norma o direito e o estado

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O presente ensaio procura analisar o proble- ma das relações entre o Estado e o mercado, en- tre a democracia e o desenvolvimento, a partir da clássica proposição segundo a qual a plena ope- ração de uma economia de mercado requer a existência de um Estado formalmente instituciona- lizado, não só para assegurar a operação impes- soal das normas vigentes, mas também para atuar distributivamente de maneira a minimizar as ine- vitáveis externalidades provocadas pela intensifi- cação dos laços de interdependência humana que a própria expansão do mercado favorece. Aqui – além da reafirmação dessa tese em sua dimensão O MERCADO E A NORMA: o Estado moderno e a intervenção pública na economia * Bruno P. W. Reis * O presente trabalho resulta basicamente de uma re- visão das duas primeiras seções do capítulo 3 de mi- nha tese de doutorado, Modernização, mercado e democracia: política e economia em sociedades complexas (defendida no Iuperj em 16 de dezembro de 1997), antecedida de trecho preparado para apre- sentação no II Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política (realizado na PUC de São Paulo, en- tre 20 e 24 de novembro de 2000) por gentil convi- te do prof. Alberto Tosi Rodrigues (UFES). Para pu- blicação, graças às boas sugestões do prof. Eduardo Noronha (UFSCar), dividi a versão levada à ABCP em duas partes, das quais o presente trabalho cons- titui a primeira. A segunda parte, intitulada “Merca- do, democracia e justiça social: a economia política do Brasil contemporâneo”, foi publicada em Teoria & Sociedade, 7 (junho de 2001), e se dedica à explo- ração de algumas implicações do argumento aqui desenvolvido para o caso brasileiro. Para alcançar sua forma atual, o texto beneficiou-se também do trabalho de dois pareceristas anônimos da RBCS, aos quais muito agradeço. Naturalmente, nenhuma das pessoas aqui aludidas detém responsabilidade sobre as fragilidades que o texto ainda apresenta. Artigo recebido em fevereiro/2002 Aprovado em abril/2003 RBCS Vol. 18 nº. 52 junho/2003

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  • O presente ensaio procura analisar o proble-ma das relaes entre o Estado e o mercado, en-

    tre a democracia e o desenvolvimento, a partir daclssica proposio segundo a qual a plena ope-rao de uma economia de mercado requer aexistncia de um Estado formalmente instituciona-lizado, no s para assegurar a operao impes-soal das normas vigentes, mas tambm para atuardistributivamente de maneira a minimizar as ine-vitveis externalidades provocadas pela intensifi-cao dos laos de interdependncia humana quea prpria expanso do mercado favorece. Aqui alm da reafirmao dessa tese em sua dimenso

    O MERCADO E A NORMA: o Estado moderno e a interveno pblica na economia*

    Bruno P. W. Reis

    * O presente trabalho resulta basicamente de uma re-viso das duas primeiras sees do captulo 3 de mi-nha tese de doutorado, Modernizao, mercado edemocracia: poltica e economia em sociedadescomplexas (defendida no Iuperj em 16 de dezembrode 1997), antecedida de trecho preparado para apre-sentao no II Encontro da Associao Brasileira deCincia Poltica (realizado na PUC de So Paulo, en-tre 20 e 24 de novembro de 2000) por gentil convi-te do prof. Alberto Tosi Rodrigues (UFES). Para pu-blicao, graas s boas sugestes do prof. EduardoNoronha (UFSCar), dividi a verso levada ABCPem duas partes, das quais o presente trabalho cons-titui a primeira. A segunda parte, intitulada Merca-do, democracia e justia social: a economia polticado Brasil contemporneo, foi publicada em Teoria& Sociedade, 7 (junho de 2001), e se dedica explo-rao de algumas implicaes do argumento aqui

    desenvolvido para o caso brasileiro. Para alcanarsua forma atual, o texto beneficiou-se tambm dotrabalho de dois pareceristas annimos da RBCS, aosquais muito agradeo. Naturalmente, nenhuma daspessoas aqui aludidas detm responsabilidade sobreas fragilidades que o texto ainda apresenta.

    Artigo recebido em fevereiro/2002 Aprovado em abril/2003

    RBCS Vol. 18 n. 52 junho/2003

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    esttica, sincrnica buscar-se- tambm funda-mentar a proposio sob uma perspectiva din-mica, diacrnica do mesmo problema de que aexpanso da operao do mercado tem levado namodernidade a uma expanso concomitante daesfera de atuao do Estado, e que seria ainda nomnimo precipitado pretender identificar na modaideolgica neoliberal das ltimas dcadas uma re-verso dessa tendncia histrica. Embora seja re-levante a esse propsito lidar com processos queaparentemente tm origem sobretudo no planodo substrato material da vida social e seus efeitosna arena poltica (ver Bruno Reis, 1997, pp. 42-107), pretendo ater-me precipuamente direocausal inversa, num plano mais contextualizado,para discutir os efeitos que a operao da polticaproduz sobre a dinmica econmica e, mais pre-cisamente, sobre a conduo poltica do funciona-mento da economia em sociedades modernas. As-sim, na seo 1, procuro caracterizar, de maneirabreve, as relaes do mercado com alguns atribu-tos centrais da sociedade moderna e para isso aexposio apia-se fundamentalmente no trata-mento dado ao tema por Max Weber. Na seo 2,discutem-se os efeitos produzidos sobre o funcio-namento do Estado pela operao (e progressivaafirmao e preeminncia) do mercado na socie-dade moderna e a lgica da expanso histrica daatuao estatal sobre diversas esferas da vida so-cial ao longo dos ltimos sculos.

    1. O lugar do mercado

    A anlise dos atributos e das funes domercado ocupa, naturalmente, um lugar proemi-nente no tratamento das relaes entre poltica eeconomia de que nos ocuparemos daqui pordiante. Assim, num primeiro momento baseio-meem certo fragmento de Max Weber para perseguiruma especificao de natureza sociolgica do fe-nmeno do mercado, com o propsito de estabe-lecer algumas teses preliminares que sero cru-ciais exposio subseqente, em que procurodiscorrer brevemente sobre o clssico tema dasrelaes do mercado com a sociedade moderna,a democracia e o Estado moderno.

    1.1 Mercado em Weber e a sociedade moderna:a socializao entre estranhos

    Entre a grande quantidade de anotaes pes-soais que os herdeiros de Max Weber transforma-ram no volume pstumo Economia e sociedade, hum pequeno fragmento incompleto sobre o merca-do (Weber, 1994, pp. 419-422), que quero tomarcomo ponto de partida do presente trabalho. Poiso mercado uma categoria que tem sido em largamedida abandonada aos economistas, e o que ha-bitualmente encontramos sobre ele so polmicasinsolveis de forte contedo doutrinrio acercade seu comportamento dinmico: anrquico paraos marxistas, estvel ou tendente a um equilbriopara os economistas neoclssicos (ou mesmo po-sitivamente anrquico para a escola austraca deHayek e Von Mises). Raramente identificaremosna literatura a preocupao com uma apreensoconceitual do fenmeno do mercado. De fato, tal-vez a operao do mercado esteja por demais nocentro das preocupaes da economia modernapara que o economista se preocupe em definir omercado (da mesma forma, por exemplo, que abiologia e a fsica no perdem muito tempo defi-nindo a vida e a matria, embora isso esteja lon-ge de ser uma empresa trivial). Talvez a tarefapertena antes aos socilogos, que encontrarono mercado uma forma de interao entre outraspossveis e, assim, no tero como escapar identificao de seus atributos distintivos. Sobesse ponto de vista, o pequeno esboo de Weberpresta um servio notvel, pela densidade e ri-queza analtica, atento s mltiplas ambigidadesdo fenmeno, que nos ajudam a compreender asdisputas que alimenta.

    O primeiro choque que a leitura do textoweberiano provoca a caracterizao final domercado como uma relao comunitria (Ge-meinschaft) em que a atitude na ao social re-pousa no sentimento subjetivo (afetivo ou tradi-cional) dos participantes de pertencer ao mesmogrupo (constituir um todo) , e no uma relaoassociativa (Gesellschaft) em que a atitude naao social repousa num ajuste ou numa uniode interesses racionalmente motivados.1 Emboraafirme que o mercado arqutipo de toda ao

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    societria racional, que s h mercado onde huma pluralidade de interessados na troca, e que abarganha trao imprescindvel da caracterizaodo fenmeno especfico do mercado, Weber falaclaramente de comunidade de mercado. Mas,efetivamente, trata-se de uma comunidade bas-tante sui generis:

    [...] do ponto de vista sociolgico, o mercado re-presenta uma coexistncia e seqncia de rela-es associativas racionais, das quais cada uma especificamente efmera por extinguir-se com aentrega dos bens de troca [...]. A troca realizadaconstitui uma relao associativa apenas com aparte contrria na troca (Weber, 1994, p. 419).

    Cada troca caracterizada como uma relaoassociativa, que se esgota no interesse que cadauma das partes deve ter no bem trocado. Ademais,cada uma delas constitui uma sociedade efmera,que se extingue no ato da troca.2 Contudo, o mer-cado resulta ser uma comunidade constituda dastrocas dessa mirade de sociedades racionais,coetneas e sucessivas, alm de efmeras. O fatode eu pertencer ou no a um mercado minhacondio de comprador ou vendedor potencial demercadorias no est sujeito a qualquer decisoracionalmente motivada de minha parte (trao de-finidor da relao associativa), mas uma condi-o objetivamente compartilhada com outros demeus concidados a partir de certos atributos ecircunstncias socialmente identificveis: pelo me-nos, minha posse objetiva de certos bens materiaisem princpio trocveis (mercadorias potenciais) eo reconhecimento de meu direito a essa posse. Seno for assim, nenhuma troca sequer possvel,pois sublinha Weber toda barganha preparat-ria, na medida em que reconhece tacitamente di-reitos recprocos, um ato comunitrio, assimcomo toda troca que utiliza dinheiro requer oufunda uma comunidade, na medida em que pre-sume confiana no valor coletivamente (comunita-riamente?) atribudo a um objeto destitudo de va-lor intrnseco a moeda.

    Assim, a apreenso weberiana do conceitode mercado identifica nele a forma de socializa-o por excelncia que simultaneamente interes-sada (societria) e solidria (comunal): no mer-

    cado, h um reconhecimento evidente de que to-dos podem legitimamente perseguir apenas o seuprprio interesse individual, e a forma de intera-o que o constitui a troca pode perfeitamen-te se dar sem que qualquer dos participantes sepreocupe por um instante sequer com o bem-es-tar do outro; no obstante, no menos importantena configurao da relao de mercado o reco-nhecimento universal de que cada um portadorde direitos que no podem em hiptese algumaser violados caso contrrio, no h troca, masroubo: um crime. por isso que Weber afirmouque o mercado originariamente a forma de so-cializao possvel entre inimigos de maneira ge-nrica, pode-se dizer que se tornou a forma tpicade socializao entre estranhos.3 Reconhece-se, desada, que os dois participantes de uma troca noprecisam se importar um com o bem-estar do ou-tro, mas, paradoxalmente que seja, ainda assim uma forma de relao interpessoal que preservauma dimenso comunal, porque ambos reconhe-cem tacitamente que so portadores de um deter-minado elenco de direitos comuns, e esperam dooutro a observncia desses direitos pertencendoambos, portanto, a alguma forma de comunidade.

    Essa ambigidade fundamental patente napassagem abaixo, que no deixa de ecoar a tesemarxiana sobre o fetichismo da mercadoria:

    A comunidade de mercado como tal constitui arelao vital prtica mais impessoal que podeexistir entre os homens. No porque o mercadoimplica a luta entre os interessados. Toda relaohumana [...] pode significar uma luta com a outraparte [...]. Mas porque ele orientado de modoespecificamente objetivo, pelo interesse nos bensde troca e nada mais (Weber, 1994, p. 420).

    No passou desapercebido a Weber, portan-to, o que pode haver de repugnante no mercadoem conseqncia da frieza e da impessoalidadede sua operao. Ele reconhece que o mercado ,efetivamente, estranho a toda confraternizao,e que toda tica condena a prtica do mercadolivre entre irmos. Mas , ao mesmo tempo, epor essa mesma razo, a nica relao formal-mente pacfica entre estranhos. Assim, a fetichi-zao da mercadoria e a reificao dos seres hu-

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    manos identificadas (e moralmente denunciadas)no capitalismo por Marx em contraste com umimperativo kantiano implcito de tomar cada serhumano como um fim em si mesmo, em Weberso consideradas mais plenamente em seu duplodesdobramento: repugnantes no que concerne empatia fraternal (ou ao amor cristo) que cabe-ria esperar entre os homens sob o ponto de vistamoralmente elevado de um projeto filosfico deemancipao humana, mas instrumentais e even-tualmente bem-vindas do ponto de vista da inte-rao entre estranhos que se observa rotineira-mente em sociedades complexas (ou entre elas).Da a ambigidade fundamental do mercado:emancipatrio por autorizar a perseguio de finspessoais, independentemente da opinio alheia; e(o outro lado da mesma moeda) opressivo porviabilizar, rotinizar e por fim legitimar a indi-ferena recproca.

    Assim, talvez possamos inferir que uma socie-dade crescentemente complexa abstrata, na ex-presso de Popper (1987, pp. 189-191), que formal-mente no mais se fundamenta sobre laospessoais estabelecidos entre seus membros ou cada vez mais mercantil, ou cada vez mais violen-ta. Como observa Weber (1994, p. 422), a expan-so intensa das relaes de troca corre por todaparte paralela a uma pacificao relativa.Mas essaordem relativamente pacificada ser de maneiratambm paradoxal, mas aparentemente inevitvel cada vez mais fria, ou impessoal.4 Sob esse pontode vista, o advento de formas complexas de socie-dade ao longo dos ltimos sculos com a cont-nua massificao e impessoalizao das formas desocializao produzidas ao longo do processo co-nhecido por modernizao acaba por conferirao mercado uma centralidade inusitada em forma-es sociais anteriores, por sua peculiar caractersti-ca, apontada por Weber, de em virtude mesmo desua frieza e impessoalidade constituir a formapossvel de socializao entre estranhos. Pois so-mente em sociedades bastante complexas os conta-tos pessoais com estranhos tornam-se suficiente-mente freqentes para permitir ao mercadosobrepor-se a formas, digamos, mais clidas e pes-soais de interao. E no apenas permitir, mas an-tes exigir do mercado que apesar de todas as co-

    nhecidas deficincias que exibe nessa tarefa de-sempenhe um papel de cimento social que jamais,em sociedades menos complexas, teria sido neces-srio (ou concebvel) que exercesse. precisa-mente sobre o lugar do mercado na sociedademoderna, sobretudo em sua dimenso poltica,que se detm a prxima seo.

    1.2 Mercado, democracia e anonimato:entre a competio e a adscrio

    Pretendo aqui desdobrar a anlise anterior,com o propsito de detalhar as interaes do fe-nmeno do mercado com diversos aspectos espe-cficos da sociedade moderna. Inicialmente, seroanalisadas as relaes que se pode teoricamenteestabelecer entre a forma de sociedade que resul-ta do processo de modernizao e o sistema mer-cantil de alocao de recursos e contingncias so-ciais diversas. Em seguida, passarei discussodos vnculos existentes entre a progressiva centra-lidade do mercado e o processo de paulatina afir-mao do sistema democrtico de governo, para,finalmente, analisar em que sentido se pode afir-mar que se complementam ou se contrapem asoperaes paralelas do mercado e do Estado.

    1.2.1 Sociedade moderna e mercado

    A afinidade que a anlise de Weber permiteidentificar entre a operao do mercado e a im-pessoalizao (e a racionalizao) das relaessociais que tem lugar ao longo do processo demodernizao social autoriza-nos a incorporar aclssica proposio de Karl Polanyi (contra umarelativa naturalizao da operao do mercado,comum entre autores liberais) segundo a qual aregulao da vida social pelo mercado dependeda vigncia de valores e instituies especficos e,portanto, no pode ser considerada, em nenhumsentido, natural. Para Polanyi (1957, p. 43), ne-nhuma economia havia sido, at a modernidade,controlada por mercados. Sem querer entrar norduo problema de se definir de maneira empiri-camente referida o que podemos entender poruma economia controlada ou no pelo mercado

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    (tenho a impresso de que Hayek ou MiltonFriedman, por exemplo, assim como os ditos li-bertrios norte-americanos dos dias de hoje, es-tariam prontos a duvidar de que mesmo a econo-mia do sculo XX fosse controlada pelomercado), cabe observar que, ao descrever minu-ciosamente o processo de construo institucionalque acompanhou a afirmao da economia demercado na Europa moderna, Polanyi, perseguin-do prioritariamente outros objetivos, deixa de sedirigir a um problema fundamental, de naturezaestritamente terica. Ele parece no se perguntarpor que, afinal, essa estrutura to peculiar des-ponta naquele contexto especfico. J que nuncaexistira antes, caberia indagar qual a peculiarida-de da nossa poca que faz emergir e disseminar-se to vigorosamente essa estrutura historicamen-te sui generis a economia de mercado. Polanyino se ocupa desse problema exatamente nessestermos, mas assim que pretendo abord-lo aqui.

    Temerria que seja, a resposta a um problemaformulado dessa maneira no tem como evitarcompletamente uma estrutura interpretativa de na-tureza funcionalista. Embora, no mbito das cin-cias sociais, a aproximao funcionalista seja muitasvezes descrita como eminentemente esttica, cabeobservar que ela se origina na Biologia, com Char-les Darwin, como uma teoria da evoluo das esp-cies. E que, tambm nas cincias sociais, desempe-nha papel central naquela que provavelmente amais ambiciosa teorizao sobre mudana j conce-bida: o materialismo histrico de Karl Marx, confor-me argumentou persuasivamente G. A. Cohen(1978). De fato, difcil conceber qualquer teoriza-o sobre processos de mudana social de largo al-cance que deixe de aludir nem que seja emnome da parcimnia terica s condies ideaisde estabilidade ou instabilidade de determinadasconfiguraes sociais descritas de maneira sistmi-ca: assim temos a grande quantidade de estudossobre a passagem do feudalismo para o capita-lismo, da antigidade para o feudalismo, dasociedade aristocrtica para a sociedade moder-na, da atividade econmica tradicional para ocapitalismo racional, do laissez-faire para owelfare state. evidente que, com muita fre-qncia, esse funcionalismo metodologicamente

    inconsciente de si e recorre de maneira arbitrria postulao de necessidades funcionais que seautocumprem, sem considerao criteriosa dos mi-crofundamentos que poderiam ter produzido oefeito descrito.5 Mas o quadro distinto quando sepode postular algum mecanismo de seleo natu-ral, ou mesmo de imitao deliberada. Estruturassurgidas aleatoriamente (ou seja, por razes ex-ternas ao modelo) podem se multiplicar de modoirresistvel a partir dos resultados (eventualmenteno-intencionais) produzidos. excessiva a afir-mao de que fenmenos sociais no comportammecanismos de filtro como a seleo natural, eum exemplo clssico precisamente o mercado,que expele do sistema econmico o agente queno se comporta de maneira maximizadora.6 Atese weberiana sobre a disseminao do espritodo capitalismo a partir da relao com o trabalhoque o protestantismo asctico tendia a produzir um exemplo clssico de recurso ao mesmo meca-nismo (Hernes, 1989, pp. 138-139 e 153-154).

    Segundo a conjectura que pretendo seguiraqui, a sociedade complexa (abstrata), confron-tada com dificuldades crescentes, no longo prazo,para se constituir numa sociedade precipuamenteadscritiva, induzir o preenchimento pelo mer-cado da necessidade funcional de proviso relati-vamente rpida, atomizada e descentralizada dealocao de recursos e informao. Fernand Brau-del (1987, pp. 40-41) j se referiu ao mercadocomo o primeiro computador posto ao serviodos homens, embora ressaltasse que sua capaci-dade reguladora apenas parcial, no podendoabarcar a totalidade da vida material.7 Essa inter-pretao funcional, claro, no pode explicar ge-neticamente o surgimento do mercado (at por-que, em menores dimenses, ele j existia), maspode perfeitamente sugerir uma explicao para asua disseminao, a partir de mecanismos de fil-tro (anlogo seleo natural) e de imitao.

    No dever surpreender, portanto, a constata-o de um claro trade-off histrico entre adscrio(ascription) e mercado, mecanismo por excelnciade estratificao social competitiva. Observe-se,com efeito, que, mais do que uma relao causal,a excluso mtua entre mercado e adscrio ma-tria de definio e implicao: com adscrio,

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    no h liberdade (autonomia) para competir, ma-ximizar ou mesmo, em geral, para se envolver emtransaes.8 Ademais, como vimos, somente emsociedades altamente complexas os contatos pes-soais com estranhos tornam-se suficientementefreqentes para permitir ao mercado sobrepor-sea modos menos formais de interao.

    Podemos esboar, assim, dois arqutipos so-ciais polares certamente no exaustivos, masportadores de muitas de nossas referncias norma-tivas ideais. De um lado, a soluo de Plato naRepblica, adscrio plena: para produzir a justiatemos de nos conformar a uma ordem em quecada um reconhece o seu lugar e se contenta, fe-liz, com ele, posto que designado por aquele queconhece plenamente a verdade e a justia. De ou-tro, o reino do liberalismo econmico ortodoxo,puro achievement, em que h plena mobilidade,mas ao preo do risco do fracasso, que pode re-sultar na prpria incapacidade de sobrevivncia.9

    seguro afirmar que jamais vir a existir socieda-de alguma que reproduza fielmente qualquer des-ses extremos como ocorre com qualquer tipoideal. Porm, uma questo crucial se impe a estaaltura: diante da constatao do advento de for-mas extremamente complexas de sociedade nobojo da modernizao, seria razovel esperarconstruir uma sociedade platnica, de lugaresmarcados? Numa sociedade complexa, como jobservou Douglass North,10 multiplicam-se expo-nencialmente situaes olsonianas, em que cadaindivduo virtualmente annimo em diversasarenas, tendo em vista o nmero crescente dos in-tegrantes potenciais de grupos sociais relevantes v-se estimulado a se comportar como carona,tornando implausvel a presuno de que todospodero introjetar as noes de dever implicadaspor papis sociais fortemente personalizados (quesupem intensa interao face a face), negligen-ciando oportunidades de recompensas tpicas in-dividuais. E o corolrio lgico de uma sociedadecada vez mais complexa a crescente competiointerna especialmente se, como ressaltou We-ber, o mercado na sua origem a forma de socia-lizao possvel entre estranhos, e um trao sa-liente que distingue a moderna sociedade

    complexa das demais reside precisamente no fatode que se trata de uma sociedade entre estra-nhos, num grau superior a qualquer outra formade sociedade at hoje existente. Assim, pode-seprever que, excetuado o cenrio (sempre poss-vel) de uma catstrofe civilizacional por exem-plo, uma hecatombe nuclear ou ambiental e seportanto aceitamos a sociedade complexa comoum dado da realidade com a qual doravante con-viveremos, ento estamos condenados a reservarao mercado um papel extremamente relevante naconfigurao de qualquer mundo futuro que con-cebamos. Mesmo que admitamos que ele nemsempre tenha exercido esse papel (como nosalerta Polanyi), ou mesmo que reconheamos queele no poder ser o nico princpio organizadorda sociedade e que formas variadas de hierarqui-zao e introjeo de valores estaro seguramen-te presentes (como nos faz ver Durkheim).11 Apropsito, este um aspecto importante de nos-so problema: a afirmao aparentemente inevit-vel de uma organizao social mais e mais com-petitiva no deve nos autorizar a esperar aabolio de toda e qualquer estratificao ou hie-rarquia. Pois achievement e competio impli-cam e supem hierarquia, explicitando de mododramtico o que h de contraditrio no princpiodo mercado: todos devem ser igualmente capa-zes de competir, e todos devem ser vistos comolegtimos competidores, mas, ao mesmo tempo, omulo bsico da competio a afirmao de si,a distino, a reproduo de desigualdades, ahierarquizao.

    1.2.2 Mercado e democracia

    Com a imprevisibilidade tpica das socieda-des comerciais no que concerne s possibilida-des de acumulao de riqueza (logo, multiplica-o das fontes potenciais de poder na sociedade),bem como a atomizao decisria induzida peloprincpio mercantil, impe-se cedo ou tarde umrelativo igualitarismo poltico como forma de in-corporar de modo rotineiro os relativamente im-previsveis deslocamentos das fontes de poder emuma economia de mercado. Esse igualitarismo

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    poder se manifestar ou na melhor hiptese pelo estabelecimento de normas constitucionaisem alguma medida democrticas, ou ento precariamente pela violncia intermitente, tpicado pretorianismo militar, que freqentemente ten-de tambm a ser antitradicionalista e antiaristocr-tico. Mas o fato que com as oscilaes da fortu-na a que todos os atores esto idealmentesubmetidos numa economia de mercado, torna-seimpossvel a longo prazo acomodar os interessesrelevantes num sistema de atribuio exclusiva-mente adscritiva e aristocrtica de status poltico.Caso se queira preservar um sistema como esse,ser imprescindvel impor severos limites reaque se mantm aberta competio econmicamercantil. E, na eventualidade de expanso con-tinuada da operao do mercado, caso se queiraevitar a instabilidade institucional recorrente, pro-vavelmente violenta, ser imperiosa a configura-o de um anlogo poltico-institucional aindaque precrio da imprevisibilidade, da competi-o e da agregao atomizada de preferncias ob-servadas no mercado. Na ausncia da aceitaopacfica de uma rgida hierarquia social e sua ne-cessria complementao na introjeo de papissociais hierarquicamente definidos, no h comoevitar, cedo ou tarde, a generalizao da reivindi-cao do direito a voz na arena poltica.12

    Dito dessa maneira simples, contudo, esse ar-gumento talvez d a entender uma trajetria suavede afirmao universal de direitos polticos igualit-rios, democraticamente compartilhados por todos quase como uma postulao de implicao mtuaentre capitalismo e democracia, a ser constatadaempiricamente em qualquer caso histrico que seanalise. evidente, porm, que a relao de afini-dade e dependncia recproca entre democracia emercado acima postulada no impede que o pr-prio processo de modernizao tanto em sua di-menso material como em seus desdobramentospolticos se d de maneira conflituosa e mesmoviolenta, produzindo desdobramentos especficosem contextos histricos variados.

    Apoiados, portanto, em abundante evidn-cia histrica de coexistncia entre uma organiza-o capitalista da economia e regimes politica-mente repressivos, muitos autores contestaro a

    relao entre democracia e mercado. Um exem-plo recente dessa postura pode ser encontradoem Rueschemeyer, Stephens e Stephens (1992, p.7), que atribuem o avano da causa democrticano ao mercado, mas antes s prprias contradi-es do capitalismo, expressas no fortalecimentogradativo das classes operrias e mdias concomi-tante a um enfraquecimento da classe proprietriade terras. No pretendo negar que essa aproxima-o do problema tenha, de fato, sua relevnciaemprica, servindo para descrever com maior pro-ximidade histrica o drama dos acontecimentosefetivamente verificados em vrios casos impor-tantes de afirmao de regimes democrticos. Emoutras palavras, dado o grande nmero de regi-mes autoritrios que j existiram no interior dosistema capitalista e que continuaro a existir numfuturo visvel, bem como a evidente resistncia democracia movida pelas classes dominantes, amovimentao dos atores na ribalta das disputaspolticas acaba fazendo com que a afinidade ele-tiva entre democracia e mercado parea se darto em ltima instncia que perderia qualqueracuidade prospectiva.

    Por outro lado, esse ponto de vista descon-sidera o fato de que as classes dominantes, so-bretudo nos pases da periferia capitalista, costu-mam resistir no apenas democracia, mastambm operao competitiva do prprio mer-cado. Tendo isso em vista, o argumento de Rues-chemeyer e os Stephens parece-me antes contor-nar a afinidade entre democracia e mercado,mais do que propriamente contest-la. Pois elesparecem no se perguntar detidamente sobre osmotivos pelos quais ocorreu em tantos lugares,durante os ltimos sculos, aquele fortalecimen-to das classes operrias e mdias, concomitanteao enfraquecimento da classe proprietria de ter-ras. Com efeito, a existncia de uma classe pro-prietria de terras poderosa a fonte histricapor excelncia da adscrio social:13 se ela seenfraquece, isso por si s j um sintoma da afir-mao de uma sociedade mais competitiva e,em alguma medida, mercantil, se se trata de umasociedade complexa. E o enfraquecimento dessaclasse aparece como condio relevante do avan-o da causa democrtica na interpretao de

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    Rueschemeyer e os Stephens.Ademais, parece-me evidente que tanto a

    competio no mercado econmico como a de-mocracia repousam ao menos parcialmente so-bre os mesmos princpios de legitimidade, os mes-mos postulados morais individualistas: a afirmaode si, a busca individual da felicidade, a legitimi-dade de se ir procura de interesses prprios.14 Eisso tem importncia na medida em que se podeter constitudo num trunfo relevante nas mos dostrabalhadores em sua luta pela democracia. Assimcomo slogans comunistas puderam ser apropria-dos pela oposio ao regime no Leste Europeu, oliberalismo teria servido tambm aos adversriosda burguesia. Mas, num plano mais fundamental,h sutilezas importantes na relao entre capitalis-mo e mercado, nas quais Rueschemeyer e os Ste-phens no tocam, aceitando simplesmente a iden-tificao entre um e outro. Sob esse prisma,pode-se perguntar at que ponto tem vigncia oprincpio do mercado numa sociedade em queuma oligarquia se apodera dos recursos repressi-vos do Estado em proveito prprio. Por definio,no tem vigncia na esfera da poltica.15 E dificil-mente operar na esfera econmica um princpiocompetitivo de alocao de recursos, j que o po-der coercitivo do Estado ser empregado para as-segurar uma posio monopolstica aos membrosda oligarquia e, como diz Braudel (1987, pp. 45-50), o monoplio o contramercado, usualmen-te desfrutado pelos amigos do prncipe, aliadosou exploradores do Estado.

    Todavia, como j disse, no quero dar a en-tender que presumo um processo suave ou histo-ricamente linear em qualquer sentido. Se entendoque o papel central desempenhado pelo mercadona moderna sociedade complexa induz a algumacompetio tambm na esfera poltica, isto nopode ser entendido como uma afirmao de queo processo de constituio do Estado nacional te-nha de se pautar invariavelmente por princpioscompetitivos, ou democrticos. Pelo contrrio,como sublinhou Charles Tilly (1975, p. 613), ori-ginariamente a concentrao da autoridade nocentro administrativo dos Estados nacionais sedeu claramente a expensas dos (parcos) direitospolticos da maioria dos habitantes. Mas isso no

    exclui a hiptese de que a crescente centralidadedo princpio competitivo do mercado na estrutu-rao das relaes sociais (que, segundo Polanyi,s se tornou realmente preponderante nos lti-mos dois sculos) imponha, sim, a presena decritrios meritocrticos em princpio universalistasna atribuio de poder pelo sistema poltico. Amodernizao efetivamente corri a viabilidadede qualquer critrio ostensivamente adscritivo,aristocrtico, de atribuio de poder poltico. Nopela converso dos atores relevantes ao dogmadas virtudes da competio, mas simplesmentepela possibilidade inextirpvel de o sucesso eco-nmico no mercado produzir focos de poder ex-ternos a qualquer elite previamente delimitada.Essa de fato a raiz da inspirao bsica de Toc-queville sobre a passagem para ele inexorvel da sociedade aristocrtica de seus antepassadospara a sociedade democrtica que ento se anun-ciava. O desafio poltico crucial desde ento criar condies que permitam que a livre afirma-o de interesses tpica do mercado se d dentrode marcos globais de solidariedade to abrangen-tes quanto for possvel, de maneira a se evitar tan-to o contnuo perigo hobbesiano de fragmentaosocial e confrontao belicosa daqueles interessesindividuais, como o chauvinismo paroquial e na-cionalista que, nos momentos iniciais do pro-cesso de constituio do Estado nacional, parecese mostrar inevitvel.16

    1.2.3 O mercado contra o Estado?

    Sob esse prisma, podemos analisar por umnovo ngulo os claros limites da contraposioentre a extenso do poder do Estado e a francaoperao do mercado (comum entre liberais orto-doxos, defensores do Estado mnimo), ao mes-mo tempo em que podemos identificar o sentidoespecfico em que essa contraposio se tornacompreensvel. J nos referimos elaborao we-beriana, em que o mercado aparece como umaforma paradoxal de relao comunitria, compos-ta por uma vertiginosa proliferao de relaesassociativas efmeras, e como essa dimenso co-munal se expressa no reconhecimento mtuo dedireitos compartilhados, para alm do qual cessa

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    toda confraternizao entre os participantes natroca. Se assim, a proteo a direitos individuais condio indispensvel para a simples existn-cia da troca e, como evidente, s haver pro-teo adequada desses direitos numa sociedadecomplexa onde houver Estado em condies deimpor de maneira eficaz a vigncia das normasenvolvidas. certo que a garantia da atuao des-sas normas no se pode dar de maneira estrita-mente coercitiva, e tanto Robert Putnam (1993),numa linha emprico-indutiva, como Robert Axel-rod (1984), num plano experimental, e MichaelTaylor (1976, 1987), num plano formal-dedutivo,argumentaram de maneira persuasiva em favor daimportncia de um ambiente em que recompen-sas e punies recprocas sejam exercidas demodo rotineiro e disseminado, de maneira a indu-zir comportamentos cooperativos espontneos apartir da expectativa de retaliao dos demais aocomportamento desviante.17 Evidentemente, umambiente semelhante favorece o desempenho efi-caz das instituies, pois simplesmente desonerao Estado de parcela importante do custo de fisca-lizao (e represso) em que necessariamente in-corre. Se o Estado pode contar com a adeso dapopulao s normas vigentes, de maneira no sa cumpri-las rotineiramente, mas tambm a puniros recalcitrantes ou ao menos denunci-los sautoridades competentes , ento lcito esperarum desempenho mais eficiente das instituiespolticas. Mas o Estado permanece sendo o fiadorem ltima instncia de qualquer norma legal, es-crita ou consuetudinria, vigente numa coletivida-de poltica e tem no apenas a faculdade, masmesmo o dever de, quando necessrio, recorrer coero fsica para assegurar-se da observnciadessas normas. E no h motivo para se presumirque as normas necessrias operao rotineirado mercado sejam apenas as destinadas prote-o da propriedade privada e da integridade fsi-ca dos participantes. Como mostra Abram DeSwaan (1988, pp. 1-12), sade e educao, porexemplo, podem ser bens to pblicos quanto asegurana. Epidemias podem, em princpio, de-vastar uma economia, sem permitir s pessoasque se defendam privadamente; em outro pla-no, o componente comunal da interao mer-

    cantil requerer a devida socializao dos agen-tes, sob pena de inviabilizar o mecanismo de tro-cas. Ademais, como j observaram diversos auto-res, estratgias que podem ser individualmenteracionais para os agentes no mercado levam fre-qentemente (na ausncia de constrangimentosexternos ao estrito interesse imediato dos agentesenvolvidos na competio) ao colapso econmicomaterializado nas crises de superproduo, ou en-to simplesmente ao fechamento do mercadopor intermdio de privilgios corporativos e bar-reiras diversas livre movimentao do capital e sobretudo da mo-de-obra.18 Cabe, a propsito,sublinhar o paradoxo de que o mercado abando-na o estado de concorrncia perfeita a partir domomento em que os atores passam a agir racio-nalmente em funo de seus interesses e tentamconstruir usando em proveito prprio os dife-renciais de poder que o resultado mesmo da com-petio no mercado lhes confere monopliosou oligoplios que lhes garantam vantagens estra-tgicas em sua competio com os demais agen-tes no mercado. Segue-se a concluso de que, ex-cluda uma ao normalizadora externa, ummercado em concorrncia perfeita logicamenteincompatvel, no longo prazo, com a suposiode agentes maximizadores se apenas admitimosno modelo um comportamento propriamente es-tratgico, e no estritamente paramtrico.19 Enfim,somente existe a operao plena do mercadoonde h livre perseguio de interesses particula-res sob a gide de normas e costumes muito espe-cficos, e onde o Estado pelo adequado funcio-namento de suas instituies capaz decomparecer como fiador eficaz dessas normasjunto ao pblico e de coordenar as expectativasrecprocas numa direo que se possa dizer cole-tivamente desejvel.

    H, decerto, muita controvrsia sobre temasafins a este. Num trabalho clebre, Ronald Coase(1960) argumenta em favor da tese de que, na au-sncia de custos de transao, negociaes dire-tas entre os interessados lidaro com desecono-mias externas de maneira mais eficiente que aregulao por terceiros (tipicamente, governos).Em ltima anlise, ele afirma que, na ausncia decustos de transao, as externalidades tal como

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    definidas pelos cnones da economia do bem-es-tar simplesmente no existem.20 Pareceria mesmodispensvel entrar no mrito do resultado de Coa-se, pois admite-se comumente que os custos detransao crescem com a complexidade da eco-nomia (North, 1994, p. 10), o que faz com que nocontexto relevante eles sejam positivos, e eleva-dos. Restaria, porm, a concluso segundo a qualtoda reduo de custos de transao seria estrita-mente desejvel, por reduzir externalidades eaproximar-nos de alocaes socialmente timasde recursos. Todavia, Farrell (1987) e McKelvey ePage (1999), ao buscarem formalizar o chamadoteorema de Coase, ajudaram a explicitar outraspremissas necessrias ao resultado encontrado o que incluiu uma suposio forte de simetria in-formacional. Assim como a ausncia de custos detransao, a simetria informacional tambm tornao resultado de Coase to menos plausvel quantomais complexa for a sociedade, e o esforo des-medido por reduzir custos de transao podemesmo agravar as assimetrias provavelmente exis-tentes. Em trabalho de menor visibilidade, Avi-nash Dixit e Mancur Olson (1996) levantaram ou-tro aspecto, relativo desconsiderao deproblemas de ao coletiva. Eles mostraram que aconsiderao apressada do argumento de Coasepode conduzir a concluses excessivamente oti-mistas (panglossianas), por no levar em contaproblemas de ao coletiva crescentemente im-portantes medida em que aumenta o nmero deatores envolvidos, e por motivos inteiramentealheios relao entre nmeros [de atores] e cus-tos de transao (Idem, 1996, p. 10).

    Impe-se reconhecer, nesse ponto do argu-mento, a lgica frrea da emergncia e da atuaodos grupos de interesse a partir da garantia dos di-reitos civis. A presena desses grupos parte in-dissocivel da vida democrtica, fruto da simplespossibilidade de livre encaminhamento de deman-das ao Estado. E, se admitimos a possibilidade deproblemas de ao coletiva nos termos estabeleci-dos por Mancur Olson (1965, 1982), a organizaode grupos de interesses e lobbies tenderia a emer-gir at mesmo independentemente da percepode qualquer instabilidade ou falta de proteo so-cial no livre funcionamento do mercado, bastan-

    do, ao contrrio, a mera constatao de que deter-minados interesses coletivos privados poderiamser mais bem atendidos mediante uma atuao or-ganizada e que a proviso de incentivos seletivosgarantisse a transformao de grupos latentes emcoalizes distributivas, abrindo assim a cada mem-bro do grupo de interesse a possibilidade de apro-priao de uma fatia maior do produto global daeconomia. Isso, por sua vez, explicita o carter umtanto estril, em termos prticos, da proposio domesmo Olson (1982), de que um mercado semgrupos de presso seria mais eficiente: um merca-do nesses moldes simplesmente jamais existir,uma vez que o poder coercitivo exclusivo do Es-tado tem de continuar existindo at para a ga-rantia do processo de trocas sob a gide do mer-cado e sua mera existncia estimula a formaode lobbies. E quanto mais lobbies houver, mais gru-pos sero obrigados a formar o seu prprio lobbypara no se tornarem as principais vtimas do pro-cesso. Usando a terminologia da teoria dos jogos,trata-se de um dilema do prisioneiro, onde todosestariam melhor sem lobbies, mas, ao mesmo tem-po, todos so obrigados a se defender dos lobbiesdos outros com o seu prprio lobby (Bruno Reis,1994, p. 115). Portanto, a meta da cooperao uni-versal em assuntos distributivos individualmenteinatingvel e individualmente instvel. Se todas asorganizaes estiverem atuando de modo predat-rio, uma atuao cooperativa isolada seria suic-dio; se, por outro lado, todas estiverem cooperan-do, a organizao que resolver ser agressivapoder auferir lucros extraordinrios. A presenade grupos de presso deve ser tomada, portanto,como um fenmeno inseparvel da prpria natu-reza da democracia moderna.21

    Mas, para alm da complementaridade rec-proca entre Estado e mercado, eu dizia no inciodesta seo que se pode tambm depreender da-qui a raiz da contraposio simplificadora entre Es-tado e mercado, e delimitar a problemtica espec-fica a que se reporta. Argumentei em outro trabalho(Bruno Reis, 1997, pp. 58-66) em favor da tese we-beriana clssica de que a proviso da necessriacoordenao de expectativas numa sociedadecomplexa onde os tradicionais mecanismos face-a-face de controle social tornam-se inviveis im-

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    pe a burocratizao das relaes sociais. Igual-mente incontornvel, porm, se apresenta a expan-so do papel do mercado como um paradoxal dis-ciplinador automtico da conduta social numasociedade de estranhos (abstrata, diria Popper),como em larga medida a moderna sociedadecomplexa. Isso produz uma simbiose peculiar en-tre o Estado e o mercado, uma complementarida-de recproca entre competio e burocracia que fazuma depender da outra para sua plena operao.Assim, se o mercado depende da aceitao incon-dicional da vigncia de determinadas normas im-pessoais para a regulao da competio de modoa impedir que esta degenere em conflito, tambm verdade que a plena vigncia da impessoalidadecaracterstica de um regime administrativo burocr-tico requerer competio em algum nvel, aindaque se reconhea como Weber que ela per-feitamente compatvel com formas autoritrias degoverno.22 De qualquer maneira, mesmo sendo aexistncia da economia de mercado dependente daorganizao concomitante de um ordenamento ad-ministrativo burocrtico, persiste a delimitao pos-svel entre aquilo que hierarquicamente estabele-cido de maneira diretamente burocrtica, de umlado, e o conjunto de atividades que so, por assimdizer, deixadas para a regulao automtica dacompetio mercantil o que produz nos autoresliberais a viso do mercado como ordem espont-nea e os induz defesa do Estado mnimo. En-tretanto, dada a relativa ineficcia da sano moralnuma sociedade complexa, a modernidade parecepresa de uma opo inescapvel: onde as normasvigentes no produzirem alguma regulao compe-titiva mercantil da coexistncia, haver apenas aplena regulao hierrquica, tipicamente burocrti-ca e de alcance relativamente limitado ou, ento,o conflito puro e simples e a prevalncia violentados mais poderosos.23

    2. Explicitando o dilema: o mercado como Dr. Frankenstein (ou, de como o Estado vem a agir)

    J qualifiquei em outro trabalho como esqui-zofrnica a aspirao liberal de conter dentro de

    limites mnimos o mesmo aparato administrativoencarregado de zelar pela observncia do mais ex-tenso leque de direitos individuais jamais propos-to na histria da humanidade (Bruno Reis, 1997,pp. 50-58). Dada a formidvel dimenso mesmode sua tarefa mnima, a capacidade de intervenosobre a vida social com que o Estado modernotem de se prover necessariamente superar, emmuito, a de qualquer outra formao poltica queo tenha antecedido. De fato, ao admitir com fre-qncia que o Estado um mal, ainda que um malnecessrio, o liberalismo v-se diante da tarefa ir-recusvel de conter dentro de limites mnimosesse mesmo Leviat, cuja existncia legitima. Masisso no nos autoriza a imaginar que o Estado li-beral possa estar menos presente na vida dos ci-dados que qualquer Estado desptico pr-moder-no. Pelo contrrio, pode-se argumentar que anatureza mesma das tarefas que os prprios prin-cpios liberais lhe outorgam obriga o Estado libe-ral a exercer maior controle e maior vigilncia queseus antecessores sobre os atos dos cidados, ain-da que o governante esteja, simultaneamente,mais constrangido por normas legais do que emoutras formaes polticas.24

    Mas, para alm de consideraes doutrin-rias, o problema da conteno do Estado torna-seinsolvel ex ante a partir do momento em que seconstata que, tendo a necessidade de se financiarcom recursos materiais extrados de poupanasprivadas para o cumprimento mesmo de uma pau-ta mnima (digamos, a garantia policial da pro-priedade privada), o Estado no pode evitar com-pletamente interferir na vida econmica dacoletividade que o sustenta, uma vez que, comoexistem infinitas maneiras de se gerar riqueza emuma sociedade, logo haver variados modos de secobrarem impostos e como eles evidentementeno so neutros no plano distributivo alguma ar-bitrariedade estar necessariamente envolvida naestipulao da norma tributria, que resultar dojogo natural de presses e contrapresses, prprioda arena poltica. Ao deter, para o adequado cum-primento de sua obrigao mnima de manter asegurana da coletividade, o monoplio do uso le-gtimo dos instrumentos de coero fsica dentrode determinado territrio, o Estado dever estar

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    em condies de impor (em nome da prpria con-servao da ordem e da lealdade de determinadossetores da sociedade) compensaes que even-tualmente contemplem de maneiras variadas qual-quer grupo que se julgue de algum modo prejudi-cado pelas normas existentes grupos esses que,por definio, tero pleno direito de vocalizar edefender seus interesses junto ao Estado. Em quepese o formato extremamente simplificado que oargumento assume aqui, plausvel supor quemecanismos semelhantes tenham ajudado a pro-duzir a enorme distncia entre o Estado liberal efe-tivamente existente e o Estado mnimo dos so-nhos dos liberais mais dogmticos. umadistncia anloga quela que separa o socialismoreal (a hipertrofia do Estado) dos mais douradossonhos socialistas (a extino dele), ainda que tal-vez no to grande quanto ela.25

    No fosse pelo livro de Abram De Swaan(1988), talvez a formulao mais instrutiva da evo-luo histrica desse problema se encontrasse ain-da, sem paralelo, nas conferncias proferidas em1949 por T. H. Marshall (1965) em Cambridge.Marshall explora determinadas ambigidades con-tidas na idia de cidadania que abrem algumasfendas na formulao estritamente liberal da ques-to, por onde se pode depreender certa lgicaconducente iniciativa governamental na formu-lao de polticas sociais. O trao mais conhecidodesse texto a clebre diviso da cidadania emtrs dimenses tpicas: direitos civis, direitos pol-ticos e direitos sociais (Idem, pp. 78-79). Os direi-tos civis so basicamente aqueles necessrios li-berdade individual, caros tradio liberal. Comorigem na afirmao da liberdade religiosa e datolerncia, incluem a liberdade de conscincia,de opinio e de expresso, bem como o direito depropriedade e os direitos processuais penais,como a presuno de inocncia at prova emcontrrio, o julgamento por jri popular etc. J osdireitos polticos dizem respeito participao noexerccio do poder poltico, sobretudo o direitode votar e o de ser votado. Finalmente, os direi-tos sociais, segundo Marshall, englobam um feixede direitos relacionados a nveis mnimos de bem-estar e de segurana econmica, alm de umavida civilizada de acordo com os padres cultural-

    mente prevalecentes na sociedade. Incluem ossistemas pblicos de educao e de sade, bemcomo toda legislao trabalhista e os diversos ser-vios de assistncia social. Num esquema que fi-cou famoso e que, apesar da simplificao evi-dente, no est muito distante da realidade, pelomenos no que toca ao caso britnico, Marshall(Idem, pp. 81-86) fez corresponder a afirmaoinstitucional das trs dimenses da cidadania aostrs ltimos sculos: direitos civis no sculo XVIII,polticos no XIX e sociais no sculo XX.

    bastante bvia a tenso embutida na con-vivncia dessas trs formas de liberdade, especial-mente no que diz respeito afirmao simultneados direitos civis e dos direitos sociais. Seria fcililustr-la pela maneira como uma lei trabalhista,por exemplo, interfere na liberdade de agentesprivados em acertar como queiram um contratode trabalho. Como lembra o prprio Marshall(Idem, pp. 86-87), a decadncia do controle dossalrios pelo governo britnico no sculo XVIIIest relacionada, entre outras coisas, aplicaodos direitos civis na esfera econmica. Trata-se daliberdade de se trabalhar onde se queira, segun-do um contrato livremente firmado pelas partesdiretamente envolvidas. Ao final do sculo XVIII,a idia que hoje temos da cidadania estava dividi-da: o que hoje chamamos direitos sociais asso-ciados regulamentao, proteo de determi-nados grupos no interior da sociedade eraconsiderado velho, um resqucio de costumesherdados das corporaes de ofcios e das guildasmedievais; os direitos civis, por sua vez a legti-ma afirmao de interesses individuais de cida-dos livres , eram o novo. Ao longo de todo osculo XIX, a existncia de proteo social, emvez de ser um requisito da cidadania, era, ao con-trrio, incompatvel com ela. Aquele que necessi-tasse de proteo no poderia ser consideradoum cidado, e at 1918 os eventuais beneficiriosda Poor Law britnica perdiam qualquer direitopoltico que porventura possussem. Os FactoryActs, por sua vez, embora tenham melhorado ascondies de trabalho dos operrios, somente seaplicavam a mulheres e crianas, em respeito condio de cidados dos homens adultos, queno poderiam sofrer uma violncia contra sua li-

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    berdade de estabelecer e cumprir um contrato detrabalho. Tanto que, lembra Marshall (Idem, p.89), campees dos direitos das mulheres foramrpidos em detectar o insulto implcito. As mulhe-res eram protegidas porque no eram cidads.

    Em princpio, a expanso de direitos civisigualmente acessveis a todos, decorrente da afir-mao da viso liberal da cidadania, no deveriaentrar em conflito com as desigualdades da socie-dade capitalista; ao contrrio, segundo Marshall(Idem, pp. 95-96), era necessria sua manuten-o. Isso porque, como foi dito, o ncleo da idiade cidadania poca de afirmao do capitalismoestava contido nos direitos civis. E isto os torna-va, alm de imprescindveis prpria instauraode uma economia competitiva de mercado, talveza nica fonte de legitimao das crescentes desi-gualdades econmicas produzidas durante todo oprimeiro sculo da Revoluo Industrial que po-diam aparecer, assim, ainda que de maneira ina-ceitavelmente cruel, como um preo a ser pagopela conquista da liberdade. No chega a ser sur-preendente, portanto, que date dessa poca a de-nncia do liberalismo como ideologia da burgue-sia. Sendo, todavia, os direitos sociais modernosem boa medida uma subverso dos direitos civiscaros tradio liberal,26 resta explicar o fato deque, bem ou mal, eles acabaram incorporados coleo de direitos englobados pela moderna no-o de cidadania, lado a lado com os mesmos anteriormente incompatveis direitos civis.

    A expanso dos direitos polticos na direodo sufrgio universal constitui uma primeira linhade explicao possvel. A partir do momento emque h sufrgio eleitoral de qualquer espcie parao preenchimento do comando do governo, a ques-to de se determinar a extenso precisa do eleito-rado passa a ser uma pergunta aberta, em princ-pio, a inmeras respostas, e o que maisimportante a resposta eventualmente dada a essapergunta pode interferir de maneira decisiva no re-sultado da disputa.27 Com isso, os governos passa-vam a ter um forte incentivo a tomar a iniciativa deexpandir por conta prpria o sufrgio, buscandobeneficiar-se eleitoralmente disso, antes que a opo-sio, uma vez no poder, o fizesse. O sufrgio no-universal um arranjo instvel, transitrio, pelo

    menos num contexto em que se afirma concomi-tantemente a universalizao dos direitos civis. Daexplicar-se a relativa rapidez (aproximadamenteum sculo) com que se passou da instaurao re-gular do sufrgio no Ocidente para a generalizaodo sufrgio universal.28

    Uma vez incorporados ao sufrgio, os novossetores do eleitorado esto em condies muitomelhores para dirigir pleitos ao governo. E este,por sua vez detendo, com vistas segurana detodos, o monoplio do uso legtimo da fora ,pode, se quiser ou julgar conveniente, atender aesses pleitos, ainda mais que sua ao estaria ago-ra legitimada por uma suposta vontade popular.Confirmando os piores pesadelos dos liberais maisortodoxos, a aurora do sculo XX iria restaurar oespectro da tirania da maioria que o liberalismoelitista posterior Revoluo Francesa se esfora-ra por banir. As conseqncias trgicas dessa per-cepo no tardaram em se fazer sentir, e tm sidoarduamente combatidas, desde o fim da SegundaGuerra Mundial, mediante certa intolerncia comos intolerantes que busca evitar, na prtica, umapossibilidade que, desgraadamente, no pode serexcluda por completo com instrumentos legais: osuicdio da democracia, em que o eleitorado es-colhe ser governado despoticamente.29

    A partir do incio do sculo XX, portanto, ge-neraliza-se a interveno governamental nas dispu-tas na indstria, o que traz como contrapartida na-tural a interveno, fragmentada que seja, dascorporaes no funcionamento do governo. Poisdecises tomadas a partir de um processo de co-participao intensa das diversas partes interessadastm maiores possibilidades de serem coletivamenterespeitadas e acatadas. E a elitista democracia bur-guesa do sculo XIX comea lentamente a se mo-ver, impulsionada pela expanso paulatina daparticipao das massas na arena poltica, na di-reo do Estado de bem-estar social tpico das na-es mais industrializadas da segunda metade dosculo XX. Em parte, um motor provvel subja-cente a esse movimento ter sido a constataode que, como nos lembra Marshall (1965, p. 123),a generalizao do respeito aos direitos da cida-dania traz consigo maior propenso da populaoa arcar com os deveres da cidadania.30 E aquele

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    Estado burgus que ento se instalava em toda aEuropa vinha tendo sua autoridade fortementecontestada sobretudo no continente, verdade desde meados do sculo XIX, principalmente apartir da conclamao revolucionria contra eledirigida pelo movimento operrio.

    A circunstncia em que se iniciara o sculoXIX com a derrocada dos antigos regimes anteos novos valores liberais somada degradaoflagrante das condies de vida nos centros urba-nos ter seguramente desempenhado um papelimportante na disseminao de uma atitude con-testadora perante a nova ordem industrial e, mes-mo, na sobrevivncia do sonho revolucionrio.Pois o sculo j se iniciara trazendo na ordem dodia o sonho da instaurao revolucionria de umanova sociedade. Desde a Revoluo Francesa essapromessa se renovava de maneira dramtica nopalco das disputas polticas e na imaginao doscidados mais afeitos a uma esteticizao romn-tica da poltica. E essa promessa era continuamen-te frustrada pelos malogros parciais ou totais dassucessivas rebelies, bem como pelas assustado-ras condies de vida de grande parte da popula-o da poca. O sonho democrtico parecia seinstalar sob o signo de uma gigantesca fraude.Mas a revoluo, por outro lado, parecia uma rea-lidade palpvel, pois ainda ecoavam os trovesda Revoluo Francesa, cabeas coroadas haviamrolado, e toda a Europa permaneceu por dcadaspoliticamente convulsionada.31 A indignao como mundo que estava diante de seus olhos, soma-da a uma boa dose de wishful thinking, levou osrevolucionrios de ento a imaginarem iminenteo colapso de uma ordem socioeconmica queapenas comeava a se instalar. Tudo isso ajuda aexplicar como a bandeira da liberdade se viu pro-gressivamente substituda pela bandeira da justiasocial nos projetos dos reformadores sociais (que,atentos tenso existente entre ambas, parecemno se dar conta de sua complementaridade rec-proca), e como os direitos civis se vem relega-dos categoria de preconceitos burgueses poruma parcela relevante dos atores polticos desdeaquela poca at o colapso do socialismo realem 1989. Diante dessa contestao frontal sualegitimidade, os governos desde ento se vem

    diante da convenincia de responder a esse desa-fio de modo positivo, incorporando, tanto polti-ca como materialmente, as camadas sociais antesmantidas margem do sistema. V-se a como aprpria lgica deflagrada pela universalizao dosdireitos civis termina por redundar, no obstanteas tenses admitidas, na aberta reivindicao po-pular e posterior chancela estatal dos direitos so-ciais. Esse o preo da universalizao dos direi-tos civis numa sociedade desigual. por isso queRalf Dahrendorf (1992, pp. 49-52) ir dizer que asociedade civil no um jogo privado [...] par-te das instituies do governo, muito menos con-tra elas. Ao contrrio, as prerrogativas da cidada-nia so efetivas somente se h estruturas depoder que as sustentem. A cidadania, prossegueele, acaba sendo o nico status legalmente impo-sitivo que restou. Mas esse status impositivo aomesmo tempo irrecusvel, pois se a livre opera-o do mercado reproduz continuamente desi-gualdades, a operao estvel da democracia terconseqentemente de requerer como nos lem-bram Rueschemeyer, Stephens e Stephens (1992,p. 41) uma separao institucional razoavel-mente forte o termo tcnico diferenciao entre o reino da poltica e o sistema geral de de-sigualdades na sociedade. O que significa dizerque requerer, em alguma medida, uma ao ofi-cial contnua, voltada para a permanente reafir-mao institucional da igualdade de status neces-sria tanto operao democrtica do regimepoltico como operao eficiente do mercadoeconmico. No por acaso que o liberalismo eco-nmico ortodoxo freqentemente acusado deflertar com o autoritarismo poltico, como se deunos casos do regime de Pinochet, no Chile, e doExtremo Oriente nos anos de 1970-1980.32

    Quase quarenta anos mais tarde, a anlisede Abram De Swaan detalha e complementa acontribuio de Marshall, incorporando ao trata-mento do tema elementos da teoria olsoniana daao coletiva. O problema de que se ocupa DeSwaan anlogo ao de Marshall, mas formuladode acordo com as nfases e as preocupaes tpi-cas do individualismo metodolgico explicitara maneira pela qual questes como sade, educa-o e pobreza se transformaram, durante os lti-

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    mos sculos, em assuntos coletivos, dos quais seespera que a autoridade pblica venha a se ocu-par rotineiramente. Na introduo a seu estudo,De Swaan (1988, p. 2) enuncia a questo que pre-tende resolver: Como e por que as pessoas vie-ram a desenvolver arranjos coletivos, nacionais ecompulsrios para lidar com deficincias e adver-sidades que pareciam afet-las separadamente eclamar por remdios individuais?

    Sua resposta apia-se sobre dois pilares. Oprimeiro remete sociologia poltica de NorbertElias e sua postulao filha direta da sociologiaclssica dos tempos de Durkheim e Weber deuma contnua extenso e intensificao, ao longodo tempo, das cadeias de interdependncia hu-mana. O segundo, de natureza mais formal, en-foca os efeitos das externalidades provocadas poressa crescente interdependncia, que foraro osatores a se ocuparem publicamente de malesalheios (De Swaan, 1988, pp. 2-3). Diferentemen-te do que se teria passado, por exemplo, no con-texto medieval, em que segundo De Swaan ospobres representavam sobretudo a possibilidadede riscos e benefcios individuais para aquelessocialmente estabelecidos (basicamente, o riscode violncia pessoal ou contra a propriedade in-dividual, assim como um possvel servidor pes-soalmente leal no trabalho ou na guerra), em tem-pos modernos as ameaas e os benefciospotenciais provindos dos desfavorecidos afetamos ricos sobretudo coletivamente, pois so amea-a ordem pblica, harmonia das relaes detrabalho e mesmo sade pblica, ao mesmotempo em que se constituem parte de um exrci-to coletivo, impessoal, de potenciais trabalhado-res, recrutas, consumidores e eleitores.33 A conse-qncia imediata desse fenmeno reside em quese de um lado o senhor medieval podia (alis, ti-nha de) lidar individualmente com as ameaas eas oportunidades representadas pelos seus po-bres seja assegurando contra eles sua proteopessoal, seja conquistando-lhes a lealdade pessoal ,do outro lado a proteo contra os perigos ofere-cidos pelos deserdados de hoje, assim como apossibilidade de se beneficiar deles, se apresen-tam ao moderno burgus como um problema deao coletiva tal como sistematizado por Olson

    (1965). Ou seja, se ao aristocrata medieval no eradeixada escolha seno lidar ele mesmo, privada-mente, com os riscos e as oportunidades ofereci-dos, ao burgus moderno , em princpio, poss-vel comportar-se como um carona em relao aesse problema. Se outros se encarregarem de trei-nar e disciplinar a fora de trabalho, cooptar po-liticamente as massas etc., ele se beneficiar doresultado independentemente de seu prprio es-foro. Se, por exemplo, esforos coletivos organi-zados se encarregam das condies sanitrias emque vivem os pobres num centro urbano, toda apopulao estar livre de uma possvel epidemiamortal, tendo ou no contribudo para a tarefa;igualmente, se uma mfia privada impe a ordem,todos desfrutaro da segurana proporcionada,independentemente de terem contribudo ou nopara o policiamento. O resultado previsvel que esses esforos no sero viabilizados, a noser que se institua uma contribuio compulsriapara a sua realizao, normalmente na forma deimpostos, mas eventualmente tambm como umservio obrigatrio (no por acaso que toda m-fia pratica extorso).

    Para De Swaan, o welfare o anlogo mo-derno da caridade medieval. Se os habitantes docastelo, peridica e espontaneamente, exerciamem interesse prprio, num ritual festivo qualquer,a sagrada virtude da caridade, em tempos moder-nos a impessoalidade que paradoxalmente se dis-semina nas relaes sociais em conjunto com a in-tensificao das cadeias de interdependnciahumana impede que o sistema continue a funcio-nar apoiado em contribuies espontneas. Mas,de qualquer maneira, a ordem normativa se im-pe, agora apoiada sobre contribuies compuls-rias determinadas em normas impessoais burocra-ticamente implementadas. Pois, na ausncia dessacoordenao impositiva, o cenrio seria fatalmen-te de radical instabilidade e imprevisibilidade.Tambm aqui, no trabalho de De Swaan, temosum argumento de natureza funcionalista, em quea coordenao de expectativas desempenha opapel de varivel homeosttica central. Mas, emvez de tom-la por assegurada, como um funcio-nalista mais entusiasmado tenderia a fazer, DeSwaan se indaga sobre suas condies de obten-

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    o, e o faz seguindo uma metodologia individua-lista, apoiada em recursos analticos tpicos dateoria da escolha racional. Tanto que De Swaan(1988, p. 8) reconhece que a incerteza quanto possibilidade de adversidades, por si s, no nosconduziria compulsoriedade da contribuio,mas antes a alguma forma de associao de segu-ro voluntrio apoiado num clculo probabilsticode risco pessoal. O fator decisivo a tornar inevit-vel a contribuio compulsria a multiplicaodas externalidades enfrentadas a partir da intensi-ficao dos laos de interdependncia no interiorda sociedade moderna, urbana.

    Observe-se como, tanto em Marshall comoem De Swaan, vemos operar diferentes mecanis-mos pelos quais o processo de afirmao de inte-resses termina por desenvolver-se na direo deuma ampliao paralela dos marcos de solidarie-dade institucionalmente prescritos na sociedade,tal como se d na definio de desenvolvimentopoltico elaborada por Fbio W. Reis (2000a, pp.123-160). Em Marshall, vemos a livre perseguiodo interesse privado, chancelada pelos direitos ci-vis, resultar, por sua prpria dinmica, em inicia-tivas redistributivas contidas nos direitos sociais,ou seja, numa expanso dos marcos de solidarie-dade em que opera a sociedade. Em De Swaan,um irresistvel processo de crescente interdepen-dncia recproca induz a que o interesse indivi-dual de cada um seja melhor atendido com a co-letivizao compulsria do combate a uma sriede externalidades geradas por problemas emprincpio individuais. Com efeito, parece que a li-vre busca da realizao do interesse individualpor todos requerer a mitigao de diferenas so-ciais extremas porventura existentes.34 Nesse sen-tido, a histria do Ocidente nos ltimos sculostal como a descrevem Marshall e De Swaan ilus-tra, a despeito de todas as suas idas e vindas, umcaso inequvoco de progressivo desenvolvimen-to poltico aparentemente ainda em curso noprocesso de institucionalizao de blocos regio-nais internacionais, que prossegue o percurso deampliao dos marcos de solidariedade noobstante as presses a que se encontram subme-tidas presentemente as possibilidades de imple-mentao eficaz dos direitos sociais.

    Todavia, claro que no podemos tomar aidentificao desse caso de desenvolvimento his-toricamente observado e transform-lo numa pro-posio ao mesmo tempo histrica e terica queafirmaria sua existncia necessria, ou que o de-senvolvimento observado at aqui prosseguirinexoravelmente o seu curso rumo a uma aproxi-mao do estdio ps-ideolgico tal como deli-neado por Fbio W. Reis (2000a, p. 150).35 Ade-mais, mesmo quando se observa esse percurso, alinha evolutiva geral pode comportar tantas e toprofundas oscilaes de alcance histrico maiscurto que ela com freqncia se torna praticamen-te imperceptvel no curso de uma vida humana e isto, claro, tem grave relevncia moral. Assim,o perodo coberto por Marshall e De Swaan assis-tiu a restauraes monrquicas, golpes de Estadoautoritrios, processos violentos de decomposioou fragmentao de Estados, polticas oficiais desegregao de diversas naturezas, guerras interna-cionais em escala sem precedentes etc.

    Contemporaneamente, lidamos apesar doque h de positivo, sob o ponto de vista de uminternacionalismo humanista, no processo de in-ternacionalizao poltica observado na formaode blocos regionais internacionais com os riscosenvolvidos no recente processo de desregulamen-tao econmica no plano infranacional, que fre-qentemente tem resultado em certo desmantela-mento do conjunto de normas que compem osdireitos sociais. De um ponto de vista como o deDe Swaan, esse movimento s pode significar umaoscilao temporria na tendncia geral de coleti-vizao agora no plano internacional de as-suntos que hoje nos pareceriam estritamente afei-tos a agendas polticas domsticas. Pois, dado oprocesso inexorvel de intensificao da interde-pendncia humana, claramente reafirmado eaprofundado pela globalizao em voga, diversasexternalidades no tardariam a se fazer sentir, taiscomo crescente presso migratria internacional,aumento da turbulncia poltica domstica nospases centrais etc., impondo novas solues co-letivas de natureza compulsria mais regula-mentao, portanto.36 O problema que oscila-es como essa podem abarcar geraes inteiras,e sua profundidade imprevisvel ex ante. At

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    onde as chamadas externalidades podem ir antesde se encontrar uma soluo consensual para elas(ou melhor, antes que se torne racional para cadaator relevante aderir a uma soluo institucionalpara elas) uma questo em aberto, e, assim, lon-gos perodos de grave turbulncia poltica sosempre uma possibilidade.37

    A situao nos dias de hoje torna-se particu-larmente delicada a partir do momento em que seconstata que assim como se teria dado no pro-cesso de coletivizao dos problemas sociais se-gundo a descrio de De Swaan a ltima ondade internacionalizao de mercados coloca cadapas diante de um problema de ao coletiva per-feitamente anlogo quele com que se depararamas diversas burguesias nacionais h aproximada-mente um sculo. Apanhado em um trade-off en-tre proteo social e competitividade comercial,cada governo se v aparentemente diante do dile-ma entre desmantelar ainda que de forma par-cial o sistema nacional de seguridade social paramanter algum dinamismo econmico custa doaumento das desigualdades internas, ou entopreservar as conquistas sociais anteriores emnome da preservao da paz social interna, mas custa de certo comprometimento do dinamismoeconmico e de um aumento expressivo do de-semprego, que certamente acabaro por compro-meter, em alguma medida, aquela mesma paz so-cial que se buscava preservar (Esping-Andersen,1995). Disso resulta que, enquanto no se impuseruma soluo que seja legalmente compulsriapara todos os pases, e que inclua a previso desanes rapidamente aplicveis, e eficazes, paraos pases que a transgredirem, todos sero induzi-dos a se comportar de modo agressivo no merca-do internacional, comprometendo conquistas so-ciais anteriores.38 Dado, porm, o papel centraldesempenhado pelos direitos sociais conformese pode inferir da interpretao de Marshall nauniversalizao do pleno exerccio dos direitos ci-vis em sociedades marcadas (hoje como ontem)por fortes desigualdades internas, parece imprevi-svel o efeito desse desmantelamento da legislaosocial sobre a legitimidade futura do arcabouoinstitucional das democracias contemporneas.Pois, se a institucionalizao democrtica se baseia

    num compromisso um tanto frgil, apoiado nacrena de que a observncia de determinados pro-cedimentos polticos universalistas resultar de al-gum modo no benefcio de todos (Bruno Reis,1997, pp. 66-71), ento a questo da sobrevivn-cia material dos pactuantes deve estar encaminha-da (e, depois da experincia do welfare state, es-perar-se- certamente uma sobrevivncia materialno menos que confortvel). Se se dissemina apercepo de que o sistema poltico simplesmen-te se torna injusto, deixando de promover algunsvalores socialmente compartilhados, ento todo oaparato institucional democrtico se tornar parti-cularmente vulnervel a eventuais ataques caris-mticos.39 E o problema contemporneo revela-semuito mais grave do que o de sculos passados,descrito por Marshall e De Swaan, a partir do mo-mento em que se constata que os indispensveismecanismos institucionais de normalizao decondutas num plano internacional se encontramnum estdio de desenvolvimento muito inferiorquele em que se encontravam os diversos Esta-dos nacionais h, digamos, um sculo atrs e,mesmo ali, o processo de incorporao no dei-xou de ser acidentado e traumtico.

    3. Notas finais: democracia, modernidade e mercado

    As fontes de legitimidade da democraciamoderna colocam-na, portanto, numa posiodelicada, em que suas perspectivas de estabilida-de passam a depender de uma combinao ra-zoavelmente complexa de fatores. Em primeirolugar, a adeso a princpios democrticos requero abandono progressivo de fins substantivos aserem perseguidos pelo sistema poltico, em fa-vor de uma valorizao crescente de determina-dos procedimentos a serem seguidos. No limite,esses procedimentos apiam-se em formas espe-cficas de tratamento entre as pessoas tomadasindividualmente, pessoas essas cujo bem-estar(definido de maneiras variadas por cada uma de-las) se torna o grande fim legtimo a ser busca-do, o que consistente com a mxima kantianaque obriga a todos a tomarem cada ser humano

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    como um fim em si mesmo. Todavia, temosclaramente um problema aqui quando constata-mos que desses procedimentos, dessas formasde tratamento, as pessoas evidentemente espe-ram resultados especficos para as suas vidas,nem sempre compatveis uns com os outros.Pois, na sociedade moderna, liberal, o fim a sercoletivamente perseguido no mais pode consis-tir em um feito coletivo, mas sim numa certa li-berdade desfrutada individualmente parabuscarmos o fim que pessoalmente nos aprou-ver, contanto que ele no inclua o uso direto deviolncia sobre terceiros. O problema reside emque como nos diria De Swaan no h manei-ra de o sistema se assegurar a priori contra asexternalidades que a livre busca da felicidadepor cada um necessariamente produzir sobre aschances de realizao da felicidade de outros.Disso resulta a sensao, compartilhada por tan-tos em nosso tempo, de estarmos no interior deuma imensa e insensvel engrenagem, um enor-me moedor de carne. evidente que, na ausn-cia de algum controle externo (e talvez mesmona presena dele), a pura operao dessa engre-nagem impessoal reproduz inevitavelmente desi-gualdades de todo tipo, que impedem mesmo agenuna competio por no permitir concreta-mente a necessria igualdade de oportunida-des para todos. A disseminao da idia de quevivemos em uma sociedade que no se importacom as pessoas subverte o desafio bsico do Ilu-minismo, que inspira toda a modernidade (tomarcada um como um fim em si mesmo), e podeprovocar graves crises de legitimidade e autorida-de do sistema, pondo em permanente risco aprpria sobrevivncia da democracia.40

    A sociedade moderna tem diante de si o de-safio complexo de equilibrar-se perante esse pro-blema. Ela tem de permitir a cada um buscar aprpria felicidade segundo uma compreensopessoal do que seja essa felicidade, impondo, deum lado, uma feroz competio entre as pessoas(na medida em que contesta a legitimidade de cri-trios adscritivos de estratificao), mas ao mesmotempo v-se obrigada a intervir continuamentenessa competio (de certa maneira desvirtuando,sim, seus resultados, como se queixam os liberais

    mais ortodoxos) de forma a assegurar nveis mni-mos de igualdade de oportunidades entre os cida-dos, abaixo dos quais a competio mesma per-deria toda a credibilidade entre os contendores,induzindo-os ou acomodao cnica que nohesita um segundo em burlar as regras da compe-tio em proveito prprio quando a ocasio seapresenta, ou contestao frontal da legitimida-de do sistema (ou mesmo o que no raro aambas). Com efeito, o poder pblico tem a atri-buio complexa e paradoxal de interferir conti-nuamente na operao do mercado para de fatorefundar permanentemente o prprio mercado,ao mant-lo em um estado to prximo quantopossvel da concorrncia perfeita e amparar mi-nimamente os casos de insucesso, dada a tendn-cia concentradora que resulta da livre interaodos agentes econmicos no mercado. Na ausn-cia de interferncia externa, essa tendncia crista-lizaria relaes econmicas originariamente mer-cantis em relaes coercitivas adscritivamentedefinidas, a partir do uso irrestrito por algunspoucos do poder econmico que resultaria deseu sucesso inicial na competio mercantil.

    NOTAS

    1 Para uma exposio sumria dos significados de re-lao comunitria e relao associativa, ver Weber(1994, pp. 25-27), que elabora esse tema a partir dadistino original de Ferdinand Tnnies entre Ge-meinschaft e Gesellschaft.

    2 De fato, a troca estritamente racional referente afins e livremente pactuada no mercado: um com-promisso momentneo entre interesses opostos,porm complementares para Weber (1994, p. 25,grifos do autor) um dos trs tipos puros de relaoassociativa, em conjunto com a unio livrementepactuada e puramente orientada por determinadosfins, e a unio de correligionrios, racionalmentemotivada com vista a determinados valores.

    3 Na formulao de Hayek (1967, p. 168), a primeiratroca efetuada entre membros de duas tribos distin-tas marca o incio da passagem da organizao tribalpara a ordem espontnea da Sociedade Aberta (tra-duo minha), pois o primeiro ato que atende apropsitos recprocos sem atender a nenhum prop-sito comum.

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    4 Talvez precisamente por reao a esse processo que se explique a longa persistncia do romantismocomo movimento culturalmente relevante durantetoda a modernidade, talvez o mais importante mo-vimento cultural ocidental do perodo moderno,como diz Edward Tiryakian (1992, pp. 84-85), queo identifica como exemplo de um processo dereencantamento, paralelo ao desencantamentoidentificado por Weber, e alimentado mesmo poreste ltimo.

    5 Um veemente ataque legitimidade do recurso aofuncionalismo em cincias sociais, que denuncia compropriedade seus abusos mais comuns, pode ser en-contrado em Jon Elster (1989a). Uma convincente de-fesa do recurso ao funcionalismo, tomados os devidoscuidados, encontra-se, porm, em G. A. Cohen (1990).

    6 Para uma apresentao rpida de meus pontos devista sobre a controvrsia em torno do funcionalis-mo nas cincias sociais e, contra a posio defendi-da por Elster, sobre a fecundidade potencial de suautilizao conjunta com o aparato analtico da es-colha racional, ver Bruno Reis (1997, pp. 18-28).Sou grato a um dos pareceristas annimos da RBCSpor me fazer ver a necessidade de me estender umpouco mais sobre esse ponto.

    7 O conceito de vida material tem um significadopeculiar em Braudel (1987, pp. 13-14), que o expsda seguinte maneira: Parti do cotidiano, daquiloque, na vida, se encarrega de ns sem que o saiba-mos sequer: o hbito melhor, a rotina mil gestosque florescem, se concluem por si mesmos e emface dos quais ningum tem que tomar uma deciso,que se passam, na verdade, fora de nossa plenaconscincia. Creio que a humanidade est pela me-tade enterrada no cotidiano. Inumerveis gestos her-dados, acumulados a esmo, repetidos infinitamenteat chegarem a ns, ajudam-nos a viver, aprisionam-nos, decidem por ns ao longo da existncia. Soincitaes, pulses, modelos, modos ou obrigaesde agir que, por vezes, e mais freqentemente doque se supe, remontam ao mais remoto fundo dostempos. Muito antigo e sempre vivo, um passadomultissecular desemboca no tempo presente como oAmazonas projeta no Atlntico a massa enorme desuas guas agitadas. Foi tudo isso que tentei captarsob o nome cmodo mas inexato, como todas aspalavras de significao excessivamente ampla devida material. Bem entendido, trata-se de uma par-te apenas da vida ativa dos homens, to profunda-mente inventores quanto rotineiros. Em trabalhoanterior, Braudel (1995, p. 12) completa: [...] umazona de opacidade, muitas vezes difcil de observarpor falta de documentao histrica suficiente, seestende sob o mercado: a atividade elementar de

    base que se encontra por toda a parte e cujo volu-me simplesmente fantstico. falta de termo me-lhor, designei essa zona espessa, rente ao cho, devida material ou civilizao material.

    8 Devo a Fbio W. Reis a advertncia para este ponto.

    9 Era certamente com base numa contraposio an-loga a essa que Hayek costumava qualificar o socia-lismo como uma nostalgia da sociedade arcaica, dasolidariedade tribal (Sorman, 1989, p. 192).

    10 North (1990, p. 93, apud Putnam, 1993, p. 178) v ocomportamento oportunista como uma estratgiacrescentemente compensadora, medida que a so-ciedade se torna mais complexa.

    11 Contraposta ao otimismo de Herbert Spencer quan-to capacidade integradora do mercado, a posiode Durkheim parte da constatao da corroso ine-vitvel da solidariedade mecnica na sociedade mo-derna, mas, diferentemente da f liberal no merca-do, para ele a solidariedade orgnica no seriacapaz de prover sozinha uma integrao totalmen-te espontnea dos interesses individuais. Mecanis-mos impessoais como o mercado no bastam. Nopodem ser os nicos mecanismos de integrao, oumelhor, no se pode pretender que a integraoseja totalmente espontnea, no regulada normati-vamente. De onde decorre a preocupao durkhei-miana acerca do carter anmico das sociedadesmodernas (McCarthy, 1991, p. 121).

    12 evidente o parentesco existente entre esse argu-mento e a teoria pluralista da democracia, que tal-vez encontre sua formulao mais acabada em Ro-bert Dahl (1971). Na viso de Dahl, crucial para ademocracia que nenhum grupo social isoladamentetenha acesso exclusivo a qualquer recurso de poder viso esta que, como lembra Fernando Limongi(1997, p. 19), tributria direta de Montesquieu, Ma-dison e Tocqueville. Com efeito, exatamente esteo argumento subjacente viso de Tocqueville so-bre um presumvel movimento inexorvel do mun-do contemporneo rumo sociedade democrtica.Logo na introduo de A democracia na Amrica(1979, p. 185), ele o enuncia, em seu estilo: Desdeque os cidados comearam a possuir a terra atravsde modalidades estranhas propriedade feudal, equando a riqueza mobiliria, tornando-se conheci-da, pde, por sua vez, proporcionar influncia e darpoder, no se fizeram descobertas nas artes, no seintroduziram mais aperfeioamentos no comrcio ena indstria, sem criar nmero equivalente de ele-mentos novos de igualdade entre os homens.

    13 De acordo com o trabalho etnolgico de StanleyUdy (1959, apud F. W. Reis, 2000a, pp. 231-233), a

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    adscrio viria junto com o sedentarismo acarretadopela agricultura, em contraste com o que se dariacomumente em sociedades tribais de caadores, emgeral nmades, nas quais o problema da utilizaotima dos recursos materiais e humanos se colocacom agudeza, o que faria com que prevalecessemformas de organizao do trabalho que tendem acaracterizar-se por traos tais como especificidadequanto diviso do trabalho [e] nfase no desem-penho ao invs de em qualidades adscritivas. Aocontrrio, a sociedade camponesa de agricultura se-dentria poderia arcar com um declnio da eficin-cia que presumivelmente resulta do predomnio deformas adscritivas de organizao do trabalho, emvirtude da segurana econmica comparativamentemaior, propiciada pela atividade agrcola sedentria.

    14 Para uma afirmao bastante conhecida da tese deque a democracia repousa sobre um ponto de vistamoralmente individualista (uma concepo indivi-dualista da sociedade), pode-se recorrer a Norber-to Bobbio (1986, p. 22).

    15 E, portanto, no opera o mercado poltico talcomo definido por Fbio W. Reis (2000a, esp. pp.131-153).

    16 Para uma exposio da dialtica entre solidariedadee interesses, referida operao de um critrio nor-mativo de avaliao do cumprimento da funopoltica em qualquer sociedade, ver Fbio W. Reis(2000a, pp. 123-160).

    17 Para uma apresentao bastante sucinta desses ar-gumentos, ver Bruno Reis (1997, esp. pp. 90-94),onde descrevo o argumento de Putnam sobre a re-lao entre comunidade cvica e desempenho insti-tucional como uma corroborao emprica da solu-o cooperativa espontnea de Taylor e Axelrodpara o dilema do prisioneiro. A soluo de Taylor quase idntica de Axelrod, exceto pelo fato deAxelrod se ater a jogos entre dois atores. A bem dapreciso, portanto, o argumento de Putnam seriamais propriamente uma corroborao de Taylor doque de Axelrod.

    18 Ver, por exemplo, Claus Offe (1989, pp. 78-80). JMarx e Engels haviam se referido a regulamenta-es legais tanto do trabalho quanto de mecanis-mos do mercado como formas de proteger os ca-pitalistas de si prprios. Na Ideologia alem (apudJon Elster, 1989b, p. 148), eles se referem explicita-mente e com um vocabulrio muito pouco poli-ticamente correto para os padres de hoje aoproblema da carona: A atitude do burgus paracom as instituies de seu regime a mesma do ju-deu para com a lei; ele a evita quando isso pos-svel em cada caso individual, mas quer que todosos outros a observem.

    19 Acompanho aqui a definio que Thomas Schellingoferece logo na primeira pgina de The strategy ofconflict (1963, p. 3): O termo estratgia toma-do, aqui, da teoria dos jogos, que distingue entre jo-gos de destreza, jogos de azar e jogos de estrat-gia, sendo estes ltimos aqueles em que a melhorlinha de ao para cada jogador depende do queoutros jogadores fazem. O termo pretende concen-trar-se na interdependncia das decises dos ad-versrios e nas suas expectativas sobre o compor-tamento de cada um dos demais. Este no o usomilitar da expresso..

    20 Para uma apresentao um tanto anedtica, masbastante clara (e simptica), do teorema de Coase,ver George Stigler (1991, pp. 79-85).

    21 No h espao no mbito deste ensaio para desen-volver plenamente esse ponto, mas a teoria deDouglass North (1990) sobre mudana institucio-nal (que tributria de Coase baseia-se funda-mentalmente em arranjos estabelecidos no planodas interaes individuais, que obedeceriam a umimperativo coletivo de eficincia), tambm partede premissas fortes, de conseqncias analoga-mente panglossianas. Jack Knight (1992), ao con-ceber as instituies polticas como subprodutosde conflitos distributivos e apoiar-se em modelosde barganha com assimetria de recursos, gerou re-sultados mais indeterminados (equilbrios no ne-cessariamente eficientes) e reclama haver produzi-do uma teoria mais abrangente, que teria asdemais como casos especiais, resultados possveissob condies especficas. Agradeo a um parece-rista annimo da RBCS por chamar minha atenopara a omisso desse tema em uma verso anteriordo trabalho, e a James Johnson pela esclarecedorainterlocuo na matria.

    22 Os maiores sistemas burocrticos existentes nahistria, mesmo que completamente desprovidosde qualquer contedo democrtico tal como secompreende hoje, envolviam sempre algum im-portante componente competitivo (ou meritocrti-co), seja na admisso a seus quadros como pa-rece ter sido o caso durante sculos na China(Spence, 1995, p. 63) e no Japo (Evans, 1992, pp.152-154) , seja internamente, na competio pe-los postos de comando como aparentemente sedeu na Unio Sovitica durante a maior parte desua existncia.

    23 Habermas pretende em sua obra rejeitar precisamen-te esse dilema, mas no sou persuadido de que suasoluo seja bem-sucedida. Para uma crtica extensada posio de Habermas, remeto o leitor a Fbio W.Reis (2000b, pp. 23-101, particularmente pp. 68-89,

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    dedicadas discusso da ao estratgica). Ver tam-bm Thomas McCarthy (1991, esp. pp. 122-124).

    24 Esse duplo movimento apenas parcialmente cap-tado pela distino estabelecida por Michael Mann(1992, pp. 168-173), entre o poder desptico (de-crescente) e poder infra-estrutural (crescente) doEstado.

    25 Esse argumento certamente pode ser exposto emtermos analiticamente mais precisos, e o que fa-zem Adam Przeworski e Fernando Limongi (1993,pp. 176-177): O mercado um sistema no qual re-cursos limitados so alocados para usos alternativospor meio de decises descentralizadas. No entanto,no capitalismo, a propriedade institucionalmenteseparada da autoridade: os indivduos so ao mes-mo tempo agentes no mercado e cidados. Portan-to, existem dois mecanismos pelos quais os recur-sos podem ser alocados e distribudos entre osagentes econmicos: o mercado e o Estado. O mer-cado o mecanismo pelo qual os indivduos votama favor de uma alocao com os recursos que pos-suem, e esses recursos so sempre distribudos de-sigualmente; o Estado um sistema que aloca re-cursos que no possui, sendo os direitosdistribudos diferentemente do mercado. Segue-seque a alocao de recursos que os indivduos pre-ferem enquanto cidados, em geral, no coincidecom a que eles obtm via mercado. Esse mesmoargumento aparece tambm em Adam Przeworski eMichael Wallerstein (1989, p. 256). Ao final, apoia-dos em Zhiyuan Cui (1992), Przeworski e Limongi(1993, p. 189), completam: [...] se os mercados soincompletos e a informao imperfeita, a economias pode funcionar se o Estado proteger os investi-dores (responsabilidade limitada dos acionistas), asempresas (lei das falncias) e os depositantes (sis-tema bancrio com dois tipos de bancos, um delesobrigado a fazer seguro dos depsitos). Mas essetipo de envolvimento do Estado inevitavelmente in-troduz uma restrio oramentria leve (soft budgetconstraint). O Estado no pode simultaneamenteproteger os agentes privados e no atender s suasreivindicaes, mesmo quando estas decorrem derisco moral (moral hazard).

    26 Como diz o prprio Marshall (1965, p. 122), os di-reitos sociais em sua forma moderna implicam umainvaso do contrato pelo status.

    27 Como apontou E. E. Schattschneider (1960, cap. II),a clivagem e a abrangncia da disputa so parme-tros decisivos na determinao do resultado de umconflito poltico qualquer. E, no cap. VI, ele nodeixa de atribuir dinmica do conflito poltico aextenso progressiva do direito de voto.

    28 Alm disso, como lembra Fbio W. Reis (2000a, p.184), o Estado, atravs de sua ao no plano so-cial, tem de ser ele mesmo o agente produtor, nolimite, da prpria capacidade de reivindicao ou o agente produtor de condies propcias outendentes a um mercado poltico no sentido posi-tivo da expresso [...], incluindo de maneira des-tacada os requisitos da prpria dimenso civil dacidadania.

    29 A intolerncia contra os intolerantes foi enfatica-mente defendida por Karl Popper (1987, pp. 289-290) como ingrediente indispensvel de uma prote-o eficaz s instituies democrticas. claro quepersiste nessa estratgia a dificuldade insanvel dacaracterizao unilateral da intolerncia alheia.

    30 Lembremo-nos aqui da dupla dimenso da cidada-nia assinalada por George Armstrong Kelly (1979,apud F. W. Reis, 2000a, pp. 217-219): ao mesmotempo civil (no que toca proteo de prerroga-tivas individuais contra intromisses injustificadas,provenientes sobretudo do Estado) e cvica (na-quilo que concerne observncia obrigatria denormas compulsrias).

    31 Franois Furet (1989, pp. 61-64), ao chamar atenopara a ambigidade fundamental do conceito de re-voluo em Marx (ao mesmo tempo essencial eobscuro, pois no se sabe se a revoluo revela oucria uma nova sociedade, uma vez que ela ora in-clui, ora exclui o conceito da necessidade histri-ca), destaca a obsesso da cultura poltica europiapelo exemplo da Revoluo Francesa em particular,e da revoluo em geral, como a figura principal e necessria da transformao histrica moderna.

    32 Brian Barry (1985, pp. 315-317) ironiza aquelesque, comprometidos primariamente com a idia dolivre funcionamento do mercado, se vem diantedo problema de obter uma aprovao democrticada populao para que se mantenham de mosatadas governos eleitos tambm democraticamente.No toa, segundo ele, que pases autoritrioscomo Hong Kong, Taiwan e Coria do Sul se tor-nam freqentemente as meninas dos olhos detais economistas.

    33 Wanderley Guilherme dos Santos (1993, pp. 22-23)tambm se refere imposio compulsria do con-sumo de um mal pblico aos empresrios pelacrescente organizao operria. A peculiaridade doargumento de De Swaan decorre, porm, do fato deque ali a dinmica da interdependncia entre ricos epobres na sociedade moderna configura um proble-ma de ao coletiva independentemente da organiza-o dos atores diretamente envolvidos.

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    34 Em corroborao a esta interpretao podemosevocar quase toda a literatura sobre welfare state esocial-democracia, que tradicionalmente os inter-preta como uma resposta do capitalismo s reivin-dicaes operrias e ao sucesso que a ideologia so-cialista experimentava at meados do sculo XX.Esse argumento encontra talvez sua melhor formu-lao em Adam Przeworski (1989), que evita escru-pulosamente teleologias objetivas e apia a des-crio desse processo sobre opes racionais feitaspelos diversos atores envolvidos, inclusive e, tal-vez, principalmente os operrios.

    35 Para Karl Popper (1991, pp. 112-124), uma proposi-o pode ser ou terica ou histrica, mas nuncaambas ao mesmo tempo. Assim pode-se afirmarque o mundo evoluiu numa certa direo (proposi-o histrica); podem-se tambm produzir hipte-ses explicativas potencialmente generalizveis daqueles acontecimentos (proposies tericas),que podero ou no tornar plausveis certas previ-ses futuras sobre o mundo; mas no se pode sim-plesmente postular, sem mais, que o mundo semove numa d