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vol. 11(2):385-409, maio-ago. 2004 385 NOS CONFINS DA CIVILIZAÇÃO FONTES Francisco Foot Hardman Professor do Departamento de Teoria Literária, Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp Caixa Postal 6045 13084-971, Campinas — SP [email protected] Lorelai Kury Pesquisadora e professora da Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz. Professora do Departamento de História da UERJ [email protected] Nos confins da civilização: Algumas histórias brasileiras de Hercule Florence At the edges of civilization: Some Brazilian stories, by Hercule Florence HARDMAN, F. F. e KURY, L.: ‘Nos confins da civilização: Algumas histórias brasileiras de Hercule Florence’. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, vol. 11(2): 385-409, maio-ago. 2004. O artigo apresenta o texto Quelques anecdotes brésiliennes, redigido pelo viajante Hercule Florence entre 1829 e 1830, anexo ao relatório Continuation de l’esquisse du voyage de M. de Langsdorff... O documento foi por nós transcrito e traduzido sob o título Algumas histórias brasileiras. O manuscrito, publicado pela primeira vez aqui, é um registro de sete narrativas ouvidas provavelmente ao longo da expedição Langsdorff. Foram recolhidas, ao que consta, na tradição oral e anotadas ali como materiais específicos e passíveis de futuros estudos e pesquisas. Florence esboça a crítica da precariedade da organização da sociedade nacional nos confins da civilização, ao inaugurar-se a autonomia político-administrativa do Brasil. PALAVRAS-CHAVE: viajantes; expedição Langsdorff; Hercule Florence; costumes brasileiros; sertão. HARDMAN, F. F. and KURY, L.: ‘At the edges of civilization: Some Brazilian stories, by Hercule Florence’. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, vol. 11(2): 385-409, May-Aug. 2004. The article presents the text ‘Quelques anecdotes brésiliennes’, written between 1829 and 1830 by the voyager Hercule Florence and attached to the account entitled ‘Continuation de l’esquisse du voyage de M. de Langsdorff...,’. We have transcribed and translated the text into Portuguese under the title Algumas histórias brasileiras. Published here for the first time, this manuscript offers an initial synthetic record of seven narratives most likely heard during the Langsdorff expedition. They apparently were gathered in the oral tradition. Annotated here, they may now be used in future studies and research. Florence drafts a criticism of the precarious organization of national society at the edges of civilization, at a moment when Brazil was inaugurating its political and administrative autonomy. KEYWORDS: travelers, Langsdorff expedition, Hercule Florence, Brazilian customs, sertão.

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vol. 11(2):385-409, maio-ago. 2004 385

NOS CONFINS DA CIVILIZAÇÃO

F O N T E S

Francisco Foot Hardman

Professor do Departamento deTeoria Literária, Instituto deEstudos da Linguagem, UnicampCaixa Postal 604513084-971, Campinas — [email protected]

Lorelai Kury

Pesquisadora e professora daCasa de Oswaldo Cruz, Fiocruz.Professora do Departamento deHistória da [email protected]

Nos confins da civilização: Algumas históriasbrasileiras de Hercule Florence

At the edges of civilization: Some Brazilian stories,by Hercule Florence

HARDMAN, F. F. e KURY, L.: ‘Nos confins da civilização: Algumashistórias brasileiras de Hercule Florence’.História, Ciências, Saúde — Manguinhos,vol. 11(2): 385-409, maio-ago. 2004.

O artigo apresenta o texto Quelques anecdotes brésiliennes,redigido pelo viajante Hercule Florence entre 1829 e 1830, anexoao relatório Continuation de l’esquisse du voyage de M. deLangsdorff... O documento foi por nós transcrito e traduzido sobo título Algumas histórias brasileiras. O manuscrito, publicadopela primeira vez aqui, é um registro de sete narrativas ouvidasprovavelmente ao longo da expedição Langsdorff. Foramrecolhidas, ao que consta, na tradição oral e anotadas ali comomateriais específicos e passíveis de futuros estudos e pesquisas.Florence esboça a crítica da precariedade da organização dasociedade nacional nos confins da civilização, ao inaugurar-se aautonomiapolítico-administrativa do Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: viajantes; expedição Langsdorff; HerculeFlorence; costumes brasileiros; sertão.

HARDMAN, F. F. and KURY, L.: ‘At the edges of civilization: SomeBrazilian stories, by Hercule Florence’.História, Ciências, Saúde — Manguinhos,vol. 11(2): 385-409, May-Aug. 2004.

The article presents the text ‘Quelques anecdotes brésiliennes’,written between 1829 and 1830 by the voyager Hercule Florenceand attached to the account entitled ‘Continuation de l’esquissedu voyage de M. de Langsdorff...,’. We have transcribed andtranslated the text into Portuguese under the title Algumas históriasbrasileiras. Published here for the first time, this manuscript offersan initial synthetic record of seven narratives most likely heardduring the Langsdorff expedition. They apparently were gathered inthe oral tradition. Annotated here, they may now be used in futurestudies and research. Florence drafts a criticism of the precariousorganization of national society at the edges of civilization, at amoment when Brazil was inaugurating its political andadministrative autonomy.

KEYWORDS: travelers, Langsdorff expedition, Hercule Florence,Brazilian customs, sertão.

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386 História, Ciências, Saúde — Manguinhos, Rio de Janeiro

FRANCISCO FOOT HARDMAN E LORELAI KURY

“...le coeur est partial, l’habitude puissante,les faits insidieux, et l’illusion facile...”(Volney, Voyage en Égypte et en Syrie, 1787)

E stas Algumas histórias brasileiras de Hercule Florence eraminéditas até hoje. A única referência a elas veio por parte do

minucioso historiador russo Boris Komissarov, especialista mundialno que se refere à expedição Langsdorff.1 O manuscrito em que nosbaseamos para esta transcrição e tradução encontra-se em Moscou.No início dos anos 1990, com o projeto Langsdorff de Volta, cópiasmicrofilmadas dos documentos que se encontram na Rússia foramdepositadas no Departamento de Arquivo e Documentação da Casade Oswaldo Cruz e no Centro de Memória da Unicamp.

Percorrendo as microformas, em meio a uma profusão de cartas,memórias científicas e relatórios escritos em russo, alemão, francêse latim destacou-se o Continuation de l’esquisse du voyage de M. deLangsdorff..., redigido por Hercule Florence, em 1829–30, no Rio deJaneiro e em Campinas. Como anexos a este relatório, o viajanteacrescenta uma memória sobre as vozes dos animais e Quelquesanecdotes brésiliennes, que transcrevemos, traduzimos e publicamosaqui, sob o título Algumas histórias brasileiras. Os textos foramenviados a São Petersburgo como parte do material produzido pelaexpedição. A primeira parte do relatório, que se perdeu, conteria anarrativa da viagem até Cuiabá. A segunda parte — depositada emMoscou e microfilmada — começa exatamente com a descriçãodaquela cidade e termina com a partida dos membros da expediçãode Belém, em direção ao Rio de Janeiro.

Florence, que nascera em Nice, em 1804, acabaria falecendo emCampinas em 1879, onde passara a residir desde 1830. O jovemchegara ao Rio de Janeiro em 1824 e encontrara trabalho,inicialmente, no estabelecimento de um comerciante francês. Emseguida trabalhou na livraria e tipografia de Pierre Plancher.Respondendo a um anúncio de jornal, Florence engajou-se, em1825, como segundo desenhista e cartógrafo na expedição fluvialcomandada pelo barão de Langsdorff, médico, naturalista e viajantenascido no Hessen renano e que atuava no Brasil, desde 1813,como cônsul-geral da Rússia.

A expedição Langsdorff, patrocinada pelo czar russo em claratentativa de demonstrar que seu império nada devia às demaispotências européias, escolheu, para conhecer o interior do país,realizar uma monção partindo de Porto Feliz, pelo rio Tietê, e subindoem direção ao rio Amazonas, atravessando os sistemas fluviais quepermitiam a comunicação entre as províncias de São Paulo, MatoGrosso e Grão-Pará. Chegaram a Belém em dezembro de 1828,

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NOS CONFINS DA CIVILIZAÇÃO

após uma difícil viagem, marcada pela morte trágica de AdrienTaunay, que se afogou no rio Guaporé2 e pelo adoecimento docomandante da expedição. Langsdorff perdera a razão, possivelmentepor causa das febres de que padeceu. Ele encarregou Florence decontinuar a redação do diário da viagem, já que não se encontravaem condições nem mesmo de saber em que dia estavam. Dosmembros da expedição, Florence foi o único que publicou suasnarrativas. A Viagem fluvial do rio Tietê ao Amazonas, editada pelaprimeira vez em 1875–77, constitui até hoje o principal relato doimpressionante périplo fluvial.3

Algumas histórias brasileiras não faz parte das edições da Viagemfluvial. Posto como primeiro anexo ao final de seu relatório deviagem, este manuscrito representa sem dúvida um registro inicial,sintético, à maneira de esquetes, quadros ou minicontos, de setenarrativas ouvidas muito provavelmente ao longo da expediçãoLangsdorff. Foram recolhidas, ao que consta, na tradição oral quepreserva e dissemina certa memória popular, anotadas ali comomateriais específicos e passíveis de futuros estudos e pesquisas.Diferentemente do núcleo do relatório, que descreve, em geral, aexperiência fruto do testemunho direto e da observação in situ, asHistórias são reunidas de forma mediada pelo discurso de terceiros;se não dependem da leitura de documentos ou textos, também nãopodem ser ‘controladas’ pela verificação imediata dos sentidos. Asocorrências vividas durante a monção podem ser reportadas notempo presente, no registro do diário ou do desenho; os casoscontados são apenas ouvidos como fragmentos de memórias comuns,em geral em conversas casuais e descontínuas, e sempre referidas atempos pretéritos. Nenhuma das ‘histórias’ se passa em lugaresefetivamente percorridos pela expedição. O registro, aqui, ocupafunção clara de armazenamento de materiais para desdobramentosa posteriori.

No caso do anexo que se lhe segue — uma ‘Memória sobre apossibilidade de descrever os sons e as articulações da voz dosanimais’ —, embora resultado direto dos sentidos e da experiênciado viajante, por não terem sido as vozes animais registradas durantea expedição ficaram também, como tantas vezes depois enfatizariaFlorence, na dependência da memória. Tecnicamente, pois, decidiuo viajante separar a descrição-narração da viagem científica, semprevazada na experiência direta do deslocar-se, do descobrir e doconhecer in loco novas espécies animais, vegetais e novosagrupamentos de populações nativas ou sertanejas, das experiênciasindiretas advindas da audição, mas sobretudo da memória dessaaudição. Se, para efeitos do relatório a ser encaminhado com urgênciapara a Academia de Ciências da Rússia, a solução dos anexos lhepareceu adequada, anos mais tarde, quando a memória ocupou acena principal de seu discurso, de certa forma os temas outrora

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anexados parecem ter assumido um lugar de destaque na suatrajetória singular de inventor, livre-pensador e principal narradorda expedição Langsdorff. Nas várias versões da Zoofonia, porexemplo, isso ficou mais do que evidente, pelo modo obsessivocom que retoma o tema (cf. Hardman, Kury, 2004).

Já em se tratando de Algumas histórias as pistas são mais escassas,mas indicam de todo modo, igualmente, a relevância e a preocupaçãoque o autor lhes dedicava. Fixando-se principalmente na história 1— a única que possui um título, ‘Ingratidão e barbárie de doisbrancos para com negros fugidos’, e que ocupa, sozinha, quase 40%do manuscrito, sendo os 60% restantes distribuídos entre as outrasseis histórias —, Hercule Florence retorna a ela, embora com alteraçãosignificativa de personagens e lugares, nas duas versões maisconhecidas da narrativa Viagem fluvial do rio Tietê ao Amazonas(1825-1829). Entre 1848–1859, época aproximada em que escreveuuma dessas variantes, encontramos a seguinte anotação (Florence,1977a, s. p.):

Ainda nesse dia (14-jul.-1826) passamos pelo rio, ilha e cachoeirado ‘Quilombo’, lugar em que uma porção de negros, em outros tempos,se refugiaram, motivo de tal denominação. A infeliz raça, sem embargode quererem os brasileiros fazer crer o contrário, parece não de todoresignada à escravidão, tanto que os pobres negros tiveram a coragemde embrenhar-se pelas matas, expostos às feras, como a onça, e àferocidade dos indígenas, que, não os considerando criaturas humanas,se mostram ainda mais impiedosos com eles do que com os brancos. Otriste contraste é que, se os negros amam a liberdade, seus civilizadossenhores os excedem, em muito, na avidez de seu suor e de tudo omais que deles podem arrancar. Pois bem: ao voltarem de Cuiabá,negociantes sempre em viagem descobriram o Quilombo, asilo dosnegros fugidos; era bem mais do que se necessitava para aguçar a cupidez,de modo que de Porto Feliz partiu expedição para pô-los a ferros e,assim, mais de cento e vinte desses desgraçados, presos pelo pescoço acorrentes fixadas na proa e na popa de várias pirogas, retornaram aolocal de seu anterior cativeiro..

Note-se que aqui são negociantes vindos de Cuiabá, e não soldadosportugueses extraviados de uma guarnição da fronteira, como nahistória 1, os responsáveis pela descoberta do quilombo e aconseqüente expedição punitiva. Ao mesmo tempo, a localizaçãodo reduto dos quilombolas, de acordo com a rota da monçãocomandada por Langsdorff e a data precisa a que se refere o relato,ficava no sistema fluvial do rio Tietê, próximo ao salto deAvanhandava, atingido quatro dias depois, e a meio caminho entrePorto Feliz, de onde partiram três semanas antes, e sua desembocadurano rio Paraná, onde chegariam em quatro semanas mais. Em Algumashistórias, o quilombo situa-se às margens do rio Paranapanema,outro importante tributário da bacia do Paraná, área não atravessada

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pela expedição imperial russa. No entanto, estruturalmente, osdois relatos são muito próximos (sintético no livro, extenso nomanuscrito). Mas em Viagem fluvial Florence marca com maiorênfase sua posição anti-escravista. Considerando o interregnoentre os dois textos (de duas a três décadas, aproximadamente),pode-se entender a crítica mais acerbada do autor no relato tardio,em conjuntura dominada pela questão da escravidão.

Na segunda variante de Viagem fluvial, traduzida com liberdadespelo visconde de Taunay e elaborada posteriormente, no intervaloaproximado entre 1860 e 1875, ressurge a referência, de novomodificada, ao mesmo relato. Vale a pena cotejá-la, porque o próprioautor esclarece a duplicidade entre essas histórias de quilombos:

No dia 14, passamos pela embocadura do rio ‘Quilombo’ e, pouco abaixo,pela ilha e cachoeira do mesmo nome. Ali se haviam antigamenterefugiado muitos negros, pois ‘quilombo’ é palavra que designa o asiloonde eles se reúnem nas matas. Foram descobertos por negociantesque voltavam de Cuiabá e que, apenas chegados a Porto Feliz, armaram,por espírito de ganância, uma expedição com a qual atacaram aquelesinfelizes, aprisionando mais de cento e vinte. Amontoados em canoas,voltaram os mal-aventurados aos pontos em que sofriam o cativeiro.‘Foi-nos o fato contado pelo guia. Em Porto Feliz haviam-me narradooutro tão semelhante que se pudera crer ser o mesmo; mas esse quilomboestava junto ao Paranapanema que corre para N.O. pelo país dos Xavantes.Contarei esta história no fim do diário. Talvez sejam com efeito doissucessos diferentes um do outro’ (Florence, 1977b, pp. 42-3; aspassimples nossas).

Este é um dos dois raros momentos de Viagem fluvial queregistram referência direta a Algumas histórias.4 A outra passagem,feita na mesma variante e reportada poucas páginas antes, é inseridaem um comentário sobre os vastos e inexplorados sertões que sesituavam entre Curitiba e as margens ocidentais dos leitos dos riosTietê e Paraná até as Sete Quedas, quando então Florence (ibidem,p. 38) anota:

[esta vasta zona de terreno é um] país que não foi explorado senão por uma expedição, a qual subiu algumas léguas peloParanapanema acima, na procura de negros quilombolas. ‘ Contarei nofim deste diário de que modo descobriu-se o valhacouto desses negrosna margem de rio tão distante e pouco conhecido. A narração éinteressante’ (aspas simples nossas).

Além das diferenças já notadas quanto a localização geográficae certos personagens, Florence explicita aqui uma outra, fundamentalpara a questão da singularidade e veracidade do discurso histórico:a das fontes orais desses dois relatos. A história do quilombo doTietê teve origem em narrativa de um dos guias da monção

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Langsdorff.5 Trata-se, com quase toda a certeza, do veteranoguia Antônio Lopes, que havia acompanhado, durante 40 anos,26 monções na rota Porto Feliz–Cuiabá. Langsdorff (ibidem, p.246) tece vários elogios a ele em seu diário, registrando, porexemplo:

Antônio Lopes, nosso guia, tem sua memória extraordinária; conhececada pedra da cachoeira, cada árvore frutífera às margens dorio, cada banhado ou riacho, cada relva, cada acontecimento, cadaquebra, naufrágio ou perda de embarcações ou homens, escravosou livres, no caminho de Porto Feliz até Cuiabá.

Já o relato da história 1 do manuscrito, como se depreende desua leitura, deve-se a dois depoentes, ambos habitantes de PortoFeliz, mas membros de grupos sociais e étnicos opostos: o cirurgião-mor e futuro sogro de Florence, Francisco Álvares Machado eVasconcellos6, e um velho negro e ex-morador do quilombo,testemunha ocular e vítima da expedição.

A questão das fontes orais é das mais interessantes em torno dodocumento aqui publicado e, por extensão, da própria memóriahistórica que se acumulou ao longo da expedição Langsdorff. Sabe-se que os viajantes sempre se valeram de diversos informanteslocais. Na ausência de critérios mais objetivos para a análise seletivae comparativa dos relatos ouvidos e anotados, pelas dificuldadesnaturais impostas ao deslocamento em áreas inóspitas e mesmopela escassez de fontes plurais, o expedicionário valia-se muitasvezes de testemunhos únicos, dependente da habilidade oratória denarradores especiais que passavam a deter, com exclusividade, odom da persuasão, de convencer seus ouvintes e obter sua confiança.De modo similar ao da literatura romântica de ficção, as narrativasde viagem estão repletas desses ‘contadores de casos’. Em seusrelatos misturam-se inevitavelmente eventos históricos, mitos, lendas,memórias de famílias ou de outros grupos sociais específicos, lapsose inventos próprios à arte de narrar. Isso só faz aumentar o valorhistoriográfico da literatura dos viajantes como repositório damemória popular e de antigas tradições orais.

É, pois, inescapável, que as anecdotes de Florence, assim comocasos incorporados às duas variantes de Viagem fluvial e muitosdos informes e das histórias registrados nos diários de Langsdorff,possuam essa natureza ambígua entre o histórico e o fictício. Nocaso deste último são bom exemplo as narrativas ouvidas sobreproezas formidáveis envolvendo onças e sucuris, na velha tradiçãodas histórias de caçadores, trazidas pelo guia Lopes ou por FranciscoÁlvares (cf. Langsdorff, op. cit., pp. 121-2, 148-9). Com relação aeste aspecto, a história 7 das anecdotes oferece-nos um exemplobem ilustrativo. Em um curto relato de cerca de 13 linhas, Florencejustapõe, na mesma figura de “um desses sertanistas”, a lendária

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NOS CONFINS DA CIVILIZAÇÃO

história do bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhangüera(Diabo Velho), que, tendo atingido os sertões goianos, em 1682,teria se valido do estratagema de pôr fogo à aguardente para alcançarascendência junto aos indígenas; de seu filho homônimo, quereproduz, a partir de 1722, o itinerário do pai (que acompanharaainda criança), chegando à fundação, em 1726, do arraial originárioda futura Vila Boa de Goiás, depois de ter localizado as primeirasjazidas de ouro na região, sempre com ajuda dos índios; e, finalmente,dos sertanistas Teodósio Nobre, Ângelo Preto e Antônio de PinhoAzevedo, entre outros, que, em 1736, tinham completado a aberturado caminho por terra, através de picada de cem léguas, entre osdois novos eldorados brasileiros: Vila Boa de Goiás e Cuiabá.7

Mas outro detalhe nas referências de Florence ao “quilomboesquecido” revela-se aqui da maior importância. O autor anuncia,nas duas passagens acima citadas, sua intenção de incorporar pelomenos a história 1, senão as demais narrativas do manuscrito Algumashistórias, ao fim daquela versão de Viagem fluvial, mantendo apropósito, inclusive, certo suspense na expectativa do leitor: “Contareiesta história no fim do diário. Talvez sejam com efeito dois sucessosdiferentes um do outro.” Ou antes: “Contarei no fim deste diário deque modo descobriu-se o valhacouto desses negros na margem de riotão distante e pouco conhecido. A narração é interessante.” O que,efetivamente, não ocorreu, podendo-se imaginar como possíveisrazões: o espaço limitado da revista do IHGB, onde pela primeiravez o visconde de Taunay publica Viagem fluvial (1875-76); e,principalmente, o tempo exíguo entre os envios da versão final porFlorence, a livre tradução do visconde e a impressão da revista(sabe-se, por exemplo, que a última parte, datada do segundo semestrede 1876, somente sairia depois de abril de 1877 — cf. Hardman,Kury, op. cit., cap. 1).

Interessante imaginar também que se Florence, falecido em1879, tivesse conseguido incorporar, ao final da Viagem fluvial,esta ou outras das narrativas de Algumas histórias, o destino desua recepção teria sido diverso. Para além do relato da expediçãoLangsdorff, o antigo anexo de seu relatório à Academia deCiências da Rússia de 1829–30 teria, ao adentrar a narrativaprincipal, oferecido nova perspectiva ao conjunto da obra, comocrítica de costumes e análise histórico-cultural da sociedadecolonial brasileira, centrada no tema da violência e da barbárienos interiores do país, nos sertões atravessados décadas antespela expedição Langsdorff, ali onde eram mais tênues os laçossocietários fundados na lei e no Estado. Em uma palavra, Florenceesboça em Algumas histórias, por trás, muita vez, da extremabrevidade do registro e da narrativa simples, quase minimalista,a crítica da precariedade da organização da sociedade nacionalnos confins da civilização, ao inaugurar-se a autonomia político-

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FRANCISCO FOOT HARDMAN E LORELAI KURY

administrativa do Brasil. O viajante deixa claro o cenário priorizadonessas anecdotes brésiliennes: não o litoral nem a cidade, mas azona rural, os roteiros das entradas e monções — o sertão. Temaque depois, já em começos do século XX, encontraria váriosintérpretes em nossa historiografia (cf., entre outros, Abreu, 1963).

Mas podemos especular igualmente em torno da hipótese deque Florence não retomou Algumas histórias ao final de suaViagem fluvial porque desejava publicá-las todas, e talvezconsiderasse necessário reescrevê-las, especialmente os seisesquetes sumários que constituem as histórias de número 2 a 7.Se isso acaba por nelas favorecer a reprodução de algunsestereótipos comuns à sociedade e à ideologia no Brasil da época— entre eles a visão dos índios entre ferozes e crédulos, omulato mau-caráter, o negro bom e fiel, o padre libertino, amulher traidora, o sertanista sagaz, o campônio desconfiado,figurações que pouco mais tarde alimentariam muitos dos tipospresentes em parte da literatura romântica de ficção entre nós —, é verdade que, por outro lado, o caráter breve de alguns relatosproduz um efeito de maior contundência na manifestação domotivo que perpassa todas essas Algumas histórias: a violênciadas relações sociais.

Em um caso extremo, aquele da narrativa mais concisa da série,a da história 3, toda ela escrita no tempo presente, quase sementrecho, em menos de dez linhas, em que dois caçadoressurpreendem, na mata, dois homens esfolando vivo um terceiro, eo drama se resolve com a morte de três personagens (a vítima, umdos torturadores e um caçador que tenta socorrer o agredido), nãoficamos sabendo das razões que levaram àquela “abominável torpeza”ou “épouvantable scélératesse”, mas parece que isso pouco importaafinal, pois é a condição monstruosa das relações humanas quedeve ser ressaltada. A ausência de nomes em todos os relatos tambémreforça esse efeito de gratuidade da violência e do engano recíprocoentre os habitantes e membros de segmentos sociais díspares. Sósabemos que a história se passou em São Paulo (quiséramos crer nointerior distante da província, mas nem isso o relato esclarece —poderia tratar-se de mata nas cercanias da capital).

Comparável pelo excesso de violência concentrada nas relaçõessociais e familiares, o diário de Langsdorff (op. cit., pp. 122-3) relataesta outra história, que teria sido contada por Francisco Álvares, nobarco do comandante, já nos primeiros dias da monção:

História do rapaz que vingou seu irmão e cometeu sete assassinatos:um jovem visitava uma jovem à noite; o irmão dela, sentindo-seofendido, arquitetou, junto com seis amigos, um plano para ovigiarem. Eles o encontraram conversando, à janela, com a jovem.Bateram nele, o esfolaram vivo e mandaram entregar o corpo àjovem e à mãe. Esta, revoltada com tanta crueldade, mandou chamar

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um de seus filhos e mandou-o vingar a morte do irmão. Deu-lhe algumacoisa e trancou a casa. Todos os assassinos, que o jovem conhecia,tinham fugido. Garcia partiu, viajou por quase todo o Brasil e, depois demuitos anos, após haver executado a sua missão, voltou e entregou àmãe as 14 orelhas dos assassinos de seu irmão.

Sugerindo que a brutalidade incorporada à formação socialbrasileira desde a colônia e alicerçada, entre outras coisas, noescravismo e no massacre de índios havia se disseminado nos maisdiversos meios, incluindo a repressão sexual, a opressão das mulherese o peso da igreja inquisitorial — “Que país! Que brutalidade! Quantofalta aqui ainda para serem chamados de civilizados!”, reclamaLangsdorff (ibidem, p. 278) a certa altura —, o chefe da monçãoreitera o registro de cenas de atrocidade familiar:

Hoje [05-mai.-1826], uma pessoa bastante confiável contou-nos umahistória escabrosa que aconteceu há alguns anos, em Itu. Numdomingo, um padre, caminhando depois da missa, viu sua sobrinhaobservando, curiosa e sem o conhecimento da mãe, através dajanela de grade, as pessoas que passavam. O tio foi ter com suairmã para repreendê-la por estar se descuidando da educação dafilha, que, segundo ele, observava furtivamente os transeuntes. Àtarde, a irmã mandou chamar seu irmão, que, a essa altura, já estavade novo em casa, e mostrou-lhe o cadáver da filha, que ela haviaestrangulado, garantindo-lhe que, a partir dali, ela não olharia maisas pessoas na rua (idem, ibidem, pp. 85-6).

Como em Florence, o caráter conciso da anotação aumenta oefeito do choque provocado pela irrupção de violência tãodescomunal quanto injusta. Voltando ao manuscrito das anecdotes,se muitas vezes o esquematismo do registro pôde favorecer o clichê,há outras características no texto — que jamais deveria ser lido forade sua contextualização, como material resultante do inventário danatureza e da sociedade brasileira produzido pela expediçãoLangsdorff — a sugerir o acurado espírito crítico de Florence, seucuidado com o uso preciso do léxico local e sua repulsa à violênciae à desigualdade social. Ao esboçar o desenho de ‘quadros’ dessapaisagem humana dominada por histórias de barbárie, o autortangencia a questão da historicidade dos eventos narrados (a um sótempo natural e social). O quilombo é visto positivamente, comolugar de afirmação de uma comunidade liberta da escravidão quecompartilha os frutos do trabalho e adota religião sem clérigos. Osalgozes que organizam a expedição punitiva são levados a ela porcupidez e desejo de lucro. A idéia de uma ‘nação brasileira’ oscilana instabilidade da violência gratuita (cujo maior signo é oescravismo) e do território imenso ainda não constituído em Estadonacional, mas habitado por populações quase incomunicáveis:índios8, sertanistas, camponeses, quilombolas, soldados dispersos

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FRANCISCO FOOT HARDMAN E LORELAI KURY

etc.; estes últimos, curiosamente chamados de “portugueses” noinício da história 1 e, depois, respectivamente, de “estrangeiros” emrelação aos negros do quilombo e de “brasileiros” em relação aodesejo de “rever o país natal”, identificado não com Portugal massimplesmente com o regresso a Porto Feliz. Isso sugere fronteirasfugazes, entre pequenas localidades relativamente isoladas e imensossertões inóspitos, e identidades sociais, raciais e lingüísticasigualmente instáveis, a exemplo do que sucede na história 7, quandoa “língua geral”, ou “língua brasileira”, de base tupi, é o idiomacomum e viável para o diálogo entre o sertanista e os índios que lhebarram o caminho.

Florence preferiu “pirogas” a canoas para falar das embarcaçõesmais rudimentares dos negros fugidos, próximas material esemanticamente dos barcos indígenas tradicionais. Referiu-seacertadamente a “sertanistas” como sinônimo dos bandeirantes quedesbravaram os caminhos por terra às minas do Centro-Oeste. Suadicotomia civilização versus barbárie é certamente tributária dosfilósofos e ideólogos das Luzes. O desenraizamento de experiênciassociais limítrofes ainda parece ser a tônica nesse Brasil, onde “terranatal” pode significar não o império recém-instituído, mas locaisque vão do quilombo comunitário a diferentes porções do território,de povoados a sertões, de caminhos a vilas, de rios a minas, dematas a chapadas. E a paisagem, nesses confins da civilização, ébastante inóspita e marcada por violência, não fundadora masdisseminada. Como o quilombo que se embrenha na floresta, fugindode seus perseguidores, é como se o quadro todo da sociedadenacional nascente apontasse para aquela imagem caótica entre“cinzas e solidão”.

Assim, reinseridas na memória da expedição Langsdorff e naexperiência dos sertões, as apenas esboçadas Algumas histórias deFlorence são o contraponto do relato principal da viagem fluvial,diário pautado pelo percurso realizado pelos viajantes. As cenasnarradas nas anecdotes pretendiam dar início a uma espécie deinventário dos costumes em uso nos sertões brasileiros. Por tradição,a arte de viajar filosoficamente incluía a apresentação dascaracterísticas físicas dos lugares, a coleta e a classificação dos objetosde história natural e a descrição dos costumes das populaçõesencontradas. O relato de viagem manteve, ao longo do século XIX,a pretensão de tratar globalmente das sociedades e dos espaçosvisitados, entremeando na narrativa organizada em função doencadeamento cronológico e do deslocamento espacial, seguindo odia-a-dia da expedição, pequenas memórias monográficas sobrealgum tema julgado digno de atenção pormenorizada.

A viagem ao Oriente do grande mestre do moderno método deviajar de forma útil, o ideólogo Volney, é considerada como modelodurante o alto Iluminismo e boa parte do século XIX. Pregando ao

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mesmo tempo um distanciamento do objeto que favoreça aobjetividade, Volney aconselha também a imersão no ambienteestudado. Diz o ideólogo (Volney, 1959, p. 399):

De todos os objetos de observação que pode apresentar um país,o mais importante, sem contestação, é a moral dos homens que ohabitam; mas é preciso confessar também que ele é o mais difícil:pois não se trata de um estéril exame dos fatos; o objetivo éapreender suas relações e suas causas, descobrir suas forçasmotrizes aparentes ou secretas, distantes ou próximas, que noshomens produzem esses hábitos de ações que chamamos decostumes, e essa disposição constante do espírito a qual nomeamoscaráter ...

Florence não tinha formação acadêmica em nenhum ramo dasartes ou das ciências. Suas aptidões foram desenvolvidas de maneiraautônoma. Apesar disso, ele parecia estar familiarizado com osprocedimentos gerais da arte de viajar. O corpus composto pelorelatório da viagem, a memória sobre as vozes dos animais e Algumashistórias formam um conjunto coerente, no sentido de traçar paisagensdas regiões visitadas que não se limitam ao mundo natural comoobjeto, nem ao olhar como sentido. Paisagens naturais, sonoras ehumanas — eis o traçado de Florence. Mais ainda: ele pretendia,como indicavam os viajantes-filósofos, estabelecer conexões entreos diversos fenômenos. Esta tentativa de síntese fica perceptível norelatório e nas demais versões da viagem, em que por diversasvezes o viajante buscou esboçar um quadro geral do que via. Umbom exemplo disso é a passagem do Continuation de l’esquisse...,sobre a cidade de Cuiabá, onde descreve as linhas gerais do queseria o caráter predominante da população da região, em oposiçãoàs disposições dos habitantes de cidades litorâneas. Segundo oviajante, em Cuiabá,

É-se muito apaixonado pela vingança; não por aquela que se dáem face do inimigo. Se eles atacam, é traiçoeiramente. Conhecidentre os jovens que freqüentei e que tinham boas qualidades,que seu orgulho era determinar-se a matar ou intimidar seusinimigos de qualquer maneira. Porém, devo dizer a favor dajuventude brasileira que aqueles que conheci em Cuiabá e queeram do Rio de Janeiro e outros lugares marítimos não pensavamassim (Florence, 1829-1830a, s. p.).

Neste trecho, Florence delineia uma espécie de tipologia doscaracteres brasileiros do sertão. Anos depois, ao reescrever suasaventuras na expedição Langsdorff, o viajante desenvolve com maisvagar os múltiplos aspectos que envolvem a descrição dos costumesdo interior. Do mesmo modo, nenhuma das sete anecdotes se passa

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no litoral. Em versão da viagem redigida entre 1848 e 1859,novamente sobre Cuiabá, insere o excurso ‘Descrição de Cuiabá.Costumes locais’, em que procura elencar um conjunto de fatoresque concorrem para distinguir a fisionomia da região. Ele introduzo tema de forma clássica: uma descrição física da cidade. Em seguidalembra-se de quando ainda estava em Mônaco, esperando algumnavio que o levasse para a zona tórrida. No interior do Brasil mudarainteiramente de situação: “Do rochedo de Mônaco, trasladei-mepara Cuiabá, cidade cercada de ilimitados desertos, que a separamdo mundo quase que do próprio Brasil, cidade situada em plenaAmérica do Sul, tão distante do Atlântico e do mar austral, quantodo Panamá e do cabo Horn” (Florence, 1977a, s. p.).

Esclarecido o contexto geográfico, o viajante introduz mais umelemento: a composição heterogênea da população, formadainicialmente pelos paulistas, “na qual reinam as leis, os costumes,as superstições, os hábitos, os vícios e as virtudes dos portugueses,dos mouros, dos brasileiros, dos selvagens e dos negros da África”(idem, ibidem, s.p.). Tal contexto, aliado aos “ardores do clima”,moldava um quadro de costumes desenfreados e de luxúria jamaistestemunhados por ele em nenhum outro lugar: padres que vivemem concubinagem, casais amancebados, mulheres que traem seusmaridos, grande número de prostitutas. Mas, dando continuidade àsua tentativa de compreender este traço moral, Florence desenvolveainda mais sua argumentação em favor das causas culturais dofenômeno. Segundo ele, elemento importante a considerar é oisolamento da população com relação aos preceitos religiosos e àsnormas da civilização, únicos freios capazes de ocupar moralmentepessoas que não precisam trabalhar com afinco para viver em climafértil. Além disso, há a corrupção causada pela escravidão e aproximidade dos índios “cuja liberdade, inocente nas matas, semetamorfoseia em vício, quando usada por povo que pretendepassar por civilizado” (idem, ibidem, s. p.).

Um último elemento é evocado para explicar o comportamentodesses brasileiros: a história da ocupação dos sertões em função da

Vista da cidade de Cuiabá, desenho de Hercule Florence (s. d. [1827?]).

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mineração. Para Florence, a chegada à região de paulistas “ávidosde ouro” proporcionou o acelerado crescimento populacional, mas,como todos só pensassem na extração do metal precioso, aagricultura foi negligenciada e os alimentos tornaram-se caríssimos.Daí resultou o povoamento por indivíduos afastados da religião ede normas disciplinadoras, e “a maior parcela dos caracterizadamenteaventureiros, sedentos de grossas maquias, não encontrando àvontade ouro em condições de saciar, lançou mão de toda espéciede violências: roubo, assassinato, sangrentas rixas haviam jáprincipiado a arruinar a nascente colônia ... (idem, ibidem, s. p.).

Esta visão aterradora da região de Cuiabá, dominada pelamineração9, encontra paralelo em Algumas histórias brasileiras, naqual pelo menos duas anecdotes, a 4 e a 7, podem se passar emregião de extração mineral. Na época em que escreve Viagem fluvial,Florence julga que a fase mais bárbara da colonização desses sertõesjá faz quase que totalmente parte do passado, ainda que muitorecente. Ele parece acreditar que, com a diminuição da mineraçãoe com o incremento da agricultura e das rotas de escoamento daprodução, o interior brasileiro pudesse enveredar pelas sendas doprogresso. O viajante chega a evocar os muitos mulatos letradosque encontrou, conhecedores de “Voltaire, Rousseau, Volney”; quemsabe futuros revolucionários, que, a exemplo de São Domingos,dariam fim à escravidão.

Dos esboços delineados em seu relatório enviado a São Petersburgoà narrativa da viagem redigida décadas mais tarde, o viajante aprimo-rou sua percepção da sociedade brasileira, tornando-se mais perspicazao elencar fatores relevantes e aprofundando sua crítica da escravidãoe da monarquia. Nas anecdotes o elemento fundador da sociedadeé a violência. Porém, cada vez mais um entusiasta de Charles Fourier,Florence busca nos mesmos sertões exemplos de solidariedade, decooperação no trabalho e de alternativas comunitárias à propriedadeprivada. Que a publicação de Algumas histórias brasileiras sirva deconvite ao leitor para prosseguir com o viajante por outras páginasque escreveu.

Reprodução da Viagem fluvial do Tietê ao amazonas de 1825 a 1829 (São Paulo, Melhoramentos, 1941).

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Cópia fac-similar de uma página do original

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Algumas histórias brasileiras11

Hercule Florence

[1] Ingratidão e barbárie de dois brancospara com negros fugidos12

Quelques anecdotes brésiliennes10

Hercule Florence

Ingratitude et barbarie de deux blancsenvers des nègres marrons

S ur le bord du Paranapanema, rivièretributaire du Paraná, laquelle coule dans les

deserts de la partie occidentale de la provincede S. Paul, existait depuis plusieurs années unvillage de nègres qui s’étaient rendus dans cetasile, pour échapper à l’esclavage que leurimposaient les blancs. Ils s’y étaient rendus deplus de 100 lieus, méprisant des fatiguesinfinies, et le danger d’être tués par lessauvages, qui en ces contrées sont très cruels;ils sont principalement ennemis des nègres,qu’ils appellent Jaguáras (chiens) des blancs: ilsavaient du traverser les forêts les plus épaisses,et traverser des champs, exposés aux piqûresmortelles des serpents. Ils s’embarquèrentquelque fois sur de faibles et imparfaitespirogues, construites selon les circonstances.

Quelques negrèsses les avaientaccompagnés dans leur fuite ; ils construisirentpeu à peu leurs cabanes, et eurent

fl. 71vdes enfants: ils vivaient de chasse, de pêche, et defruits sauvages. Ils se nommèrent un roi : lesproduits de leur travaux étaient en commun. Ilsobservaient le culte des Portugais, et fesaienttous les jours la prière. Il y en eut un qui voulutexercer la fonction de prêtre ; il voulait toujoursprêcher ; d’abord on l’écouta, ensuite on semoqua de lui.

Déjà plusieurs années s’étaient écoulées, etdes nègres nés en cette retraite avaient desenfants, lorsque leur malhereux sort conduisitdeux jeunes portugais parmi eux.

Ils étaient soldats, et avaient fait partie de lagarnison du fort de Guaytimirim, sur la frontièredes possessions espagnoles. Cette place,longtemps assiégée par les Espagnols avait duse rendre ; mais ces deux jeunes gens nevoulant pas être prisoniers, s’étaient enfuis surune pirogue ; et, suivant le cours de la petiterivière qui mouille les murs du fort, ils ladescendirent jusqu’au Paraná : comme ilscherchaient l’embouchure du Tiété

À s margens do Paranapanema, afluentedo Paraná, que corre pelos desertos da

parte ocidental da província de São Paulo,existia há vários anos um povoado de negrosque se instalaram neste abrigo para fugir àescravidão que lhes impunham os brancos.13 Elesinstalaram-se ali depois de mais de 100 léguas,ignorando fadigas infindas, e o perigo de seremmortos pelos selvagens, que nessas regiões sãomuito cruéis; e são principalmente inimigos dosnegros, que chamam de jaguaras14 (cães) dosbrancos. Tiveram que atravessar as maisespessas florestas e campos, expostos àspicadas mortais das serpentes. Embarcavam àsvezes em pirogas frágeis e imperfeitas,construídas conforme as circunstâncias.

Algumas negras acompanharam-nos em suafuga; construíram pouco a pouco suas cabanas etiveram

fl. 71vfilhos: viviam da caça, da pesca e de frutossilvestres. Eles nomearam um rei: os produtosde seus trabalhos eram da comunidade.Seguiam o culto dos portugueses e praticavam areza todos os dias. Houve um deles que quisexercer a função de padre; queria pregar sempre;de início, foi ouvido, depois ridicularizado.

Muitos anos tinham transcorrido, e osnegros nascidos neste refúgio já tinham filhos,quando sua má sorte levou até eles dois jovensportugueses.

Eram soldados, e haviam feito parte daguarnição do forte de Guaytimirim15, na fronteirados domínios espanhóis. Este local, sitiado porlongo tempo pelos espanhóis, teve que serender; mas esses dois jovens, não desejandocair prisioneiros, tinham fugido numa piroga; e,seguindo o curso do riacho que banha osmuros do forte, desceram-no até ao Paraná.Como buscavam a desembocadura do Tietê

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fl. 72pour se rendre chez leurs concitoyens, ilsentrèrent dans le Paranapanéma croyant quec’était le Tiété, et le remontèrent jusqu’à laretraite des nègres, où ils reconnurent leurerreur.

D’abord ils furent aperçus par deux jeunesnègres qui furent au village dire qu’ils avaientvu deux étrangers à peu blanche et longuebarbe (car les deux Portugais ne l’avaient pasfaites depuis leur fuite) et qui avaient desvêtements ; l’alarme fut générale ; on craignitd’être découvert ; quelques uns s’enfuirent dansles bois ; d’autres s’armèrent d’arcs, de flèches,de bâtons, et de quelques instruments en fer quiavaient été apportés par les premiers nègres quiavaient fui de chez les blancs. Cependant lesdeux Portugais remontèrent jusqu’au village, nepensant pas qu’ils étaient au milieu des nègres ;ceux-ci les voyant venir seuls, à moitié nuds etsans armes, furent leur parler : quand ils surentpourquoi ils étaient venus là, ils les conduisirentau Roi ; ils étaient entourés par le peuple unpeu rassuré, principalement par les jeunesnègres qui voyaient des blancs pour la premièrefois. Les deux étrangers demandèrent qu’on leurfasse la grâce de les laisser retourner

fl. 72vchez eux, en promettant qu’il ne sortirai jamaisde leur bouche le secret de l’existence duquilombo (c’est le nom que l’on donne à unrassemblement de nègres fugitifs dans les bois)mais le Roi et les vieux leur refusèrent ce qu’ilsdemandaient, persuadés qu’il était impossibleque ces gens gardassent le secret. Ils savaientque les blancs ne s’arrêtent pas à garder unepromesse à des nègres. Il y eut quelques nègresqui proposèrent de les tuer, mais le Roi et lesanciens s’y opposèrent ; on les garda à vue. Peuà peu ils eurent plus de liberté, parce que, soitqu’ils se montrassent contents de leur sort, soitque les nègres se reposassent sur ce qu’ilsn’avaient pas les moyens de s’évader, ils étaientplus tranquiles. Ils se marièrent avec de jeunesnégresses et eurent des enfants ; ce qui leurattira encore plus la confiance des nègres. Ilsarrivèrent au point de ne plus garder aucunemesure de précaution avec eux.

Mais ce fut alors que l’espoir de revoir lepays natal se réveilla

fl. 72para se encontrar com seus concidadãos,entraram pelo Paranapanema acreditando queera o Tietê, e o subiram até o refúgio dosnegros, onde reconheceram seu erro.

Desde o primeiro instante foram notadospor dois jovens negros que foram ao povoadodizer que tinham visto dois estrangeiros de pelebranca e longa barba (pois os portugueses nãoa haviam feito desde sua fuga) e que vestiamuniformes; o alarme foi geral; temiam seremdescobertos; alguns refugiaram-se na mata;outros armaram-se de arcos, de flechas, debastões e de alguns instrumentos de ferro quehaviam sido trazidos pelos primeiros negrosfugidos dos brancos. No entanto, os doisportugueses subiram até ao povoado, nãoimaginando que estariam cercados de negros;estes, vendo-os chegar sós, em farrapos e semarmas, foram ter com eles. Quando souberampor que tinham chegado até lá, conduziram-nosao Rei; os dois viram-se cercados pelo povo jáum pouco mais seguro, principalmente pelosjovens negros que viam brancos pela primeiravez. Os dois estrangeiros pediram que se lhesfizesse a graça de os deixar retornar

fl. 72vpara os seus, prometendo que jamais sairia desuas bocas o segredo da existência do quilombo(é o nome que se dá a um agrupamento denegros fugitivos nas matas), mas o Rei e osvelhos recusaram-lhes a demanda, persuadidosde que era impossível que essa gente guardassesegredo. Sabiam que brancos não se detêm aguardar promessa para negros. Houve algunsnegros que propuseram matá-los, mas o Rei eos anciãos opuseram-se; mantiveram-nosdetidos sob vigia. Pouco a pouco eles ganharammais liberdade, porque, seja por se mostraremcontentes com sua sorte, seja pelos negros sefiarem de que eles não teriam meios para seevadir, estavam mais tranqüilos. Casaram-se comjovens negras e tiveram filhos; o que lhes cativouainda mais a confiança dos negros. Esteschegaram ao ponto de não mais guardarnenhuma medida de precaução para com eles.

Mas foi assim então que a esperança derever o país natal manifestou-se

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fl. 73avec plus de force dans le coeur des deuxBrésiliens : ils purent même séduire un jeunenègre en lui faisant de brillantes relations deleur pays, et après avoir préparé tout ce quipouvait servir à leur long voyage ils laissèrentleurs femmes et enfants, sortirent du quilombo,disant qu’ils allaient à la pêche, et s’éloignèrentaussi vite que possible. Lorsqu’ils arrivèrent auParaná, le jeune nègre, se répentant de ce qu’ilavait fait, les quitta à leur insu, et retourna auvillage, qui n’était pas encore très éloigné. Ilss’en soucièrent peu, et après avoir surmontépendant trois mois des peines infinies, ilsarrivèrent à Porto Féliz.

Ils eurent la barbarie de racconter leuraventure : la nouvelle se répandit qu’il existaitau Paranapanéma un quilombo de plus de 300nègres, entre hommes, femmes et enfants. Lacupidité exaspera les esprits : une fouled’aventuriers se réunirent à Porto Féliz : onprépara des canots, plus de 50 personness’embarquent, calculant

fl. 73vdéjà le bénéfice de leur entreprise : ce n’estpas assez pour les deux délateurs d’avoirpréparé le malheur de tant de créatures, ilss’embarquent aussi. Après deux mois,l’expédition arrive au lieu de sa destination,mais ils ne trouvent que des cendres et lasolitude : les pauvres nègres s’étaient doutés dece qui leur arriverait, ils avaient brulé leurvillage, et s’étaient enfoncés dans l’intérieur. Nosgens infatigables découvrirent leur nouvelleretraite ; ils tombèrent sur eux ; en tuèrentbeaucoup qui fesaient résistance, et, chargeantde chaînes ceux qu’ils purent attraper vifs, ilsles entassèrent dans leur canots, et retournèrentà Porto-Féliz, où ils les vendirent ; ainsi cesmalheureux, qui n’avaient voulu que leurliberté, et qui ne fesaient aucun mal, revirent leséjour de leur esclavage, victimes de leurhumanité et de leur trop de confiance.

Quand j’étais à Porto-Féliz, il existait encoreun nègre déjà très

fl. 73com mais força no coração dos dois brasileiros:eles conseguiram até seduzir um jovem negrofazendo-lhe atraentes relatos de seu país, edepois de haver preparado tudo que poderiaservir à sua longa viagem, deixaram suasmulheres e crianças, saíram do quilombo,dizendo que iriam à pesca, e se afastaram omais rápido possível. Logo que chegaram aoParaná, o jovem negro, arrependendo-se doque havia feito, abandonou-os à sua revelia, eretornou ao povoado, que não estava aindamuito longe. Eles pouco se incomodaram comisso, e após suportarem durante três mesespenas infindas, chegaram a Porto Feliz.

Eles cometeram a barbárie de contar suaaventura. A notícia se espalhou: que existia noParanapanema um quilombo de mais de 300negros, entre homens, mulheres e crianças. Acupidez exasperou os espíritos: uma multidãode aventureiros reuniu-se em Porto Feliz;prepararam-se as canoas, mais de 50 pessoasembarcam, calculando

fl. 73vjá o lucro de sua empresa. Não é o bastantepara os dois delatores ter preparado ainfelicidade de tantas criaturas, eles embarcamtambém. Após dois meses, a expedição chegaao lugar de seu destino, mas eles nãoencontram senão cinzas e solidão: os pobresnegros pressentiram o que lhes ocorreria,incendiaram seu povoado, e se enfiaram interioradentro. Nossas gentes infatigáveis descobriramseu novo refúgio; caíram sobre eles; matarammuitos dos que ofereciam resistência, e,acorrentando aqueles que puderam agarrarvivos, amontoaram-nos nas canoas, eretornaram a Porto Feliz, onde os venderam.Assim esses infelizes, que almejaram somentesua liberdade, e que não fizeram nenhum mal,reviram o estado de sua escravidão, vítimas desua humanidade e de seu excesso de confiança.

Quando eu estava em Porto Feliz, existiaainda um negro já muito

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fl. 74vieux qui avait été de ce quilombo : il avaitraconté cette histoire d’ailleurs très connue auChirurgien Major de cette ville, de qui je latiens. Le vieux nègre lui avait dit que lorsqueles Portugais surprirent lui et les siens dans lanouvelle retraite, il monta sur un arbre où on nel’avait pas aperçu ; mais que lorsqu’il vitgarrotter tous ses compagnons et brûler lescabanes, voyant qu’il périrait s’il restait seulexposé aux onces et aux sauvages, il avaitpréféré l’esclavage à une mort certaine, et s’étaitmontré aux Portugais.

Une femme de la campagne à Curitiba,Province de S. Paul, avait une intrigueamoureuse: elle et son amant, fatigués del’incommodité que causait la présence du mari,resolvèrent de le tuer. La femme le conseilla dese rendre le soir avec l’obscurité dans le jardin,et de mettre les poules en épouvante, espérantque le mari irait voir ce que ce serait, etrecevrait la mort. En effet, quand il fut nuit, on

fl. 74ventendit crier toutes les poules ; la femme dit aumari d’aller voir ; celui-ci qui était fatigué destravaux de la campagne, ne voulut pour rien selever de son hamac ; quand elle vit qu’elleinsistait en vain, elle sortit pour avertir sonamant de l’insouciance de son mari. En sortantelle reçoit un coup de fusil qui l’étend par terre,et qui n’a pas été tiré pour elle. Au bruit ducoup, le mari prend son fusil qui était chargé,accourt, voit venir vers lui l’assassin, quirencontre la mort là où il croyait rencontrer samaîtresse. Les deux coupables survécurentquelques heures, et confessèrent leur crime.

Deux habitants de S. Paul chassaient dans unbois: ils entendent des gémissements étouffés;un d’eux veut absolumment voir ce que c’est; ils’avance doucement, et aperçoit deux hommesqui écorchent vif un malheureux qu’ils ontattaché à un arbre, et auquel ils avaient mis unbâillon dans la bouche: saisi d’horreur et

fl. 74velho que havia sido deste quilombo: elecontou esta história, aliás muito conhecida, aocirurgião-mor daquela cidade16, de quem eu atenho. O velho negro disse-lhe que logo que osportugueses surpreenderam a ele e aos seus nonovo refúgio, subiu numa árvore onde não foivisto; mas que quando viu amarrarem todosseus companheiros e queimarem as cabanas,vendo que morreria se permanecesse sozinhoexposto às onças e aos selvagens, preferiu aescravidão a uma morte certa, e se revelou aosportugueses.

[2] Uma camponesa em Curitiba, provínciade São Paulo17, tinha uma intriga amorosa: ela eseu amante, cansados do incômodo causadopela presença do marido, resolveram matá-lo.A mulher aconselhou-o a se esconder, naobscuridade do crepúsculo, no quintal, e aespantar as galinhas, esperando que o maridoiria ver o que se passava, e receberia a morte.Com efeito, quando se fez noite,

fl. 74vouviram-se as galinhas a gritar; a mulher diz aomarido que vá ver; este, que estava cansadodos trabalhos no campo, não quis se levantarde sua rede por nada; quando ela viu queinsistia em vão, saiu para advertir seu amante daindiferença de seu marido. Ao sair, ela recebeum tiro de fuzil que a estende por terra, e quenão se destinava a ela. Ao barulho do tiro, omarido toma seu fuzil que estava carregado,acorre, vê vir em sua direção o assassino, queencontra a morte no lugar em que acreditavaencontrar sua amante. Os dois culpadossobreviveram algumas horas, e confessaram seucrime.

[3] Dois habitantes de São Paulo caçavam numamata: eles ouvem gemidos sufocados; um delesquer de toda maneira ver o que é; ele avançalentamente, e avista dois homens que esfolamvivo um infeliz que amarraram a uma árvore, eao qual haviam posto uma mordaça: tomado dehorror e

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fl. 75transporté d’indignation, il leur tire son coup defusil, mais il a le malheur de ne pas blesser. Unde ces monstres, plonge subitement un poignarddans le coeur de sa victime, prend son fusil, etétend par terre le généreux agresseur; mais àson tour, il tombe d’un coup de fusil qu’il reçoitde l’autre chasseur: le compagnon de sonépouvantable scélératesse s’enfuit.

Un homme de Minas Gerais partait pour unpetit voyage: son nègre, qui n’était pas encoreprêt, lui dit qu’il ne tarderait pas à le rejoindre.Peu de temps après il se mit en chemin, et étantarrivé à un certain endroit, il fis la remarque queles traces du cheval de son maître, lesquelles ilconnaissait très bien, indiquaient qu’il était entrédans le bois; il fut en même temps surpris devoir beaucoup d’empreintes de pieds de nègres,qui toutes designaient une sortie de ce bois: ilfut un peu plus loin, et ne voyant plus rien, ilsortit de route, retourna sur ses pas, et entradans le bois. Il suivit les indices récents qu’ilvoyait soit sur les branches, soit sur les plantes,jusqu’à ce qu’il aperçut

fl. 75vd’un peu loin son maître amarré à un arbre, etentouré de nègres marrons qui allaient le fairemourir. Alors sans délibérer, il court à eux encriant: Oui, c’est bien fait, tuez ce blanc qui m’atant fait souffrir; tuez-le, puissions-nous les tuertous, ces blancs qui nous tyrannisent. Ets’adressant à son maître, il lui dit: Eh bien, c’està présent que tu vas me payer les coups que tum’as donné; c’est moi même que veux te tuer!Fais ton acte de contrition, c’est la dernièreheure! Mes camerades, donnez-moi le fusil,mettez-vous tous là, vous allez voir comme jevais le tuer! Il prend vite le fusil, réunit lesnègres de côté, vise sur son maître; détourne lefusil et lâche le coup sur les nègres ; il se jetteau milieu d’eux et avec de prompts etvigoureux coups de crosse, les disperse. Ilcoupe promptement les liens de son maître, lefait monter à cheval, en lui disant de s’éloignerbien vite. Il s’éloigne aussi, mais en bonnecontenance. De cette manière il

fl. 75levado pela indignação, atira neles com seu fuzil,mas tem o azar de não feri-los. Um dessesmonstros crava subitamente um punhal nocoração de sua vítima, toma seu fuzil, e estendepor terra o generoso agressor; mas cai por suavez, sob um tiro de fuzil que recebe do outrocaçador. O companheiro de sua abomináveltorpeza foge.

[4] Um homem de Minas Gerais partia parauma pequena viagem: seu negro, que não estavaainda pronto, disse-lhe que não tardaria aalcançá-lo. Pouco tempo depois, este se pôs acaminho, e tendo chegado a um certo lugar,notou que os rastros do cavalo de seu senhor,os quais conhecia muito bem, indicavam queentrara na mata; ao mesmo tempo, ficousurpreendido ao ver muitas pegadas de pés denegros que assinalavam uma saída dessa mata.Ele foi um pouco mais longe e não vendo maisnada, saiu da estrada, retrocedeu e entrou namata. Seguiu os vestígios recentes que via, sejanos galhos, seja nas plantas, até que avistou

fl. 75va certa distância seu senhor amarrado a umaárvore, e cercado de negros fugidos que iamfazê-lo morrer. Então, sem pensar, correu atéeles gritando: Sim, bem feito, matem estebranco que tanto me fez sofrer; matem-no,pudéssemos nós matá-los a todos, essesbrancos que nos tiranizam. E dirigindo-se a seusenhor, disse-lhe: Ah, bom, é agora que tu vaisme pagar as surras que tu me destes; eumesmo quero te matar! Faça teu ato decontrição, chegou a hora derradeira! Meuscamaradas, passem-me o fuzil, ponham-se todoslá, vocês verão como eu vou matá-lo! Tomarápido o fuzil, reúne os negros de lado, faz mirana direção do seu senhor; desvia o fuzil e atirasobre os negros; lança-se ao meio deles e comsúbitas e vigorosas coronhadas, dispersa-os.Rompe prontamente as amarras de seu senhor,fá-lo montar a cavalo, dizendo-lhe para se afastarbem rápido. Ele se afasta também, mas a umaboa distância. De certo modo ele

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fl. 76sauva la vie à son maître, lequel extrêmementsensible à un si important service, le déclaralibre et lui fit un présent de 200 000 Reis,proportionné à ses moyens. Le nègre qui luiétait très attaché, voulut toujours rester à sonservice.

Un habitant de la campagne à Cuyabá, avaitun esclave mulâtre très méchant; il y avaitquelques mois que cet esclave s’était enfui, et lemaître n’y pensait plus. Un jour, celui-ci s’en futà la ville, et sa femme resta seule avec unenégresse ; le mulâtre se présenta armé et luiintima de le suivre, en lui disant que si elle nele fesait promptement, il la tuerait. Sa maîtresselui dit: oui, je vais te suivre, mais comme je saisce que tu veux de moi, et que peut-être tu neme laisseras pas retourner dans ma maison,laisse-moi au moins emporter un paquet delinge. Le mulâtre le lui permet; elle entre danssa chambre, prend un sac de farine, le met aumilieu de quelque linge, fait un paquet, leremet à la négresse en

fl. 76vlui disant: laisse en sortant une trace de farine! Ellesort, marche la première, le mulâtre la suit de près,et la négresse avec le paquet sur la tête. Le mariarrive à la maison, appelle, personne ne répond. Ilva de tout côté, et est frappé de voir la trace defarine; il la suit jusqu’à apercevoir la cabane de sonmulâtre, devant laquelle il reconnait sa négresse:son extraordinaire aventure a mis son esprit enprévention, il arme son pistolet, et s’avance augalop. Le mulâtre sort au bruit, armé de sonfusil; il déniche, et le feu ne prend pas: sonmaître le blesse du coup de pistolet, et le mithors d’état de nuire: transporté de fureur aprèsavoir appris son procedé, il l’attache à la queuede son cheval; et le traîne jusqu’à sa maison.

Dans le temps où les jésuites Portugaisfondaient et gouvernaient les missionsportugaises voisines de celles des Espagnols duParaguay, il arriva que dans une de ces missionsou villages, les indiens conspirèrent contre

fl. 76salvou a vida de seu senhor, o qual,extremamente sensível a um tão importantepréstimo, declarou-o livre e lhe deu depresente 200.000 réis, proporcional a seusmeios. O negro que estava muito ligado a ele,desejou permanecer para sempre a seu serviço.

[5] Um habitante da zona rural em Cuiabá,tinha um escravo mulato muito malintencionado; havia alguns meses que esteescravo fugira, e o senhor não pensava maisnisso. Um dia, ele foi à cidade, e sua mulherficou só com uma negra; o mulato apareceuarmado e intimou-a a segui-lo, dizendo-lhe quese ela não o fizesse prontamente, ele a mataria.Sua senhora disse-lhe: sim, eu vou te seguir, mascomo sei o que tu queres de mim, e que talveztu não me deixarás retornar à minha casa,deixe-me ao menos levar uma trouxa de roupa.O mulato deu-lhe permissão; ela entra no seuquarto, pega um saco de farinha, enfia-o nomeio de alguma roupa, faz uma trouxa, confia-oà negra

fl. 76vdizendo-lhe: fores saindo, deixe um rastro defarinha! Ela sai, caminha na frente, o mulato asegue de perto, e a negra com a trouxa nacabeça. O marido chega em casa, chama,ninguém responde. Ele busca de todo lado, efica assustado em ver o rastro de farinha; segue-o até deparar com a cabana de seu mulato, nafrente da qual reconhece sua negra. Suaextraordinária aventura pôs seu espírito deprevenção, ele arma sua pistola, e avança degalope. Com o barulho, o mulato sai, armadode seu fuzil; desentoca-se, e o tiro não sai. Seusenhor fere-o com tiro de pistola, e deixa-osem condição de fazer mal algum: tomado defúria depois de inteirado de seu proceder, ele oamarra à cauda de seu cavalo; e o arrasta atésua casa.

[6] No tempo em que os jesuítasportugueses haviam fundado e governavam asmissões portuguesas vizinhas às dos espanhóisno Paraguai18, ocorreu que numa dessas missõesou povoados, os índios conspiraram contra

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NOS CONFINS DA CIVILIZAÇÃO

fl. 77leur missionnaire qui en même temps était leurcuré, et cela à cause des vexations et arbitrairesqu’il exerçait, principalement pour avoir à sadisposition leurs plus jolies femmes et filles: unjour ils se résolurent à le faire périr quand lanuit serait venue, en mettant le feu à sa maison,et se plaçant tout autour pour le tuer, s’il sortaitpour se sauver: le curé fut averti, mais ilrepondit à celui qui l’avertissait: laisse-les faire;je ne crains pas les méchants; je resterai dansma maison, et je ne périrai pas, parce que j’ail’appui de Dieu. Celui qui l’avertissais crut queréellement il était saint, et attendit le miracle. Lecuré feignit de ne rien savoir. Quand l’heure futvenue, où, selon le règlement, tout le mondedevait être retiré, il se garda bien de rester chezlui; il fut se cacher dans le bois: quand il futminuit, les conjurés furent entourer sa maison

fl. 77vet y mirent le feu; elle fut bientôt embrasée, carelle était de paille: les indiens ne le voyant passortir, crurent qu’il brûlait aussi. Quand la maisonfut en cendres, ils se retirèrent: alors le curé futse coucher sur les cendres; quand il fut jour, toutle peuple l’entoura, la plupart étonnés de cetévénement, et les conjurés étonnés de le voircouché sur les cendres de sa maison: alors il seleva, et leur dit: c’est en vain que vous avezattenté à mes jours; je n’ai pas ignoré que vousvouliez me brûler dans ma maison; mais je n’ensuis pas sorti, parce que j’ai l’appui du Seigneur:j’ai été au milieu des flammes, mais elles m’ontrespecté, et je n’ai pas senti la moindre douleur:mes vêtements n’ont pas eu le moindreendommagement, et je suis resté intact au milieudes cendres: voilá une preuve certaine que toutce que je fais

fl. 77seu missionário que era ao mesmo tempo seupároco, e isto por causa de humilhações earbitrariedades que ele praticava, em especialpor ter à sua disposição suas mais belasmulheres e moças. Um dia resolveram fazê-loperecer quando a noite viesse, pondo fogo àsua casa, e postando-se todos ao redor delapara matá-lo, caso saísse para se salvar. Opároco foi advertido, mas respondeu a quem oadvertia: deixe-os fazer; não temo osmalfeitores; ficarei em minha casa, e nãomorrerei, porque tenho o amparo de Deus.Aquele que o advertia acreditou realmente queele era santo, e esperou o milagre. O párocofingiu nada saber. Quando chegou a hora, emque, segundo o regulamento, todo o mundodeveria se recolher, ele precaveu-se de ficar emcasa; foi se esconder na mata. Quando deumeia-noite, os conjurados cercaram sua casa

fl. 77ve para lá dirigiram fogo; ela logo se incendiou,pois era de palha: os índios não o vendo sair,imaginaram que ele queimava também. Quandoa casa virou cinzas, eles se retiraram: o pároco,então, foi se deitar sobre as cinzas. Quandoamanheceu, todo o povo cercou-o, a maioriasurpresa diante do evento, e os conjuradossurpresos de vê-lo deitado sobre as cinzas desua casa. Então ele se levantou e lhes disse: éem vão que vocês atentaram contra mim; eusabia que vocês queriam me queimar dentro daminha casa; mas dela não saí, porque tenho oamparo do Senhor. Fiquei no meio das chamas,mas elas me respeitaram, e eu não senti amenor dor; minhas vestimentas não tiveram omínimo estrago, e eu permaneci intacto nomeio das cinzas: eis aí uma prova clara de quetudo que faço

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fl. 78est agréable au Seigneur: cette fois-ci je ne mevenge pas du mal que vous avez voulu mefaire; mais faites y attention, si vous continuez àêtre méchants de la même manière que j’ai sume livrer du feu, je saurai vous punirsévèrement.

Un de ces Certanistas de S. Paul, quidécouvraient le centre de l’Amériqueméridionale, traversait le désert de Goyaz àCuyabá: cette dernière ville avait déjà étéfondée par ceux qui avaient découvert la routedes rivières par où l’on s’y rend en s’embarquantà Porto-Féliz: le Certanista découvrait le cheminde terre.

fl. 78vIl fut arrêté dans sa marche par des sauvagesqui se préparèrent à l’attaquer: il avait peu demonde avec lui: il se sauva par un stratagème: illeur dit en langue Brésilienne (Lingua GeralBrésilienne) que s’ils ne le laissaient pas passer,il allait mettre le feu à leurs bois, leurs champset leurs rivières: que tout allait brûler, et euxaussi. Et pour leur prouver la vérité de ce qu’ildisait, il prit une de leurs calebasses, qu’ilemplit adroitement d’eau-de-vie sans qu’ils s’enaperçussent, et fut à la riv.ere où il fit semblantde l’emplir d’eau: après il retourna à eux et ymit le feu: les indiens furent étonnés de voirl’eau brûler, et craignant qu’il ne fasse brûlerleur petit univers, le laissèrent passer, et à saprière, lui donnèrent les secours dont ils étaientcapables.

fl. 78é do agrado do Senhor. Desta vez eu não mevingo do mal que vocês quiseram me fazer; masprestem atenção nisso, se vocês continuarem aser maus, da mesma maneira que soube melivrar do fogo, saberei puni-los severamente.

[7] Um desses Sertanistas19 de São Pauloque descobriam o centro da Américameridional, atravessava o deserto de Goiás aCuiabá: esta última cidade havia já sido fundadapelos que tinham descoberto a rota dos riospor onde se vai embarcando em Porto Feliz; oSertanista descobria o caminho por terra20.

fl. 78vEle foi barrado em sua marcha por selvagensque estavam prontos para atacá-lo. Ele tinhapouca gente com ele; e se salvou por umestratagema. Disse-lhes em língua brasileira(Língua Geral Brasileira)21 que se eles não odeixassem passar, poria fogo em suas matas,seus campos e seus rios: que tudo queimaria, eeles também. E para provar-lhes a verdade doque dizia, tomou uma dessas cabaças, queencheu habilmente de aguardente sem que elesnotassem, e foi ao rio onde fez como se aenchesse de água. Em seguida retornou a eles epôs fogo no líquido: os índios ficaramimpressionados de ver a água queimar, etemendo que ele incendiasse seu pequenouniverso, deixaram-no passar, e a seu pedido,deram-lhe a ajuda de que eram capazes.

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NOTAS1 Cf. Komissarov, 1994, pp. 42-4.

2 Além disso, o zoólogo Hasse abandonou a expedição ainda em Porto Feliz (cometeria suicídio em Campinas, algumtempo depois), e o astrônomo e geógrafo Rubtsov entregou-se ao alcoolismo e teve surtos psicóticos durante a viagem.Parece que, da equipe científica da monção, apenas o botânico Riedel e Florence terminaram todo o percurso ‘sãos esalvos’.

3 Os diários de campo de Langsdorff, publicados recentemente, apesar de sua incontestável relevância documental, nãopossuem a mesma densidade narrativa da obra de Florence, mais elaborada porque escrita a posteriori da viagem, a partirde anotações do seu diário de campo, mas não se confundindo com este. Sabe-se, também, que toda a parte final dosdiários de Langsdorff, a partir de 13 de maio de 1828, foi redigida pelo próprio Florence (a pedido de seu comandantegravemente enfermo), até sua brusca interrupção, sete dias depois e sete meses antes de aportarem em Belém.

4 A sugestão de Komissarov, a propósito de uma eventual inserção de referência sobre a história 7 em Viagem fluvial,mostrou-se improcedente. Esta história reporta a abertura do caminho terrestre entre as vilas de Goiás Velho e Cuiabá e nãode Porto Feliz a Cuiabá, como anotou o insigne historiador (cf. Komissarov, op. cit., p. 43; Florence, 1977b, pp. 85-6).

5 Em 15.7.1826, em seu diário, Langsdorff também se refere sumariamente a um “registro histórico” sobre a existência edestruição de um quilombo na área do ribeirão Tambaú, tributário do Tietê, de modo coincidente ao relato de Viagemfluvial. (Langsdorff, 1997, p. 148).

6 Langsdorff (ibidem, pp. 121-3) igualmente ressalta no diário, entre as várias qualidades de Francisco Álvares, seus dotesde grande contador de histórias. Aqui também a indicação de Komissarov (op. cit., p. 43) de que um relato acerca de lutase vingança entre familias (‘História do rapaz que vingou seu irmão e cometeu sete assassinatos’), reportada por FranciscoÁlvares e Langsdorff, no trecho citado, coincide com a história 3 das anecdotes de Florence, revelou-se não pertinente,como se verá logo adiante.

7 Cf. Bruno, 1967, pp. 21-40; Goes Filho, 1999, pp. 144-59.

8 Os índios aqui são tomados em sua credulidade, num pólo, ou ferocidade, no outro. Não se especificam nações indígenasou tribos, como ocorrerá, em pormenor, nas narrativas da Viagem fluvial, inclusive com o elogio, ao modo dos quilombos,de formas de comunitarismo igualitário no que diz respeito aos frutos do trabalho, como entre os apiacás (cf. Hardman,Kury, op. cit., em especial cap. VII). Em Algumas histórias, ao contrário, nem mesmo as reduções jesuíticas dos índiosguaranis são vistas idilicamente (cf. história 6).

9 Vale a pena comparar as descrições de Florence com as de autores clássicos da historiografia, como Capistrano de Abreu(op. cit., cap. ‘O sertão’) e S. Buarque de Holanda (1990, cap. ‘Ouro’ e ‘Comércio de Cuiabá’).

10 Optamos por atualizar a ortografia do texto. Mantivemos a pontuação original, salvo em casos em que o sentido da frasepudesse escapar ao leitor atual. (N.T.)

11 Optamos por traduzir “anecdotes” do título original por ‘histórias’, no sentido lato de relatos, ‘casos’ ou narrativas,próximas da memória e da tradição oral. Isso porque o termo ‘anedotas’, transposto literalmente para hoje, sugere significadohumorístico e galhofeiro à primeira vista, que se distancia do contexto semântico em que se situava o autor, bem como dopróprio conteúdo das histórias, em que predomina o drama da violência social e não o modo cômico. (N.T.)

12 Este título corresponde à primeira história. As demais seis narrativas não foram tituladas pelo autor. Para facilitar alocalização pelo leitor, numeramos entre colchetes cada uma delas. (N.T.)

13 Recolhida na memória popular e na tradição oral, esta história possui bastante verossimilhança com dados recentes dahistoriografia dos quilombos na região e no período indicados ao longo do relato. Sabe-se da existência de mocambos equilombos nos limites extremos da capitania de São Paulo, em particular a partir dos anos 1770 e próximos à foz dos riosParanapanema e Tietê. Também procedem as referências à expedição punitiva e de apresamento, bem como à relativainstabilidade e mobilidade geográfica dos quilombolas. Cf. Gomes, 1997; ver em especial cap. II, ‘Uma outra história:quilombolas nas capitanias de São Paulo e Mato Grosso (1722-1811)’. (N.T.)

14 Jaguáras, no original, como também o grifo de toda a expressão. A julgar pela única referência direta que faz a estahistória em Viagem fluvial, os índios hostis da região poderiam ser os xavantes (cf. Florence, 1977b, p. 43). (N.T.)

15 Guaytimirim, no original. Não localizamos nenhum topônimo idêntico ou similar como designação de fortificação militarnas fronteiras sul ou centro-oeste do Brasil colônia na segunda metade do século XVIII, época mais provável de ocorrênciado episódio relatado. Poderia tratar-se de erro do autor na grafia, pois quando de seu registro era ainda novato com oportuguês e com palavras de origem indígena ou africana. Ou, então, tratava-se de pequena guarnição fronteiriça e nãoexatamente de um forte, como sugerido. (N.T.)

16 Trata-se de Francisco Álvares Machado e Vasconcellos, que era também oculista, intelectual humanista e líder do PartidoLiberal em São Paulo. Tornou-se, depois de 1830, sogro de Florence, que casou-se com sua jovem filha Maria Angélica.(N.T.)

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17 À época, a região do Paraná, do ponto de vista político-administrativo, fazia parte das províncias de São Paulo, ao norte,e de Santa Catarina, ao sul. (N.T.)

18 Trata-se de menção às reduções de povos indígenas guaranis, que existiram ao longo dos rios Paraguai e Paraná desdeo início do séc. XVII até meados do séc. XVIII, organizadas por jesuítas. (N.T.)

19 Certanistas, no original. De fato, sertão era comumente grafado, à época, como ‘certão’. A origem deste termo permanecepolêmica. Considerado por muitos corruptela de ‘deserto’ ou ‘desertão’, esta versão foi contestada por Gustavo Barroso(12.7.1952), que defendeu a idéia de ‘certão’ ter-se derivado do idioma bunda, nativo de Angola, a partir de michitu,muchitu ou muchitum (que designava a selva mais distante e inóspita), transposto nos termos lusos arcaicos muceltão,celtão e certão. (N.T.)

20 Sobre os caminhos terrestres nos sertões do Centro-Oeste, abertos na primeira metade do século XVIII, a partir deantigas trilhas indígenas, e sempre apenas um complemento às rotas fluviais, consultar Holanda (op. cit.); Abreu (op. cit.);Bruno (op. cit., vol. 6); e Goes Filho (op. cit.). (N.T.)

21 Lingua Geral Brésilienne, no original. (N.T.)

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voyage Hercule Florence. Livre deuxième’. Moscou, Academia de Ciências,fundo 63, inventário 1, manuscrito 8, fl. 1-70 (Cópias em microforma: Centro deMemória da Unicamp e Arquivo da Casa de Oswaldo Cruz).

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1825 jusqu’en mars 1829. Par le 2e. dessinateur de ce voyage Hercule Florence.Livre deuxième. Moscou, Academia de Ciências, fundo 63, inventário 1,manuscrito 8, fl. 71-78 (Cópias em microforma: Centro de Memória da Unicampe Arquivo da Casa de Oswaldo Cruz).

Florence, Hercule ‘Mémoire sur la possibilité de décrire les sons et les articulations de la voix des1829-1830c animaux’. Em Hercule Florence. Continuation de l’esquisse du voyage de M. de

Langsdorff dans l’intérieur du Brésil, depuis sept. 1825 jusqu’en mars 1829. Parle 2e. dessinateur de ce voyage Hercule Florence. Livre deuxième. Moscou,Academia de Ciências, fundo 63, inventário 1, manuscrito 8, fl. 79-88(Cópias em microforma: Centro de Memória da Unicamp eArquivo da Casa de Oswaldo Cruz).

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