noam chomsky - linguagem e mente

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    FUNDA

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    Direitos exclusivos para esta edicao:EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASILIASCS Q. 02 Bloco C NQ78 Ed. OK 2Qanda r70300-500 Brasilia - DFFax: (061) 225-5611Copyright 1998 by Editora Unive rs idade de Bra si liaTodos os direitos reservados. Nenhuma parte desta p u bl ic ac ao p o de ra ser arrnaze-nada ou reproduzida por qualquer meio sem a autorizacao por escrito da Editora.Impressa no BrasilSUPERVISAo EDITORIALAIRTON LUGARINHO

    PREPARA

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    Prefacio

    A Universidade de Brasilia teve a honra de ser, nos dias 25 e26 de novembro de 1996, anfitria do linguista americano NoamChomsky, professor do Departamento de Lingtiistica e Filosofia doMassachusetts Institute of Technology (MIT) e urn dos mais res-peitados pensadores da atualidade. A sua vinda a Brasilia se inte-grou num circuito que fez pela America do SuI, acompanhado desua mulher Garol Chomsky, quando visitou pela primeira vez aArgentina, Chile e Brasil, tendo 0 trecho brasileiro incluido Rio deJaneiro, Sao Paulo, Brasilia, Recife, Maceio e Belem e sido patro-cinado pelo CNPq. Essa visita a Brasilia foi promovida e organi-zada pelo Departamento de Lingufstica, Linguas Classicas eVernacula (LIV) do Instituto de Letras (IL) da UnB, com apoio doCespe/UnB, Editora Universidade de Brasilia e CIP/UnB e colabo-racao da UFRJ, cujo pedido de ajuda ao CNPq compreendeu passa-gens e diarias relativas a Brasilia, do DNER, que cedeu suasinstalacoes para a ult ima palestra poli tica e a noite de autografos, eda Embaixada do Canada, que forneceu uma copra de video dofilme Consenso Fabricado (Manufacturing Consent) para projecaointerna. 0 LIV e a Comissao Organizadora do evento agradecemaos patrocinadores (CNPq, Cespe e Editora), que viabilizaram avisita, e aos diferentes colaboradores externos, ja citados, par suaajuda especifica. Em meu proprio nome, dir ijo urn agradecimentoespecial a Lucilia Garcez e Lurdes Jorge, membros da ComissaoOrganizadora, que dedicaram nao somente tempo e esforco a pre-paracao e desenvolvimento da visita, mas sobretudo carinho.A Comissao expressa sua gratidao pelo envolvimento pessoal decada urn dos demais que, dentro da UnB, se empenharam nessaorganizacao e na garantia do born transcurso da visi ta , incluindo af

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    os professores e funcionarios atuantes na epoca no gabinete doReitor, no CIP, no IL e no LlV e a direcao e funcionarios da Editorae do Cespe.Em Brasilia, Chomsky cumpriu uma agenda que constou deduas palestras lingiiisticas (Linguagem e mente: pensamentos atu-ais sobre antigos probLemas. Parte Ie Parte II), duas palestraspalfticas(Perspectivas para a democracia e neoLiberaLismo, libe-raLismo e mercados: doutrinas e reaLidade) e uma noite de auto-grafos, quando foi lancada a traducao em portugues de 0 que 0 TioSam reaLmente quer e relancada a de A minoria prospera e a mul-tiddo inquieta, pela Editora Universidade de Brasilia. Alem dessasatividades, durante 0 seu periodo de permanencia em Brasil ia (24 a27.11.96), part icipou de outras, mais estri tas, como urn encontrocom os professores do Departamento anfi tr iao, urn encontro comprofessores de outros Departamentos com interesses comuns, urnencontro com os bispos da Pastoral Episcopal da CNBB, por coin-cidencia reunidos em Brasflia na semana da visita, e entrevistascom a imprensa. A presente obra e a publicacao das duas palestrasIiugufsticas e das discussoes que a elas se seguiram.'

    Chomsky tern sido uma das figuras mais proeminentes da lin-guistica do seculo XX. Fez ressurgir, nesta segunda metade doseculo, 0 interesse por urn terna que ja t inha sido objeto de estudoem seculos anteriores: a questao de haver uma gramatica universal.Posicionou-se a favor da existencia nao so de ideias inatas, mas detoda uma estrutura sintat ica inata, relativa a linguagem. Tornouclara a hipotese de a gramatica universal corresponder a uma mar-cacao genetica na especie humana. Foi alem de consideracoes filo-soficas sobre 0 assunto e ofereceu uma proposta teorica, aGramatica Gerativa, para 0 desenvolvimento de pesquisas sobreIinguas dentro de uma linha de aceitacao da marcacao geneticarelativa a linguagem. Conseguiu manter uma rede de associ ados aolongo dos anos, 0 que deu urn carater colaborativo ao trabalho naI A traducao das duas palest ras foi revis ta por Mark Ridd. Genti lmente , LurdesJorge reviu a prirneira palestra, parte da segunda e as discussoes e Yara Duarte,o texto integral. Varies colegas e alunos comentaram diferentes pontos especi-f icos, inc lu indo te rmos tecnicos. Sou gra ta a todos pelas sugestoes, mui to per -tinentes. Como fiz a opcao final, cabe a mim a responsabilidade pelasinadequacoes que por ventura restaram. (N. do T.)

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    teoria e, em conseqiiencia, levou a lim avanco alucinaute da C0111-preensao dos fenomenos lingiifsticos na perspectiva do conheci-mento gramatical internalizado. A partir desse trabalhocolaborativo, tern feito sucessivas modificacoes no arcabouco teo-rico inicial, que costuma ser datado de 1965, ano da publicacao deAspects of the Theory of Syntax, sempre com 0 objetivo de elirni-nar inadequacoes e incorporar novas descobertas. Apesar da varie-dade sucessiva do aparato tecnico, nesse trabalho lingiifsticoteor ico duas caracterfsticas tern se mantido constanles - a preo-cupacao de que esse aparato seja capaz de gerar as sequenciasbem-formadas nas lfnguas, e so elas, e 0 desejo de que se insiranuma perspectiva que relacione linguagem e mente, refletindo atese central de que ha urn componente da mente human a consagra-do a l inguagem e interagindo com outros sistemas mentais. A mai-or variacao se deu na passagem de um modelo de regras para ummodelo de princfpios e parametres: as primeiras versoes eram for-temente marcadas pela presenca de regras - por exemplo, regrasprodutoras da ordern linear das palavras e da hierarquia entre elas,chamadas regras sintagmaticas, e regras produtoras de certasccnstrucoes, tais como interrogativas, relativas, passivas, chama-das regras transformacionais - ; a inadequacao do sistema deregras levou a busca de princfpios gerais , a qual se fort if icou como avanco da pesquisa, ten-do-se chegado a uma proposta em que asregras cederam lugar a princfpios e parametres. A primeira versaodessa nova tendencia foi a teoria de Prlncipios-e-Parametros. 0programa de pesquisa atual (program a, e nao teoria au modelo), 0minimalismo; e uma continuacao dessa tendencia. ' -

    Certamente, a proeminencia de Chomsky na linguistica, emespecial, e na ciencia contemporiinea, em geral, se deve muito aesse persistente e incansavel trabalho de elaboracao teorica paraincorporar numa perspectiva cientffica moderna temas tradicionaisa respeito da linguagem que tinham sido ha muito esquecidos,Relativamente a linguistica, a estudo gramatical alual, em qualquerteoria que seja, ficou decididamente marcado por suas propostas.Alguns conceitos que introduziu tornaram-se parte do vocabulariogramatical comum (estrutura profunda/estrutura de superficie egramaticalidade!aceitabilidade, por_exemplo). Suas posicoes saoponto de referencia dentro de oulros arcaboucos. E (minis teorias

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    gramatica issurgiram, subsidiarias das suas hipoteses sobre a estru -tura lingtifst ica . Com relacao a ciencia contemporanea em geral, avolta a uma visao cogni tiva de l inguagem resul tou num redirec io-namento da pesquisa cientifica sobre linguagem e linguas nesteseculo, mesmo fora dos circulos de pesquisa estritamente gramati-cal. Esse redirecionamento levou a uma perspectiva de analisemuito mais ampla e ambiciosa dos fenomenos de linguagem e con-cretizou-se no surgimento de um novo campo de pesquisa: 0 dainvestigacao sobre as relacoes linguagem/mente. Tal campo in-cluiu inicialmente a psicologia cognitiva, mas hoje e mais vasto evariado, abrangendo as ciencias da mente em geral e a area deeducacao e ensino de ciencias, e extrapolando os limites da teoria.Nesse campo, seus posicionamentos teoricos sao ponto de referen-cia mesmo para defensores de ideias divergentes dentro de out rosarcaboucos (como e 0 caso de sua hipotese de que as lfnguastrabalham com propriedades mfnimas distintivas, denominadastraces).

    Mas essa proeminencia seguramente se deveu tarnbem ao fatode a investigacao sobre linguagem e lfnguas ter se tornado umempreendimento coletivo. De fato, como fruto do trabalho na area,surgiu uma complexa rede internacional de investigadores, comformacao de fortes polos de pesquisa fora dos Estados Unidos,inicialmente na Franca, Holanda e Italia, tendo a sua producaocontribuido para a propria evolucao da teoria. No Brasil, diversasUniversidades vern desenvo lvendo pesquisa em Grarnatica Gerati-va , e consta ta-se uma crescente integracao desses grupos brasi lei-ros nessa rede internacional. Por outro lado, diferentes centrosinternac iona is sem duvida t iveram 0 seu papel na consolidacao dosatuais centros em nosso pais. Nao yOU ten tar apresen tar uma histo-ria desse papel, a fim de evitar 0 perigo de omissoes inadvertidas.Simplesmente cito, em ordem cronologica, os pr incipai s centrosprodutores de pesquisa na teoria no Brasil, no momenta: UFMG,UFRJ (Museu Nacional e Faculdade de Letras), Unicamp, UnB,USP e UFSC. 0 inicio da investigacao e producao na UFMG, PUC-SP e UFRJ foi praticamente simultanea; a PUC-SP foi de grandeimportancia durante um certo periodo, mas deixou de desenvolverpesquisa na teoria.

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    Diversas vczes, Chomsky tern repctido, em entrevistas porexemplo, que nao sabe explicar qual a relacao entre seu trabalhopolitico e seu trabalho linguistico, a nao ser por linhas muito ge-rais. Parece-me que essas relacoes, se bem que realmente em li-nhas gera is, sao bem cla ras. Em primei ro Ingar, ambos os trabalhosdecorrem de um extraordinario poder aglutinador, de uma enorrnecapacidade de interacao, de modo que em nenhum dos do i s se tratade urna tarefa individual. Em segundo lugar, os dois tipos de ativi-dade mostram uma aguda percepcao do papel que pode desenvol-ver no seu tempo - 0 de contribuir para a evolucao doconhecimento sobre a natureza humana em termos das proprieda-des da mente/cerebro, em conseqiiencia de sua atividade linguisti-ca, e 0 de contribuir para a evolucao das condicoes efetivas de vidana terra, em consequencia de sua atividade politica. Nessa segundacaracteristica em comum entre as duas faces de seu trabalho, ~e-se,pois, uma preocupacao integra l com 0 homem - com 0 conheci-mento de sua natureza e com as suas condicoes de vida -, de talmodo que uma face completa a outra. A relacao do seu fazer comolingiiista e do seu fazer como ativista politico parece entao ser decomplementariedade, na direcao da colocacao em pratica dessapreocupacao integral com 0 ser humano. Mais do que ninguem,dada sua integracao no seu tempo e no seu espac;:o, ele poderia serqual ifi cado de inte lec tua l organico. Essa caracte rfstica fo i percebi-da pelo publico em Brasilia, como demonstrado pelos inumerosdepoimentos sobre 0 intelectual e a pessoa humana do visitante,quanto a seu envolvimento com a realidade contemporfinea e suapostura diante dos semelhantes, da parte de alunos,'-professores eoutros estudiosos, todos sob 0 impacto da visita e do que repre-sentava em termos de conhecimento a respeito do estagio evoluti-vo da c ienc ia a tua l e de suas perspect ivas.

    Nas palestras e discussoes publicadas neste livro, Chomskycaracteriza 0 aspec to internal ista da abordagem gera tiva, examinao relacionamento da linguagem com outras partes da mente ecom 0 mundo externo e descreve 0 panorama geral da situacaoatual do minimalismo.

    Na primei ra pa lest ra, in icialmente apresenta di st incoes basicascruciais para a sua teoria: propriedades gerais da linguagem, ca-racterizacao da faculdade de linguagcm como um orgao da lingua-

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    gem, ponto de vista cognit ivo da gramatica gerativa, tensao entre acondicao de adequacao descritiva e a condicao de adequacao ex-plicativa, uso do conceito de parametro na tentativa de explicacaoda variacao translinguistica. Em seguida, trata de questoes sobre 0relacionamento da linguagem com 0 mundo externo: questoessobre a relacao mente/cerebro e questoes sobre 0uso da lingua. Aoexaminar as primeiras, caracteriza a abordagem internalista dalinguagem como tendo 0objetivo de "descobrir as propriedades doest ado inicial da faculdade de linguagem e os estados que esteassume sob a influencia da experiencia" e especifica que 0 estadoinicial e 0 estado atingido sao "est ados do cerebro em primeirolugar, mas descritos abstratamente, nao em termos de celulas, masem termos de propriedades que os mecanismos do cerebro tern desatisfazer de algum modo". A fim de tornar mais explicito seupensamento, rebate a crft ica de Searle a essa abordagem interna-lista. Nessa resposta, estende-se sobre a questao do dualismomente/corpo, que tem ocupado a atencao de investigadores desdeseculos passados e ainda permanece sem solucao. 0 estudo abs-trato da linguagem, como diz Chomsky, e problernatico exata-mente porque "parece se situar no lado mental da particao",o problema que a teoria l inguistica enfrenta e, enfim, ~ mesmo dafisica e da quimica, que ate hoje nao conseguem exphcar as pro-priedades das particulas em movimento e as afin.idades qui~icas.Quanto a questoes sobre 0 uso da lingua, examina, por meio daanalise do uso de algumas palavras isoladas, a questao de como asinterpretamos. Aponta propriedades curiosas dos significados daspalavras, concluindo a favor da ideia de Hume de que "a 'identi-dade que atribuimos' as coisas e 'apenas ficticia', estabelecidapelo entendimento humano, urn quadro desenvolvido mais alempor Kant, Schopenhauer e outros".Nas discuss6es referentes a essa primeira palestra, Chomskyacrescenta a sua visao sobre 0 papel do contexto e da cultura noestudo da linguagem, sobre a compreensao teorica atual a respeitodo texto, e sobre a relacao entre sentido e palavra. Retorna itquestao da dicotomia mente/corpo, agora dizendo que "0 universointeiro e espiri tual", ao retomar 0 termo usado na pergunta, quecaracteriza a sua postura teorica como "uma postura espiritualistadiante da realidade". Enfatiza que nao e anti-rcducionista, esclare-

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    cendo que 0 reducionismo nao e uma questao em ciencia, Tornaclara sua divergencia em relacao it teoria funcionalista. Argumentanovamente a favor da existencia da grarnatica universal. Por fim,ao responder a ultima pergunta, mostra-se convicto de que "asteorias conternporaneas da gramatica universal estao erradas. Sevoce olhar para a historia das ciencias, tudo tem estado errado.Voce chega mais perto da verdade, mas nao ha muitos cientistasque estejam dispostos a acreditar que a alcancarnos".Na segunda palestra, Chomsky deixa 0 tom geral da conferen-cia do dia anterior e examina questoes mais especificas sobre aconfiguracao da faculdade de linguagem. A grande pergunta quenorteia a palestra e: Ate que ponto a linguagem e bern-configurada? A abordagem teorica em que a resposta se desenvol-ve e a do programa minimalista - um programa, ele esclarece, enao uma teoria. Antes de entrar nos detalhes da configuracao geral,discute uma questao correlata e de grande atualidade: a de comosurgiu a faculdade de linguagem no contexto da evolucao da espe-cie. Inicia a sua caracterizacao das propriedades da linguagemsegundo 0program a minimalista esclarecendo que a "faculdade delinguagem se encaixa dentro da arquitetura mais ampla da men-te/cerebro", onde "interage com outros sistemas, que impoern con-dicoes" que ela tem de satisfazer "se ela e para ser utilizavel dequalquer modo que seja". Essas condicoes, chamadas "condicoesde saida nuas" (bare output conditionsy na linguagem tecnica, sao"condicoes de legibilidade": "Os sistemas dentro dos quais a fa-culdade de linguagem se encaixa tern de ser capazes de 'ler' asexpressoes da Ifngua e usa-las como 'instrucoes' para 0 pensa-mento e a acao." Os sistemas sensorimotores leem as instrucoes efornecem expressoes com a "representacao fonetica" apropriada.o "sistema conceitual e outros que fazem uso dos recursos da fa-culdade de linguagem" "tern suas propriedades intrinsecas, querequerem que as expressoes geradas pela lingua tenham certostipos de 'representacoes semanticas' e nao outros". Para cada ex-pressao lingUistica sera gerada "uma representacao fonetica, que elegfveJ para os sistemas sensorimotores, e uma representacao se-mantica, que e legfvel para 0 sistema conceitual e outros sistemasdo pensamento e da acao",

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    Torna como pressupostos os fatos (i) de haver unidades dotipo de palavras, (ii) de esses itens lexicais se organizarem emexpressoes maiores e (iii) de esses itens terern propriedades de some significado, chamadas "traces". Os tracos sao usados para mon-tar os itens lexicais , que, por sua vez, sao as unidades "at6micas"usadas para construir expressoes mais complexas. Entre os traces,privilegia na palestra os traces tlexionais, que desernpenharn "urnpapel central na computacao" e se distinguem dos traces foneticose semanticos intrfnsecos aos itens. Chega assim a uma divisaotriparti te entre traces: ( i) traces semanticos, ( ii) traces foneticos e(iii) traces formais, que nao sao nem sernanticos nern foneticos.Portanto, ao contrario dos dois primeiros, estes ii lt imos sao inin-terpretaveis, sendo usados "pelas operacoes computacionais queconstroem a derivacao de umaexpressao". Propoe a hipotese deque so os traces tlexionais sao traces formais. Segundo sua visao,"numa lingua dada, montam-se itens lexica is com traces, e entaoas operacoes computacionais, fixas e invariantes, constroern repre-sentacoes sernanticas a part ir daqueles de maneira uniforme. Emalgum ponto na derivacao, 0 cornponente fonol6gico acessa a deri-vacao, despindo e retirando os traces Ioneticos e convertendo 0objeto sintatico em forma fonetica, enquanto 0 residuo prosseguepara a representacao semantica por operacoes encobertas".

    Voltando a se perguntar ate que ponto a linguagem e bern-configurada, aponta duas imperfeicoes aparentes. Uma e 0 propriofato de haver traces ininterpretaveis: "Numa linguagem configura-da perfei tamente, cada trace seria sernantico ou fonetico, nao me-ramente urn dispositivo para criar urna posicao ou para facilitaruma computacao." Uma outra, mais dramatica segundo ele, e apropriedade de deslocamento: "os sintagmas sao interpret adoscomo se estivessem em uma posicao diferente na expressao, ondeitens semelhantes algumas vezes efetivamente aparecem e saointerpretados em term os de relacoes locais naturais". Entre as ope-racoes computacionais, pressupoe duas. Uma e a operacao Con-tluir , que anexa dois objetos ja formados um ao outro, "formandourn objeto maior com exatamente as propriedades do alvo da ane-xacao"; Essa operacao substitui inteiramente as regras sintagmati-cas de modelos anteriores. Dado 0 novo carater da geracao deestrutura sintagrnatica, denomina essa estrutura de "estrutura sin-

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    tagmatica nua" (bare phrase structure), implicando essa expressaoa total ausencia de r6tulos categoriais e sintagmaticos. A outraoperacao e a envolvida na propriedade de deslocamento, tratadaanteriormente como uma unica operacao Mover, "basicamente,mover qualquer coisa para qualquer lugar, sem propriedades espe-cificas de lfnguas ou de certas construcoes". Procura chegar a umaunificacao entre as duas "imperfeicoes" apontadas: os traces for-mais ininterpretaveis seriam "de fato 0mecanismo que implementaa propriedade de deslocamento". Como a propriedade de desloca-mento pode ser rnotivada pelas condicoes de legibilidade impostaspelos sistemas externos, conclui que "as duas imperfeicoes saoeliminadas cornpletamente e a linguagem acaba sendo, afinal, oti-ma: traces formais ininterpretados sao exigidos como um meca-nismo para satisfazer as condicoes de legibilidade impostas pelaarquitetura geral da mente/cerebro, pelas propriedades do aparatode processamento e pelos sistemas do pensamento". Explora aideia de que, 'numa relacao de concordancia, 0 elemento que de-termina a concordancia contern traces combinantes (matching fea-tures) e 0'que concorda contern traces infratores - traces que saoininterpretaveis e tern, por isso, de ser apagados. Por sua vez, 0apagamento exige uma relacao local entre 0 t race infrator e 0 tracecombinante. Assim, numa frase como Clinton seems to have beenelected, "a interpretacao semantica exige que elect e Clintonestejarn relacionados localizadamente no sintagma elect Clintonpara a construcao ser interpretada apropriadamente, como se asentenca fosse realrnente seems /0 have been elected Clinton".Mas, por outro lado, seems contern traces infratores; que "tern deser apagados para a expressao ser legivel na interface sernantica";como 0 apagamento s6 se faz numa relacao local, os traces combi-nantes do sintagma Clinton "sao atraidos pelos tracos infratores doverbo principal seems, que sao entao apagados sob combinacaolocal". A operacao Mover se reduz, assim, a operacao Atrair. Da-das essas conclusoes, uma lfngua particular e apresentada comoconsistindo em "um lexico, um sistema fonol6gico e duas opera-coes computacionais: Confluir e Atrair". Como Atrair diz respeitoa traces, surge uma nova questao: Por que todo 0sintagma Clintonse desloca, se somente os tracos sao atraidos? A proposta e que,apesar de somente os traces das palavras serem atraidos, 0 movi-

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    rnento manifestamente visivel ocorre (i.e, 0 sintagma pleno se mo-virnenta) em virtude da "pobreza do sistema sensorimotor, que eincapaz de 'pronunciar' ou 'ouvir' traces isolados separados daspalavras das quais sao parte". No caso de movimento encoberto, soos traces se atraem, sem desencadearem 0 movimento visfvel desintagmas.

    Nas discussoes ao final desta palestra, dois temas gerais saotratados: a questao de a variacao translingiifst ica na expressao denocoes espaciais e temporais ser apenas aparente e a questao dacontribuicao dos avances em gramatica gerativa para 0 ensinogramatical nas escolas. Quanto a temas mais especificos, variessao abordados. Esclarece como a dicotomia entre traces fortes efracos, expressa em obras anteriores, pode ser eliminada. Diz que 0processo de checagem de tracos (postulado em obras anteriores eque corrresponde, grosso modo, a operacao Atrair) e motivadopel a necessidade de se eliminar um traco que nao pode ser lidopelo sistema semantico. Observa que nao ha lugar para a nocao deoperacao de adjuncao no modelo minimalista. Aponta que os ad-verbios nao tern a propriedade de deslocamento, mas sua posicao euma questao ainda em aberto. Finalmente, afirma que a ideiade que som e significado sao desconectados pode estar errada,dado que 0 "modo como as coisas sao ditas - mesmo 0 som quetern - se relaciona de fato com 0modo como sao interpretadas".

    Esperamos que esta publicacao alcance no Brasil um grandeefeito: que consiga difundir a um vasto publico uma visao bemclara do estagio atual da pesquisa lingiiist ica cientif ica e dos pro-blemas que as ciencias em geral atualmente enfrentam, despertan-do novas vocacoes cientificas. A visita de Chomsky tera tido umsucesso alern da expectativa se for um incentivo ao avanco da ci-encia no Brasil . A excitacao que sua presenca despertou em Brasi-l ia, nao somente no meio acadernico ja estabelecido, mas tarnbernentre jovens, e os depoimentos espontaneos sobre 0 valor e a im-portancia da visita nos dao a esperanca de isso ser possivel .

    Lucia Lobato.

    Prime ir a P ale str a

    o estudo da linguagem e um dos ramos mais antigos da inves-tigacao sistematica, remontando a India e a Grecia classicas, comuma intensa e fertil historia de realizacoes. Sob outro ponto devista, e bern jovem. Os principais empreendimentos de pesquisade hoje ganharam forma somente cerca de quarenta anos atras,quando algumas das ideias predominantes na tradicao foram reto-madas e reconstrufdas, abrindo caminho para uma investigacaoque Sf; tern comprovado muito prod utiva.

    Nao e surpreendente que a linguagem tenha exercido tantofascfnio no correr dos anos. A faculdade humana de linguagemparece ser uma verdadeira "propriedade da especie", variandopouco entre as pessoas e sem urn correlato significativo em qual-quer outra parte. Provavelmente, os correlatos mais proximos seencontrem em insetos, a uma distancia evolucionaria de urn bilhaode anos. 0 sistema de cornunicacao das abelhas, por exemplo,partilha com a linguagem humana a propriedade de "referenciadeslocada", nossa habilidade de falar sobre algo que 'esteja distantede nos no espaco e no tempo; as abelhas usam uma intrincada"danca" para comunicar a direcao, distancia e desiderabil idade deuma fonte distante de mel. Nao se conhece nada semelhante emqu~lquer outra parte da natureza. Mesmo nesse caso, a analogia emuito fraca. A aprendizagem vocal evoluiu nos passaros, mas emtres grupos nao-relacionados, e independentemente, presume-se;aqui as analogias com a linguagem humana sao ainda mais super-ficiais.

    A linguagem humana parece estar biologicarnente isolada emsuas propriedades essenciais e ser UI1} desenvolvimento na verdaderecente sob uma perspectiva evolucionista. Nao ha hoje nenhuma

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    razao seria para se desafiar a visao cartesiana de que a habilidadede usar signos lingufsticos para expressar pensamentos formadoslivremente marque "a verdadei ra distincao ent re 0 homem e 0 ani-mal" ou a maquina, quer se en t end am por "rnaquina" os automatesque ocuparam a imaginacao dos seculos XVII e XVIII ou os quehoje estao fornecendo urn estimulo ao pensamento e a imaginacao.

    . A lern disso, a faculdade de linguagem entra de modo crucialem cada urn dos aspectos da vida, do pensamento e da interacaohumanos. Ela e, em grande parte, responsavel pelo fato de, sozi-nhos no universo biologico, os seres humanos terem uma historia,uma diversidade e evolucao cultural de alguma complexidade eriqueza, e mesmo sucesso biologico, no sentido tecnico de seumimero ser enorme. Urn cientista marciano que observasse as es-tranhas ocorrencias na Terra dificilrnente poderia deixar de ficarimpressionado com 0 surgimento e a importa~cia dessa forma deorganizacao intelec tual aparentemente (mica . E ainda mais naturalque 0 topico, com seus varies misterios, tenha estimulado a curio-sidade dos que procuram en t ender a sua propria natureza e 0 seulugar no universo rna i s amplo.

    A linguagem humana se baseia numa propriedade elementarque tambern parece ser uma propriedade biologicamente isolada: apropriedade da infinidade discreta, manifestada na sua forma maispura pelos mimeros naturais 1, 2, 3, ... As criancas nao aprendemessa propriedade do sistema numeral. A menos que a mente japossua os princfpios basicos, nenhuma quantidade de evidenciapoderia fornece-los; e eles estao completamente alern dos limitesintelectuais dos outros organismos. Do mesmo modo, nenhumacrianca tern de aprender que ha sentencas de tres palavras e sen-tencas de quatro palavras, mas nao sentencas de tres palavras emeia, e que e sempre possivel construir uma mais complexa, comuma forma e urn significado definidos. Tal conhecimento tern denos chegar pela "mao original da natureza" ( the original hand ofnature), segundo a expressao de David Burne, como parte do nos-so dote biol6gico.Essa propriedade intrigou Galileu, que via a descoberta de ummeio de cornunicar nossos "pensamentos mais secretos a qualqueroutra pessoa com 24 pequenos caracteres" como a maior de todasas invencoes humanas. A invencao e bem-sucedida porque ref lete

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    a infinidade discreta da linguagem que e representada pe I n usodesses caracteres, Pouco tempo depois, os autores da Gramarica dePort Royal impressionaram-se com a "invencao maravilhosa"de urn meio de construir, a partir de lunas poucas duzias de sons,uma infinidade de expressoes que nos capacitam a revelar aosoutros, de um ponto de vista contemporaneo, 0 que pensamos eimaginamos e sentimos; nao uma "invencao", mas nao menos "rna-ravilhoso" como um produto da evolucao biologica, sobre 0 qualprat icamente nada se sabe, nesse caso.

    E razoavel considerar a faculdade de linguagem como um "or-gao da linguagem", no sentido em que os cientistas falam de urnsistema visual ou sistema irnunologico ou sistema circulat6riocomo orgaos do corpo. Compreendido desse modo, urn orgao nao ealgo que possa ser removido do corpo, deixando 0 resto intacto. Eurn subsisterna de uma estrutura mais complexa. Esperarnos com-preender a cornplexidade total investigando partes que tern carac-terfsticas distintivas e suas interacoes. 0 estudo da faculdade delinguagem procede da mesma forma.

    Pressupomos ainda que 0 orgao da linguagem e como outros,no sentido de que seu carater basico e uma expressao dos genes.Como isso acontece e algo que permanece uma possibilidade depesquisa para 0 futuro distante, mas podemos investigar de outrasmaneiras 0 "est ado inicial", genet icamente dete rminado, da Iacul-dade de linguagem. Evidentemente, cada Ifngua e 0 resultado daatuacao recfproca de do i s fatores: 0 estado inicial e 0 curso daexper iencia. Podemos imaginar 0 estado inicial como um "dispo-sitivo de aquisicao de lingua" que toma a experiencia como "dadode entrada" e fornece a lingua como um "dado de safda" - um"dado de safda" que e internamente representado na men-te/cerebro, Os dados de entrada e os dados de safda estao ambossujeitos a exame; podernos estudar 0 curso da experiencia e aspropriedades das lfnguas que sao adquiridas.o que se aprende desse modo pode nos dizer muito sobre 0est ado inicial que medeia entre eles. Alern disso, h.i fortes razoespara se acreditar que 0 estado inicial e comum a especie: se meusfilhos tivessem crescido em Toquio, eles falariarn j apones, Issosignifica que evidencias do japones se relacionam diretamente como que se tem pressuposto relativamente ao estado inicial para 0

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    ingles. 0 estado inicial cornpartilhado tern de ser bastante cornple-xo para produzir cada lfngua, dada a experiencia apropriada; masnao tao complexo que exclua alguma lingua que os humanos pos-sam atingir. Podemos estabelecer condicoes ernpiricas fortes que ateoria do estado inicial tem de satisfazer, e propor varios proble-mas para a biologia da linguagem: Como os genes determinam 0estado inicial e quais sao os mecanismos cerebrais envolvidos nosestados que 0 orgao da linguagem assume? Estes sao problemasdificeis , ate para sistemas muito mais simples onde experimentosdiretos sao possiveis, mas alguns podem estar no horizonte dapesquisa.Para podermos continuar, deveriarnos ser mais claros sobre 0que entendemos por "urna lingua". Tern havido muita controversiaacalorada sobre a resposta certa para essa questao e, mais generi-camente, para a questao de como as linguas deveriam ser estuda-das. A controversia nao tern sentido, porque nao existe umaresposta certa. Se estamos interessados no modo como as abelhasse comunicam, tentamos aprender algo sobre a sua natureza inter-na, a sua forma de organizacao social e 0 seu ambiente ffsico. Es-sas abordagens nao se confl itam; elas se beneficiam mutuamente.o mesmo e verdadeiro a respeito do estudo da linguagem humana:ela pode ser investigada do ponto de vista biol6gico e de imimerosoutros. Cada abordagem define 0 objeto de sua investigacao a luzde suas preocupacoes especiais; e cada uma deveria tentar apren-der 0 que pode com as outras. Por que tais questoes suscitarn gran-de ernocao no estudo dos seres humanos talvez seja uma perguntainteressante, mas you deixa-la de lado no momento.

    A abordagem puramente internalista que estive delineandopreocupa-se com a faculdade de linguagem: seu estado inicial e osestados que ela assume. Suponhamos que 0 orgao de linguagemde Pedro esteja no estado L. Podemos imaginar L como a lingua dePedro; quando falo de uma lingua aqui, e isso que quero dizer.Assim compreendida, a lingua e algo como "0modo como falamose compreendemos", uma concepcao tradicional de lingua. A teoriada lfngua de Pedro e frequenternente chamada de "gramatica" desua lfngua e a teoria do estado inicial da faculdade de linguagem echamada "gramatica universal", numa adaptacao de termos tradi-cionais a um arcabouco distinto. A lingua de Pedro d ete rrn in a u rn

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    leque infinito de expressoes, cada uma com seu som e seu signifi-cado. Em termos tecnicos, a Ifngua de Pedro "gera" as expressoesda Ifngua dele. A teoria da lingua dele e entao chamada uma gra-matica gerativa. Cada expressao e um complexo de propriedades,que fornecem "instrucoes" para os sistemas de desempenho dePedro: seu aparato articulat6rio, seus modos de organizar os pen-samentos, e assim por diante. Com a sua Iingua e os sistemas dedesempenho associ ados nos seus devidos lugares, Pedro tem umavasta quantidade de conhecimento sobre 0 som e 0 significado deexpressoes e uma correspondente capacidade de interpretar 0 queouve, de expressar os seus pensamentos e de usar a sua lingua deimimeras outras maneiras.

    A gramatica gerativa surgiu no contexto do que e frequente-mente chamado de "a revolucao cognitiva" dos anos 50 e foi urnfator importante em seu desenvolvimento. Pode ser questionado seo termo "revolucao" e apropriado ou nao, mas houve uma impor-tante mudanca de perspectiva: do estudo do comportamento e seusprodutos (textos, por exemplo) para os mecanismos internos usa-dos pelo pensamento e pela acao humanos. A perspectiva cognitivave 0 comportamento e seus produtos nao como 0 objeto de investi-gacao, mas como dados que podem fornecer evidencias sobre osmecanismos internos da mente e os modos como esses mecanis-mos operam ao executar acoes e interpretar a experiencia, As pro-priedades e padroes que eram 0 foco de atencao na linguisticaestrutural encontram seu lugar, mas como fenomenos a serem ex-plicados juntamente com imimeros outros, em termos dos meca-. . - . . _rnsmos internos que geram expressoes.

    A "revolucao cognit iva" renovou e reformulou muitos dos ill-sights, das realizacoes e das incertezas do que podemos charnar "aprimeira revolucao cognit iva", dos seculos XVII e XVIII , que foiparte da revolucao cientffica que modificou tao radicalmente anossa compreensao do mundo. Reconheceu-se naquela epoca quea linguagem envolve "0 uso infinito de meios finitos", na expres-sao de von Humboldt; mas esse insight so pode se desenvolver demodo limitado, porque as ideias basicas permaneciam vagas eobscuras. Em meados do seculo XX, os avances nas ciencias for-mais tinham fornecido conceitos apropriados e numa forma muitoexata e clara, tornando possfvel dar uma explicacao precisa dos

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    principios cornputacionais que gerarn as express6es de uma lingua.Outros avances tambern abriram caminho para a investigacao dequestoes tradicionais com maior esperanc;a de sueesso. 0 estudo damudanca lingiiistica tinha registrado importantes realizacoes.A linguistica antropologica forneeeu uma cornpreensao muito rnaisprofunda da natureza e variedade das linguas, tarnbem minandomuitos estereotipos, E certos topicos, sobretudo 0 estudo dos sis-temas de som, foram muito desenvolvidos pela linguistica estrutu-ral do seculo xx.o ultimo herdeiro proeminente da tradicao, antes de ela tersido eliminada pela varredura das eorrentes estruturalista e beha-viorista, foi 0 linguista dinarnarques Otto Jespersen. Ele argumen-tou, 75 anos atras, que 0 objetivo fundamental da lingufstica edeseobrir a "nocao de estrutura" que esta na mente do falante,capaeitando-o a produzir e entender 'express6es livres" que saonovas para 0 falante e 0 ouvinte ou mesmo para a his toria da lin-gua, uma ocorrencia costumeira da vida cotidiana. A "nocao deestrutura" de Jespersen e semelhante em espirito ao que chamei de"uma lingua". 0 objetivo de uma teoria da lingua e trazer 11luzalguns dos fatores que entram na habilidade de produzir e entender"expressoes livres". Somente alguns dos fatores, entretanto, emparalelo com assim como 0 estudo dos mecanismos computacio-nais, que claramente nao consegue alcancar seu objetivo de captara ideia do "uso infinito de meios finitos", nem 0 de tratar dasquest6es que eram fundamentais para a primeira revolucao cogni-tiva, uma questao 11qual retornarei.

    As primeiras tentativas de executar 0 program a da gramaticagerativa, cerea de quarenta anos atras, logo revelaram que, mesmonas linguas mais bern estudadas, propriedades elementares tinhampassado despercebidas e que os dicionarios e gramaticas tradieio-nais mais abrangentes somente toeam a superficie. As proprieda-des basicas das Iinguas particulares e da faculdade geral delinguagem sao ineonscientemente pressupostas por toda parte, semserem reconhecidas nem serem expressas. Isso e bastante apropri-ado se 0 objetivo e ajudar as pessoas a aprender uma segunda lin-gua, a encontrar 0 sentido e a pronuncia conveneionais daspalavras ou a ter alguma ideia geral de eomo as linguas diferem.Mas, se nosso objetivo e entender a faculdadc de linguagem e os

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    estados que ela assume, nao podemos pressupor tacitamcnte "ainteligencia do leitor". Antes, esse e 0objeto de pesquisa.o estudo da aquisicao de lingua leva 11mesma conclusao. Urnexame atento da interpretacao das express6es logo revela que des-de os primeiros estagios a crianca conhece imensamente mais doque a experiencia prove. Isso e verdadeiro mesmo para simplespalavras. As criancas pequenas adquirem palavras numa proporcaode cerca de uma para cada hora acordada, com exposicao extre-mamente limitada e em condicoes altamente ambfguas. As pala-vras sao compreendidas de modos sutis e intrincados que vaomuito alern do alcance de qualquer dicionario e estao somentecornecando a ser investigados. Quando se vai alem das palavrasisoladas, a conclusao se torna ainda mais dramatica, A aquisicaode lingua se parece muito com 0crescimento dos orgaos em geral;e algo que aeontece com a crianca e nao algo que a crianca faz.E, embora 0meio ambiente importe c1aramente, 0 curso geral dodesenvolvimento e os traces basicos do que emerge sao pre-determinados pelo estado inicial. Mas 0 estado inicial e uma possecomum aos homens. Tern de ser entao que, em suas propriedadesessenciais, as lfnguas sao moldadas na mesma forma. 0 cientistamarciano poderia concluir sensatamente que ha uma unica linguahumana, com diferencas somente nas margens.

    Com relacao a nossas vidas, as pequenas diferencas sao 0 queimporta, nao as esmagadoras semelhancas, que sao inconsciente-mente tomadas por certas. Sem duvida, dis olham outras ras domesmo modo. Mas, se queremos entender que tipo d&criatura nossomos, temos de adotar urn ponto de vista muito diferente, basica-mente 0 do mareiano estudando os seres humanos. Este e, na ver-dade, 0 ponto de vista que adotamos quando estudamos outrosorganismos, ou mesmo os seres humanos afora os seus aspectosmentais - seres humanos "do pescoco para baixo", para falarmetaforicamente. Nao ha por que nao estudar 0 que esta acima dopescoco da mesma maneira.A medida que as lfnguas foram mais cuidadosamente investi-gadas do ponto de vista da gramatica gerativa, tornou-se claroque sua diversidade tinha sido subestirnada tao radical mentequanto sua complexidade. Ao mesmo tempo, sabemos que a diver-

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    sidade e a complexidade podem ser nada mais do que aparenciasuperficial.As conclusoes sao paradoxais, mas inegaveis, Elas colocam deforma cabal 0que se tornou 0problema central do estudo modernoda linguagem: Como podemos mostrar que todas as lfnguas saovariacoes de urn mesmo tema e, simultaneamente, registrar fiel-mente suas intrincadas propriedades de som e significado, superfi-cialmente diversas? Urna genuina teoria da linguagem humana ternde safisfazer duas condicoes: "adequacao descritiva" e "adequacaoexplicativa". A condicao de adequacao descritiva vigora para agramatica de uma lingua particular. A gramatica satisfaz essa con-dicao na medida em que da uma explicacao completa e exata daspropriedades da lingua, daquilo que 0 falante da lingua sabe.A condicao de adequacao explicativa vigora para a teoria geral dalinguagem, a gramatica universal . Para satisfazer essa condicao, agramatica universal tern de mostrar que cada lingua part icular euma manifestacaoespecifica do estado inicial uniforme, dele deri-vada sob as "condicoes de fronteira", cujas opcoes sao fixadas pelaexperiencia, Poderiamos entao ter uma explicacao das proprieda-des das Iinguas em urn nivel mais profundo. Na medida em que agramatica universal satisfaz a condicao de adequacao explicativa,ela oferece uma solucao para 0 que e as vezes chamado "0 proble-ma logico da aquisicao de lingua". Ela mostra como esse problemapode ser resolvido em principio, e entao fornece urn arcaboucopara 0estudo de como 0processo realmente ocorre.

    H a uma seria tensao entre essas duas tarefas de pesquisa.A procura da adequacao descritiva parece levar a uma complexi-dade e a uma variedade sempre maiores de sistemas de regras, aopasso que a procura da adequacao explicativa exige que a estruturada lingua seja, em grande parte, invariante. E essa tensao que ternquase sempre fixado as pautas de pesquisa. 0 modo natural deresolver a tensao e desafiar 0 pressuposto tradicional, que se man-teve no inicio da grarnatica gerativa, de que a lingua e urn sistemacomplexo de regras, cada regra sendo especifica de Iinguas parti-culares e construcoes gramaticais particulares: regras para formaroracoes relat ivas em hindi, sintagmas verbais em bantu, passivasem japones, e assim por diante. Consideracoes de adequacao ex-plicativa indicam que isso nao pode estar correto.

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    o problema foi enfrentado com tentativas de encontrar pro-priedades gerais de sistemas de regras que podern ser atrihuidas apropria faculdade de linguagem, na esperanca de 0 residue scmostrar mais simples e uniforme. Cerca de 15 ,1110S arras, essesesforcos se cristalizaram numa abordagem a linguagem que diver-giu muito mais radicalmente da tradicao do que a gramatica gerati-va anterior. Essa abordagem de "Principios-e-Parametros", comotem sido chamada, rejeitou inteiramente 0 conceito de regra econstrucao gramatical: nao ha regras para formar oracoes relativasem hindi, sintagmas verbais em bantu, passivas em japones, e as-sim por diante. As construcoes gramaticais familiares sao conside-radas artefatos taxonomicos, uteis talvez para a descricao informal,mas sem uma posicao dentro da teoria. Elas tern urn status pareci-do com 0 de "mamffero terrestre" ou "animal caseiro de estima-cao". E as regras sao decompostas em princfpios gerais dafaculdade de linguagem, que interagem para produzir as proprie-dades das expressoes. Podemos imaginar 0 estado inicial da facul-dade de linguagem como uma rede de relacoes fixa conectada a umpainel de controle; a rede de relacoes e constituida pelos principiosda linguagem, enquanto os controles sao as opcoes a serem deter-minadas pela experiencia. Quando os cont roles estao fixados deum modo, ternos 0 bantu; quando estao fixados de outro modo,temos 0 japones. Cada lingua humana possivel e identificada comouma fixacao particular dos con t roles - uma fixacao de parame-tros, na terminologia tecnica, Se 0 program a de pesquisa for bern-sucedido, deveriarnos ser literalmente capazes de deduzir 0bantu apartir de uma certa escolha de fixacoes, 0japones de Dutra, e assimpor diante, para todas as linguas que os seres humanos podem ad-quirir . As condicoes empfricas de aquisicao de lingua exigcm queos controles possam ser fixados com base na inforrnacao muitolimitada de que a crianca dispoe. Observe-se que pequenas mudan-cas na fixacao dos controles podem levar a uma grande variedadeaparente nos dados de saida, ja que os efeitos proliferam atravesdo sistema. Essas sao as propriedades gerais da linguagem quequalquer teoria genuina tern de captar, seja como for.

    Trata-se, e claro, de um program a, longe de ser urn produtoacabado. E provavel que as conclusoes alcancadas de modo con-jetural nao perrnanecam em sua forma atual; e, nern e preciso di-

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    zer, nao se pode ter certeza de que a abordagem como um todoesteja no caminho certo. Como um program a de pesquisa, entre-tanto, tem sido altamente bern-sucedido, levando a uma verdadeiraexplosao de investigacoes ernpiricas sobre Ifnguas de uma gamatipol6gica muito ampla, a novas questoes que sequer poderiam tersido formuladas antes e a muitas respostas intrigantes. Questoes deaquisicao, processamento, patologia e outras tambern tomaramnovas formas, que se revelaram igualmente muito produtivas.Alern disso, qualquer que seja seu destino, 0 program a sugerecomo a teoria da linguagem poderia satisfazer as condicoes con-fli tantes de adequacao descrit iva e explicativa. Ele da pelo menosurn delineamento de uma verdadeira teoria da linguagem, real-mente pela primeira vez.

    No ambito desse program a de pesquisa, a tarefa principal edescobrir os princfpios e parametres. Embora muito permanecaobscuro, tern havido progresso suficiente para se considerar algu-mas questoes novas e de maior aIcance sobre a configuracao geralda linguagem. Em especial , podemos perguntar ate que ponto essaconfiguracao geral e boa. Ate que ponto a linguagem chega pertodo que algum superengenheiro pode construir, dadas as condicoesque a faculdade de linguagem tern de satisfazer? Quao "perfei ta" ea linguagem, para colocar a questao de forma pitoresca?

    Esta questao nos leva diretamente as fronteiras da investiga-cao atual, que tern dado certa razao para crer que a resposta seja:"surpreendentemente perfeita" - surpreendente por diversas ra-zoes, as quais retornarei . Neste ponto, e diffci l continuar sem mai-or aparato tecnico. Deixarei este tema de lado ate arnanha e mevoltarei agora para alguns outros t6picos de natureza mais geral,que dizem respeito ao modo pelo qual 0 estudo internalista da lin-guagem se relaciona com 0mundo externo.

    Essas questoes se inserem em duas categorias: primeiro, rela-coes entre mente e cerebro; segundo, questoes de uso da lingua.Comecemos com a prime ira.o estudo internalista da linguagem tenta descobrir as proprie-dades do estado inicial da faculdade de linguagem e os estados queeste assume sob a influencia da experiencia. Os estados inicial eatingido sao estados do cerebro em primeiro lugar, mas descri tosabstratamente, nao em termos de celulas, mas em termos de pro-

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    priedades que os mecanismos do cerebro tern de satisfazer de al-gum modo.Argumenta-se com muita frequencia que esse quadro e mal-

    orientado em principio. A critica basica tem sido apresentada maisclaramente pelo fil6sofo John Searle: A faculdade de linguagem ede fato "inata nos cerebros humanos", ele escreve, mas a evidenciaque tem sido usada para atribuir propriedades e principios a essafaculdade inata "e explicada muito rnais simplesmente pela r . . . ] hi-potese" de que ha "urn nivel de explicacao com base no hardware,em termos da estrutura do dispositivo".

    Exatamente 0 que est a em jogo?A existencia do nivel de hardware nao esta em questao, se por

    isso entendemos que ha celulas envolvidas na "estrutura do dispo-sitivo" que e "inato nos cerebros humanos". Mas resta descobrir aestrutura do dispositivo, suas propriedades e princfpios, A unicaquestao tem a ver com 0 status da teoria que expressa essas pro-priedades. Searle diz que nao haveria "poder preditor ou explicati-vo adicional" por se dizer que ha um nfvel de principios"inconscientes e profundos" da faculdade de linguagem. Isso ebern verdade. Da mesma forma, a quimica e desinteressante se dizsomente que existem propriedades estruturais profundas da mate-ria. Mas a qufrnica nao e nada desinteressante se propoe teoriassobre essas propriedades, e 0 mesmo e verdadeiro com relacao aoestudo da linguagem. E, em ambos os casos, tomam-se as entida-des e os princfpios postulados como verdadeiros, porque nao te-mos outro conceito de realidade. Nao ha nenhum problema, apenasuma seria confusao que permeia a discussao dos aspectos mentaisdo mundo.

    Uma analogia com a qufrnica e instrutiva. Durante toda a suahistoria moderna, a quimica tentou descobrir propriedades de ob-jetos complexos no universo, oferecendo uma explicacao em ter-mos de elementos qufmicos do tipo postulado por Lavoisier,atomos e moleculas, valencia, f6rmulas estruturais para cornpostosorganicos, leis que regem a cornbinacao desses objetos, e assimpor diante. As entidades e principios postulados eram abstratos, nosentido de que nao havia modo de explica-Ios em termos de meca-nismos fisicos conhecidos. Houve debate atraves dos seculos sabreo status desses construtos hipotet icos: Sao eles reais? Sao apeuas

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    dispositivos de calculo? Podem ser reduzidos it ffsica? 0 debatecontinuou ate 0 principio deste seculo. Agora se compreende tersido completarnente sem sentido. Sucedeu que, na verdade, a qui-mica nao era redutivel it fisica, porque os pressupostos da fisicaelementar estavam errados. Com a revolucao quantica, foi possivelproceder it unificacao da quimica e da fisica, cerca de sessentaanos arras. Agora a quimica e considerada uma parte da fisica,embora nao tenha sido reduzida it fisica.

    Teria sido irracional se se tivesse afirmado durante seculosque a quimica estava enganada porque seus principios sao "expli-cad os de forma muito mais simples por um nivel de explicacaocom base no hardware, em termos das entidades e principios pos-tulados pelos fisicos"; e, como sabemos, a afirmacao teria sido naosomente irracional, mas tarnbem falsa. Pela mesma razao, teriasido irracional sustentar que se pode prescindir de uma teoria dalinguagem em favor de uma explicacao em termos de atomos ouneuronios, mesmo se houvesse muito a dizer nesse nivel. De fato,nao ha , 0 que nao deve causar surpresa.

    Com relacao as ciencias do cerebro, 0 estudo abstrato de esta-dos do cerebro fornece diretrizes para a pesquisa: elas procuramdescobrir que tipos de mecanismos podem ter essas propriedades.Os mecanismos podem, no final, ser bem diferentes de tudo que secontemplou ate hoje, como foi 0 caso durante toda a hist6ria daciencia. Nao se faz avancar as ciencias do cerebro propondo-separar de tentar encontrar as propriedades dos est ados do cerebro,ou pressupondo-se, dogmaticamente, que 0 pouco que se conhecesobre 0 cerebro tem de fornecer as respostas, ou dizendo que po-demos procurar as propriedades, mas nao devemos ir adiantee atribui-las ao cerebro e seus estados - "regras inconscientes eprofundas", se isso e 0que a melhor teoria conc lui.

    No segundo plano encontra -se 0 que parece ser um problemamais inescrutavel: 0 problema do dualismo; i.e., da mente e docorpo. 0 estudo abstrato da linguagem parece se situar no ladomental da particao, daf ser altamente problematico, Ele poe emduvida a "prernissa materialista basica" de que "Toda realidade efisica", para citar um estudo recente da "realidade mental" porGalen Strawson, 0 mais sofisticado e valioso estudo que conheco

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    do problema do materialismo, que e comumen tc considerado fun-damental para 0 pensamento contemporaneo.

    Strawson sal ienta que 0 problema "veio a parecer critico" nosseculos XVI-XVII , com 0 surgimento de "uma concepcao cienti ficada Iisica como nada mais do que partfculas em movimento". Isso everdade, mas 0modo como esse conceito se formou levanta aluu-mas questoes sobre a prernissa materialista e a busca de uma "linhadivisoria clara entre 0 mental e 0 nao-rnental", que Strawson coutros consideram critica para a filosofia da mente.

    A "concepcao cientffica" ganhou forma como "a filosofia me-canica", baseada no principio de que a materia e inertc e as intera-coes se dao pelo contato, sem "qualidades ocultas" do tipopostulado pela doutrina escolastica. Essas foram post as de ladocomo "urn Absurdo tao grande que eu acredito que nenhum Ho-mem que tenha, em materias filosoficas, uma Faculdade compe-tente de raciocinio pode jamais nele incorrer". Essas palavrasforarn de Newton, mas se referern nao as qualidades ocultas doEscolasticismo que estavam em tal descredito, mas it sua propriasurpreendente conclusao de que a gravidade, embora nao menosmistica, "rea lmente exi ste". Histo riadores da cienc ia sal ientam que"Newton nao tinha nenhuma explicacao ffsica da gravidade", urnproblema serio para ele e eminentes conternporaneos, que correta-mente "0 acusaram de reintroduzir as qualidades ocuItas", sem"substrato material, fisico" que "seres humanos podcm compreen-der". Ate 0 fim da sua vida, Newton procurou escapar desse absur-do, como tambern Euler, D' Alembert, e muitos outros desde entao,mas em vao. Nada enfraqueceu a forca do julgamehto de DavidHume de que, refutando a auto-evidente Iilosofia mecanicaNewton "reintegrou os segredos fundarnenta is [da Natureza Ia essaobscuridade na qual sempre permanecerarn e sempre perrnanece-rao",

    E verdade que a "concepcao cientifica da materia ffsica" in-corporou "particulas em movimento", mas sem a "compreensaohumana", no sentido do empreendimento anterior; antes, com re-cu rso aos "absurdos" newtonianos e, pior, deixando-nos "ignoran-tes da natureza da materia fisica de algum modo fundamental".Estou citando a referencia de Strawson aos problemas centrais damente, mas esses nao sao unicos a esse respeito. As propriedades

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    das particulas em movimento tarnbem ultrapassam 0 entendimentohumano, apesar de que "nos habituamos a nocao abstrata de Iorcasou, antes, a uma nocao que flutua numa obscuridade mistica entrea cornpreensao concreta e a abstracao", salienta Friedrich Langes,ao examinar esse "momento decisivo" em seu contexto historico,em seu classico e douto estudo do material ismo, que reduz signifi-cativamente a importancia da doutrina. As ciencias vieram a acei-tar a conclusao de que "uma fisica purarnente materialista oumecanicista" e "impossivel" (Alexander Koyre). Das ciencias hardas ciencias soft, a investigacao nao pode fazer mais do que procu-rar a melhor explicacao teorica, na esperanca de unificacao, sepossivel, embora, como, ninguem pode dizer de anternao.

    Em termos da fi losofia mecanica, Descartes t inha sido capazde formular uma versao bast ante inteligivel do problema men-te/corpo, 0 problema do "fantasma na maquina", como tem sidochamado algumas vezes. Mas Newton mostrou que a maquina naoexiste, embora tenha deixado 0 fantasma intacto. Com a demons-tracao de Newton de que nao havia corpos em nenhuma acepcaoparecida com a que se pressupunha, a versao vigente do problemamente/corpo entrou em colapso. 0 mesmo se aplica a qualqueroutra, ate que alguma nova nocao de corpo seja proposta. Mas asciencias nao oferecem nenhuma: ha um mundo, com estranhaspropriedades, quaisquer que sejarn elas, incluindo seus aspectosoticos, quimicos, organicos, mentais e outros, que tentamos desco-brir. Todos sao parte da natureza.

    Este parece ter sido 0 ponto de vista de Newton. Ate os seusult imos dias, ele procurou algum "espir ito sutil" que pudesse ex-plicar uma ampla gama de feuomenos que pareciam estar inacessi-veis a explicacao em termos verdadeiramente cornpreensiveis aoshumanos, incIuindo a interacao de corpos, atracao e repulsao ele-tr icas, luz, sensacao e 0modo como "membros dos corpos de ani-mais se movem ao comando da vontade". 0 qufrnico Joseph Blackrecomendou que "as afinidades quimicas sejam recebidas comoum primeiro principio, que nao podemos explicar, como tampoucoNewton conseguiu explicar a gravitacao, e adiemos a explicacaodas leis da afinidade, ate que tenhamos estabelecido um tal corpode doutrina tal como Newton estabeleceu relativamente a lei dagravitacao". A quimica prosseguiu ate estabelecer um complexo

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    corpo de doutrina, alcancando seus "triunfos 1 . . . 1 em separado c iarecem-ernergente ciencia da fisica", salienta um importante histo-riador da quimica. Como mencionei, a unificacao foi finalmentealcancada, bastante recentemente, embora nao por reducao.

    Deixando de lado seu arcabouco teologico, nao houve, desdeNewton, nenhuma alternativa razoavel a sugestao de John Lockede que Deus pode ter escolhido "superadicionar a materia a Iacul-dade de pensar" exatamente como ele "anexou efeitos ao movi-mento, efei tos que nan podemos de nenhum modo conceber que 0movimento seja capaz de produzir". Como 0 qufrnico do seculoXVIII Joseph Priestley acrescentou mais tarde, temos de ver aspropriedades "rotuladas mentais" como 0 resuItado de "uma es-trutura organica tal como a do cerebro", superadicionada a outras,nenhuma das quais precisa ser compreensivel no sentido buscadopela ciencia de antes. Isso incIui 0 estudo da linguagem, que tentadesenvolver corpos de doutrina com construtos e principios quepodem ser apropriadamente "rotulados mentais" e tornados como"0 resuItado de estrutura organica" - de que modo, ainda estapor ser descoberto. A abordagem e "mentalista", mas no que deve-ria ser um sentido nao-controverso. Ela se incumbe de estudar urnobjeto real no mundo natural - 0 cerebro, seus estados e Juncoes-, e entao deslocar 0 estudo da mente em direcao a uma eventualintegracao com as ciencias biol6gicas.

    Seria util mencionar que na maior parte tais problemas perl1la-necem sem solucao, mesmo para sistemas muito mais simples,onde a experimentacao direta e possfvel. Um dos casos mais bemestudados e 0 dos nematodeos, pequenos vermes coin um periodode maturacao de tres dias, com um diagrama eletrico que ja foiintegralmente analisado. Poi s6 muito recentemente que se conse-guiu algurn entendimento da base neuronal de seu comportamento,e issopermanece limitado e controverso.

    Uma outra questao da mesma categoria tern a ver com 0modocomo os genes expressam as propriedades do estado inicial . Essetarnbern e um problema muito dificil, pouco compreendido, mesmoem casos muito mais simples. As "leis epigeneticas" que transfor-mam os genes em organismos desenvolvidos sao, na sua maiorparte, desconhecidas, uma grande lacuna na teoria evolucionista,como os cientistas tern salientado com frequencia, porque a teoria

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    requer uma cornpreensao da correspondenc ia genot ipo-feno.t ipo,i.e., da gama de organismos que pode se desenvolver a partir dealgum complexo de genes. Menciono esses fatos somente a guisade advertencia sobre as estranhas conclusoes que tern sido expres-sas, freqiientemente com grande paixao de novo, ace rca de obser-vacoes sobre 0 isolamento biologico da linguagem e a riqueza doest ado inicial . Hit muito mais a dizer sobre esse topico, que emuito estimulante hoje, mas 0 deixarei de lado e passarei para asegunda categoria de questoes , sobre 0 emprego que a linguagemfaz do mundo: questoes de uso da lingua.

    Por uma questao de simplicidade, vamos nos ater a palavras, epalavras simples. Suponhamos que "livro" seja uma palavra dolexico de Pedro. A palavra e urn complexo de propriedades: nojargao tecnico, traces foneticos e sernanticos. Os sistemas senso-rimotores usam as propriedades foneticas para a articulacao e apercepcao, relacionando-as a eventos externos - movimentos demoleculas, por exemplo. Outros sistemas da mente usam as pro-priedades sernanticas da palavra quando Pedro fala sobre 0mundoe interpreta 0que os outros dizem sobre 0mesmo.

    Nao ha nenhuma controversia significativa sobre como proce-der no campo do som, mas no campo do significado hit profundasdiscordancias, Os estudos orientados empiricamente parecemabordar os problemas do significado basicamente do mesmo modocomo estudam 0 som. Tentam encontra r as propriedades fonet icasda palavra "livro" que sao us ad as pelos sistemas articulatorio eperceptual. E, de forma semelhante, tentam encontrar as proprie-dades sernanticas da palavra "livro" que sao usadas pelos outrossistemas da mente/cerebro: que e nominal e nao verbal, usada parareferencia a urn artefato e nao a uma substancia como agua ou auma abstracao como saude, e assim por diante. Pode-se perguntarse essas propriedades sao parte do significado da palavra "livro"ou do conceito associ ado a pa lavra ; nao esta claro como distinguiressas propriedades, mas talvez uma questao empirica possa sertrazida a luz. De um modo ou de outro, alguns tracos do item lexi-cal "livro", que sao internos a ele, determinam os modos de inter-pretacao do tipo que acabe i de mencionar.

    Ao investigar 0 usn da lingua, descobrimos que as palavrassao interpretadas em termos de fatores tais como constituicao ma-

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    terial, configuracao geral, uso caracteristico e pretendido, papelinstitucional, e assim por diante. As nocoes podern ser rastreadasa te sua origem ari stotel ica , sa lientou 0 f ilosofo Julius Moravcsiknum trabalho muito interessante. As coisas sao identificadas eatribuidas a categorias em termos de tais propriedades, que estoutomando como traces sernanticos, em paridade com os traces fo-neticos que determinam 0 seu som. 0uso da lfngua pode levar emconsideracao esses tracos semanticos de varios modos. Suponha-mos que a biblioteca tenha dois exemplares de Guerra e Paz deTolstoi e que Pedro pegue emprestado um e Joao 0 outro. Pedro eJoao pegararn 0 mesmo livro ou livros diferentes? Se atentamospara 0 fator material do item lexical, pegaram livros diferentes; sefocalizarnos seu componente abstrato, pegaram 0 mesmo livro.Podemos atentar para ambos os fatores, material e abstrato, simul-taneamente, como quando dizemos que 0 livro dele est a em todasas livrarias do pais, ou que 0 livro que ele esta planejando vai pe-sar pelo menos dois quilos, caso ele 0 esc reva. De modo ana logo,podemos pintar a porta de branco e passar por ela, usando 0 pro-nome "ela" para nos referir ambigiiamente a figura e ao espac;o.Podemos relatar que houve a quebra do banco depois que ele au-mentou a taxa de juros, ou que ele aumentou a taxa para evitar quesofresse a quebra. Aqui 0 pronome "ele" e a "categoria vazia"que e sujeito de "sofresse a quebra", simultaneamente, adotamambos os fatores mater ial e ins ti tucional .o mesmo e verdadeiro se minha casa e destruida e eu a re-construa, talvez em outro lugar; nao e a mesma casa, mesmo queeu use os mesmos materiais, embora eu a re-constr 'Ua. Os termosreferenciais "a" e "re" cruzam a fronteira. Cidades sao ainda dife-rentes. Londres poderia ser destruida pelo fogo e ci a poderia serreconstruida em algum out ro lugar, com mate riai s completamentediferentes e parecendo bern diferente, mas assim mesmo seriaLondres. Cartago poderia ser reconstruida hoje, e ainda ser Carta-go.

    Considere-se a cidade que e vista como sagrada pelas fes queremontam ao Antigo Testamento. 0 mundo islarnico a chama "AI-Quds"; Israel usa urn nome diferente, como 0 faz 0 mundo cristae:"Jerusalem", em portugues. Ha muito conflito sobre essa cidade.o New York Times acaba de oferecer 0 que chama de "solucao

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    promissora". Israel deveria ficar com Jerusalem inteira, mas "AI-Quds" seria reconstrufda fora das atuais fronteiras de Jerusalem.A proposta e perfeitamente inteligivel - razao por que despertaconsideravel indignacao fora dos circulos nos quais a doutrina dospoderosos reina inconteste. E 0 plano poderia ser implementado.A que cidade estaremos entao nos referindo ao dizer que ela foideixada onde estava, embora deslocada para algum outro lugar?

    Os significados das palavras tern outras propriedades curiosas.Assim, se digo a voce que pintei minha casa de marrom, querofazer voce compreender que passei a t inta sobre a superficie exte-rior, nao a superficie interior. Se quero que voce entenda que foi asuperffcie interior , tenho de dizer que pintei a casa de marrom pardentro, Na terminologia tecnica, ha um uso marcado e outro nao-marcado; sem indicacoes especlficas, damos as palavras a sua in-terpretacao nao-rnarcada. Essas sao propriedades de casas, naosomente da palavra "pintar". Assim, se vejo a casa, vejo sua super-ficie exterior, embora, se eu estiver sentado dentro, eu possa ver asparedes interiores. Apesar de as interpretacoes nao-marcadas sele-cionarem a superffcie exterior, eu seguramente nao vejo a casasomente como uma superficie. Se voce e eu estamos fora da casa,voce pode estar mais proximo dela do que eu; mas se estamos am-bos na casa, este nao pode ser 0caso, mesmo que voce esteja maisproximo da superficie. Nenhum de nos est a perto da casa. Logo,vemos a casa como uma superffcie exterior, mas com um interiortambern. Se decido usar minha casa para guardar meu carro, mo-rando em outro lugar, nao e mais uma casa, e antes uma garagem,embora a constituicao material nao tenha mudado. Tais proprieda-des vigoram de maneira bem geral, mesmo para objetos inventa-dos, mesmo objetos impossiveis. Se pinto meu cubo esferico demarrom, pintei 0exterior da superficie de marrom.

    Tais propriedades nao se limitam a artefatos. Cham amos a In-glaterra de ilha, mas, se 0 nivel do mar caisse bastante, seria umamontanha, em virtude das faculdades da mente. A substancia sim-ples prototipica e a agua. Mas, mesmo aqui, fatores imateriais en-tram na individuacao. Suponhamos que uma xfcara esteja cheia deH20 e eu coloque um saquinho de cha dentro dela. Fica entao sen-do cha, nao agua. Suponhamos que uma segunda xicara tenha sidoenchida num rio. Seu conteudo poderia ser quimicamente identico

    ao da primeira xicara, talvez um navio tenha despejado milhares desaquinhos de cha no rio. Mas e agua, nao cha, e assim e que euchama ria, mesmo se soubesse de todos esses Iatos. 0 que as pes-soas chamam de "agua" correlaciona-se com 0 conteiido I-hO, masso tenuamente, estudos experimentais ja comprovaram. Sem diivi-da, nesse caso extremo, a constituicao e 0 fator principal para sedecidir se algo e agua, mas, mesmo aqui, nao 0 i inico. Como jamencionei, as observacoes se estendem aos elementos referenciaismais simples e aos dependentes referencialmente; e aos nomesproprios, que tern propriedades semantico-conceituais complexas.Algo e design ado como uma pessoa, um rio, uma cidade, com acomplexidade de cornpreensao que acompanha essas categorias.A linguagem nao tem logicamente nomes proprios, despidos detais propriedades, como bem salientou 0 filosofo oxfordiano PeterStrawson muitos anos arras.

    Os fatos sobre tais assuntos sao freqiientemente claros, masnao triviais. Tais propriedades podem ser investigadas de variesmodos: aquisicao de lingua, generalidade entre Iinguas, formasinventadas, etc. 0 que descobrimos e surpreendentemente intrin-cado; e, nao surpreendentemente, e em grande parte sabido antesde qualquer evidencia, dai que compartilhado entre as Iinguas. Naoha razao a priori para se esperar que a linguagem humana tenhatais propriedades; a lingua marciana poderia ser diferente. Os sis-temas sirnbolicos da ciencia e da matematica seguramente sao.

    As vezes sugere-se que essas sao, exclusivamente, coisas quesabemos pela experiencia com livros, cidades, casas, pessoas, eassim por diante. Isso e em parte correto, mas escariioteia a ques-tao. Sabemos tudo isso sobre partes da nossa experiencia queconstrufrnos como livros, ou cidades, e assim por diante, em virtu-de da configuracao geral de nossa lingua e de nossa organizacaomental. Tomando emprestada a terminologia da revolucao cogniti-va do seculo XVII, 0 que os sentidos veiculam da a mente "umaocasiao de exercitar sua propria atividade" para construir "ideiasinteligiveis e concepcoes de coisas a partir dela propria", como"regras", "padroes", "exemplares" e "antecipacoes" que produzempropriedades gestalticas e outras, e "uma ideia abrangente dotodo". Ha boas razoes para se adotar o principio de Hume de que a"identidade que atribuimos" as coisas e "apenas fictfcia", estabele-

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    cida pelo entendimento humano, urn quadro desenvolvido maisalern por Kant, Schopenhauer e outros. As pessoas pensam e falamsobre 0 mundo em termos de perspectivas tornadas disponiveispelos recursos da mente, incluindo os significados dos termos nosquais seus pensamentos sao expressos. A comparacao com a inter-pretacao fonetica nao e desarrazoada.

    Uma grande parte da fi losofia contemporanea da linguagem eda mente segue urn curso diferente. Ela pergunta a que uma pala-vra se refere, dando varias respostas. Mas a pergunta nao tern urnsignificado claro. Faz pouco sentido perguntar a que coisa a ex-pressao "Guerra e Paz de Tolstoi" se refere. A resposta dependede como os traces sernanticos sao usados quando pensamos e fa-lamos, de urn modo ou de outro. Em geral, uma palavra, mesmodo tipo mais simples, nao escolhe uma entidade do mundo, ou donosso "espaco de crenca" - 0 que nao significa negar, e claro, quehaja livros e bancos, ou que estejamos falando sobre algo se dis-cutimos 0 destino da Terra e concluimos que ele e sombrio. Masdeveriamos seguir 0 born conselho de Thomas Reid, fil6sofo doseculo XVIII , e seus sucessores modernos, Wittgenstein e outros, enao tirar conclusoes injustificadas do uso comum.Podemos, se quisermos, dizer que a palavra "Iivro" se refere alivros, "ceu" ao ceu, "saiide" a saiide, e assim por diante. Taisconvencoes expressam basicamente a falta de interesse nas pro-priedades sernanticas das palavras e na maneira como sao usadaspara falar das coisas. Poderiarnos igualmente evitar as questoes defonetica acustica e articulat6ria. Dizer isso nao e criticar a decisao;qualquer investigacao focaliza certas questoes e ignora outras.Tern havido uma grande quantidade de trabalhos estimulantes so-bre aspectos da linguagem que ~e relacionam com a interpretacaofonetica e a interpretacao semantica, mas seria mais apropriadochamar isso de sintaxe, em minha opiniao, urn estudo das opera-coes da faculdade de linguagem, parte da mente. Os modos como alinguagem e usada para empregar 0mundo se situam alern.

    A esse respeito, voltemos ao meu comentario de que a grama-tica gerativa buscou dedicar-se a preocupacoes que estimularam atradicao, em particular, a ideia cartesian a de que "a verdadeiradistincao" entre os seres humanos e as outras criaturas ou maqui-nas 6 a habilidade de agir da maneira que eles tomaram como

    muito cIaramente ilustrada no uso comum da lingua: sern limitesfinitos, intluenciada mas nao determinada pelo estado interno,apropriada a situacoes mas nao causada por elas, coerente e evo-cando pensamentos que 0 ouvinte poderia ter expressado, e assimpor diante. Isso e so parcialmente correto. 0 objetivo do trabalhoque estive discutindo e trazer a luz alguns dos fatores que entramnessa pratica normal. Somente alguns, entretanto.

    A grarnatica gerativa procura descobrir os mecanismos quesao usados, contribuindo, assim, para 0estudo de como sao usadosda maneira criat iva da vida normal. Como sao usados e 0 problemaque intrigou os cartesianos, e isso permanece tao misterioso paran6s como era para eles, embora se saiba muito mais hoje sobrc osmecanismos que estao envolvidos.

    Nesse aspecto, 0 estudo da linguagem 6 de novo tal como 0dos outros orgaos. 0 estudo dos sistemas visual e motor desvendouos mecanismos pelos quais 0 cerebro interpreta estimulos esparsoscomo urn cubo e pelos quais 0 braco se estende para pegar umlivro sobre a mesa. Mas esses ramos da ciencia nao levantam aquestao de como as pessoas decidem fazer tais coisas, e as espe-culacoes sobre 0 uso dos sistemas visual e motor, ou outros, equi-valem a muito pouco. Sao essas capacidades, manifestadas deforma mais impressionante no uso da Iingua, que estao no amagodas preocupacoes tradicionais: para Descartes, elas sao "a coisamais nobre que podemos ter" e tudo que nos "pertence verdadei-ramente". Meio seculo antes de Descartes, 0 filosofo-fisico espa-nhol Juan Huarte observou que essa "potencia gerativa" dacornpreensao e da acao humanas ordinarias, ernbola estranha aos"animais brutos e plantas", e somente uma forma inferior de com-preensao.' Ela nao alcanca 0 nivel do verdadeiro exercfcio da irna-ginacao criativa. Mesmo a forma inferior esta alern de nossoalcance teorico, excluindo-se 0 estudo dos mecanismos envolvi-dos. Em varias areas, inclusive a linguagem, muito se aprendeu, emanos recentes, sobre esses mecanismos. Os problemas que podern2 Cf.: "una [potenc ia generat iva] com'un can los brutos animales y plantas, yotra participante can las substancias espirituales [. .. J ." (Ci tado em Otero , Car -los. lntroduccion a fa lingiiistica transjormacional. Mexico, Siglo XXI, 1970.(6' ed. 1986. ) (N. do T.)

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    agora ser enfrentados sao dificeis e desafiadores, mas muitos mis-terios ainda se mantern alern do a1cance da forma de investigacaohumana que chamamos "ciencia", 0 que e uma conclusao que naodeveriamos achar surpreendente se consideramos os seres huma-nos como parte do mundo organico, e que talvez tampouco deves-semos achar angustiante. Segunda Palestra

    Ontem, discuti duas questoes basicas sobre a linguagem, umainternalista e a outra externalista. A questao internalista indaga quetipo de sistema e a linguagem. A 'questao externalista indaga comoa linguagem se relaciona com as outras partes da mente e com 0mundo externo, inc1uindo problemas de unificacao e de uso daIfngua. A discussao ficou num nivel muito geral, tentando por emordem os tiposde problemas que surgem e os modos de lidar comeles que parecem corretos. Agora eu gostaria de examinar um pou-co mais de perto 0 pensamento atual sobre a questao internalista.

    Para rever 0 contexto, 0 estudo da linguagem tomou um cami-nho um tanto diferente cerca de quarenta anos atras, como parte dachamada "revolucao cognitiva" dos anos 50, que retomou e refer-mulou questoes e preocupacoes tradicionais sobre muitos topicos,inc1uindo a Ifngua e seu uso e a importancia dessas materias para 0estudo da mente humana. Tentativas anteriores de explorar essasquestoes tinham se defrontado com barreiras conceituais e limitesde compreensao. Em meados do seculo, essas barreiras e essesl imites t inham sido superados ate certo ponto, tornando possivelprosseguir de modo mais proveitoso. 0 problema basico era en-contrar alguma maneira de resolver a tensao entre as exigenciasconflitantes de adequacao descritiva e explicativa. 0 program a depesquisa que se desenvolveu conduziu finalmente a um quadro dalinguagem que representa uma consideravel divergencia da longa erica tradicao: a abordagem de Principios-e-Parametros, que sebaseia na ideia de que 0 estado inicial da faculdade de linguagemconsiste em princfpios invariantes e em urn leque finito de esco-lhas quanta ao funcionamento do sistema inteiro. Uma lingua par-ticular e determinada Iazendo-se essas escolhas de urn modo

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    especffico. Temos ai, pelo menos, as linhas gerais de uma verda-deira teoria da linguagem, que talvez seja capaz de satisfazer ascondicoes de adequacao descritiva e explicativa e de abordar 0problema 16gico da aquisicao de lingua de modo construtivo.

    Desde que esse quadro tomou forma cerca de 15 anos arras, 0esforco principal da pesquisa orientou-se para a tentativa de des-cobrir e tornar explfci tos os principios e os parametres. A investi-gacao estendeu-se muito rapidamente tanto em profundidade, emlinguas individuais, quanto em ambito, quando ideias semelhantesforam aplicadas a linguas de uma gama tipologica muito ampla. Osproblemas que permanecem sao consideraveis, para dizer 0 mini-mo. A mente/cerebro do homem e talvez 0 mais complexo objetono universo, e mal cornecamos a compreender os modos como seconstitui e funciona. Dentro dela, a linguagem parece ocupar urnlugar central , e , pelo menos na superficie, a variedade e a comple-xidade sao desencorajadoras. No entanto, tern havido muito pro-gresso - 0 bastante para que pareca razoavel considerar algumasquestoes de maior alcance sobre a configuracao geral da lingua-gem, em particular, questoes sobre a otimidade da configuracaogeral. Deixei esta materia neste ponto ontem, tendo passado paraoutros topicos, Vamos voltar a ela, ever para onde a investigacaosobre essas questoes pode conduzir.

    Estamos agora perguntando ate que ponto a linguagem e bem-configurada. Ate que ponto a linguagem se parece com 0 que urnengenheiro sumamente competente poderia ter construido, dadascertas especificacoes da configuracao geral. Para estudar essaquestao, temos de explicitar melhor essas especificacoes, Algumassao internas e gerais, tendo a ver com a naturalidade conceitual e asimplicidade, nocoes que dificilmente sao limpidas, mas que po-dem ser avivadas de varias modos. Outras sao externas e especffi-cas, tendo a ver com as condicoes impostas pelos sistemas damente/cerebro com que a faculdade de linguagem interage. Sugerique a resposta a essa questao pode vir a ser que a linguagem emuito bem-configurada, talvez quase "perfeita" quanta a satisfazercondicoes externas.

    Se ha alguma verdade nesta conclusao, e bastante surpreen-dente, por' diversas razoes, Primeiro, as linguas tern sido freqi.ien-temente pressupostas como objetos tao complexos e defectivos quemal valeria a pena estuda-las sob uma perspectiva teorica rigorosa.

    Elas e:,.igem reforma ou sisternatizacao, Oll substituicao por algobem diferente, se tern de servir a algum proposito, alern dos confu-sos e intr incados assuntos do cotidiano. Essa e a ideia norteadoraque inspir~lI. as tentativas tradicionais de inventar lima lingua uni-versal perfeita ou, sob pressupostos teol6gicos, de recuperar alingua adamica original; e tem-se aceito algo sernelhante em mui-tos trabalhos atuais , de Frege ate 0 presente. Segundo, nao se podeesperar encontrar tais propriedades da configuracao geral em sis-ten~as biol6gicos, que evoluiram no correr de longos periodos porm~lOde .mu~an

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    Do Big Bang as grandes moleculas, a configuracao geral re-sulta da acao de lei ffsica: as propriedades do helio ou dos flocosde neve, por exemplo. Os efeitos da selecao comecarn a aparecercom fonnas organicas mais complexas, embora a compreensaodecline a medida que aumenta a complexidade, e tem-se de estarprecavido para 0que os biologos evoluc ioni stas Richard Lewontin,Stuart Kauffman, e outros, chamaram de "Historias Assim, Assim"(Just So Stories) - historias sobre como as coisas poderiam teracontecido, ou nao. Kauffman, por exemplo, argumentouque muitas das propriedades do "sistema regulatorio genomico quecompele os padroes de atividade genetica a um comportamentouti l" durante 0 crescimento dos organismos "sao traces auto-organizados, espontdneos, de sistemas de controle complexo quenao exigem quase nenhuma selecao", sugerindo que "ternos derepensar a biologia evolucionista" e procurar "fontes de ordemfora da selecao". Sao raros os biologos evolucionistas que descar-tam tais ideias como nao-merecedoras de atencao, Olhando alem,pressupoe-se geralmente que fenornenos tais como a capa poliedri-ca dos virus, ou 0 aparecimento em formas organicas de proprie-dades de uma serie aritmetica bem-conhecida chamada serie deFibonacci ("filotaxe"), provavelmente se agrupam melhor com osflocos de neve do que com a distribuicao das mariposas claras eescuras ou 0 pescoco de uma girafa. Indiscutivelmente, para qual-quer caso que se estude, tem-se de determinar como 0 canal f is icorestringe os result ados e que opcoes ele permite.

    Alern disso, ha questoes independentes que tern de ser esmiu-cadas. 0 que aparenta ser uma configuracao geral maravilhosapode bem ser um exemplo paradigmatico de gradualismo que in-depende da funcao em questao. 0 usa ordinario da lingua, porexemplo, depende dos ossos do ouvido interno que migraram dosmaxilares dos repteis, Acredita-se atualmente que 0 processo econsequencia do crescimento do neocortex nos mamfferos e "sepa-ra os verdadeiros mamfferos de todos os outros vertebrados" (Sci-ence, 1Q dez. 1995). Um engenheiro acharia que esse "delicadosistema de amplificacao do som" e esplendidamente projetado paraa funcao da linguagem, mas a mae natureza nao teve isso emmente quando 0 processo comecou ha 160 milhoes de anos, nemha qualquer efeito selecional conhecido do ernprestimo do sistemapara usa pela l inguagem.

    A linguagem humana situa-se hem alem dos limites do enten-dimento se rio dos processos evolucionistas, embora ha ja especu la-coes sugestivas. Acrescentemos outra. Suponhamos que criernosuma "Historia Assim, Assim" com imagens derivadas dos flocosde neve e nao das cores das mariposas e dos pescocos das girafas,e com configuracao geral determinada por lei natural e nao pOfbricolagem por meio da selecao. Suponhamos que existiu urn anti-go primata com toda a arquitetura mental human a no lugar, massem faculdade de linguagem. A criatura compartilhou nossos mo-dos de organizacao perceptual, nossas crencas e desejos, nossasesperancas e temores, na medida em que esses nao sao formados emediados pel a linguagem. Talvez tenha tido uma "linguagem dopensamento", no sentido de Jerry Fodor e outros, mas nao urnmeio de formar expressoes Iingiiisticas associ ad a s com os pensa-mentos que essa Lingua Mentis torna disponiveis.

    Suponhamos que uma mutacao tenha ocorrido nas instrucoesgeneticas parao cerebro, que foi entao reorganizado de acordocom as leis da ffsica e da quimica para instalar a faculdade de lin-guagem. Suponhamos que 0 novo sistema era, alern do mais, belis-simamente configurado, uma solucao quase perfeita para ascondicoes impost as pel a arquitetura da mente/cerebro na qual seinsere, outra ilustracao de como as leis naturais trabalham de modomaravilhoso; ou, se se prefere, uma ilustracao de como 0 funileiroevolucionario poderia sat isfazer condicoes complexas da configu-racao gera l com ferramentas mui to simples.

    Sejamos claros: trata-se de fabulas, Seu unico valor compen-sador e que talvez nao sejam mais implausiveis do que outras, epodem ate acabar tendo alguns elementos de validade. As imagenscumprem sua funcao se nos ajudam a formular um problema queno fim poderia ter sentido e ser ate significativo: basicamente, 0problema que motiva 0 programa minimalista, que explora a intui-

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    o seja. A questao empirica seria e quanta distorcao e introduzidapela abstracao, Urn tanto surpreendentemente, talvez, parece quepouca distorcao e introduzida, caso alguma 0 seja: e como se alingua aparecesse instantaneamente, pela selecao das opcoes dis-poniveis no estado inicial . Apesar da grande variacao na experien-cia, os resultados parecem ser notavelmente semelhantes, cominterpretacoes compartilhadas, freqiientemente de sutileza extre-ma, para expressoes Iingiiisticas de tipos que possuem pouca se-melhanca com qualquer coisa experienciada. Isso nao e 0 queesperariamos se a abstracao para a aquisicao instantanea introdu-zisse severas distorcoes. Talvez a conclusao reflita nossa ignoran-cia, mas a evidencia ernpfrica parece apoia-la, Independentementedisso, na medida em que tem sido possivel explicar propriedadesde linguas individuais em termos da abstracao, temos evidenciaadicional de que a abstracao, de fato, capta propriedades reais deuma realidade complexa.

    As questoes propostas pelo program a minimalista sao de al-gum modo similares. Certamente, a faculdade de lingua gem naofoi instantaneamente inserida na mente/cerebro com 0 resto daarquitetura total mente intacta. Mas estamos perguntando agora ateque ponto e bem-configurada, com base nesse pressuposto contra-factual. Em que medida a abstracao distorce uma realidade am-plamente mais complexa? Podemos tentar responder a estapergunta aproximadamente como respondemos it pergunta analogasobre 0problema logico da aquisicao de lingua.Para fazer prosseguir 0 program a, temos de agucar as ideiasconsideravelmente, e ha meios de faze-Io avancar, A faculdade delinguagem se encaixa dentro da arquitetura mais ampla da men-te/cerebro, Ela interage com outros sistemas, que impoern condi-

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    conceitual e outros sistemas do pensameuto e da acao, e pode con-s is tir somente nesses objetos emparelhados.

    Se isto esta correto, em seguida temos de perguntar exata-mente onde a interface se localiza. No lado do som, tem de serdeterminado em que medida, se e que ha alguma, os sistemas sen-sorimotores sao especfficos da linguagem e, portanto, estao dentroda faculdade de linguagem; ha consideravel discordancia sobreessa materia. No lado do sentido, as questoes tern a ver com asrelacoes entre a faculdade de linguagem e outros sistemas cogniti-vos - as relacoes entre linguagem e pens amen to. Do lado do som,as questoes foram estudadas aprofundadamente, com tecnologiasofisticada, por meio seculo, mas os problemas sao dificeis e acornpreensao permanece limitada. Do lado do significado, asquestoes sao muito mais obscuras. Isso porque se sabe menos so-bre os sistemas externos it linguagem; grande parte da evidencia aseu respeito est a t ao intimamente ligada it lingua gem que e reco-nhecidamente dificil determinar quando se relaciona com a lingua-gem, quando com outros sistemas (na medida em que sao coisasdistintas). E a investigacao direta, do tipo que e possivel para ossistemas sensorimotores, esta no seu inicio. Contudo, ha umaquantidade enorme de inforrnacao sobre como as expressoes saousadas e entendidas em circunstancias especfficas, 0 suficientepara que a sernantica das linguas naturais seja uma das mais vigo-rosas areas do estudo da linguagem, e podemos fazer pelo menosalgumas conjeturas a respeito da natureza do nivel de interface edas condicoes de legibil idade que e le deve sati sfaze r.

    Com alguns pressupostos conjeturais sobre a interface, pode-mos prosseguir em direcao a novas questoes. Perguntamos quantodo que estamos a tribuindo it faculdade de linguagem e realmentemotivado pela evidencia empfrica e quanto e urn tipo de tecnolo-gia, adotada para apresentar os dados de uma forma cornoda, em-bora encobrindo lacunas de compreensao, Com certa freqiiencia,explicacoes que sao apresentadas em trabalhos tecnicos reve-lam-se, sob investigacao, como tendo aproximadamente a mesmaordem de complexidade do que esta para ser explicado e envolvempressupostos que niio sao muito bem fundados independentemente.Isso niio e problernatico, desde que nao nos enganemos pensandoque descricoes uteis e informativas, que podern fornecer meiospara a investigacao futura, sejarn mais do que isso.

    Tais questoes sao sempre apropriadas em principio, mas fre-quentemente nao vale a pcna formula-las na pratica; elas podernser prematuras, porque a cornpreensao e simplesmente limitadademais. Mesmo nas ciencias Izard, na verdade mesmo na materna-tica, questoes desse tipo tern sido comumente post as de lado. Masas questoes sao, nao obstante, reais, e, com um conceito mais plau-sivel do carater geral da linguagem it disposicao, talvez valha apena explora-las,

    Vamos passar para a questao da otimidade da configuracaogeral da linguagem: Em que grau a Iinguagem e uma boa solucaopara as condicoes gerais impostas pela arquitetura da men-te/cerebro? Essa pergunta, tambem, pode ser prematura, mas, dife-rentemen te do problema de d istingui r en tre pressupostos fundadosem princfpios e tecnologia descritiva, pode nao ter nenhuma res-posta: como mencionei, nao ha nenhuma razao seria para se espe-rar que os sistemas biol6gicos tenham uma boa configuracao, emqualquer sentido que seja .

    Vamos pressupor hipoteticamente que ambas as questoes se-jam apropriadas, tanto na pratica como em princfpio. Agora pros-seguimos para submeter a um detalhado escrutinio principios dalinguagem ja postulados, para ver se sao empiricamente justifica-dos em termos das condicoes de legibilidade. Citarei uns poucosexemplos, pedindo desculpas, de anternao, pelo uso de te rmino lo-gia mais tecnica, que tentarei manter a um minimo, mas nao tenhotempo aqui para explicar de modo sat isfat6 rio.

    Uma questao e se ha niveis que nao sejam os de interface:Existem niveis " internos" it linguagem, em particulaj" os niveis deestrutura profunda e de superffcie que desempenharam um papelsubstancial na pesquisa modern a? 0 programa minimalista procuramostrar que tudo 0 que foi explicado ate agora em termos dessesniveis foi mal descrito, e e compreendido igualmente ou melhorem t