: PARENTE, A. (org.)
Tramas da Rede: novas dimensões filosóficas, estéticas, e políticas da comunicação. Porto Alegre: Sulina, p. 91.
93 Noção da AD trazida por Gallo (2011) que descrevemos a seguir.
78
tempo/espaço, e portanto, também com as possibilidades de enunciação e com as
formas de relação com o outro.
Tomemos um exemplo durante esse capítulo: Snapchat é uma empresa que
oferece um serviço de relacionamento online centrado no compartilhamento de fotos,
curtos vídeos e pequenas conversas, mas que (a diferenciando de outros serviços
similares) não tem como padrão de funcionamento o hábito de arquivamento. Ou seja:
o serviço original proposto pela empresa gira em torno da ideia de que qualquer
conteúdo compartilhado por Snapchat dura somente alguns poucos segundos após
aberto pelo(s) recipiente(s). Depois desses poucos segundos (de um à 10, à escolha do
usuário) o conteúdo se autodestrói. Uma foto tirada pelo aplicativo Snapchat se desfaz
assim que chega no recipiente. Uma conversa se apaga inteiramente. Um vídeo não
pode ser postado a partir do arquivo do celular ou tablet: ele só pode ser tirado dentro
do aplicativo, mandado, e concomitantemente perdido. O Snapchat, entretanto, não é
simplesmente – como seria muito simples classificá-lo – a representação online de uma
conversa (que não deixa artefatos, por exemplo, na memória do banco de dados), mas
uma forma inteiramente nova de se relacionar por meio do imediato. A nossa relação
com o enunciado, com a textualização, muda na medida em que ela não se acumula
em artefatos. Uma clivagem que constrói essa relação com o dizer e com a forma de se
relacionar está constituindo uma certa “forma-tempo”. Ou seja: uma certa construção
ideologicamente formulada de como podemos e devemos nos relacionar com o tempo e
com a latência. Como André Parente nos lembra:
O espaço não é uma realidade inerte que preexiste às nossas ações e modos de vida. Todas as culturas definem as formas de um real para além do real imediato, da atualidade, mas é a primeira vez na história da humanidade que a realidade do aqui e agora se encontra imersa nas tramas de uma temporalidade maquínica, que, a cada dia que passa, vai tornando mais complexo e espesso nosso aqui e agora. 94
94 PARENTE, A. (2004). Enredando o pensamento: redes de transformação e subjetividade. In: PARENTE, A. (org.)
Tramas da Rede: novas dimensões filosóficas, estéticas, e políticas da comunicação. Porto Alegre: Sulina, p. 94.
79
Ou seja: dentro dos limites da história, e portanto também no âmbito do
simbólico, há também um certo tempo e espaço sendo produzido e reproduzido, já que
o tempo e o espaço não estão livres da interpelação humana: eles também são
cercados para dentro da topologia do simbólico e são, eles também, produzidos
historicamente, experimentados ideologicamente, apropriados pelas relações
econômicas de trabalho e produção, etc..
Pêcheux nos lembra, em Semântica e Discurso95, que a possibilidade do
sentido não é anterior à construção sintática da língua. É na língua, a partir dela, que se
estruturam as dinâmicas de sentido e de poder. Defendemos que, da mesma forma que
com a materialidade da linguagem, também a materialidade do tempo e do espaço: o
tempo que uma sentença exige pra ser dita configura suas possibilidades. A distância
que ela consegue viajar pelo espaço também: falamos diferentemente com alguém no
telefone e com alguém do nosso lado. Exigimos e esperamos desses dois tipos de
interlocutores diferentemente. Não só a oralidade sofre esse efeito de configuração
espaço-temporal, mas também a escrita. Ora, daí as complexas diferenciações entre
escrita e escritoralidade96 feitas em A.D., que entendemos a partir daqui não somente
como a circulação de posições heterogêneas à das escritas clássicas, mas também de
experiências distintas de espaço e tempo sendo colocadas no contexto material da
escrita.
No exemplo do Snapchat, descrito acima, o que nos parece relevante para
traçar o tipo de relacionamento que estabelecemos com o tempo online (e essa forma-
tempo como construída por meio de clivagens subterrâneas) é que não se trata de um
aumento da velocidade, mas uma expansão – quase total – do presente. Quando
95 PÊCHEUX, M. (2009). Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio; tradução Eni P. Orlandi, 4ª
edição. Campinas, SP: Editora da Unicamp, p. 79.
96 Trabalhada por Gallo (2011), abrindo e desfazendo distinções entre: 1. Os possíveis discursos da escrita, ou seja:
discursos historicamente associados ao meio da escrita, como o da literatura, do jornalismo, da ciência, etc., e
portanto já legitimados institucionalmente, agenciadores de um certo efeito de fecho particular, 2: os discursos da
oralidade que se caracterizam, pelo contrário, por uma provisoriedade ou falta de legitimidade e, 3: os discursos da
escritoralidade, particulares à linha, onde essas discursividade anteriores já não se distinguem, mas se misturam na
produção de textualizações, ou escritas de oralidades, por assim dizer.
80
trabalha a noção de memória metálica na televisão, Eni Orlandi nos diz: “[se] Anula a
demora, elide a espera, instala o regime da urgência”97. Continuaríamos daqui,
defendendo que esse regime é realizado pelas redes e dispositivos online através da
progressiva expansão do tempo presente até os limites do horizonte visível.
A produção por meio das clivagens subterrâneas desse tipo específico de
tempo está marcada por todas as partes, em todos os dispositivos online. Essa
produção desestabiliza as formações discursivas ao reinterpretar nossas relações com
o tempo da formulação, a função do léxico, a forma da sentença, a grafia da
acentuação, o ritmo do tópico, etc. Tudo em torno do engendramento de
(necessariamente) novas formas de dizer, dentro de um novo espaço e um novo tempo
de constituição/formulação/circulação do sentido. Orlandi98 nos lembra ainda sobre o
mesmo assunto que: “Nessas novas formas, mantêm-se a incompletude e a dispersão,
embora a vontade de onipotência de um dizer total, omnipresente, se reforce”.
Tome como exemplo o dispositivo de e-mail. Paiva defende o e-mail:
[...] como um gênero eletrônico escrito, com características típicas de memorando, bilhete, carta, conversa face a face e telefônica, cuja representação adquire ora a forma de monólogo ora de diálogo e que se distingue de outros tipos de mensagens devido a características bastante peculiares de seu meio de transmissão, em especial a velocidade e a assincronia na comunicação entre usuários de computadores99.
Entretanto, o que nos parece importante sobre a materialidade técnica que
viabiliza o e-mail é que este é, por definição, a carta que não considera em seu texto o
futuro de quem a está recebendo. Ou seja: que não tem grafado, que não carrega as
marcas de que alguém a mandou do passado. Ora, não poderia, já que essa carta
agora não se recebe mais no futuro da grafia, mas no presente da grafia, um presente
97 ORLANDI, E. P. (2005). Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos, 2ª edição. Campinas, SP: Pontes,
p. 179
98 ORLANDI, E. P. (2005). Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos, 2ª edição. Campinas, SP: Pontes,
p. 182-183.
99 PAIVA, V. L. M. O. (2005). E-mail: um novo gênero textual. In: MARCUSCHI, L. A.; XAVIER, A. C.
Hipertexto e Gêneros Digitais: novas formas de construção do sentido, 2ª edição. Rio de Janeiro: Lucerna. p. 77.
81
que transforma quase todo tempo (possível de se produzir no âmbito do sentido) em um
presente infinitamente vasto, um único contexto enunciativo, ubíquo e estirado para
apagar, em todos os sentidos práticos, a presença material, a produção simbólica, do
passado e do futuro.
As clivagens subterrâneas que estabelecem nossa relação com o tempo
enunciativo são, nos dispositivos online, frequentemente formuladas para nos colocar
além ou aquém da latência dos dizeres. O que isso significa?
No caso do e-mail, mas também no Facebook chat e em inúmeros outros
dispositivos, temos clivagens que funcionam nas bases de um sistema aberto de
arquivamento. Ou seja: se tem “acesso” às conversas, trocas, arquivos anexos, etc.
Nesse caso, temos um presente que se estende para além do âmbito do presente da
enunciação. O tempo de formulação tende ao infinito, na medida em que aquele dito do
chat, do e-mail, de uma conversa que se desenrolou nos comentários de um post, ou
em respostas a tweets não fecha, não sofre nunca o efeito de fecho, ou posto de outra
forma, não opera sob o funcionamento do Discurso da Escrita:
[...] procuramos diferencias a língua escrita do que chamamos de Discurso da Escrita, relacionando a esse discurso todo texto que tem um “fecho”, efeito de fim, unidade, legitimidade. Textos públicos, publicados, com efeito de autoria, em efeito produzido pelo próprio Discurso da Escrita e que recai sobre o sujeito desse discurso. [...] O efeito-autor é o efeito que emana dos discursos institucionalizados, estabilizados, legitimados e que ressoam nos sujeitos aí inscritos.100
Ou seja: a formulação se torna para sempre ainda possível. O presente
enunciativo da formulação se estende indefinidamente até os horizontes finais de
possibilidade do dizer: será, pra sempre, possível continuar aquela conversa como se
ela nunca tivesse parado. A materialidade do online é estruturada dessa forma.
Defendemos aqui também que em outro aspecto muito importante, nas redes
e fora delas também, o online é um âmbito onde certas clivagens subterrâneas
100 GALLO, S. M. L. (2011). Da Escrita à Escritoralidade: um percurso em direção ao autor online. In:
RODRIGUES E. A.; SANTOS, G. L.; BRANCO, L. K. A. C. (orgs.) Análise do Discurso no Brasil: pensando o
impensado sempre. Uma homenagem a Eni Orlandi. Campinas: Editora RG, p. 414.
82
configuram as possibilidades de produção do sentido para aquém da latência possível
do tempo enunciativo. Essa é a segunda forma de instaurar o que Orlandi chama desse
“regime da urgência” e produzir essa relação de tempo que descrevemos. No caso do
chat, por exemplo, o dizer ao mesmo tempo que se estende sem fecho, ao infinito,
também sempre já foi recebido, pois não há (em termos relevantes) tempo de latência
na materialidade do dito. Off-line, uma frase falada por um interlocutor carrega em si as
marcas da sua própria latência: conectores como “hmm” ou “então” ou “né”; pausas,
mudanças de cadência, aumentos em velocidade. Essas e muitas outras são marcas de
um problema de circulação: a materialidade do tempo que a frase exige e na qual está
inscrita. Ou seja: o tempo como materialidade de circulação tem um efeito sobre o dizer.
A mesma coisa vale para uma carta que se manda por correio: ela carrega as marcas
de quem escreve para alguém em algum futuro: ela fala sobre o passado, ela fala sobre
coisas relevantes no futuro, ela fala do lugar de alguém que não sabe o futuro, e assim
por diante. A condição de circulação da carta, portanto, tem um efeito direto sobre o
processo constituição/formulação. E entretanto, o online é construído dentro de uma
materialidade tal em que o tempo de formulação do enunciado é, por via de regra,
instantâneo. Se recebe o dito já dito. Aquém do que entenderíamos como a latência
inerente no processo de circulação. O enunciado subtraído de seu próprio tempo de
formulação. Ele acontece sempre agora. E isso tem um efeito, é claro. O sentido
formulado em uma rede o é feito sobre o efeito de que o interlocutor está sempre lá:
presente. No presente. Ora, o Snapchat é justamente isso: um veículo de textualidades
que nunca estão acontecendo, mas só “já-acontecem”. O fato de que o aplicativo é
muito mais focado na veiculação de fotos do que texto101 é uma marca justamente
dessa “formulação aquém do tempo de formulação”. A foto, pois, também sendo
textualidade e também vindo de uma posição discursiva, mesmo assim não precisa
passar pela descrição do que se quer mostrar ou do que está sendo visto: já o é, já o
foi. O que nos parece crucial aqui é que há um efeito composto: de um lado temos
clivagens que fazem com que nossas textualizações se encontrem sempre no presente
101 Quando se abre o aplicativo ele já aciona a câmera do dispositivo, e fica pronto para tirar fotos ou vídeos. Uma
segunda ação é necessária para entrar em um sistema de chat por texto.
83
enunciativo. A falta de fecho discursivo expande o domínio do presente enunciativo até
os limites possíveis para o dizer. Por outro lado, a instantaneidade com a qual hoje
trabalhamos no âmbito da formulação online nos inscreve em um meio onde,
justamente, trabalhamos sob esse “regime da urgência” que Orlandi descreve. Se está
sempre atrasado em relação ao enunciado instantâneo. Ele exige, sempre, uma
resposta instantânea também. Se trata de uma condição onde se instala não só um
regime de urgência, que corresponde a uma forma específica de lidar com aquilo que
está no presente, mas também um regime no qual o próprio presente se expande para
tomar todo o tempo possível.
Espaço e Presença
No dia primeiro de maio de 2014, o blog da empresa Snapchat anunciou
mudanças importantes nos serviços que disponibiliza, e como uma de suas justificativas
afirmou: “[...] Mas até hoje nós sentimos que ao Snapchat faltava uma parte importante
da conversa: presença. Não há nada como saber que você tem a atenção de seu amigo
enquanto está conversando.102 [tradução nossa].” Outro caso chamativo sobre
Snapchat é um artigo publicado por um jornalista da Forbes que entrevista uma jovem
menina sobre o aplicativo. Em sua conclusão, revela: “Me pareceu [o aplicativo] menos
relacionado a auto obsessão e mais relacionado a conexão. [...] Ele existe para
conexões do tipo um-para-um ou poucos-para-poucos, e as imagens que oferece são
uma confirmação clara e humana de quem está ‘lá’”.103
102 Disponível em: < http://blog.snapchat.com/post/84407744185/putting-the-chat-into-snapchat > Publicado: 1 Maio
2014. Acesso em: 10 Set 2014.
103 Disponível em: < http://www.forbes.com/sites/michaelhumphrey/2014/08/18/my-2-hour-talk-with-a-7th-grader-
snapchat-soars-while-twitter-has-turbulence-ahead/ > Acesso em: 01/01/2015.
84
Do que se trata, então, essa tão importante presença? E o que podemos
interpretar sobre a oposição que ela nos apresenta implícita aqui, como antítese da
ausência?
Bom, em primeiro lugar, podemos então entender desse excerto, que a
presença pode muito bem estar circulando como a garantia de que o outro compartilha
um mesmo espaço/tempo enunciativo presente: seja em uma conversa por texto, por
vídeo, por som ou gravação de som, o requerimento de presença pode ser satisfeito
desde que todos os integrantes de uma conversa compartilhem do mesmo tempo de
dizer. As redes que conhecemos e pelas quais circulamos para completar essa
pesquisa, quase todas tem uma forma de modelar, por meio de código, da interface, do
design, não só o sujeito (pela via do avatar), mas também a “presença”. E entretanto,
nos parece tão inviável definir essa “presença”, que off-line pode ser uma referência
jurídica, espaço/temporal, psicológica, espiritual, etc., que nos parece muito mais
frutífero entendermos “presença” como uma noção própria ao online: uma condição
binária definida como “no presente (ou não) do enunciado”. De novo: é uma
“representação” de absolutamente nada, não esconde mais uma figura profunda, é puro
simulacro.
No Facebook, durante a realização deste trabalho (em 2014), encontrávamos
uma barra lateral povoada por nossos amigos mais frequentados e, mais importante
ainda, um pequeno sinal verde sinalizando sua “presença”. O aplicativo Messenger, do
Facebook, faz o mesmo trabalho. O Google Plus, a rede de relacionamento da Google
também utiliza de uma função análoga que é inclusive embutida em seu programa de e-
mail e chat. Enfim: a presença aqui não indica, em primeira análise, nada mais do que
“se você me mandar uma mensagem, a receberei e poderei respondê-la a partir do
mesmo presente (discursivo) do qual você a manda”. A dizer: em qualquer escrita há
sempre um tempo discursivo marcado pela e na sintaxe e resultado (também) de
clivagens subterrâneas, já que essas materialidades também determinam a relação de
tempo que o autor estabelece com o leitor. Lembramos que a textualidade, na medida
em que é formulada por um tempo específico, não é determinada somente pela
formação discursiva, mas também (e talvez mais fundamentalmente), pelo dispositivo. A
85
presença então, nessa perspectiva que delineamos acima, parece significar: dentro de
um mesmo contexto enunciativo. Do mesmo modo, a ausência a partir daqui seria
então uma disparidade do contexto enunciativo. Para arriscarmos, entretanto, uma
concepção de presença e ausência um tanto menos imediata do que esta que nos é
apresentada em primeira análise, precisamos ressaltar, antes de mais nada, o jogo
entre oralidade e escrita que se dispõe na rede. Em contrapartida, pois, às
possibilidades da escrita, a oralidade abarca, até onde podemos imaginar, formas de
discursividade necessariamente presentes (do presente enunciativo), já que tudo que é
dito se dissolve e não se coloca de outro lugar a não ser do presente: “enfim, tudo que
produzimos de modo fugaz”104. Como Gallo subsequentemente nos lembra entretanto,
a rede não produz nem escrita nem oralidade, mas alguma outra forma de
textualização, a saber, a escritoralidade.
A segunda parte da frase do blog que citamos acima nos chama atenção
aqui: “Não há nada como saber que você tem a atenção de seu amigo enquanto está
conversando”. O que sugere, pois, é que na rede seria possível partilhar de um mesmo
contexto enunciativo, de um mesmo presente de produção do sentido, e ainda sim, não
usufruir de presença (que entendemos acima estar se referindo a atenção, ou presença
de espírito, disponibilidade, comprometimento, assim por diante). De qualquer forma, se
trata de uma possibilidade aberta por um novo contexto material do tempo e do espaço
de comunicação online: a possibilidade de um diálogo despido de todas as
materialidades espaciais que antes informavam e viabilizavam a formulação. Nenhuma
interação entre interlocutores dentro dos contextos dessas tecnologias está sujeita às
mesmas formas de funcionamento: a materialidade constituinte do online
necessariamente torna opacos esses funcionamentos que eram antes parte do
esquecimento discursivo-enunciativo e exige de nós, portanto, reformulações,
reapropriações, etc.. A escritoralidade é uma realidade discursiva consequência dessa
opacidade, resultado dessa reformulação, adaptação aos dispositivos tecnológicos
104 GALLO, S. M. L. (2011). Da Escrita à Escritoralidade: um percurso em direção ao autor online. In:
RODRIGUES E. A.; SANTOS, G. L.; BRANCO, L. K. A. C. (orgs.) Análise do Discurso no Brasil: pensando o
impensado sempre. Uma homenagem a Eni Orlandi. Campinas: Editora RG, p. 415.
86
disponíveis. A escritoralidade da rede, entretanto, não funciona sem fazer operar efeitos
completamente particulares à rede, em pauta aqui, esse efeito de presença/ausência
antes materialmente impossível.
Nesse caso específico, há uma ‘indecifrabilidade’, com relação à presença
ou ausência do sujeito autor no tempo do enunciado, ou seja: com relação à partilha
dos mesmos contextos enunciativos entre leitor e autor. Trata-se de uma discrepância
inédita tanto nos contextos da oralidade (já que ela é sempre presente, ou seja,
acontece necessariamente dentro de um mesmo contexto enunciativo) quanto nos
contextos da escrita (já que ela é sempre ausente, ou seja, acontece necessariamente
sempre fora de um mesmo contexto enunciativo). Mesmo a ausência também já não
mais se aplica discursivamente nesse contexto: a ausência na rede não exprime mais
proibição nenhuma, como o faz fora da rede. Ainda escrevemos, gravamos mensagens,
mandamos vídeos, produzimos todo tipo de escritoralidade mesmo na ausência
imediata de interlocutores. E já que, como já vimos, as clivagens nos colocam na
posição de produzir sempre nos âmbitos do presente, a noção de ausência se torna –
em termos práticos – obsoleta. Enquanto o sujeito ainda vive nas limitações do espaço
e tempo humano; o avatar, em contrapartida, está sempre (senão presente, pelo
menos) lá.
É assim que transferimos ao campo da linguagem a asserção implicitamente
reconhecível de que a presença, com a qual estávamos até hoje familiarizados, é a
descrição de uma finitude: ela exige que se esteja ausente de qualquer outro lugar. A
presença e a ausência – como noções historicamente desenvolvidas em outro
tempo/espaço - não circulam em relações antagônicas, mas complementares e
cogentes. O antagonismo nos parece estar justamente na relação entre presença e
onipresença. A dizer: a noção de onipresença não designa um tipo de presença, mas
uma condição diferente tanto de presença quanto de ausência, que abarca as duas,
mas nenhuma, e aqui “concordamos com Guatarri sobre o fato de que até agora, as
87
novas tecnologias resultaram em um processo de estranha mistura de enriquecimento e
empobrecimento [...] da subjetividade em sua dimensão auto-referencial”105.
Mencionamos onipresença somente pois nos parece ser justamente este o
projeto técnico das redes de relacionamento: a eliminação de todo (des)encontro. Ora,
esta é justamente a diferença entre um serviço de mensagem, como o e-mail ou o
fórum, e um serviço de rede, como o Facebook: a rede se constitui como a construção
de um espaço, infinitamente pequeno, e compartilhado. Se a presença é um bem tão
almejado como imaginam os desenvolvedores de Snapchat, então nos sentimos
obrigados a ver que por definição, a presença, como a entendíamos antes do invento
do online, sempre exigiu uma certa latência, um tempo de encontro e desencontro, uma
certa quantidade de passado, futuro, e distância, e que o caso da “presença”
inesgotável, perpétua, constitui um certo tipo de oximoro tecnicamente produzido.
Justamente, a apropriação de um termo cuja é efeito é de representação, mas cuja
realidade material é radicalmente diferente do que antes estava disposto.
A rede se torna então um contexto no qual as discursividades são
produzidas, pois, em um presente quase-absoluto, um quase-sem-tempo, diríamos.
Isso se dá por via das próprias materialidades que a estruturam: as materialidades
próprias do online e a forma como exigem a reformulação das relações discursivas: é
necessário dizer sempre no presente já que aquilo que se produz pode sempre ser
recebido instantaneamente. Essa velocidade de tráfego é a materialidade necessária
para a “oralidade” em escritoralidade. Da mesma forma, a rede também é um espaço
no qual nos comunicamos com qualquer outro (ou, o outro em qualquer estado), um
quase-sem-espaço do qual nunca se está ausente. Esse efeito é, também decorrente
de uma característica material de onde habitam as redes de relacionamento, já que não
é mais possível não alcançar o outro (como por exemplo era ao bater na porta de
105 PARENTE, A. (2004). Enredando o pensamento: redes de transformação e subjetividade. In: PARENTE, A.
(org.) Tramas da Rede: novas dimensões filosóficas, estéticas, e políticas da comunicação. Porto Alegre: Sulina, p.
93.
88
alguém ou ligar para a mesma pessoa pelo telefone106): qualquer contato que se tem
pela rede já chega no instante que se produz, por via da infraestrutura global de
comunicação. Um exemplo corrente (em 2014) disso é a parede do Facebook, onde
todos postam fotos, vídeos, opiniões, links, etc. contando mesmo com um presente
quase-sem-tempo. Um post deve ser entendido como uma forma de oralidade, já que
partilha desse não-fecho próprio dela. Um post também é uma forma de escrita, já que
é assim, pela grafia e pela escritura-leitura, que toma forma. E um post também é uma
relação discursiva com um outro em seu estado que não é nem presente (já que um
post é, de uma forma muito real, abandonado ali, deixado pra depois, etc.), nem
ausente (já que aquilo é dito necessariamente para algum outro). A produção dos
sentidos que acontece cotidianamente na rede passa pelas vias de produzir interações
que não são nem da via da presença nem da ausência, mas pela vida do que podemos
muito bem entender como ambos e nenhum. Uma onipresença.
Simular, nos lembra Baudrillard107, é sempre antes “fingir ter o que não se
tem”. Mas mais do que isso, é também pôr em causa a diferença entre o “verdadeiro” (a
coisa que se falta) e o “falso” (sua simulação). Essa simulação de “presença” que
circula como clivagem de rede, e coloca em jogo a própria condição da presença,
Baudrillard já atacou com muita elegância quando falou dos iconoclastas, no que pode
ser a análise mais afiada e precisa sobre nossas relações com o Outro, nas redes
sociais:
Pode viver-se com a ideia de uma verdade alterada. Mas o seu desespero metafísico provinha da ideia de que as imagens não escondiam absolutamente
106 O caso da secretária eletrônica, desenvolvida muito antes da internet e comercializada com sucesso nos Estados
Unidos e Europa a partir da década de 1950 e 1960, é particular e deve ser ainda estudado. A princípio, entendemos
que a diferença essencial aqui é a de que, ao contrário do que acontece na linha, a discursividade dos recados de
telefone não é a mesma que a da conversa por telefone e ali sim, o que observamos é uma cisão dos contextos
enunciativos, e não uma permanente indistinguibilidade. Não se pode ignorar entretanto que um acontecimento
discursivo absolutamente inédito, cheio de seus próprios desvios e particularidades, deve surgir assim que a primeira
mensagem eletrônica é gravada.
107 BAUDRILLARD, J. (1991). Simulacros e Simulação; tradução Maria João da Costa Pereira. Lisboa: Relógio
d’Água, p. 33.
89
nada e de que, em suma, não eram imagens mas de fato simulacros perfeitos, para sempre radiantes no seu fascínio próprio. Ora, é preciso conjurar a todo o custo esta morte do referencial divino. 108
A dizer: está em jogo não só a presença, quando se fala da produção
tecnológica de uma onipresença mas, talvez até mais crucialmente, aquilo que se
presentifica, ou seja, o próprio sujeito na medida em que se relaciona com seu avatar.
Baudrillard continua:
Assim a questão terá sempre sido o poder assassino das imagens, assassinas do real [...]. Toda a fé e a boa fé ocidental se empenharam nesta aposta da representação: que um signo possa remeter para a profundidade do sentido, que um signo possa trocar-se por sentido e que alguma coisa sirva de caução a esta troca – Deus, certamente. Mas e se o próprio Deus pode ser simulado, isto é, reduzir-se aos signos que o provam? Então todo o sistema perde a força da gravidade, ele próprio não é mais que um gigantesco simulacro – não irreal, mas simulacro, isto é, nunca mais passível de ser trocado por real, mas trocando-se em si mesmo, num circuito ininterrupto cuja referência e circunferência se encontram em lado nenhum. 109
Não é sua intenção, entendemos, e muito menos a nossa, anunciar o fim, ou
a morte, do sujeito, da história, etc. Se trata simplesmente de admitir o fim de um
período onde o sujeito era estruturado nas bases da diferença e da oposição, e onde é
constitutivo do sujeito - e do sentido – a diferenciação entre um âmbito e outro. Nos
apoiamos em Orlandi quando diz que nesse contexto “as centralidades se reforçam, as
tecnologias progridem, mas não abolem o tempo e o espaço concreto, político e social,
e ideologicamente construído”110. O que defendemos não é que o tempo e o espaço
social estão no processo de desintegração, mas que este tempo/espaço com o qual
estamos familiarizados não é mais, há algum tempo, o único tempo/espaço disponível
no qual sujeitos se constituem e são interpelados, e nos quais operacionalizamos todos
os aspectos da realidade social comum. Novamente tomando como nossas as palavras
108 Ibidem, p, 9-12.
109 Ibidem, p, 13.
110 ORLANDI, E. P. (2011). Diluição e Indistinção de Sentidos: uma política da palavra e suas consequências,
sujeito/história e indivíduo/sociedade. In: INDURSKY, F.; MITTMANN, S.; FERREIRA, M. C. L.; (orgs.) Memória
e História na/da Análise do Discurso. Campinas, SP: Mercado de Letras, p. 39.
90
as de Orlandi, nesse novo tempo/espaço que as clivagens subterrâneas disponibilizam,
o sujeito também se historiciza.
91
CONCLUSÃO: SOBRE O FIM DA AUSÊNCIA, DA LATÊNCIA, DO ENCONTRO.
Eu não sou nada além da rede vazia adiante de olhos humanos, mortos naquelas escuridões, de dedos acostumados às triangulares medidas do tímido hemisfério de uma laranja. Eu andei como você: buscando a estrela inalcançável; e na minha rede, no meio da noite, acordei nu. A única coisa pega, um peixe; preso dentro do vento. - Pablo Neruda, Enigmas
92
O que Foucault inúmeras vezes defendeu pela via do político, e que antes de
qualquer outra coisa aqui tentamos desenvolver pela via do ideológico, é que a
disposição das coisas, a circulação dos sentidos, o arquivamento dos saberes, até
mesmo talvez o controle sobre os corpos mas com certeza a interpelação dos sujeitos é
constituída também através de um punhado de dispositivos técnicos, de circulação, que
tentando seguir Pêcheux, viemos a chamar de clivagens subterrâneas. Em Vigiar e
Punir, Foucault diz: “Que [o fato de que] as punições em geral se originem de uma
tecnologia política do corpo, talvez me tenha ensinado mais pelo presente do que pela
história”111. Nos valemos de suas palavras para falar das redes, na medida em que nos
lembram que a tecnologia e o trabalho técnico são sempre também um trabalho político
e, completamos aqui, então necessariamente ideológico. Também nos encontramos
num período fértil para esse tipo de investigação: o online está aí para provocar
justamente essa questão dentro dos âmbitos acadêmicos da “comunicação”, sobre o
ideológico na base do técnico que, de uma forma ou de outra, vem à tona em uma
imensidade de trabalhos acadêmicos.
Durante a pesquisa que aqui encerramos, a forma-sujeito histórica do
capitalismo parece estar impregnada nos dispositivos que analisamos, e esse fato nos
aponta para a possibilidade de que, pelo menos nesse sentido, ela foi feliz. Como
defendemos durante o percurso desse trabalho, a AD não é somente uma disciplina de
estudo das textualidades. Esse nunca foi seu eixo teleológico, mas a consequência
inevitável de suas premissas epistêmicas, da formação acadêmica de seus fundadores,
do contexto histórico/teórico no qual se fundou. Como inúmeros analistas
demonstraram e demonstram, se buscamos o discurso no design de um carro, na
arquitetura urbana, em itens de moda e assim por diante, o procedimento se mantém
inalterado: por vez ou outra, um dispositivo teórico é repensado, extrapolado, adaptado,
como se faz a cada encontro entre objeto, pesquisador, e teoria. No nosso caso, foi
necessário direcionarmos nosso olhar não aos dizeres na rede, mas à materialidade
estrutural que os possibilita. Isso exigiu certas extrapolações e adaptações, mas
111 FOUCAULT, M. (1987). Vigiar e Punir: nascimento da prisão; tradução Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, p.
14.
93
somente daquilo que há muito, já foi previsto e proposto por Pêcheux, por Gadet, por
Orlandi, e subsequentemente trabalhado por mais tantos analistas. No Arquivo
encontramos uma noção mais ambiciosa do que nos caberia propor, mas necessária e,
acreditamos, perfeitamente alinhada à estrutura epistêmica da Análise do Discurso.
Se admitimos princípios ideológicos para a operação do sentido, se
admitimos, por exemplo as formações discursivas, se admitimos a forma-sujeito, se
admitimos o leitor, paráfrase e polissemia, ou seja: todos aspectos do processo
discursivo de constituição e formulação do sentido, então pensamos aqui o Arquivo
como nada mais do que a mesma premissa no âmbito da circulação. Se trata, em sua
forma mais reduzida, de uma inversão: ao invés de entendermos o arquivo como o
resultado de uma seleção, entendemos a seleção como consequência de um Arquivo.
Ora, uma premissa natural já que a organização e a circulação dos dizeres não é
acidental, e nem nunca totalmente, em todos os seus aspectos, institucional. Como no
começo citamos: o programador deixa uma parte de si no código. Essa organização
que, de partida, parece espontânea, é mais uma forma de operação do ideológico, da
forma-histórica de uma época. Se, como Pêcheux já deixa implícito através do exemplo
dos copistas, essa relação já desde sempre existiu, ela se torna ainda mais
interessante e frutífera para análise dentro do contexto do online. O online, pois, que se
propôs no imaginário da virada do século como uma libertação final, uma
democratização absoluta e aniquiladora dos dizeres, acaba por ser um contexto
intensamente mais organizado, regimentado, homogeneizado e esterilizado do que se
imaginava possível. Nele, temos a realização do que Baudrillard chama de hiper-real:
aquilo que operacionaliza melhor ainda do que nossos antigos simulacros, os modelos
que os constituem. Esse nível de controle, que não é capilar como em Foucault, mas
ontológico, é uma possibilidade que ainda pede mais debate.
Foucault, por exemplo, invoca o panóptico de Bentham como projeto do
sistema moderno das sociedades disciplinares:
O Panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição. O princípio é conhecido: na periferia uma constrição em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma travessando toda a
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espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outa, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torra central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torra, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível. O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitam ver sem parar e reconhecer imediatamente. [...] A visibilidade é uma armadilha. 112
O que temos, nas redes de relacionamento sugere, entretanto, justamente o
novo período na qual elas se instauram, já que, estruturalmente, as redes são a própria
inversão da lógica panóptica. Ou seja: a lógica na qual a força da vigilância se
instaurava pelo trabalho secreto da vigília. O que efetivamente temos, nas redes, é a
abertura dos canais visuais e a inversão dos papeis de controle. Podemos, pois, muito
bem considerar o login e o acesso a uma rede de relacionamento como essa torre onde
se senta a vigília. Cercada pelo todo, efeito de “acesso ilimitado” produzidos pelos
filtros; a vigília, ao contrário da cela, é o centro do sistema de disciplinarização.
Poderíamos dizer dentro dessa metáfora, e seguindo essa inversão, que a torre de
vigília é justamente o que o filtro constrói, o que a linha possibilita e onde o avatar se
instaura. Se trata da pequena cadeira no centro do panóptico, onde a forma de controle
é justamente a de ser eternamente a vigília, preso em um espaço do tamanho do
próprio corpo, cercado de espaço infinito. Vigília de “tudo” (que é efeito, já que é
inacessível). Ali nos pegamos operacionalizando, em ambos os polos de vigília e
vigiado, o sistema de consumo, através de procedimentos relacionados com isso que
Foucault chama de visibilidade, que aqui é, também, uma armadilha, alinhada com a
armadilha do acesso.
Pierre Musso113 nos diz que “hoje o conceito [de rede] se tornou uma espécie
de chave-mestra ideológica”. E logo em seguida que “A rede permite opor uma forma
geral à pirâmide ou à árvore, lineares e hierarquizadas, mas impede de cair no caos e
112 FOUCAULT, M. (1987). Vigiar e Punir: nascimento da prisão; tradução Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, p,
165.
113 MUSSO, P. (2004). A Filosofia da Rede. In: PARENTE, A. (org.) Tramas da Rede: novas dimensões filosóficas,
estéticas, e políticas da comunicação. Porto Alegre: Sulina, p. 32.
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na desordem”. Entendemos, ao tentar investigar mais precisamente como se opera
dentro das redes, que algo é pego. E assim o sendo, nos precavemos logo de antemão,
contra o suposto segundo iluminismo do ocidente, trazido por essas teias metafísicas
da rede. Se devemos pensar nas redes de relacionamento como redes, então
lembremos que, em primeiro lugar, a rede é aquilo aonde algo é pego. Uma tecnologia
predatória, poderíamos dizer, que serve na caça, e na pesca. Especificamente: tem a
função de restringir, não prolongar, a possibilidade de circulação. Essa ideia, claro, nos
remete ao filtro bolha de Pariser, através do qual acabamos por entender que a rede,
em seu alinhamento com a forma-histórica do capitalismo contemporâneo, acaba por
ser repleta de dispositivos cuja função é justamente a redução do espaço de circulação.
Não como lógica de punição. Como processo de otimização dos sistemas de produção
e reprodução das lógicas produtivas.
O projeto técnico da rede, na medida em que é construído também no nível
do ideológico, não nasce da lógica da prótese, da circulação, da libertação, mas é
concebida sob a necessidade material e econômica urgente da manutenção de algo, a
saber, da reprodução das formas produtivas de relação dos sujeitos, e circulação dos
sentidos. Virgínia Kastrup faz uma relação inevitável entre a rede e o rizoma de
Deleuze e Guatarri:
Como sistema acentrado, o rizoma faz conexões sem obedecer a uma ordem hierárquica ou de filiação. Conecta-se por contato, ou antes, por contágio mútuo ou aliança, crescendo por todos os lados e em todas as direções. As conexões ou agenciamentos provocam modificações nas linhas conectadas, imprimindo-lhes novas direções, condicionando, sem determinar, conexões futuras. 114
O funcionamento extremamente orgânico do rizoma como ela o descreve é
parte de um paradigma contemporâneo com o qual os técnicos de modelação das
arquiteturas das redes estão certamente familiarizados. Mas que é, entretanto, muito
mais mito, como tentamos demonstrar, do que técnica, quando o que observamos das
redes são lógicas extremamente bem regimentadas de controle do espaço-tempo,
114 KASTRUP, V. (2004) A Rede: uma figura empírica da ontologia do presente. In: PARENTE, A. (Org.). Tramas
da Rede: novas dimensões filosóficas, estéticas e políticas da comunicação. Porto Alegre: Sulina, p. 81.
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como relacionadas inclusive com todos os sistemas de comércio e consumo que ali
circulam, e que por ali são circulados. As redes que analisamos podem muito bem
terem sido construídas sob os ideais da libertação, mas a arquitetura nas quais se
estruturam é, inevitavelmente, a arquitetura da pesca.
Ao analisarmos as condições de tempo e espaço nas quais constituímos os
dizeres online, acabamos por encontrar que esse próprio termo, de linha, é uma
metáfora muito apropriada para descrever o funcionamento das arquiteturas que
nesses âmbitos, condicionam o sentido. A linha, pois, não descreve um espaço
dimensional, mas justamente uma ausência de dimensão. É uma noção geométrica,
definida no eixo nocional, muito mais do que físico, já que a linha não é geográfica em
natureza, mas matemática. Enquanto o elemento constitutivo dessa rede rizomática da
qual aqui nos distanciamos é o nó, ou o lugar de encontro e dispersão, a linha por outro
lado é definida por uma eficiência absoluta, uma homogeneização total, e uma absoluta
falta de dimensão: a característica central da linha é sua irredutibilidade.
Ora, o mito, afinal, do que é hoje nossa rede global de comunicação digital é
justamente o da conexão imediata: do ligar-se, do acesso, do imediato. É uma noção
que se apoia muito mais na capacidade tecnológica de desenvolvimento do imediato,
da urgência, da totalização do presente, da aniquilação da ausência, do que no
funcionamento do organismo. A linha não anda para todos os lados igualmente, ela é
eficiente em seu progresso: é a linha que é (tão celebremente) o caminho mais curto
entre dois pontos. É dessa forma que a pensamos: como dispositivo de gerenciamento
burocrático e administrativo do tempo e do espaço. Sua lógica de construção? O fim da
latência, da demora, do trajeto, da lentidão. Ora, o tempo de trajeto de uma mensagem
pela linha é desprezível. A força da distância, desprezível (falamos aqui de efeitos). De
qualquer forma, assim é construída a retórica e a lógica de “ganho tecnológico” que a
linha disponibiliza, por via da eficiência através da qual ela constrói o caminho mais
curto entre dois pontos. O que significa exatamente dizer “mais curto”, entretanto, ainda
fica em jogo, tanto quanto as implicações dessa “eficiência” e a noção de comunicação
como relação entre dois pontos distantes. É a construção, ou seja, de todo um novo
espaço-tempo como forma de gerenciamento do espaço-tempo. Um gerenciamento que
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segue as lógicas da eficiência, propriamente contemporânea, e transparente ainda, em
seus efeitos. É a partir dessa lógica de construção (ou, desse movimento de leitura) que
entendemos a arquitetura técnica sobre a qual as redes de relacionamento se tornam
possíveis.
Há, entretanto, algo que, por motivos claros, passa silenciado tanto pelo
discurso revolucionário sobre as possibilidades das redes, quanto pelo discurso
capitalista de eficiência e rapidez de comunicação. É esse fato histórico e social que
Foucault – entre tantos outros autores – nos mostra, a saber, de que não são só as
nossas ferramentas de comunicação que passam por essa modelação, mas que da
mesma forma também nos modelam. Se trata de uma relação dialética da qual não se
escapa, como as próprias redes de relacionamento estão aí para demonstrar. Algo é,
inevitavelmente, pego.
Se pudermos tomar a soma dos objetos de investigação desse trabalho,
veríamos em primeiro lugar, sistemas técnicos de produção de filtros, através dos quais
se estabelece uma relação de possibilidade/impossibilidade com a questão do acesso,
onde o sistema determina, em menor ou maior escala, aquilo do todo ao qual se tem
acesso e pelo qual se pode circular, e onde sabemos que essa determinação é
profundamente informada pela modelação, pela abstração técnica, das relações de
consumo.
Em segundo lugar, temos um avatar, ou seja: uma coleção de clivagens cuja
função é o controle mais microscópico possível da possibilidade de circulação na
medida em que condiciona como se pode/deve existir nas redes. O trabalho técnico
dessas clivagens é justamente de atribuir valor àquilo que a rede é capaz de
operacionalizar por vias dos filtros, e assim, condicionar a própria constituição dos
sujeitos na medida em que se produzem dentro desses contextos, sempre, a partir da
lógica de quem será visto, o que será interessante, como será consumido, etc.
Finalmente, temos uma série de clivagens cuja função é informar e
condicionar a própria relação simbólica que temos com o tempo e o espaço. E essas
clivagens são amplamente estruturadas para esvaziar o tempo da sua demora, do seu
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passado longínquo, do seu futuro distante. Claro, já que estes não são os tempos
produtivos.
Nunca entendemos, nem devemos entender, esses sistemas de
funcionamentos como sendo intencionalmente produzidos. É justamente isso que acusa
a força inabalável de sua presença: o fato de que são amplamente construídos, sem
coordenação prévia a não ser a própria realidade ideológica que condiciona todo o
campo simbólico. São dispositivos tecnológicos construídos sob o manto da
neutralidade. E é, entretanto, através deles que constituímos uma vasta porção das
nossas relações sociais.
Assim o sujeito se constitui na dobra do espaço. É por essa razão que não há separação estanque entre as experiências do sujeito e suas relações no ciberespaço e as experiências desse sujeito no espaço físico. [...] O que ocorre são distintas experimentações do espaço, do corpo, da identidade.115
Trazemos Dias aqui pra ressaltar que mais importante ainda é justamente o
fim da distinção que tentamos aqui descrever. Se trata de um contexto social onde a
distinção entre online e off-line não opera mais, e portanto, de um contexto social onde
os valores e possibilidades desse nosso tempo/espaço historicamente construído se
misturam irremediavelmente com outro, do qual ainda sabemos tão pouco, que
escassamente conseguimos definir, e no qual ainda somos – tão gratuitamente –
pegos. Peixes; “presos dentro do vento”.
115 DIAS, C. P. (2012). Sujeito, Sociedade e Tecnologia: a discursividade da rede (de sentidos). São Paulo: Hucitec,
p. 125.
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