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9 Linguagem Acadêmica, Batatais, v. 2, n. 1, p. 9-31, jan./jun. 2012 No século XIII, debates sobre as cruzadas 1 Armando Alexandre dos Santos 2 1 O presente artigo é condensação da monografia Dialética pró e contra as Cruzadas em documentos do século XIII, apresentada como trabalho de conclusão de curso de Licenciatura em História no Centro Universitário Clare- tiano de Batatais (SP), em dezembro de 2010, sob orientação da Profa. Dra. Renata Cardoso Belleboni Rodri- gues. Essa monografia, na íntegra, foi publicada em forma de livro pela “Equilíbrio Editora”, de Piracicaba-SP. 2 Mestrando em História e Cultura Política pela Universidade Paulista (UNESP). Graduado em Genealogia Heráldica e Nobiliária pela Escuela de Genealogia Heráldica y Nobiliaria – Ma- dri (ESP). Licenciado em História pelo Centro Universitário Claretiano de Batatais (SP). Espe- cialista em Ensino de Português, Literatura e Redação pela mesma Instituição. Membro do Insti- tuto Histórico e Geográfico Brasileiro. Jornalista profissional. E-mail: <[email protected]>. Resumo: Estudo comparativo de dois documentos procedentes de setores muito diver- sos (e de certa forma até antagônicos) da sociedade medieval na segunda metade do sécu- lo XIII, ambos tratando, em óticas diferentes, das vantagens e desvantagens da realização de Cruzadas. Esse estudo permite avaliar a amplitude de debates que o tema, já então, suscitava, além de mostrar como a sociedade da época parecia dividida a respeito; e per- mite também aferir que a margem de liberdade de expressão então existente parece sensi- velmente maior do que os estereótipos ainda vigentes sobre a Idade Média fazem crer. Palavras-chave: Idade Média. Cruzadas. Igreja. Ordens religiosas. Poesia medieval.

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9Linguagem Acadêmica, Batatais, v. 2, n. 1, p. 9-31, jan./jun. 2012

No século XIII, debates sobre as cruzadas1

Armando Alexandre dos Santos 2

1 O presente artigo é condensação da monografia Dialética pró e contra as Cruzadas em documentos do século XIII, apresentada como trabalho de conclusão de curso de Licenciatura em História no Centro Universitário Clare-tiano de Batatais (SP), em dezembro de 2010, sob orientação da Profa. Dra. Renata Cardoso Belleboni Rodri-gues. Essa monografia, na íntegra, foi publicada em forma de livro pela “Equilíbrio Editora”, de Piracicaba-SP.2 Mestrando em História e Cultura Política pela Universidade Paulista (UNESP). Graduado em Genealogia Heráldica e Nobiliária pela Escuela de Genealogia Heráldica y Nobiliaria – Ma-dri (ESP). Licenciado em História pelo Centro Universitário Claretiano de Batatais (SP). Espe-cialista em Ensino de Português, Literatura e Redação pela mesma Instituição. Membro do Insti-tuto Histórico e Geográfico Brasileiro. Jornalista profissional. E-mail: <[email protected]>.

Resumo: Estudo comparativo de dois documentos procedentes de setores muito diver-sos (e de certa forma até antagônicos) da sociedade medieval na segunda metade do sécu-lo XIII, ambos tratando, em óticas diferentes, das vantagens e desvantagens da realização de Cruzadas. Esse estudo permite avaliar a amplitude de debates que o tema, já então, suscitava, além de mostrar como a sociedade da época parecia dividida a respeito; e per-mite também aferir que a margem de liberdade de expressão então existente parece sensi-velmente maior do que os estereótipos ainda vigentes sobre a Idade Média fazem crer.

Palavras-chave: Idade Média. Cruzadas. Igreja. Ordens religiosas. Poesia medieval.

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1. INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo é examinar, com base na análise de dois documentos de época, as incertezas e os enfrentamentos, ocorridos na segunda metade do século XIII, na sociedade medieval, a respeito da conveniência ou não de serem realizadas as Cruzadas.

O estudo da Idade Média, se de um lado desperta interesse crescente, exercendo até mesmo um verdadeiro fascínio em muitos espíritos, tem, entretanto, que enfrentar não pequenas dificuldades. Além da barreira linguística e das explicáveis dificuldades psicológicas para ser entendida, em nossos dias, a mentalidade medieval, ainda existem, e são de grande monta, os preconceitos existentes contra aquele período histórico tão imperfeitamente estudado. Esses preconceitos sobem de ponto quando o tema é Cruzadas – tema explosivo e polêmico por excelência, porque aí se misturam preconceitos, ainda muito vivos, não só contra a Idade Média, mas sobretudo contra a Igreja Católica, que formou e in-formou (no sentido filosófico, ou seja, deu forma a) a Idade Média.

É muito difícil, para o homem contemporâneo, compreender a mentalidade medieval, seja a dos cristãos, seja a dos muçulmanos – para considerarmos somente os dois grandes grupos religiosos que, no caso concreto das Cruzadas, se confrontaram. E dessa dificuldade decorre a fácil tentação do anacronismo que é, na célebre frase de Lucien Febvre, “o pecado mortal do historiador”. Com efeito, é muito forte, para o historiador de nossos dias, a tendência de tratar os assuntos medievais julgando-os, segundo criteriologia de nosso tempo, sem dar-se conta de que tal criteriologia era de todo desconhecida naqueles tempos.

Aspecto frequentemente esquecido da Idade Média é a ampla variedade de discussões e debates, em todos os níveis, e a vida intelectual muito intensa daquele período. Quem lê certos livros – como por exemplo O Nome da Rosa, de Umberto Eco – e, mais ainda, quem assiste a filmes que esses livros inspiraram, tem a impressão de que a monotonia, a repetição e o unanimismo dominavam a vida de pensamento. Nada mais diverso da realidade.

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Foi especificamente por constatar, na literatura em geral, essa tendência, que ocorreu o tema do presente estudo. As Cruzadas, até que ponto foram consensualmente aceitas no seu tempo, até que ponto se permitiu serem discutidas livremente? Houve reações a elas, houve quem as combatesse? Com que argumentos?

Utilizou-se, como principal fonte de pesquisa, a Bibliothèque des Croisades, em 4 volumes, contendo os apontamentos compilados pelo franco-savoiano Joseph-François Michaud (1767-1839), para a redação de sua História das Cruzadas. Michaud vasculhou os principais arquivos europeus e até mesmo gregos, árabes, turcos e armênios, em busca de documentação primária sobre as Cruzadas. Cerca de 400 crônicas foram lidas, compiladas e fichadas por ele e por sua equipe, num trabalho de grande envergadura que vem sendo, nos últimos anos, revalorizado. Também cartas e peças diplomáticas de outra natureza foram incorporadas, por Michaud, a seu trabalho. Dentre a farta documentação dessa obra, optou-se por concentrar a atenção em dois documentos, ambos da segunda metade do século XIII, diversos em sua orientação e procedentes, por assim dizer, dos dois extremos da sociedade medieval. Da análise de ambos se pode deduzir a dialética utilizada por defensores e críticos das Cruzadas. E se pode notar como a sociedade parecia profundamente dividida, a respeito delas.

O primeiro documento (Opus tripartitum em defesa das Cruzadas, contra a opinião dos seus críticos) é um memorial escrito pelo Beato Humberto de Romans, 5º. Geral da Ordem Dominicana, redigido para o Papa Gregório X, em 1274, quando se preparava a realização do Concílio Geral de Lyon. Seu autor era perfeitamente integrado no stablishment religioso e político da época, tendo exercido cargos de grande influência em sua Ordem e também como visitador, por mandado papal, da Ordem Cisterciense.

O segundo documento provém do extremo oposto da sociedade medieval. Trata-se de uma composição poética satírica, de Rutebeuf, cantor e jogral vagabundo, quase um desajustado social, uma versão avant-la-lettre de seu conterrâneo François Villon. Rutebeuf expõe as razões em favor das cruzadas e contra elas.

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2. OPUS TRIPARTITUM

Em Romans, localidade francesa situada no Delfinado, por volta do ano 1200 nasceu Humberto, autor do primeiro dos documentos focalizados. Foi estudar em Paris, onde se doutorou em Direito e, incentivado por seu mestre Hugo de Saint-Cher, ingressou, aos 24 anos de idade, na Ordem dos Pregadores, fundada pelo espanhol São Domingo de Guzmán. Ocupou cargos de confiança na Ordem, como Prior e Provincial, peregrinou pela Terra Santa e se empenhou na conversão dos muçulmanos. Atuou também em Roma, onde, quando faleceu o Papa Celestino IV, alguns cardeais, impressionados com Humberto, chegaram a cogitar na sua eleição como papa, mas o projeto não foi adiante. Em 1254, foi eleito Superior Geral dos Dominicanos. Nesse momento, a Ordem estava seriamente ameaçada, pois doutores da Universidade de Paris, especialmente Guillaume de Saint-Amour (1202-1272) e Gérard d´Abbeville (+1272), faziam acirrada oposição às novas Ordens Mendicantes, ou seja, Dominicanos e Franciscanos.

Nas rudes polêmicas que se travaram naqueles anos, pelos Dominicanos se destacaram Santo Alberto Magno e São Tomás de Aquino, ambos apoiados integralmente pelo seu superior, Beato Humberto. Pelos Franciscanos, o destaque principal foi São Boaventura. O Rei da França, São Luís IX, deu total apoio aos Mendicantes, conseguindo do Papado que fossem aprovados e favorecidos contra seus opositores. Humberto foi, durante anos, conselheiro privado desse Rei. Quando nasceu o sexto filho deste, Robert de Clermont, o soberano convidou, para padrinho, o Geral dos Dominicanos.

Como superior de sua Ordem, foi muito ativo. Reformou a liturgia dominicana, estimulou os estudos teológicos e linguísticos que reputava essenciais para o sucesso da pregação. Mandou frades a Barcelona para aprenderem o árabe, idioma que considerava de grande importância para as missões no Oriente e entre os infiéis. Compilou e promulgou normas, baseadas nos costumes dos Dominicanos, dando-lhes uma feição institucionalizada. Embora fosse respeitado como intelectual e

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3 Dados biográficos extraídos do citado volume de Butler, da Vidas dos Santos, de Rohrbacher, vol. XIII, pp. 29-31, e do verbete Humberto de Romans, da Enciclopédia Espasa-Calpe (1926, t. LII, pp. 168-170).

tenha escrito e publicado grande número de obras teológicas e históricas, era geralmente como administrador que seus talentos foram mais reconhecidos. Segundo os historiadores da Ordem Dominicana, depois do fundador, nenhum outro Geral desempenhou papel tão importante na fixação dos destinos e rumos dela.

A par de sua intensa atividade, era também de grande caridade, o que lhe atraiu simpatias de muita gente. Sua retidão de espírito fazia-o exprobrar severamente os desvios do Clero de seu tempo – e inclusive ao Alto Clero – ao qual dirigia palavras bastante duras, pregando sua indispensável reforma de costumes. Em 1263, renunciou ao seu cargo, no capítulo de Londres, recolhendo-se em oração e dedicando-se às atividades intelectuais. E faleceu em 1277, venerado universalmente por sua virtude eminente e grande santidade de vida3.

No início de seu livro Opus Tripartitum, em que professa ardososamente a ideia das cruzadas, Romans (1829) deplora a triste situação em que se encontra a Cristandade, ameaçada e perseguida, atribuindo tais males aos pecados dos próprios católicos. Sete são as calamidades que afligem a Igreja, das quais os sarracenos, que persistem na sua malícia, constituem a pior e mais perigosa, já que todas as outras foram vencidas, ou pelo menos atenuadas pela influência da religião verdadeira.

Os judeus, convencidos pela argumentação e subjugados pela força, já não sabem nem podem fazer nada contra o povo cristão; a idolatria desapareceu, diante do estandarte da Cruz, e se refugiou em certas regiões do Norte; a filosofia pagã foi destruída pela verdadeira sabedor-ia; os heréticos que ladram contra a Igreja romana tiveram que retor-nar aos seus antros; os imperadores, que outrora oprimiam a Igreja, protegem-na hoje; só os sarracenos, porém, resistem a esse movimen-to geral dos espíritos. (ROMANS apud MICHAUD, 1829, p. 401).

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4 Tal objeção, segundo podemos deduzir de LE GOFF, provinha dos adeptos das heresias da época, que se opunham à ideia de Cruzada precisamente pela razão que Humberto de Romans apontou. Falando da época em que São Luís se aprestava para partir em Cruzada pela segunda vez, diz o historiador: “Vive-se um momento em que a opinião cristã mostra-se sensível a certas críticas virulentas que os hereges – cáta-ros e valdenses – fizeram à guerra, afirmando especialmente que em relação ao quinto mandamento (não matarás) não poderia haver exceção” (LE GOFF, 2008, p. 99).

A seguir, Romans (1829) recorda todas as perseguições sofridas pela Igreja, desde a sua fundação, e faz notar que, de todas, a perseguição dos sarracenos é a pior. Muitos motivos há para os fiéis marcharem ao combate. Humberto elenca sete: o zelo pela honra da religião cristã; o zelo pela fé cristã; a caridade fraterna; a devoção pela Terra Santa; a necessidade da guerra; o exemplo dos nossos avós; as indulgências concedidas pela Igreja.

Passa a elencar, em seguida, oito motivos de oposição à cruzada: os laços do pecado; o temor dos males corporais; o exagerado amor pela própria pátria; as disputas entre os homens; seus maus exemplos; demasiado amor próprio; uma suposta impossibilidade (de vencer os infiéis); falta de fé, entre os próprios cristãos.

O autor passa, na sequência, a relacionar sete tipos de pessoas que apresentam objeções contra o desejo dos cristãos de partir em Cruzada para a Terra Santa. Essa é a parte mais densa e interessante do livro, porque permite analisar, com precisão, os argumentos anticruzadísticos. Se Humberto os elenca e os refuta, um a um, obviamente só podia ser porque eles encontravam eco entre os europeus do seu tempo. Todo o livro de Humberto é eminentemente prático, tendo em vista uma finalidade concreta. Nada tem ele de especulativo ou teórico. Dizem Alphandéry e Dupront (1959, p. 226-227): “É evidente que, no pensamento religioso do tempo, numerosas objeções de legitimidade aparecem; de outro modo, ele (Humberto) não perderia seu tempo respondendo-as”.

Os primeiros objetantes à ideia das Cruzadas são, segundo Humberto de Romans, aqueles que dizem não ser lícito verter o sangue dos sarracenos, porque Jesus Cristo impediu que São Pedro o defendesse pela espada, dizendo: “Põe a tua espada no seu lugar, porque todos os que tomarem espada morrerão à espada” (MATEUS, 26:52)4. A resposta do autor:

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Nós respondemos a essa objeção que a vinha da Igreja devia ser, ini-cialmente, plantada e cultivada de um modo diverso do que hoje devemos usar para protegê-la; o povo cristão, no seu estado primi-tivo de fraqueza, devia proceder de modo diverso do que nos dias de seu poder, e não é sem razão que ele porta um gládio. Assim como o trabalhador que, quando privado de um instrumento, serve-se de outro, assim também esse povo, que já não mais é defendido, como no passado, por milagres, deve se garantir a si próprio pela força das armas. E quem poderia pretender que não se deve resistir aos sar-racenos, se eles se aprestam a degolar os cristãos e a destruir o cul-to de Jesus Cristo? (ROMANS apud MICHAUD, 1829, p. 405).

Os segundos objetantes alegam que não se deve combater os infiéis na Terra Santa, porque muito sangue correria e não convém que o inocente pague pelo culpado. Esses, porém, diz Humberto, devem recordar o bom exemplo dos seus antepassados, de nobres e altos feitos. Devem recordar de Carlos Martel, que matou mais de 300 mil sarracenos na Aquitânia; de Carlos Magno, que deles exterminou um número talvez ainda maior quando de sua expedição à Espanha; de Godofredo de Bouillon, que os imitou na primeira cruzada. E recorda que aqueles que sofrem o martírio por amor da religião não morrem, mas vivem eternamente, e a Igreja tem como missão principal povoar o Céu, mais do que a Terra. E, no total, a salvação de todos muitas vezes torna necessária a morte de alguns.

O terceiro tipo de objetantes aponta a nossa guerra como imprudente, já que os sarracenos estão no seu próprio território, no clima ao qual estão habituados, enquanto nós, cristãos, de tudo carecemos e só imprudentemente nos pomos em marcha.

A esses, porém, respondemos: Se Deus está conosco, que importa quais sejam os adversários: Porventura não desceram Anjos em defesa da Eli-seu? Oseias, Jeremias e outros santos não rezavam pelo povo de Deus? Nossos soldados são mais valorosos no combate que os sarracenos, são mais bem armados corporal e espiritualmente, não temem a morte, pelo contrário desejam-na. (ROMANS apud MICHAUD, 1829, p. 406).

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Os quartos objetantes ponderam que, sem dúvida, seria lícito a cristãos atacados se defenderem, mas não tomarem a iniciativa do ataque, o que não é a mesma coisa. A esses, Humberto responde que foram os sarracenos que tomaram a iniciativa de perturbar a paz dos cristãos; ademais, se é útil arrancar as ervas daninhas de um campo que se deseja cultivar, com mais razão devemos expulsar da Palestina uma nação ímpia para lá introduzir o verdadeiro culto divino. A Palestina, aliás, era cristã antes de ser conquistada por Maomé, e os cruzados não tinham senão feito respeitar seu direito de propriedade, pela força do braço do invencível Godofredo.

Os quintos objetantes alegam: se vós não perseguis os judeus e outros infiéis sujeitos a vossa dominação, por que iríeis atacar os sarracenos em suas terras? São, diz Humberto, situações bem diferentes. Os judeus são poupados pela Igreja porque esta tem o dever de protegê-los, já que o profeta disse: Não os mateis, para que meu povo se lembre de sua punição. Se não atacamos os tártaros, é porque entre eles e nós estão os sarracenos, e como, por serem nômades e não terem residência fixa, é impossível ir atingi-los. (apud MICHAUD, 1829, p. 406).

Os sextos objetantes, prossegue Romans, ponderam que a guerra contra os infiéis sarracenos não pode trazer bons resultados, nem espirituais nem materiais. Do ponto de vista espiritual, são povos de impiedade inveterada, destinados a povoar, depois de mortos, o inferno, de modo que não se podem converter à verdadeira religião. Do ponto de vista material, é também impossível, aos cristãos, se manterem estavelmente na Palestina. A tais objetantes, contesta o dominicano:

A esses tais respondemos que se obtêm três espécies de frutos da cruzada: em primeiro lugar, frutos espirituais, pois muitas graças es-pirituais e numerosas indulgências são concedidas a todos quantos marcham sob a bandeira da cruz; em segundo lugar, frutos corpo-rais, pois os cristãos se defendem, dessa forma, da invasão iminente dos sarracenos; e frutos temporais, já que vão adquirir e partilhar despojos dos infiéis. (ROMANS apud MICHAUD, 1829, p. 407).

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Por fim, os sétimos objetantes dizem que as cruzadas não são empreendimentos que Deus veja com olhos favoráveis, já que todas elas foram desastrosas para os soldados da Cruz, como o demonstram os sofrimentos e misérias dos exércitos de peregrinos. Responde-lhes Humberto, dizendo que se foram derrotados é porque procederam mal, e isso não é motivo para desanimar, mas para prosseguir a luta.

Depois de responder a todas essas objeções, Romans (apud MICHAUD, 1829) procura reforçar sua retórica em favor das Cruzadas, elencando sete graças concedidas pela Igreja em favor dos cruzados: Indulgência plenária; remissão das penas; transmutação de todos os votos, com exceção dos de castidade perfeita e de entrar em religião, no voto único de tornar-se cruzado; absolvição de todas as excomunhões que, para serem levantadas, exigiam peregrinação a Roma; defesa e proteção dos bens dos cruzados, defendendo-os a Igreja como a galinha defende os seus pintainhos; suspensão de muitos encargos, talhas e exações fiscais; proteção contra usurários e agiotas.

Fala, ainda, das sete formas de alegria interior, de consolação de alma dos cruzados: alegria da consciência; confiança na ajuda divina; segurança da salvação eterna; escolta protetora dos Anjos; orações da Igreja; ajuda dos Santos; recordação agradável da epopeia antiga agora sublimemente retomada.

Depois de ter, dessa forma, rebatido um a um os argumentos dos anticruzadistas, e apontado as vantagens espirituais, corporais e até materiais que podem provir das Cruzadas, Humberto passa a falar de um tema que, de acordo com seus biógrafos, era alvo constante de suas preocupações: os maus exemplos do Clero e dos próprios fiéis, que na realidade constituíam a maior causa da dificuldade de ser recuperado o Santo Sepulcro.

Entre as causas da tibieza generalizada na Cristandade, aponta a avareza dos clérigos, que cobram dízimos dos fiéis, mas não querem pagar, eles próprios, dízimos para a libertação da Terra Santa. E conclui conclamando a Cristandade a que recupere seu antigo fervor e cumpra seu dever, libertando o Santo Sepulcro.

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5 A palavra fabliau é de muito difícil tradução para o português, razão pela qual preferimos deixá-la no idioma original. Designa uma historieta ficcional, exposta em versos, em forma de trovas.

Esse escrito é extremamente revelador das ideias críticas das cruzadas que, então, se disseminavam na Europa. Em resumo, o Beato Humberto de Romans afigura-se como um homem sinceramente empenhado na realização das Cruzadas. Observa e analisa, dentro da sua ótica cristã e medieval, os perigos e males que podem advir do poderio muçulmano. Também aponta, com severidade, os defeitos que afligiam a Cristandade e, em especial, o Clero. E procura, empenhadamente, utilizando todos os recursos retóricos ao seu alcance, mover os espíritos rumo ao que acreditava ser o passo que faltava para o pleno triunfo de Jesus Cristo na terra: a derrota final dos maometanos e a plena reconquista da Terra Santa, com vistas à reunião da Igreja oriental à Sé de Roma, para que todos fossem, de acordo com as palavras do Evangelho, “[...] um só rebanho, com um só pastor” ( JOÃO, 10:16). O retorno da Igreja oriental à comunhão com Roma era, aliás, um dos objetivos mais preciosos do Concílio de Lyon, para o qual foi redigida a Opus Tripartitum.

3. CI ENCOUMENCE LA DESPUTIZONS DOU CROISIÉ ET DOU DESCROIZIÉ

Em épocas históricas guerreiras e de expansão, sempre se defrontaram, quase dialeticamente, as duas mentalidades predominantes, a agressiva e aventureira, de um lado, a prudencial e securitária, de outro. O documento que vamos expor agora revela, a nosso ver, muito dessa segunda mentalidade, em contraposição à primeira. Depois da conclamação do Beato Humberto para a Cruzada, veremos um fabliau5 diametralmente oposto.

O título dessa peça, em francês do século XIII, é o que consta do título deste tópico: “Aqui tem início a disputa entre o Cruzado e o Descruzado”. Sua autoria é, sem discrepância, atribuída ao célebre Rutebeuf, que se situa

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nos antípodas do autor que acabamos de analisar, embora sendo ambos contemporâneos e tendo vivido, pelo menos alguns períodos, na mesma cidade de Paris.

Enquanto Humberto, amigo, conselheiro e compadre do Rei São Luís, privava com a Corte, Rutebeuf era um pobre trouvère, ou seja, trovador. Era um desajustado, quase um out-law (fora-da-lei). Em termos atuais, dir-se-ia que sua existência, sem embargo de ter frequentado os mais diversos ambientes, mesmo os da alta nobreza, nunca deixou de bordejar a marginalidade. Vivia compondo seus versos, suas farsas, seus fabliaux, seus autos religiosos, com uma fecundidade e uma facilidade de inspiração que até hoje impressionam os estudiosos da literatura medieval francesa. Sua influência na história da língua francesa é muito grande; Le Goff (1999, p. 506) o considera “[...] o primeiro grande poeta lírico francês” (1999, p. 506).

Dominava vários estilos e escrevia muito. De suas obras, as que a história preservou encheram dois grossos volumes. Escreveu sobre muitos temas. Escreveu Le Miracle de Théophile, que talvez seja sua obra mais famosa, cantando em versos então facilmente inteligíveis pela população o milagre do monge Théophile, que vendeu sua alma ao diabo e depois, arrependido, invocou a Santíssima Virgem que, de espada em punho, constrangeu o maligno a devolver ao monge o pergaminho que este firmara com seu próprio sangue.

O episódio, que na época impressionava profundamente os espíritos, inspirou não somente Rutebeuf, mas também o escultor que, numa série de alto-relevos num dos pórticos de Notre-Dame, imortalizou em mármore as cenas do milagre.

Os dados biográficos sumários de Rutebeuf, que aqui apresentamos, foram extraídos da apresentação de Gustave Cohen à transposição que fez, para o francês moderno, de Le Miracle de Théophile. Também nos baseamos no estudo biográfico sobre o poeta, escrito por Germaine Lafeuille, e insertos na obra coletiva Le Siècle de Saint-Louis (GUTH et al, 1970, p.199-207). As obras completas de Rutebeuf foram vez primeira publicadas por Achille Jubinal, em dois volumes, no ano de 1839. Os

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dados biográficos citados por esse pesquisador também nos foram de valia.

Vemos, por essas fontes, que a maior parte dos dados biográficos são incertos, estabelecidos por aproximação e, em larga medida, deduzidos de afirmações que, acerca de si próprio, deixou o trovador esparsas em suas obras. Até do próprio nome Rutebeuf há dúvidas se foi real ou se era um pseudônimo. Supõe-se que tenha nascido em Paris, por volta de 1325, que foi sempre muito pobre e infeliz, que tinha o vício de jogar dados, em consequência do que viveu sempre em extrema pobreza até morrer, por volta de 1285. Sabe-se, ainda, que seu francês era correto, de bom nível cultural, não denotando influência provinciana, mas sendo expresso no mais puro parisiense da época. Casou com uma mulher velha, feia e tão pobre quanto ele – tema constante em suas autolamentações. Numa peça cômica intitulada O casamento de Rutebeuf, fazendo um jogo de palavras, o poeta se refere a sua esposa:

Quando casei com ela, estava pobre e embaraçada (grávida), e o casa-mento teve isso de curioso que eu também estava tão pobre e embara-çado (sem dinheiro) quanto ela. Ela não é gentil nem bonita, é magra e seca, tem cinquenta anos na sua tigela, mas pelo menos não tenho medo de que me traia (RUTEBEUF apud JUBINAL, 1839, p. 12-13).

Teria realmente 50 anos completos a Sra. Rutebeuf ? Ou essa idade lhe terá sido atribuída por mero exagero poético? O fato é que há referências à fecundidade dela, pois em outras obras o poeta refere que ela continua lhe dando filhos.

Rutebeuf era, ao que parece, clerc, ou seja, supõe-se que tenha recebido ordens menores, que na época eram conferidas a pessoas que não se destinavam ao estado sacerdotal, mas casavam e tinham vida de leigos comuns. Seus escritos revelam profunda religiosidade, sem embargo da marcada nota de anticlericalismo sempre presente, quase uma ideia fixa. Os monges relaxados e glutões, os padres de má vida, os dominicanos e franciscanos que ele abominava eram alvo contínuo de suas sátiras. De acordo com Jubinal (1829, p. 20-21):

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Se procurarmos nos dar conta do caráter geral e particular da poe-sia de Rutebeuf, encontraremos que ela sobretudo se faz notar pela causticidade, pela malícia, pela ironia. O velho trovador fustiga para todos os lados, sem se preocupar a quem ferirá; morde de bom grado a todos, por vezes até ao sangue; grita, troveja, invectiva, de-nuncia todos os abusos. Mas o fato predominante de suas rimas, o fato que retorna incessantemente em suas venenosas estrofes é seu amor pelas cruzadas e seu ódio contra o clero. ... Notemos, entretan-to, que Rutebeuf jamais ataca o dogma ou Deus, mas o padre. No século XIII, era ardente a fé; o pensamento reformador que lançou luzes tão terríveis no século XVI ainda não existia. Assim, somente o mau uso que os eclesiásticos faziam de suas riquezas e de sua in-fluência é que era criticado, mas respeitava-se a origem de seu poder e separava-se com razão, como coisas distintas, o levita do santuário.

Viveu intensamente, ao que parece em contato com todos os segmentos da sociedade, sendo protegido do Conde de Poitiers (irmão do Rei São Luís) e, em certo período, do próprio monarca. Compôs peças claramente por encomenda remunerada, como elogios fúnebres e panegíricos. Mas o maldito jogo de dados, do qual se queixa, o impediu de acumular fortuna. Parece ter admirado muito o Rei São Luís, embora em algumas passagens lamente o fato de este se ter pela segunda vez lançado em Cruzada (o que reputava prejudicial ao reino) e embora, também, o apoio dado pelo monarca às Ordens mendicantes novas não lhe agradasse.

Em resumo, o trovador parece ter sido uma pessoa infeliz, atormentada, sujeita a influências diversas e, sempre, colocando seu estro a serviço da própria sobrevivência. Mais do que um exemplo de lógica e coerência, seu estudo se reveste de especial interesse por mostrar a diversidade de influências culturais e até ideológicas, muitas vezes conflitantes e contraditórias, que agitavam a sociedade medieval – bem diferentemente, permita-se-nos insistir nesse ponto – do que imaginem muitos autores.

Foi o que deixou claro Jubinal (1839, vol. I, p. V-VI), no Prefácio das Obras Completas de Rutebeuf, numa síntese feliz:

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Contemporâneo daquele príncipe [São Luís IX] cuja fervorosa piedade lançou os barões cristãos contra os sectários de Maomé, ligando-se ao povo pelo seu nascimento, aos letrados pelo seu es-pírito, à corte pela sua profissão, tendo assistido, é verdade que sem tomar parte ativa, a grandes acontecimentos políticos, mas tendo cooperado de modo ativo, por suas poesias, para o notável movimento literário do século XIII, assim como nas grandes lu-tas entre a Universidade e as Ordens religiosas, esse poeta oferece, em seus escritos, o reflexo curioso e isento de preconcebimen-tos e paixões, da linguagem e dos conhecimentos de sua época.

Foi um retratista de seu tempo, por vezes com cores demasiado realistas, chocantes até mesmo para o público mais permissivo de nossa época:

Suas revelações picantes relativas a muitos acontecimentos ocorridos em sua época, as mil e uma malvadezas que atribui a prelados, a clérigos, a monges, a beatas, a debochados, a estu-dantes, a príncipes, a cavaleiros etc., suas numerosas alusões a costumes íntimos do século XIII, tornam as peças que nos deixou em extremo preciosas. ( JUBINAL, 1839, p. XIX-XX).

Em outra passagem, o mesmo pesquisador lamenta excessos de plebeísmo e vulgaridade em alguns dos fabliaux de Rutebeuf:

O fundo de alguns dos fabliaux de Rutebeuf é, infelizmente, por demais vulgar, e o de alguns outros demasiado livre; além disso, coisas santas neles muitas vezes se misturam demais com coisas profanas. No conto do Sacristão, por exemplo, a Virgem desempenha um papel por demais surpreendente. Mas, que fazer? São os defeitos do tempo... Gauthier de Coinsy, que rimou piedosamente os milagres de Nossa Senhora, não procede de outro modo, e colocou, como Rutebeuf, a intervenção da Mãe de Deus em casos cuja simples lembrança escandalizaria muito, em nossos dias, seus sensíveis devotos. ( JUBINAL, 1839, p. XXVI).

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Feita essa breve nota biográfica sobre Rutebeuf, na qual se procurou mostrar sua personalidade brilhante e paradoxal, é hora de passarmos à exposição do conteúdo da Disputa entre o Cruzado e o Descruzado.

É uma peça que alcançou grande celebridade, não só por sua forma fácil de recitar e decorar, mas também porque foi em diversas ocasiões transposta para o francês mais atual e teve larga divulgação. Do ponto de vista formal, é uma pequena obra poética bem estruturada, composta por 32 estrofes, cada uma delas com oito versos, com as rimas emparelhadas, rimando o primeiro verso com o terceiro, o quinto e o sétimo: e o segundo, o quarto, o sexto e o oitavo também rimando entre si. As cinco primeiras estrofes são expositivas, apresentando a matéria. E, nas demais, vão se alternando as falas dos dois interlocutores.

A peça representa o diálogo, no qual trocam argumentos um cavaleiro que já se cruzou (ou seja, decidiu partir em Cruzada), que procura convencer, a também tomar a cruz e partir para a Palestina, seu interlocutor, o qual resiste e apresenta também suas razões. Na dialética dos dois antagonistas, ficam claros os dois pontos de vista.

O cruzado começa tentando despertar, no não-cruzado, o entusiasmo pela defesa do Santo Sepulcro. Fala-lhe, por isso, da triste situação da Terra Santa, dominada pelos infiéis, e pergunta-lhe se é possível contemplar, sem estremecer, tamanha profanação. O não-cruzado responde:

– Eu compreendo muito bem porque dizeis tais palavras: devo, para ir reconquistar uma região da qual nada terei quando lá vencer-mos, abandonar aos cães a minha herança, minha mulher e meus filhos! Ora, muitas vezes ouvi dizer: O que é teu, conserva-o. Esse provérbio me assegura que seria loucura abandonar 100 moedas para ir, alhures, ganhar 40 como soldo. Deus não nos ensina em lugar algum a semear dessa forma. E quem assim age, corre grande risco de acabar passando fome. (apud MICHAUD, 1829, p. 408).

O cruzado contra-argumenta: “— Mas, ignoras que Deus retribui ao cêntuplo o que sacrificamos por ele, e que seu paraíso, Ele não o concede gratuitamente?” (apud MICHAUD, 1829, p. 408). Rebate o não-

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cruzado, dizendo que “Pode-se servir a Deus tanto aqui como lá, e não é sábio ir tão longe para servir a um outro, quando se pode, mesmo em nossa casa, ganhar o paraíso vivendo em paz com nossa herança” (apud MICHAUD, 1829, p. 408).

Prosseguem, nesse tom, as falas dos dois. É de notar que, enquanto o cruzado apela para argumentos sérios, o não-cruzado insiste num tom mais descontraído, mostrando-se irônico e até satírico, como se vê, entre outras, nestas falas:

– Senhor cruzado, há coisas que sempre me espantam. Pessoas grandes e pequenas, sábias e honestas, partem para esse país que tanto louvais e lá se conduzem bem, não ponho isso em dúvida; já santificaram suas almas; mas no entanto, ignoro como ex-plicar isso, quando voltam para cá são malvados e bandidos.– De resto, mais uma vez repito: Deus está em todas as partes; Ele também está na França e não vai se esconder, de propósito, para mim. Eu aqui durmo a noite inteira em paz, não faço mal a nin-guém, vivo bem com todos os meus vizinhos; quero, pois, viver ainda mais tempo essa vida com meus amigos, rir e cantar com eles. – Quanto a vós, que visais aos altos feitos de armas, correi ao ultra-mar, para abater o orgulho do sultão; mas dizei-lhe, de minha parte, eu vos rogo, que eu me divirto com seus projetos e com suas ameaças. Se ele vier mexer comigo na minha casa, ah, então eu saberei me de-fender. Mas enquanto ele ficar por lá, não precisa ter medo de mim que não irei, com certeza, atacá-lo. (apud MICHAUD, 1829, p. 409).

O cruzado, a certa altura, replica: “– É rindo desse jeito que pretendeis salvar vossa alma? A salvação custou a vida aos mártires, a cada dia vós vedes penitentes se sepultarem nos mosteiros, certos de que não fizeram ainda o suficiente para assegurar a salvação de suas almas.” (apud MICHAUD, 1829, p. 408). O não-cruzado responde, pondo em dúvida, zombeteiramente, a seriedade dessas penitências:

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– Vós falais muito bem, mas por que não ides pregar a todos esses ricos abades, a esses gordos deões, a esses prelados que se votaram a rezar a Deus? Ora! São eles que têm aqui na terra todos os bens, e somos nós que se quer forçar a ir vingá-los? Convenhamos, isso não é justo. Pouco lhes importa a geada ou a tempestade, os ren-dimentos lhes chegarão às mãos mesmo dormindo. Por minha fé, se esse é o caminho pelo qual se vai ao Paraíso, bem loucos eles seriam se o mudassem, pois duvido que consigam encontrar outro mais confortável. (apud MICHAUD, 1829, p. 408-409).

O argumento irônico parece deixar sem palavras o cruzado, mas, este logo se recompõe e brande um último argumento: “– Pois deixai em paz os prelados e os padres, e considerai que o próprio rei da França, confiando a vida de seus filhos às mãos de Deus, vai expor sua vida para salvar sua alma”. (apud MICHAUD, 1829, p. 409). O argumento, surpreendentemente, fez efeito e o não-cruzado, contagiado pelo exemplo do rei São Luís que, pela segunda vez, partia para a Cruzada, resolve também ir à Palestina.

Sumariamente, esse é o conteúdo da Disputa entre o Cruzado e o Descruzado. Embora, no enredo, o cruzado tenha conseguido convencer o seu antagonista, a forte ironia brandida por este era, obviamente, de modo a fazer propender em seu favor às pessoas que gostam de rir, as quais são sempre maioria, em todas as épocas. Isso mostra de modo assaz convincente que essa peça, de Rutebeuf, se insere numa posição anticruzadista. Em outras palavras, ele, que louvara a primeira cruzada de São Luís, critica agora sua segunda expedição.

Nessa obra, Rutebeuf parece, mais bem, fazer-se intérprete da ala – ou da facção – que, na França daquele tempo, mostrava-se menos entusiasmada pela ideia de Cruzada e mais propensa a permanecer no reino, fruindo a doce tranquilidade da vida quotidiana, sem grandes expectativas mas também sem grandes riscos. Resta saber se foi nessa obra, ou, pelo contrário, nas outras em que exaltou o ideal de Cruzada, que o autor manifestou o mais profundo de sua alma.

Rutebeuf cantou muito, e bem, as Cruzadas. Nada permite, em sã consciência, duvidar de sua sinceridade nesse cantar. Mas nesta poesia,

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sua forte propensão parece para o outro lado. Ele parece, aliás, dividido entre o velho e o novo, típico personagem de uma época de transição. É o que fazem notar Alphandéry e Dupront (1959), para os quais essa poesia exprime bem a nova mentalidade burguesa, que vai assomando e tomando o lugar ao velho espírito feudal e cavalheiresco.

Que essa poesia é um retrato fiel de época, afirma-o Jubinal (1839, p. 418-419):

[...] (ela) pinta com exatidão os costumes do século XIII, fornecendo, a favor e contra as expedições militares religiosas uma argumentação que, segundo notou Legrand d´Aussy, não é senão a análise dos motivos alegados então pelos pregadores em seus sermões, pelos papas em suas bulas e pelos príncipes em suas convocações para exortar às cruzadas. Acrescento que a argumentação reproduz também a maior parte das razões que deviam alegar os oponentes, de modo que a Disputa entre o Cruzado e o não Cruzado nos apresenta um quadro fiel do espírito clerical, aristocrático e popular no que diz respeito às guerras santas.

Também Le Goff (1999, p. 261) salienta que esse fabliau de Rutebeuf exprime bem a divisão profunda que, a respeito das Cruzadas (e mais especificamente da segunda Cruzada de São Luís), existia não só na França, mas em toda a Cristandade:

[...] crescia o sentimento de hostilidade contra a cruzada. O próprio Joinville recusou-se a participar dela. Alegou que, durante a cruzada no Egito, os agentes do rei de França e do rei de Navarra, conde de Champagne, tinham “destruído e empobrecido seus homens” e que, se ele cruzasse de novo, iria contra a vontade de Deus que lhe tinha dado por ofício proteger e “salvar seu povo”. Assim, a Cristandade dobrava-se sobre si mesma. O serviço de Deus não estava mais no além-mar, mas dentro da Europa cristã. A Terra Santa extrapolava os limites da Cristandade, e eram raros então aqueles que, como São Luís, viam no Mediterrâneo um mar interno em relação à Cristan-dade. O poeta Rutebeuf, partidário da cruzada, louva a atitude de São Luís, em quem criticava, entretanto, a paixão pelos frades men-

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dicantes, mas seus poemas, especialmente “A peleja do cruzado e do descruzado”, exprimem bem o debate que agita a Cristandade”.

É curioso que se tenha recusado a embarcar, na oitava cruzada, apesar dos insistentes apelos de São Luís, precisamente Sire Jean de Joinville (1224-1317), o Senescal de Champagne, o amigo, confidente e biógrafo do Rei, ao qual nunca abandonara nas piores horas de sétima Cruzada. Em 1270, até ele havia mudado de opinião.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisamos dois documentos coevos, ambos da segunda metade do século XIII, para verificar se e em que medida havia, na época, debates e disputas acerca das Cruzadas. E pudemos constatar, do exame de dois documentos em extremo interessantes, que já naquela época o tema era discutido, para não dizermos polêmico. Pudemos, ademais, tomar contato com certas realidades medievais que mostram uma sociedade com margem de liberdade muito maior do que somos habituados a imaginar como existente naqueles tempos.

No tópico I, analisamos cuidadosamente a argumentação exposta pelo Beato Humberto de Romans, em defesa das Cruzadas, contra a posição daqueles que, num plano doutrinário e ideológico, as combatiam. Tratava-se, como frisamos, de uma alta personalidade do stablishment religioso e político da época, pessoa próxima ao Papa (tão próxima que quase o elegeram Papa) e do Rei da França, de quem era amigo, conselheiro privado e até compadre. Vimos a defesa ardorosa que esse eclesiástico eminente fez das Cruzadas.

No segundo tópico, seguimos o mesmo método com a peça do contemporâneo Rutebeuf. Nela também se digladiam as duas posições em favor e contra as Cruzadas, num plano já não tão especulativo e doutrinário, mas mais psicológico e voltado para a vida concreta. Vimos, em Rutebeuf, uma espécie de “desabafo” do outro lado da sociedade

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medieval. Vimos também, especialmente em sua biografia, numerosos traços que por certo surpreenderão a alguns leitores que, porventura, venham a ler estas linhas.

Enquanto os argumentos do primeiro autor citado são teóricos e frequentemente apelam para a autoridade das Escrituras, da Igreja e da própria razão, os do segundo são mais voltados para o entendimento consensual das pessoas comuns do tempo. Ambos os documentos de certa forma se completam. Cada um deles focaliza um aspecto da sociedade medieval daquela segunda metade do século XIII. Qualquer um deles apresentaria um quadro mutilado dessa realidade social, cultural, política e econômica se não fosse completado pelo outro.

Ambos permitem, a nosso ver, avaliar a extrema mobilidade dos espíritos naqueles tempos de transição. Se por um lado pode espantar, aos leitores de nossos dias, a quase naturalidade com que um religioso elevado aos altares e reconhecido por sua caridade eminente elogiava como virtuoso o derramamento de sangue em guerras santas, por outro também pode surpreender a extrema liberdade com que, no mesmo século em que o predomínio da influência da Igreja Católica e a autoridade dos reis mais se afirmava, um poeta como Rutebeuf podia criticar violentamente prelados, ordens religiosas e, mesmo, referir-se ao rei São Luís, que o protegia, “[...] com uma audácia tocando no desafio” – expressão usada por Edmond Faral e reportada por Lafeuille (GUTH et al, 1970, p. 203).

Igualmente a enorme liberdade com que, naqueles tempos, se referiam em matéria sexual, até mesmo em assuntos que se mesclavam com abordagens religiosas, poetas e autores teatrais, surpreende. Talvez as ideias assentes acerca dos níveis de liberdade vigente na Idade Média precisem ser revisadas. Também as ideias de um mundo monotônico, repetitivo e uniformizado desabam, diante do estudo desapaixonado daquela realidade tão rica e mutável. Quanto mais se estuda e pesquisa esse tempo histórico ainda tão imperfeitamente explorado, mais surpresas se revelam para o pesquisador que, sem preconcebimentos, se debruça sobre ele.

Na realidade, a sociedade medieval estava, como dissemos, em profunda transformação. Nela se aplicavam forças diversas, em sentidos

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também diversos. Muitos eram os vetores que atuavam, somando forças ou até se contrapondo com maior ou menor intensidade.

Dentro de uma sociedade assim mutável, não é de espantar que uma personalidade como a de Rutebeuf, verdadeiro sismógrafo das oscilações de seu tempo, por vezes defendesse com paixão as Cruzadas, por vezes as atacasse.

Oportunismo? Contradição? Falta de lógica? Ou apenas variações de momento, expressivas de uma mentalidade que vivia inserida numa opinião pública – se é que o termo não soa anacrônico quando nos referimos ao século XIII – mutável e, também ela, sentindo em si a força de influências divergentes?

São, pois, com perguntas, mais do que com respostas, que encerramos este artigo. Certa vez, o Chanceler Otto von Bismark, do Reich alemão, declarou que sentia, dentro de sua cabeça, todo um parlamento. Às vezes, explicou, era um radical que tomava conta dele; outras vezes, era um conservador ou um moderado que tomava a dianteira e falava por sua boca. E ele vivia se equilibrando, ao sabor das tendências mais variadas, que iam se sucedendo no seu dia-a-dia e exercendo no seu espírito o papel de vetores que influenciavam e determinavam sua conduta.

Uma intercorrência de vetores variados e até antagônicos, atuando não só no plano ideológico, mas também (e talvez, sobretudo...) no plano psicológico, não explicaria muita coisa ainda obscura do século XIII?

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Title: In thirteenth century, discussions about Crusades.Author: Armando Alexandre dos Santos.

ABSTRACT: Comparative study of two documents from different areas of medieval society (and even antagonistic) of the thirteenth century, both dealing in different points of view, the advantages and disadvantages of performing Crusades. This study allows us to assess the extent of discussions that it have already raised and show how the society of that time appeared to be divided over the issue. The study also assess that the freedom of expression seems significantly larger than the still prevailing stereotypes about the Middle Ages would have us believe.Keywords: Middle Ages. Crusades. Church. Religious Orders. Medieval Poetry.