no precipício de uma folha em branco ...agora conto eu - crónicas ou cenas parecidas

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No precipício de uma folha em branco… …crónicas ou cenas parecidas João Cunha Silva

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Crónicas publicadas no jornal Tribuna Pacense e no jornal Gaia Semanário de 2013 a 2015.

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No precipício de uma

folha em branco…

…crónicas ou cenas parecidas

João Cunha Silva

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NO PRICIPÍCIO

DE UMA FOLHA EM BRANCO

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Agora conto eu João Cunha Silva

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João Cunha Silva

NO PRICIPÍCIO DE UMA FOLHA EM BRANCO –

Crónicas ou cenas parecidas

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Agora conto eu João Cunha Silva

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©João Cunha Silva/2015

Todos os direitos reservados

O uso destes textos é autorizado em contexto escolar desde que se faça

referência ao autor e à publicação.

www.facebook.com/EscritorJoaoCunhaSilva

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Agora conto eu… crónicas ou cenas parecidas

I 9

TEXTOS PUBLICADOS NO JORNAL TRIBUNA PACENSE (TP) 9

QUANDO EU FOR GRANDE! – TP – 25/10/2013 10

A MESA DO CAFÉ DA RUA 38 – TP-01/11/2013 13

O REI QUE NÃO TINHA CASTELO –TP- 8/11/2013 16

A HISTÓRIA DA FOLHA LUTADORA… - TP-15/11/2013 19

A PEDRA MÁGICA-TP-22/11/2013 22

OS MISTÉRIOS DA LUA GULOSA – TP – 29/11/2013 25

DAR E RECEBER – TP- 06/12/2013 29

UM BRILHO NO ESCURO – TP - 13/12/2013 33

NÃO GOSTO MESMO NADA DE LER! – TP – 20/12/2013 36

TENHO UMA BALEIA NA BANHEIRA! –TP- 28/02/2014 42

CABELOS COR DE VENTO – TP- 31/01/2014 46

O TÍTULO É… ESQUECI-ME –TP- 30/05/2014 49

A ABELHA VAIDOSA–TP- 30/06/2014 53

II 57

TEXTOS PUBLICADOS NO JORNAL GAIA SEMANÁRIO (GS) 57

NO PRECIPÍCIO DE UMA FOLHA EM BRANCO – GS- 14/01/2015 58

VOANDO NUMA SEMENTE DE UM DENTE-DE-LEÃO – GS- 28/01/2015 62

A MODA DAS FÁBULAS: O BURRO E O LOBO – GS- 11/02/2015 66

A CONSPIRAÇÃO DOS ASTROS – GS- (25/02/2015) 70

EM VERSO COM ALGUMA RIMA! – GS- (26/03/2015) 74

O GAFANHOTO ANTUNES – GS- (08/04/2015) 77

QUAL O PESO DAS PALAVRAS? – GS- (22/04/2015) 80

O QUE ME FAZ FELIZ! O MEU GUIA DA FELICIDADE! – GS- (06/05/2015) 84

AS CORES VERDADEIRAS – GS- (27/05/2015) 88

A ROSA VAIDOSA E A VISITA INESPERADA. – GS- (13/06/2015) 92

O PRIMEIRO DIA DE AULAS – GS- (30/07/2015) 96

ENSAIO SOBRE O ABSURDO! – GS- (27/8/2015) 100

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Agora conto eu João Cunha Silva

9

A REALIDADE E A FICÇÃO –GS-(13/08/2015) 105

I

Textos publicados no jornal Tribuna Pacense (TP)

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Quando eu for grande! – TP – 25/10/2013

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Era um dia especial na escola e sempre que

era um dia especial o Luís tinha muita

dificuldade em adormecer. Ficava de olhos

presos no teto a antecipar, minuto a minuto,

como seria o dia seguinte. Desta vez tudo

era um pouco mais complicado, pois era o Dia

das Profissões. Ele não sabia o que queria

ser quando fosse grande. Como podia? Apenas

tinha sete anos. Os seus colegas não tinham

dúvidas: polícias, médicos, engenheiros,

professores… mas o rapaz não sabia. -E se

depois não gostar de ser uma daquelas coisas?

É uma decisão importante! -pensou o rapaz. –

Se não gostar vou andar toda a vida rezingão

e maldisposto como anda o Sr. Gomes da

mercearia! – Disse baixinho para o seu urso

de peluche. De certeza, que ele se tinha

arrependido da sua escolha. Gordinho como é,

imaginou-o de avental branco a cantar de boca

bem aberta: Ladónimobilé! Não conseguiu

deixar de sorrir para o urso castanho, já

remendado, esperando em vão a sua risada de

volta. Aqueles pensamentos deram-lhe sono e

foi assim que adormeceu sem ter resolvido o

seu dilema.

Pela manhãzinha, o Sol, matreiro, obrigou-o

preguiçosamente a esfregar os olhos.

Levantou-se e de imediato se lembrou que se

tinha esquecido de escolher a sua profissão.

Enquanto engolia apressadamente os cereais

com leite, começou a pensar nas coisas que

gostava de fazer e nenhuma se parecia com as

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profissões que conhecia. Que ele soubesse, e

não devemos ignorar o que uma criança de sete

anos sabe, não existia nada parecido com

Contador de Estrelas, Admirador de Palavras,

Pintor de Sonhos, Fazedor de Sorrisos ou

mesmo como Mudador de Mundos. Pelo menos que

ele soubesse, é que apesar de uma criança de

sete anos saber muito, não precisa ainda de

saber tudo. Sentou-se no carro do pai, ainda

cheio de dúvidas e fez o percurso para a

escola sem desviar o olhar da janela lateral.

Subitamente os seus olhos brilharam e era

perfeitamente visível que algo de bom tinha

acontecido, enquanto olhava o abanar das

árvores e as gentes apressadas nas ruas.

Chegou a sua vez: aproximou-se confiante do

quadro, virou-se para os colegas e disse com

uma voz calma, segura e bem colocada, tanto

como a voz de um menino de sete anos, sem

dentes na frente, consegue ser: QUERO SER

ESCRITOR!

Δ

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A Mesa Do Café Da Rua 38 – TP-01/11/2013

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Todas as manhãs o mesmo ritual. Obedecendo

fielmente a uma sucessão de movimentos

cristalizados pela repetição e pela ordem.

Um rito…uma oferenda a um Deus maior. Passo

a passo, mecânico, numa mnemónica aprendida

num tempo ou então no seu templo. Entrava;

sentava-se; pousava o chapéu na mesa; pedia

o café com um gesto seco; agitava de forma

também maquinal a saqueta do açúcar. Pegava

na colher e mexia o café somente duas vezes,

como se no seu íntimo não desejasse uma

dissolução completa e secretamente

procurasse o prazer final do açúcar

restante. No entanto, não me lembro de o ver

pegar na chávena para beber. A partir daí,

desligava a corrente do real, como se

entrasse numa outra dimensão. E eu com ele.

Todo ele absorto, indiferente à vozearia das

restantes mesas e ao meu olhar fixo e pouco

dissimulado. Abria o caderno preto de modo

cerimonioso, olhava por momentos pela

janela, não parecendo importar-se com o seu

próprio reflexo que turvava a realidade

exterior. Baixava a cabeça como numa vénia e

a sua caneta dourada parecia ganhar vontade

própria. A escrita fluía num ritmo febril,

num frenesim galopante e descontrolado.

Devorava folha atrás de folha. A caneta,

raspava a página de um lado para o outro,

mais parecendo um tear, juntando as linhas

escritas numa mancha de texto opaca, que

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depressa desaparecia com o virar repentino

da página.

Permanecia exatamente sete minutos naquela

mesa ao lado da minha, naquele café onde eu

próprio me encontrava, naquela rua 38.

Sempre tão perto, diariamente tão chegado e

no entanto só lhe conhecia os gestos. Não

sabia o seu nome, nem me lembro de alguma

vez ter ouvido a sua voz. (Deduzo que tenha

uma ou várias até…) Da minha mesa, vítima da

minha própria rotina, observava aquela

celebração diária de forma mística e

memorizei, gesto a gesto, os passos daquele

sujeito magro, sempre de fato preto, de

óculos redondos, de chapéu, também preto,

pousado na mesa. Aqueles sete minutos,

cronometrados, robóticos; eram mais do que

sete minutos. Eram um tempo parado no tempo.

Fechava o caderno, guardava a caneta no bolso

do casaco e levantava-se. Deixava o valor

certo do café na mesa; punha o chapéu na

cabeça e saía sem pronunciar um único som.

Durante todo dia, a mesa permanecia órfã do

seu dono e ninguém ousava sentar-se naquela

cadeira. Havia um respeito inexplicável por

aquele momento sacro, por aquele lugar e por

aquela pessoa, que podia ser qualquer

Pessoa.

Δ

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O Rei que não tinha castelo –TP- 8/11/2013

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Era uma vez um Rei que não tinha castelo.

Achava que não era necessário para a sua

função. Vivia numa casa igual à dos restantes

habitantes. Dormia também numa cama igual a

todas as outras pessoas e a sua comida em

nada diferia do que se comia por todo o

reino. As suas roupas eram também

perfeitamente normais e de coroa apenas

tinha uma calvície avançada para a idade. No

entanto, mesmo sem pompa e circunstância,

todos o respeitavam como Rei e admiravam a

sua dedicação e inteligência com que

governava o reino. O Rei era fiel no seu

trabalho de ser rei, era justo e reinava bem

e por isso a população era empenhada e

disposta a colaborar no que fosse

necessário, para tornar o reino um sítio cada

vez melhor para viver. O Rei cobrava impostos

também justos: apenas os necessários para

que o seu reino fosse um lugar culto, limpo

e seguro. Um reino que tratasse as suas

populações, dos mais novos aos mais velhos,

com dignidade e respeito. Era por isso uma

pessoa amada e venerada, mesmo sem ter um

castelo.

Todos os anos, havia um jantar que juntava

todos os Reis daquela região e nesse jantar

o Rei sem castelo ficava abismado com a

sumptuosidade demonstrada pelos outros reis.

Não deixava de admirar as suas roupas

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faustosas, coloridas e brilhantes e os seus

carros potentes e reluzentes. Imaginava que

as populações daqueles reinos viveriam

também de forma muito mais próspera do que o

seu povo. Nas conversas com os seus pares,

tentou saber como eram os seus reinos e os

reis descreveram com muitos adjetivos a

grandiosidade dos castelos em que viviam. O

rei ficou convencido que se queria realmente

que o seu povo melhorasse, teria de construir

um castelo. Regressou a casa com a ideia na

cabeça e não demorou muito a por o projeto

em prática. Reuniu os melhores trabalhadores

do reino para construir o castelo e estes

tiveram de abandonar os seus empregos,

deixando as tarefas que antes faziam; para

pagar os materiais, os artesãos e artistas

convidados para embelezar o castelo, desviou

o dinheiro dos impostos, deixando de haver

dinheiro para a educação, para a saúde e para

ajudar os mais necessitados.

Com os olhos ofuscados com tanto brilho, o

Rei olhou orgulhosamente para o magnífico

castelo que tinha construído. Estava agora

satisfeito e feliz por ser um Rei com um

castelo, sem reparar que no processo se tinha

transformado num Rei sem reino.

Δ

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A história da folha lutadora… - TP-15/11/2013

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Conta-se por aí a história de uma folhinha,

que vivia feliz nos ramos de um plátano.

Vivia na cidade, no meio de um parque, onde

muitas crianças brincavam e coloriam o ar

com as suas vozes irrequietas. Tinha nascido

igual a todas as outras folhas,

espreguiçando-se toda sonolenta, assim que

as manhãs de março ficavam mais quentinhas.

Cresceu, brincando com as suas companheiras

de ramo, tentando, em corridas loucas,

encontrar o melhor lugar virada para o sol,

atitude muito apreciada por todos os que

usavam a sua sombra para fazer um piquenique

de família ou para descansar, depois de uma

tarde de brincadeiras. Em meados de agosto

tornou-se uma folha adulta, de veios bem

vincados e pontas bem definidas. Fazia o seu

trabalho de forma competente e colaborava na

importante função de manter a árvore

próspera, sã e bela, é claro. Certo dia,

ouviu dizer que a árvore, patroa de todas as

folhas, já não precisava de tantos ajudantes

e iria começar a despedir as folhas uma a

uma, depois do fim do mês de outubro. Pensou

ser um boato e não quis acreditar, pois uma

árvore tão frondosa sem folhas não haveria

de ficar. O certo é que, com as primeiras

manhãs frias do mês de outubro, as folhas,

como se tivessem perdido o seguro de saúde,

começaram a perder o verde viçoso, ganharam

tons amarelos e avermelhados e finalmente

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começaram a ser despedidos dos seus ramos.

Lutou com todas as forças para se manter

presa, mas pouco lhe serviu quando uma brisa

mais forte a fez flutuar pelo ar. Ainda

pensou em fazer greve ou até protestar, mas

olhando a situação da árvore sabia que o que

tinha de fazer era recomeçar. Aterrou perto

das outras folhas, que no chão formavam um

tapete triste, mas colorido. Toda aquela cor

lhe deu uma ideia e ela não teve tempo a

perder. Chamou-as a todas e soprou-lhes com

emoção. Disse-lhes que não era hora de

desistir, que apesar de não terem árvore,

ainda podiam sorrir. Assim, com muita

determinação e incapazes de desistir

formaram uma empresa com a missão do mundo

colorir. Podemos cair, mas nunca podemos

desistir!

Δ

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A pedra mágica-TP-22/11/2013

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Conta-se por aí que no meio das brincadeiras

de um domingo de sol, o outono apareceu

fresco a pedir um agasalho e um chá bem

quentinho. Não dava para longas aventuras

pois os dias eram já curtos, mas o jardim da

avó, que ficava bem pertinho, era sempre um

bom local para esta pequena curiosa explorar

e brincar nas horas mais quentes.

Escondeu-se e encontrou quem se escondia.

Contava os números com prazer redobrado, de

um a trinta e depois partia para descobrir a

avó, que estava sempre no mesmo sítio. No

meio de tanta risota e corrida, a sua cara

refletia alegria e os seus olhos eram

espelhos de luz. Ela era assim quando não

tinha as suas birras: contagiava a natureza

sempre que sorria e a natureza parecia sorrir

de volta. Entendo, assim, a justiça do que

aconteceu, a natureza sabe recompensar quem

a ama e a usa para amar.

Assim, no meio do jogo das escondidas, numa

das vezes que procurava a avó, ficou parada

a olhar para o chão sem fazer qualquer

barulho. Agora, era a avó que a procurava,

pois já tinha passado muito tempo desde que

tinha dito: «Alerta!» Encontrou-a de joelhos

muito pensativa e olhando para a sua pequena

mão fechada verificou que tinha apanhado

alguma coisa do chão e perguntou: «Não me

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digas que encontraste algum tesouro.» E não

é que tinha…

Levantou o olhar do chão e exclamou em voz

alta a frase que criou espanto a quem ouviu:

«É uma pedra mágica!» A avó entrou na

brincadeira e perguntou se tinha encontrado

uma pepita de ouro ou mesmo uma pedra

preciosa. Ela respondeu que não e abriu a

mão, mostrando uma pedra banal, castanha que

nada tinha de especial. «É mesmo uma pedra

mágica, não vês!», reafirmou a menina. A Avó

sorriu, como só as avós sorriem para os

netos, mas o certo é que não via nada a não

ser uma pedra, um pequeno calhau ainda

coberto com torrões de terra. Percebendo que

a avó não acreditava nela, escolheu uma parte

mais clara do chão de cimento e com pedra

mágica que tinha na mão começou a fazer

riscos no chão.

A avó, espantada, verificou que a menina,

tinha acabado de escrever o seu nome no chão.

«Vês, é uma pedra mágica! É mágica porque é

uma pedra que escreve.»

Para mim, também tinha ficado claro: a pedra

era realmente mágica! Pensando agora sobre o

assunto, na reflexão que a escrita oferece,

não posso deixar de concluir que magia é na

verdade o que de surpreendente conseguimos

fazer, com o que à primeira vista parece

banal.

Δ

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Os mistérios da Lua gulosa – TP – 29/11/2013

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No tempo em que não havia enciclopédias e

não se sonhava sequer que a palavra Google

pudesse algum dia existir, as perguntas dos

filhotes mais curiosos tinham de ser

respondidas com muitas pitadas de imaginação

e com uma boa dose de raspa de loucura.

Naquele tempo, ainda não havia luz elétrica

nas casas, nem iluminação nas ruas e por isso

as noites tinham mesmo a cor escura que a

noite deve ter. Se para uns a visão era

assustadora, já para outros, como o menino

desta história, aquela visão dos céus

provocava uma série de enigmas e mistérios,

que não o deixavam dormir sem amarrar umas

asas à sua imaginação. Também não havia

televisão no quarto, na sala, nem em nenhuma

divisão da casa. Para se aquecerem as

famílias juntavam-se à volta de uma lareira

onde o fumo curava os presuntos e o calor

rosava os rostos.

Ora, houve um dia, numa dessas alturas de

reunião familiar, que um pai desses tempos

antigos se viu obrigado a explicar ao seu

filho de cinco anos as fases da misteriosa

lua, que para espanto do pequenote, ora

desaparecia, ora aparecia envergonhada, ora

se mostrava toda vaidosa, ora voltava logo a

desaparecer.

-Porque é que a Lua está sempre a mudar de

forma?

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Todos escutaram a pergunta do rapaz com

atenção e ninguém o mandou calar ou falar

mais baixo, para ouvir uma qualquer novela

de ficção ou da vida real; as notícias ou

mesmo para terminar a mensagem no

smartphone. Olharam todos para o fogo da

lareira como se procurassem lá a resposta,

mas foi o pai que respondeu com um certo

orgulho nos olhos pois achava que a

curiosidade era sinónimo de inteligência.

Ele próprio sempre estranhara aquele

mistério e lembrava-se da história que sua

avó lhe tinha contado, sentada à frente

daquela mesma lareira.

Assim, aquele pai dos tempos antigos, neto

de alguém dos tempos ainda mais antigos,

partilhou a história que tinha ouvido em

criança:

- Ora bem -preparou a voz - a Lua é muito

gulosa e não consegue parar de comer. Começa

muito pequenina, do tamanho de um grão de

areia, que ao longe não se consegue ver;

depois vai apanhando estrela atrás de

estrela, comendo uma a uma e sem nunca parar.

Começa a ficar cada vez maior, cada vez

maior… cada vez mais barriguda, até que

rebenta e espalha novamente as estrelas pelo

céu escuro.

Todos riram, a bom rir, da história maluca

do pai e foram dormir com um sorriso no rosto

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que só uma história consegue dar. O rapaz

ganhou mais um sonho e de certeza que

imaginou a Lua de guardanapo posto; faca e

garfo em cada mão lunar e um prato cheio de

estrelas estaladiças para se deliciar.

Δ

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Dar e receber – TP- 06/12/2013

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Todos os anos era a mesma coisa. Chegava a

hora de abrir os presentes e galopava

contabilisticamente para ver o que tinha

recebido. Abria o presente, esboçava um

sorriso, para logo depois o atirar de forma

desinteressada para um canto reservado com a

devida antecedência para alojar as suas

prendas, onde, misturados com restos de

papel de embrulho, se acumulavam roupas,

brinquedos, livros e até dinheiro.

–Receber prendas é muito bom! –Dizia em voz

alta.

Passara os dias de dezembro a pensar nas

prendas que iria ter, não tendo tempo para

mais nada. Quando a irmã lhe pediu ajuda para

enfeitar a árvore que o pai tinha trazido,

ele disse que não tinha tempo para essas

coisas, pois tinha de fazer a lista das

prendas que queria para o Natal, acabando a

conversa com a pergunta:

-O que me vais dar no Natal?

Não reparou na cara triste da irmã, nem

percebeu porque não lhe tinha respondido. O

mesmo acontecera quando o pai lhe pediu ajuda

para apanhar musgo e construir o presépio.

Nem o deixou acabar a frase, perguntando-lhe

de seguida qual seria o seu presente. A mãe

também foi brindada com a mesma pergunta ao

lhe pedir ajuda para fazer as rabanadas e

docinhos com que enfeitava a ceia de Natal.

À noite, adormecia a perguntar ao teto o que

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iria receber, vendo sombras de brinquedos a

serem desembrulhados, uns atrás dos outros,

num frenesim imparável.

- O que irei receber no Natal? O que irei

receber no Natal? – Sonhou em voz alta.

Não foi um sonho que lhe mostrou a verdadeira

natureza do Natal, nem ficou sem receber o

seu presente desejado, como a lógica poderia

antecipar. Não, tudo correu como tinha

planeado: recebeu muitas prendas, as que

pediu e as que nem precisou de pedir. Podia

mesmo verificar na sua lista, que ninguém se

tinha esquecido da sua prenda. Para ele,

estava a ser um Natal quase perfeito. No

entanto, sem conseguir muito bem explicar

porquê, não se sentia muito feliz. Pelo

menos, não se sentia tão feliz como a irmã

mais velha ficava, sempre que dava um

presente. Ela também ficava feliz quando

recebia, é claro, mas os seus dias de

dezembro eram passados a pensar e a preparar

as prendas que iria dar. Chegou a vez de o

rapaz dar os presentes e todos aguardavam

expectantes, mas ele não tinha nada para dar.

Aí ele percebeu (acho que deve ter percebido)

que as prendas são uma forma de dizer que

gostamos e nos lembramos dos outros, para

lhes mostrar que são importantes para nós.

Ficou triste ao perceber que tinha passado o

natal apenas a pensar em si. Ainda ia a

tempo! No monte das suas prendas encontrou a

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caixa de chocolates que a tia lhe tinha dado.

Abriu a caixa e distribuiu um chocolate a

cada um com um beijo e os votos de Feliz

Natal.

-Receber é muito bom, mas dar é fantástico!

– Disse o rapaz, visivelmente feliz,

provocando a todos um sorriso e um

brilhozinho nos olhos.

Δ

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Um brilho no escuro – TP - 13/12/2013

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Acordou de noite sobressaltado, ouvindo uma

voz sussurrada ao fundo, não conseguindo

identificar, ao certo, a sua origem.

- Tu mudarás o Mundo!

Não acreditou muito naquela voz, pois como

seria possível uma pessoa mudar o Mundo,

principalmente uma criança que vivia num

país tão complicado, a quem nem o nome

original lhe deixaram ficar. O seu país, lá

para os lados do Sul da terra mãe, levava as

cores muito a sério e viviam todos separados

de acordo com a cor que nasciam. Haviam

cores, que eram tratadas de modo

privilegiado, como se fossem mais

importantes do que outras. A cor da pele era

sinónimo de riqueza e quanto mais escura,

menos importante se tornava. Os serviços

públicos também eram diferenciados pela cor

dos seres humanos e mesmo os lugares dos

autocarros eram também ocupados de acordo

com a cor da pele: quanto mais escuro, mais

atrás se tinha de sentar. Havia mesmo grades

a separar aqueles mundos de cores

diferentes. «Que estranho e injusto

pensava!» Uma das palavras mais difíceis que

aprendeu a soletrar na escola, mesmo sem

saber muito bem o significado, apesar de o

viver diariamente, foi a palavra SE.GRE.GAR.

Como poderia um menino mudar o Mundo, que o

considerava inferior só pela cor da sua pele?

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Cresceu revoltado com tanta injustiça e

estupidez primária e interpretou aquela voz,

que ouvira em criança, como um apelo à luta

intransigente pelos direitos do povo do seu

país. A sua determinação acabou por o levar

à prisão, porque os que separam, não querem

livres aqueles que tentam unir. O seu corpo

ficou aprisionado durante vinte e sete anos,

mas durante todo esse tempo, a sua voz, num

voo místico ancestral, sobrevoou as

consciências dos que se dizem humanos e mais

humanos eles ficaram. As suas palavras foram

um brilho no escuro, uma luz guia

pacificadora num Mundo de trevas que

ameaçava ruir.

Um dia as grades partiram, mas ele já estava

livre, principalmente de ódio e rancor.

Tornou-se no pai de todos, independentemente

da cor, libertando mesmo aqueles que o tinham

aprisionado. Aquela voz tinha agora sentido:

ele tinha mudado o Mundo!

Ao longo dos seus últimos anos, ensinou-nos

uma palavra que muitos ainda teimam a não

conseguir soletrar: CON.GRE.GAR.

RIP TATA - Os heróis nunca morrem!

Δ

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No precipício de uma folha em branco…crónicas ou cenas parecida |

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Não gosto mesmo nada de ler! – TP – 20/12/2013

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Agora conto eu João Cunha Silva

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Era sempre assim. Sempre que alguém tinha a

ideia estratosférica de lhe dar um livro, a

sua cara ganhava a cor de fastio e lá saía

um agradecimento forçado. Atirava o

calhamaço para um lote de presentes sem

sentido, com uma clara noção de desperdício

de dinheiro que aquilo significava. «-Um

livro!...bahhhh! Então não era muito melhor

um jogo para a consola, um filme ou outra

coisa qualquer!?» Quando vinha acompanhado

de talão de troca, a coisa até não era assim

tão má, pois sempre dava para trocar por

outra coisa qualquer. O pior era quando se

tratava de uma livraria, daquelas onde

apenas se leem, vendem e promovem livros. Aí

a troca só seria feita por outro livro e

quando era assim nem se dava ao trabalho:

deitava logo o talão fora e atirava o livro

para o monte, para cima de outros livros,

sempre à espera que alguém os abrisse.

Ficavam assim no chão como folhas mortas num

outono eterno, onde nem uma brisa corria para

alterar o padrão que formavam. Quando ouvia

aquelas frases “Ler é bom! Ler faz bem!”

fazia sempre a mesma cara de troça. Ele até

tinha acreditado na história dos

superpoderes e sentiu-se mesmo um super-

herói, assim que juntou com sentido as suas

primeiras letrinhas para formar palavras,

mas depois aquilo já não era só para se

divertir e vinha sempre com algumas

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No precipício de uma folha em branco…crónicas ou cenas parecida |

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perguntinhas parvas que só quem fosse muito

distraído é que podia não saber. Lembra-se

sempre de ler aquela história do Pedro e do

Lobo, em que depois de vezes e vezes sem

conta a ler a palavra Pedro, tinha de

responder por escrito e de forma completa à

pergunta: “- Como se chamava a personagem

principal?” Claro que era Pedro! «Mas que

perda de tempo!» Podiam ter perguntado como

tinha ficado a cara de Pedro quando ninguém

o acudiu! Isso sim seria interessante. A

resposta podia muito bem ser um desenho. Mas

não, eram apenas perguntas que não lhe

apetecia nada responder. Com isto e com o

assombro de que cada livro tinha um teste de

avaliação na última folha, começou a perder

o interesse, pois muitas vezes queria

guardar para si aquilo que lia e assim não

era possível, porque ninguém lhe perguntava

como se sentia depois de ter lido aquela

história. Queriam saber quem era o narrador,

se este participava na história; pediam para

descrever as personagens, física e ainda por

cima psicologicamente, como se estivesse

numa esquadra a fazer o retrato-robô, ou

sentado no sofá de um psicanalista. Era

demais! Era muito mais fácil jogar um jogo:

aí ninguém se atrevia a perguntar nada e

podia jogar descansado. Aos poucos perdera o

interesse pela magia de ler. Sim, enquanto

narrador desta história posso mesmo afirmar

que ler é mágico. Algo aconteceu para poderem

ler o que estou a escrever. E isso, caros

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Agora conto eu João Cunha Silva

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amigos leitores, é magia. Convencido de que

não podia ler o livro como quem come um

gelado, apenas por prazer, começou, cada vez

mais, a manter os livros à distância, mas

mesmo assim não evitava que, de vez em

quando, por altura do Natal ou do seu

aniversário, lhe oferecessem um calhamaço,

ou dois. Já tinham destino marcado: o “monte

do esquecimento”. Nos tempos livres, fazia

Legos sem livro de instruções, jogava

Monopólio com o irmão e perdia, jogava à

“bisca dos nove” com o avó e ganhava até ao

nono jogo, para perder dez de seguida, andava

de canoa, jogava à bola, andava de bicicleta

apenas com os pés nos pedais, brincava com

os primos, com a sua cadela Dama, mas ler

não ocupava sequer um segundinho da sua vida.

«E também não faz falta nenhuma!» pensava o

rapaz.

A verdade é que aparentemente não fazia mesmo

falta nenhuma na vida daquele rapaz, mas como

os leitores mais atentos já devem estar a

antecipar, alguma coisa deve ter acontecido

para que o rapaz mudasse de ideias em relação

à leitura e aos livros. O que terá sido?

Conseguem antecipar?

A noite tinha sido muito mal dormida. Não

sabia muito bem se a causa seria a dor de

barriga ou a ansiedade pelo importante jogo

de futebol que iria ter na manhã seguinte na

escola. O certo é que jogou a custo e a dor

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de barriga tornou-se insuportável a ponto de

o levarem para o hospital.

– Acho que é uma apendicite! - disse a medo

a médica estagiária que o observou.

Aí, tudo iria mudar e há que dizê-lo sem

pudor, que há males que vêm por bem, pois

aquele internamento haveria de ser o fator

de mudança da sua vida, pelo menos da sua

vida de leitor. Trocar uma ponta do intestino

dispensável, por uma vida de contato com os

livros parece-me sempre uma boa opção e neste

caso pode-se dizer que a troca foi claramente

um ganho. Ali, sem se poder mexer, no meio

de uma enfermaria cheia de gente estranha,

cada um com a sua dor, foram os inúmeros

livros que leu que tornaram o seu

internamento suportável.

De início, parecia maldição, chegaram livros

de todos os lados. Os que o visitavam, num

inocente gozo, traziam livros, uns dados,

outros emprestados, outros vindos do “monte

do esquecimento” do seu quarto, que no seu

todo formavam uma biblioteca que nem um ano

de cama daria para ler. De início ficaram lá

pousados, num descanso que parecia destinado

a ser eterno, mas após as primeiras horas a

ver o tempo que o soro demorava a descer, lá

se decidiu a abrir o primeiro com clara

desconfiança. A partir daí nunca mais parou.

Descobriu ideias novas, mundos novos,

pessoas novas, leituras novas. Perante a

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Agora conto eu João Cunha Silva

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alegria que tinha redescoberto, espalhou-a

por toda a enfermaria, e a sua cama, aquele

número 231, passou a ser a secção de

empréstimo de livros durante aquela semana

que acabou por ser mágica. Assim que

recuperou, continuou a fazer tudo aquilo que

fazia antes e não se transformou em mais um

sabichão ou estrela de quiz show, nem se

tornou numa enciclopédia ambulante

insuportável, mas destinou um período do seu

dia para a leitura. Não fosse aquele pedaço

de intestino de discutível utilidade, seria

hoje um adulto como tantos outros, daqueles

que duvidam que ler é realmente um

superpoder, que permite interpretar primeiro

e melhor o mundo e as pessoas que nos

rodeiam.

Δ

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Tenho uma baleia na banheira! –TP- 28/02/2014

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Agora conto eu João Cunha Silva

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«Ajudem-me! Tenho uma baleia na

banheira!!!!!»

Foi assim que acordei numa manhã cinzenta de

dezembro. Agora que penso no assunto, não

sei muito bem se foi um pesadelo ou um sonho,

porque a baleia não é um animal que provoque

medo imediato. Acho que foi só mesmo o susto

de ter uma baleia na minha banheira que me

fez acordar sobressaltado. Meio ensonado e

ainda a pensar porque haveria eu de ter um

sonho assim, calcei os chinelos e fui ao

quarto de banho. Tentei abrir a porta, mas

parecia que alguma coisa a impedia de abrir.

Forcei, forcei e de seguida empurrei,

empurrei, até que muito a custo lá se abriu

uma pequena frincha por onde espreitei.

Saltei de espanto! Afinal não tinha sido nem

sonho nem pesadelo!

«Socorro, Ajudem-me! Tenho mesmo uma baleia

na minha banheira!» Desato a correr em

círculos, ainda meio atarantado. Belisquei a

mão (ato muito usual para quem pensa que está

a sonhar) e reparei que me doeu e por isso

confirmava-se que aquela visão não se

tratava nem de nenhum sonho, nem da minha

imaginação. De imediato, liguei o 112 e disse

com a voz mais aflita que encontrei, «Preciso

de ajuda! Tenho uma baleia na banheira.» Do

outro lado da linha, uma voz com acento grave

disse: «Não acha que já tem idade para ter

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juízo» e continuou, «pode estar a ocupar a

linha para alguma emergência. Respondi de

imediato «Eu sei, eu sei… mas isto é mesmo

uma emergência, não é brincadeira. Tenho

mesmo uma baleia na banheira!» Do outro lado,

de forma irónica perguntaram-me: «Não me

diga que a baleia está a brincar com um

patinho amarelo!» Fiquei espantado, como

poderiam saber? «Sinceramente…» disseram-me

do outro lado, «Ele há cada uma!» e

desligaram o telefone na minha cara. Pousei

o telefone, indignado com a terrível falta

de consideração pelo que se estava a passar.

Se não é para o 112, para onde se deve ligar

quando se tem uma baleia na banheira?

Espreitei mais um pouco para dentro do meu

quarto de banho. Já não estava a brincar com

o patinho amarelo, tinha mergulhado. Entrei

e quando julgo que afinal tudo se passou de

uma alucinação própria de um acordar

ensonado e nada mais do que isso, eis que a

baleia, enorme como só uma baleia consegue

ser, aparece de rompante e num salto

acrobático cai com um grande estrondo em cima

da superfície da água. Escusado será dizer

que fiquei encharcado da cabeça aos pés.

Banho matinal tomado, pensei eu. E agora o

que fazer com uma baleia na banheira? Ela

parece que se encontra bem e não quer sair,

pois se o quisesse, desapareceria tal como

apareceu. Acabei por me habituar à ideia e

assim sempre posso dizer que tenho um animal

de estimação muito especial. Uns têm um cão,

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Agora conto eu João Cunha Silva

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um gato, ou mesmo um periquito, mas qual é a

piada disso quando se pode ter uma baleia na

banheira. Por isso, se virem passar uns

camiões carregadinhos de krill já sabem para

onde vão. Porque uma baleia, mesmo uma baleia

que vive numa banheira, também precisa de

comer.

Δ

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Cabelos cor de vento – TP- 31/01/2014

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Agora conto eu João Cunha Silva

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No final daquela rua havia uma casa vazia.

Uma casa de uma cor qualquer que o tempo se

encarregou de apagar. Porventura seria

branca ou talvez amarela, mas isso agora

pouco interessa, porque não é a cor exterior

que torna mais ou menos interessante uma

casa, mas sim o que se passa no seu interior:

as pessoas, a vida que albergou. É disso que

quero hoje falar.

Conta-se que aquela casa, quando ainda tinha

cor, era habitada por uma mulher com cabelos

cor de vento. Todos a conheciam por aquele

nome e era fácil saber porquê: os seus

cabelos ondulados, esvoaçavam como papagaios

de papel, ao levantar-se a mais pequena

brisa, ganhando assim a cor que o vento traz.

Saía todos os dias daquela casa, com cor das

marés, e ficava a olhar as ondas do mar que,

numa luta contínua, golpeavam de forma

assertiva as dunas onde se sentava. Imóvel,

permanecia em silêncio, ouvindo os murmúrios

borbulhantes da espuma das ondas.

Ao longe, ao ver aquele diálogo mudo entre

os elementos, aquela figura feminina fazia

parte daquele quadro móvel em conjunto com o

mar, as dunas e o vento, como se nunca de lá

tivesse sequer saído. Mas saía e sabiam-no,

porque assim que o horizonte ganhava a cor

do sol poente, regressava a casa embalada

pela promessa de um novo amanhecer.

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Poucos segundos depois de ter entrado, a

janela ganhava cor de luz e a casa cor de

vida. Uma só janela com luz, nada mais…uma

só pessoa. Não demorou a que a casa ganhasse

cor de sono onde apenas um candeeiro de rua

tentava quebrar a monotonia da cor da noite.

Despertada pela cor da aurora, a mulher

regressou ao local de sempre onde os seus

cabelos esvoaçantes ganhavam de novo a cor

do vento. De mãos juntas parecia suplicar ao

mar, que agora beijava os seus pés, na

impossibilidade de atender aos seus rogos e

súplicas. Uma rajada de vento trouxe consigo

a cor do choro e a mulher, envolta pelas

lágrimas do mar e pelo choro do vento

desapareceu do quadro revolto que a cena se

transformara. Na areia, a fotografia de um

amor que o mar não devolveu. Estavam juntos

agora, mas a casa perdeu para sempre a cor

da vida e a janela, aquela única janela que

por algumas horas ganhava cor de luz,

permaneceu para sempre apagada, pintada com

a cor que a noite sempre traz.

Δ

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O título é… esqueci-me –TP- 30/05/2014

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Sempre fui muito distraído. Ou me esqueço da

luz acesa, ou não me lembro onde deixei as

chaves do carro, ou me esqueço da carteira,

ou… sei lá… agora mesmo esqueci-me do que ia

dizer… está aqui na ponta da língua, mas

parece que se recusa a sair. Agora também já

não importa. Sempre vivi desta forma,

esquecendo-me das coisas, perdendo outras,

encontrando-as depois, principalmente quando

já não preciso delas. «Acontece…», costumava

eu dizer! Pois, o que mais fazer nestas

situações… não se pode mesmo fazer nada e

até conseguia viver assim. Não me incomodava

assim tanto. Obrigava-me a um difícil

exercício mental e a um estado de alerta

permanente, despertadores e alarmes em

duplicado. Mas com meia dúzia de truques na

manga, o dia-a-dia tornava-se suportável e

ninguém se apercebia, a não ser um número

muito reduzido de pessoas muito próximas.

Descia assim a rua como sempre fiz. A chave

do carro no bolso da frente, os óculos mesmo

à frente dos olhos, a carteira no bolso de

trás… e sim tinha apagado a luz antes de sair

de casa, foi necessário confirmar duas

vezes, mas estava apagada. Confirmadíssimo.

Antes que me esqueça do que estava a contar…

ah! Estava a descer a rua sem me ter

esquecido de nada, confiante com tal feito,

que não deve ser considerado menor dadas as

circunstancias. Ia eu entretido no diálogo

com a minha própria memória, quando de

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repente sou abordado, por um aparente

estranho.

- Olá, já não te via há muito tempo!

- Pois é… já lá vão alguns anos… desde a

escola secundária.

Sabia quem ele era, mas o nome… estava na

ponta da língua, mas simplesmente se

recusava a sair, mais uma vez! Não querendo

dar uma ideia de fraqueza demonstrando uma

senilidade prematura, disfarcei, a partir

daquele momento com o uso do pronome, que

nestes casos, dá cá um jeito. «Tu isto…tu

aquilo…tu lembraste…» O certo é que a

conversa seguiu, fiquei a saber em género de

CV o seu percurso de vida, desde o momento

em perdemos a convivência diária nos bancos

da escola secundária… mas o nome, nem vê-lo.

Ele falava e eu acenava com a cabeça sempre

numa luta interior para me lembrar do nome

do sujeito. Também não sei se ele se

recordaria do meu, nunca o disse na conversa.

Ele subiu e eu continuei a descer a rua ainda

a pensar no abraço com que nos tínhamos

despedido. Entrei no café e pedi a minha dose

de cafeina diária acompanhada por uma bela

nata. Continuei com o nome dele à porta da

memória, mas relutantemente agarrado à

soleira sem se querer mexer. O líquido quente

despertou-me o cérebro ensonado, como que

iluminando o caminho por onde passava. O

clique final deu-se com o polvilhar da

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canela. Sentidos todos despertos. «- Ah,

grande camelo!» Seguiu-se uma vã tentativa

de apalpar a carteira no bolso! Aqui, juro

que não sei se me referia a mim, ou ao “zé

mãozinhas” … pois não me lembro… está claro.

O nome veio jorrado cá para fora, assim como

a lembrança de que ninguém tirava a carteira

do bolso dos outros com a classe do Zé, disso

eu devia ter-me lembrado. Sabia agora que

não me tinha esquecido da carteira em casa.

Δ

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Agora conto eu João Cunha Silva

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A Abelha Vaidosa –TP- 30/06/2014

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Os leitores mais atentos terão reparado que

a crónica do mês passado não estava

assinada…até correu bem, já o que o título

era “Esqueci-me…” e realmente, há coisas que

nos escapam, mesmo quando temos a

preocupação de tudo controlar. Ilusão! Não

conseguimos controlar tudo e por vezes é

muito bom que assim seja. Para mim é sinal

de humanidade, para outros … uma boa

desculpa. Mesmo assim, aqui fica a minha

explicação.

Nesta minha recente vida de pai e de contador

de histórias, por vezes, é difícil acordar a

imaginação para criar uma história

fresquinha, apetitosa e comestível para uma

criança de olhos brilhantes, que está à

espera, nada menos, do que uma história

genial, capaz de ombrear com as grandes

histórias da literatura infantil. Apesar de

difícil, é uma das tarefas de pai que me dá

mais prazer: adormecer a minha filhota ao

som de uma boa história, inventada no

momento, à vela da narrativa espontânea, com

personagens muito a propósito e com a ouvinte

/ crítica mais sagaz do mundo inteiro e

arredores. Assim nasceu a história que vos

vou contar: a história da “Abelha Vaidosa”,

a história que adormeceu a Maria numa destas

noites de junho. Numa colmeia no meio do

monte vivia uma abelha muito vaidosa. Sempre

que saía para apanhar o pólen das flores,

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Agora conto eu João Cunha Silva

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passava sempre pela frente do espelho para

confirmar e melhorar a sua beleza. Todos os

dias repetia a mesma rotina e a cada vez

arranjava uma forma de se tornar, aos seus

olhos, um pouco mais bela: ora encaracolava

os pelos, ora revirava as pestanas, ora

pintava as unhas com feitios diferentes em

cada uma… Aqui fui logo interrompido pela

minha crítica, que mesmo parecendo já estar

para lá do rio do soninho, depressa abriu os

olhos e disse com a maior das certezas: «As

abelhas não têm unhas, papá!» Ultrapassei

este nó narrativo com a desculpa de que tinha

aplicado umas unhas de gel e lá continuei

com a história, pois os olhos voltaram a

fechar em sinal de aceitação… Tal atitude

atrasava as suas tarefas e era sempre a

última a levantar voo. A rainha da colmeia

não se chateava muito com o assunto que já

dava falatório, pois apesar de tudo, mesmo

sendo vaidosa, a abelha cumpria com

distinção a tarefa de recolher o néctar das

melhores flores. Um dia, ao olhar-se ao

espelho, sem já saber o que fazer para

melhorar a sua aparência, a Abelha Vaidosa

decidiu pintar as riscas, que antes eram

amarelas, de vermelho, uma cor que achava

que lhe ficava bem. Olhou, tornou a olhar,

deu uma voltinha e sorriu: o resultado era

positivo, pelo menos no seu entender. A

tarefa de pintar as riscas de vermelho deve

ter demorado mais do que o habitual, pois

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nem ao longe via as suas companheiras e por

isso levantou voo sozinha para o seu trabalho

diário.

A esta hora já a Maria dormia e por isso a

história terá de continuar na próxima edição

onde iremos descobrir o que aconteceu com a

Abelha Vaidosa. Até já!

Δ

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II

Textos publicados no jornal Gaia Semanário (GS)

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No precipício de uma folha em branco – GS- 14/01/2015

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A folha em branco causa-me sempre sentimentos

controversos.

Por um lado há a promessa da ilusão do tudo

possível, da criação de mundos novos, de novas

ideias. No fundo, efervescências em forma de

palavras que se apressam por preencher todos os

espaços que encontram em branco, numa correria

desvairada, sem eira nem beira, à procura de

sentido.

Por outro lado, há o desmaio de nada conseguir

escrever; de encontrar uma porta fechada, por

onde nada entra e nada sai e sem puxador e

fechadura à vista; um frio vazio que congela os

dedos e os impede de escrever; uma longa pausa

que parece eterna.

Mas quando tudo parece perdido, uma pequena luz

se vê no meio daquele vazio e a folha branca é

agora um recreio coberto de neve onde crianças,

às gargalhadas, atiram bolas e de costas

deitadas, desenham anjos no chão, abrindo e

fechando os braços e as pernas. As palavras,

caem como flocos e amontoam-se em bonecos de

neve ou em iglôs improvisados.

Mas aqui, nesta terra de pés molhados pelo rio,

não há neve, e de olhos presos na minha folha

em branco, fico de novo parado perante o abismo

de nada conseguir escrever. De novo o frio do

vazio, tanto frio que a folha encharcada pela

neve derretida se transforma numa pista de gelo.

Mais possibilidades a surgir à frente dos meus

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olhos e, de súbito, as palavras de mãos dadas

com uma bailarina de cabelo imaculadamente

penteado fazem piruetas, rodopios, saltos

acrobáticos e aterragens destemidas ao som de

uma música que parece seguir todos os seus

movimentos. Escrevo nesse ritmo frenético,

tentando acompanhar a música, enquanto a minha

bailarina de patins, voando sobre a minha folha

feita pista, faz um levantamento e ergue as

minhas palavras enquanto rodopia sobre o seu

próprio corpo. A música acaba. A bailarina

curva-se para receber o aplauso e as minhas

palavras ficam marcadas na folha pelas lâminas

dos seus patins. Sai a bailarina e saio eu de

cena. A minha presença já não é necessária,

agora que as palavras se recusam a sair da folha

e parecem acomodar-se aos lugares que lhe

destinei. Polvilhadas ao sabor do vento ou

cortadas pelas lâminas dos patins da bailarina,

foram ocupando o seu lugar de forma ordeira:

letra a letra; palavra a palavra; frase a frase;

linha a linha. Como lenha amontoada pronta a

ser queimada numa noite fria de inverno.

Para que servirão as palavras que preenchem uma

folha em branco, se não for para nos aquecer?

Fica a promessa que este espaço nunca ficará em

branco a partir de agora. Será sempre preenchido

pelas minhas palavras, palavras escolhidas por

mim ou palavras que me escolham a mim, tanto

faz. Podem ser contos, crónicas ou mesmo

palavras de urgência que o momento não consegue

calar. Fica também a promessa que serão sempre

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Agora conto eu João Cunha Silva

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palavras livres, sem algemas ou prisões, porque

as palavras são a nossa liberdade e a liberdade

só é verdadeira, se existir a possibilidade de

as colocar numa folha em branco, de acordo com

a nossa vontade e engenho.

Je suis Charlie!

Δ

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Voando numa semente de um dente-de-leão – GS- 28/01/2015

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O vento ainda era frio, mas, às escondidas, a

natureza já se espreguiçava num longo acordar.

Por todo lado o ar trazia já a azáfama da

bicharada: formigas encarreiradas carregando

mundos; abelhas namoriscando todas as flores

que encontravam, competindo com borboletas

floridas pelo melhor lugar; lagartixas

espraiando nos ainda fracos raios de sol;

escaravelhos de todas as cores e feitios correm

apressados de um lado para o outro…

Com este acordar cíclico, mas no entanto sempre

surpreendente, chegam também as cores do que

outrora tinha sido monótono e sombrio; chega

também o riso das crianças. É hora de ir brincar

lá para fora, depois de dias de uma aparente

hibernação.

Como ela gostava daqueles dias de sol à tardinha

e de percorrer com as mãos as pontas ainda

húmidas das ervas. De repente parou. Acho que

viu alguma coisa especial: algum bicho para qual

olha com especial atenção? Ou uma flor que terá

aprisionado o seu olfato? Já sei o que foi! Vejo

agora que segura uma semente de dente-de-leão,

na mão. Ela sabe que não faz mal arrancar «Estou

a ajudar a natureza!», diz ela, como se fosse

uma entendida nestas questões da biologia. O

facto é que estava mesmo a ajudar, pois estava

a substituir o seu amigo vento e dar-lhe uma

ajudinha.

Sem perder muito tempo e de dente-de-leão na

mão, fechou os olhos e soprou com força. É assim

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que se pedem os desejos: fecha-se os olhos e

guarda-se todos os nossos sonhos nos nossos

pulmões. Por breves momentos tudo fica suspenso

à nossa volta e até a natureza parece querer

esperar, curiosa por saber o que vai dentro de

nós. Depois tudo acelera e à medida que

libertamos o ar aprisionado nos pulmões, vamos

projetando naquela semente de flor todas as

nossas expetativas e sonhos. Abrimos os olhos e

esperamos que a realidade à nossa volta esteja

diferente, como se uma pequena semente de dente-

de-leão fosse capaz de fazer o que muitas vezes

nós não conseguimos ou não temos coragem. Mas

nem por isso deixamos de soprar: é isso que nos

torna humanos, ou seja, a nossa capacidade de

sonhar.

E ela sabia disso. Com o seu sonho preparado,

soprou como sempre soprava e deixou-se levar

pela sua imaginação. Consigo ver pelo seu rosto

que ela vai à boleia do seu sonho, agarrando-

se a uma das sementes de dente-de-leão. Deixou-

se arrastar pelo seu amigo vento, sem querer a

responsabilidade de escolher o seu caminho.

Ainda era cedo: primeiro é preciso sonhar,

construir castelos impossíveis, brincadeiras

tontas e dizer coisas sem sentido. Só depois

disso, muito depois disso é que é preciso

acordar para perseguir os nossos sonhos.

Ainda era tempo de sonhar para ela: sentia-se

bem, sentia-se leve, sem peso, a confiar em quem

a levava pela mão, a confiar na natureza e no

seu amigo vento. De olhos fechados, sobrevoou

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Agora conto eu João Cunha Silva

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os campos, ainda verdes por ainda não terem sido

beijados de forma intensa pelo sol; sobrevoou

pelas copas das árvores ainda a recuperar as

cores, que se encontravam povoadas pelo

chilrear de pequenos pardais que por ali

namoriscavam; sobrevoou pelo rio e passou

levemente a mão pelas suas águas frescas, como

se quisesse fazer desenhos na sua superfície.

Depois abriu os olhos, e aqueles breves

segundos, duraram horas. Horas felizes com toda

a certeza.

Não sei ao certo com o que sonhava, apenas

posso imaginar o significado daquele sorriso

enquanto soprava a semente de dente-de-leão.

Diz o poeta que o sonho comanda a vida. Quero

acreditar que sim, mas para mim já acho

suficiente que a torne suportável.

Δ

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No precipício de uma folha em branco…crónicas ou cenas parecida |

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A moda das fábulas: O burro e o lobo – GS- 11/02/2015

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Agora conto eu João Cunha Silva

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Decidi que também vou fazer uma fábula: primeiro

tenho de arranjar uma animal que fale, pode

mesmo ser um burro. Sim, nada melhor do que um

burro bem-falante; de seguida tenho de arranjar

alguém que sirva para mau da fita; bem, desta o

lobo não se livra, e que seja mau, muito mau,

já que hoje em dia, faz muita falta um lobo mau,

para nos assustar de vez em quando e nos obrigar

a levantar do sofá e correr um bocadinho. Falta-

me só escolher uma moral, sim porque as fábulas,

vêm sempre acompanhadas por uma indispensável

moral, para nos ensinar alguma coisinha. A moral

mais apropriada neste momento é a fábula do bom

aluno.

Agora, com todos os ingredientes selecionados,

pomos tudo dentro de uma daquelas máquinas que

cozinham sozinhas, programamos o tempo

necessário e aqui está, uma fábula quentinha,

pronta a servir.

Conta-se por aí que em certo país, lá para os

lados das arábias, existia um burro falante que

andava há muitos anos na escola. Este burro,

por ouvir sempre a mesma coisa, parecia ser

muito bom aluno, uma vez que já sabia as

respostas todas. Nunca quis mudar de classe,

pois assim era sempre o melhor, mesmo que depois

de tantos anos, apenas conseguisse as suas notas

a copiar e a roubar os trabalhos dos outros. À

frente do professor, fazia-se sempre de bem

comportado e fazia sempre o que ele mandava.

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Para mostrar serviço, acusava injustamente os

colegas para que estes ficassem de castigo e

lembrava o professor, quando este se esquecia

de marcar os trabalhos de casa, ou de os

corrigir. Isto para tristeza e muita raiva de

todos os outros animais da sua turma. Como estes

eram muito mais novos e tinham medo, nada

diziam. O burro era o rei daquele pequeno mundo.

Um dia chegou à escola um aluno novo, radical,

de óculos escuros e sorriso brilhante e com a

adequada cara de mau. Sentou-se lá no fundo da

sala. Alguns ficaram com medo, mas todos ficaram

admirados com a figuraça que o lobo fazia. E as

suas palavras… fantásticas e sem medo de

questionar o professor e as ideias copiadas do

burro, que parecia mandar por ali. As coisas

que dizia faziam sentido, e ele sabia mesmo do

que estava a falar. Aos poucos, o professor, já

um pouco farto da conversa burra do burro, ou

talvez até um pouco amedrontado, começou a dar

mais atenção às palavras e ideias novas do lobo

e as suas respostas começaram a ser as mais

apreciadas e elogiadas.

Ora o burro, não gostou de deixar de ser o

centro das atenções, e quando viu que o

professor até parecia querer ouvir as palavras

daquele intruso, começou a zurrar como só os

burros sabem, e à falta de argumentos válidos,

começou a dizer: “Mas ele é o lobo mau, não

estão a ver! Ele é o lobo mau e vai comer-nos a

todos.”

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Agora conto eu João Cunha Silva

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Todos se riram, até mesmo o professor, pois via

agora a verdadeira natureza do burro. O lobo

afinal não era mau, só dava, aqui e ali, uma

merecida rosnadela ao burro, para o pôr no

devido lugar ou quando ele tentava copiar.

Agora, chegou a hora de tirarmos as corretas

conclusões e a devida moral da história (isto

para evitar extrapolações para o atual contexto

político internacional): O burro, com o lobo

por perto, estudou mesmo e aprendeu a lição, e

nós aprendemos que as aparências iludem e que

para ser mau não é preciso ser lobo, basta ser

mau.

Δ

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A conspiração dos astros – GS- 25/02/2015

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Um frio que não chegava a ser incomodativo

batia-me no rosto, despertando, um a um, todos

os meus sentidos, como se desejasse preparar-

me para o que viria a suceder. O ar estava leve

e limpo e a Lua, mostrando-se ainda a medo,

deixava já antever a forma sombreada de todo o

seu perímetro e futuro esplendor. Logo por baixo

dela, à distância precisa de dois polegares,

dois astros capturaram a minha atenção. Pela

sua trajetória e tipo de brilho, percebi que

eram certamente planetas. Um mais brilhante e

vibrante; o outro um pouco mais sóbrio e

expectante. A sua posição pouco usual parecia

querer dizer-me alguma coisa e o meu olhar nunca

mais se desviou daqueles pontos da tela celeste

e passou a acompanhar o seu desaparecimento na

linha de arvoredo, que no meu caso antecipa a

linha do horizonte. Os fenómenos celestes

costumam aprisionar a minha atenção, mas por

norma, surgem sempre antecipados por grandes

notícias ou pesquisas fortuitas na internet.

Neste caso, nada disso… apenas olhei na altura

certa e no lugar certo e nunca mais fiquei

indiferente. Sei identificar os astros e

constelações no desenho do céu. Mesmo assim,

não sabia ao certo que planetas seriam e por

isso, qual astrónomo de trazer por casa, recorri

preguiçosamente a uma aplicação no telemóvel e

apontei para aqueles dois pontos brilhantes,

situados dois polegares abaixo da Lua. Marte e

Vénus! Tornei a confirmar… eram mesmo os dois

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planetas, eternos amantes. Não consegui

disfarçar o meu entusiasmo e surpresa, pois a

ligação entre estes dois astros não é vazia de

significado para os mais atentos. Senti, por

isso, que os astros conspiravam para me dizer

alguma coisa.

Naqueles minutos em que fiquei a observar aquele

bailado de amantes arrebatados, viajei até

junto deles e sentei-me a recordar as suas

histórias. Lembrei-me das vezes que me cruzei

com os seus nomes ao longo da minha vida;

lembrei-me como fazem parte do imaginário de

todas as verdadeiras histórias de amor;

lembrei-me dos poemas e dos textos que lhes

foram dedicados; lembrei-me do carinho que,

segundo Camões, tinham por todos os portugueses

e venturosos; lembrei-me do seu filho Cupido e

das datas em que no calendário comemoramos o

AMOR e vi que este encontro, afinal, não tinha

sido por acaso.

Agora, estavam ali tão perto de mim. Percebi

que eu próprio fazia parte do universo presente

e passado, pois partilhava o mesmo ar de todos

os outros que, ao longo dos séculos, observaram

o mesmo céu e se sentiram inspirados para criar

os seus poemas, histórias e narrativas. Ao ver

a dança apaixonada destes dois eternos amantes,

iluminados apenas pela Lua, como sempre deveria

ser, sorri maravilhado ao pensar que tinham

escolhido o meu horizonte para se encontrarem

por aqueles breves momentos. Tive aí a certeza

que conspiravam em meu favor.

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Para mim, à imagem de Sophia enquanto olhava o

mar e as coisas simples, isto é motivo de

maravilhamento, de poesia e de inspiração. Sei,

no entanto, que para aqueles dotados de um

cinismo científico, nada disto é mais do que o

aproximar aparente de dois planetas desprovidos

de vida, ou para aqueles dotados de um perigoso

desinteresse geral, isto não deixa de ser uma

mão cheia de nada. No entanto, são estes dois

“amantes” e nossos vizinhos imediatos nas

viagens à volta do sol, que permitem a

existência de condições para haver vida no nosso

planeta.

Marte e Vénus não conspiraram apenas para o

sucesso dos portugueses na descoberta do

caminho marítimo para a Índia, eles conspiraram

para que toda a vida no planeta Terra

encontrasse o seu caminho.

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em verso com alguma rima! – GS- 26/03/2015

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-Que palavras traz hoje?

-Trago das frescas e das boas…

saídas agora do mar!

saltitam e soltam escamas,

que se espalham pelo ar!

Trazem o brilho do sol nascente

e o aroma da flor de sal

vindas deste nosso mar,

desta língua sem igual.

Eu próprio as pesquei

Neste mar português imenso

O papel, a minha rede,

Que apanha tudo o que penso.

Não as trouxe todas comigo:

as que queria, escolhi,

as outras são para outras pescas

e ao mar as devolvi.

O destino as levará

A outra mão e a outra rede

E por certo serão remédio

A outra fome e a outra sede.

As que trouxe dão bom petisco

Numa esplanada à beira mar.

Lidas num verso curto

Soltas, livres no ar.

Se as preferir numa prosa,

Para uma refeição elaborada,

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Acompanhe-as de uma boa história,

Para uma leitura demorada.

É só a “menina” escolher

O uso que lhes quer dar

As palavras, são sempre boas

Desde que saibam a mar!

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Agora conto eu João Cunha Silva

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O gafanhoto Antunes – GS- 08/04/2015

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Vá lá baixem-se um bocadinho, afastem-se das

estradas e da confusão, desliguem o rádio e a

televisão. Escolham um pedacinho de terra, ou

mesmo um pinhal e sentem-se mesmo no chão, o

Parque do Castelo pode até ser uma boa solução.

Agora que estão preparados encostem o ouvido à

terra e escutem com muita atenção, pois esta

pequena história é passada mesmo no chão, com

animais pequeninos que merecem atenção.

Conta-se por aí que num campo de trigo muito

longe do barulho dos automóveis e da poluição

das cidades, vivia um pequeno gafanhoto com a

mania que era atleta.

Andava sempre aos saltinhos por todo lado que

ia, para preocupação da sua mãe que sempre lhe

dizia:

“Antunes não andes aos saltos que podes mesmo

cair!”

Mas o rapaz lá das alturas, já não ouvia, ou cá

para mim fingia. Continuava a saltar sem nunca

mais parar e cada vez melhor, até que um dia

lhe disseram:

”Ó Antunes! Com tanta saltaria mais valia ires

à olimpíada!”

O que foram dizer ao rapaz! A partir daquele

dia, o fato de atleta sempre vestia. Que alegria

era ver o gafanhoto Antunes a saltar quanto

podia, para ganhar a saltaria, ou melhor a

olimpíada. Todos no campo de trigo o apoiavam e

agora até a sua mãe o incentivava, mesmo que às

escondidas pusesse as mãos na cabeça com tanta

preocupação e acendesse uma velinha para não

lhe faltar proteção. Treinou, treinou, treinou

até que o grande dia chegou e sem surpresa para

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Agora conto eu João Cunha Silva

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mim, foi ultrapassando eliminatórias até chegar

ao grande fim.

No final ficaram só três para ganhar o troféu:

Antunes, o nosso herói; a rã Kika e a pulga

Rita. Os três mestres no salto, que passavam a

vida a saltar, mas qual destes amigos irá afinal

ganhar?

Começou a pulga Rita que não parava de se coçar,

apesar do seu grande salto, decerto não dava

para ganhar. De seguida saltou a Kika, vinda do

Lago dos Pardais, que depois de ver a pulga,

pensou que podia saltar muito mais. Um salto

bem sucedido levou a Kika para primeiro,

deixando o nosso Antunes nervoso para o salto

derradeiro. Com aplausos de incentivo o

gafanhoto preparou o seu salto, e se queria

ganhar teria de saltar muito mais longe e muito

mais alto. Respirou fundo e os olhos fechou e

quando deu conta já ia no ar. Saltou tão alto e

tão longe que nem queria acreditar, mas

esqueceu-se que quem voa, tem sempre de saber

aterrar.

Estatelou-se no chão e sentiu-se mesmo um pouco

dorido. Levantou-se triste e desiludido e

pensou que tudo tinha perdido, mas quando o

aplaudiram viu que afinal tinha conseguido!

“Antunes, o gafanhoto campeão” diziam no dia

seguinte os jornais e ele todo contente

comemorou no seu campo de trigo, junto dos seus

amigos e pais!

Δ

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Qual o peso das palavras? – GS- 22/04/2015

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Será que as palavras têm peso, cor ou sabor?

Existirá uma qualquer balança que avalie ao

pormenor as gramas de certos vocábulos? Sabemos

que abraçamos e nos deixamos acariciar por

certas palavras, por nos parecerem leves, doces

e amigáveis. Por outro lado, há palavras que

nos põem carrancudos, maldispostos e que nos

causam repulsa por serem pesadas, carregadas de

ondas negativas e que parecem carregar um aroma

um tanto ou quanto acre. No entanto, quer umas,

quer outras, não deixam de ser aglomerados de

letras com sons associados, às quais atribuímos

significado e atiramos uns aos outros como

beijos, ou como pedras. Há também aquelas que,

disfarçadas, nos enganam, e parecem ser uma

coisa e afinal quando nos batem, são outra. Ao

longe parecem beijos, mas acertam-nos como

calhaus pontiagudos.

Confesso que me perdi com estas deambulações e

antes que avancem para outros lados da página,

para uma publicidade colorida, ou mesmo uma

figura agradável para lá das páginas deste

jornal, façam apenas o exercício que vos peço

com a palavra “humano” usada como adjetivo.

À primeira vista, quando vos qualificarem com

esta palavra será fácil identificar se é beijo

ou pedra. Mas será mesmo assim tão fácil? Será

que o que conhecemos desta palavra, com todo o

seu historial, torna aprazível e não insultuoso

ser caracterizado de “humano”?

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Vejamos com mais atenção: quando usamos a

palavra “humano” para nos referirmos às

qualidades das pessoas, queremos dizer que a

pessoa é bondosa, que gosta de fazer o bem e

que é sensível ao mal alheio. Se quisermos ir

um pouco mais longe na definição, podemos dar a

resposta pronta que “humano” é um ser racional

e que se opõe à palavra “animal” que designa um

ser irracional, bruto, estúpido e grosseiro.

Até há pouco tempo senti-me bem com esta

distinção e para ser muito sincero nunca tinha

pensado muito nisso. Usava as palavras da forma

habitual, sem me aperceber que poderia a estar

a cometer um erro quando dava um elogio «Tiveste

um gesto muito humano hoje!»; ou quando no meio

do trânsito dizia a barafustar «Que grande

animal!». É o que dá não pensar muito no peso

das palavras. Por vezes temos de nos afastar e

olhá-las com estranheza, como se as olhássemos

pela primeira vez, ou como se tivéssemos de as

colocar numa entrada nova no dicionário.

Convido-vos a fazer esse mesmo exercício,

usando as características predominantes daquele

que se assume como “humano”. A mim, deu-me isto:

Humano – (adj. Sing.) caracteriza aquele que

tudo mata e destrói; aquele capaz de extinguir

ecossistemas e provocar genocídios;

característica de um ser dotado de

comportamentos irracionais e maldosos;

característica do ser capaz de provocar o caos,

o pânico e a morte de outros seres,

encurralando-os entre muros reais e legais,

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Agora conto eu João Cunha Silva

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fronteiras, escarpas e mares; característica do

ser capaz de assistir a todos os pontos

anteriores com indiferença.

Sei que a definição que escrevi apresenta um

lado negativo e parcelar da palavra e da

realidade que descreve. Concordo! Mas a

definição que todos conhecemos e tomamos como

válida também o é. E cá para mim, estando apenas

um pouco atentos à realidade que nos rodeia,

temo que a minha definição sirva melhor o

propósito de a descrever.

As palavras têm assim pesos, cheiros e cores.

Não são é sempre os mesmos e não flutuam em

direção ao que seria desejável. Há palavras que

descrevem realidades ideais e que o passar dos

dias tornou pesadas e vinagrentas, capazes até

de nos causar reações muito “humanas” (à luz da

minha definição) de repulsa e de resposta

violenta.

Por isso, da próxima vez que alguém me disser

que eu sou muito “humano”, não espere que sorria

e agradeça. Não gosto de ser insultado.

Δ

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O que me faz feliz! O meu guia da felicidade! – GS- 06/05/2015

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Todos procuramos a felicidade, no entanto

parece que ainda não há um guia para a

encontrar. Corrijo. Há por aí muitos guias que

detalhadamente descrevem o caminho para a

felicidade, com promessas de dias de sorriso

aberto. Basta comprar aquele guia, fazer tudo

como está descrito, na dose certa e zás, trás,

catrapás. Às três pancadas, passamos de uma vida

triste e cabisbaixa, para uma radiosa

felicidade, capaz de iluminar a mais escura das

noites. Tretas! A mais pura das tretas! A

felicidade não se avia como uma receita e por

muito que fosse mais fácil, não podemos obrigar

ninguém a ser feliz. «– Toma lá, agora sê

feliz!». Ninguém é feliz da mesma forma que o

vizinho do lado, ninguém é feliz fazendo as

mesmas coisas e da mesma maneira que os outros

fazem. Por isso, o que há que fazer é

conhecermos a nossa felicidade. Olhar para o

espelho e perguntar: «Tu…sim…tu aí! Afinal, o

que é que te faz feliz?» Não esperem resposta

do espelho, a voz terá de ser a vossa, e a vossa

resposta é única, inimitável e impossível de

copiar. Mesmo que por vezes se tratem das mesmas

coisas, nunca será do mesmo modo e por isso não

será exatamente a mesma coisa. Apesar de a

felicidade ser um conceito universal, já que

toda a gente quer ser feliz (salvo alguém que

sofra de uma qualquer patologia),

encontraríamos, por certo, inúmeras definições

para a explicar.

Seguindo o meu próprio conselho, usei aqueles

guias de felicidade como pisa-papéis ou como

niveladores de mobília, ou mesmo como arma de

defesa pessoal, no caso dos guias mais volumosos

e comecei o meu próprio método de autoajuda para

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a felicidade. Sentei-me de lápis na mão e

iniciei a minha lista de dez coisas que

realmente me fazem feliz. Depois de elaborar a

lista, é tempo de a escrever com letras gordas

e afixá-la num sítio da casa que seja impossível

de não ver ao iniciar um novo dia. No meu caso,

no espelho onde confirmo diariamente o avanço

das minhas entradas herdadas geneticamente. A

receita (ah, afinal sempre há uma receita, ouço

uma vozinha irritante a dizer ao fundo, mas que

não passa da minha imaginação, é claro!) passa

por procurar fazer todos os dias essas dez

coisas que constam da lista. Se me faz feliz,

por que motivo, não o faço todos os dias! Assim,

nas restantes linhas deste texto, vou escrever

as dez coisas que me fazem feliz. Alerto uma

vez mais que são as minhas dez coisas e não são

copiáveis e no caso de uma transferência direta,

não me responsabilizo pelos efeitos que possam

causar.

Para o bem de todos, cada um que faça a

sua. Tenho a certeza que pensarão em coisas

muito mais interessantes do que as minhas. Aqui

vai:

1. Abraçar a minha família e dar-lhes

muitos beijinhos logo pela manhã;

2. Dizer «Bom dia!» a toda a gente;

3. Almoçar com os meus pais;

4. Tomar café e não pensar em nada durante aqueles breves segundos em que mexo o

açúcar;

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5. Ficar em silêncio a observar as coisas (o mar, o rio, as árvores, as formigas, os

pássaros, as estrelas…);

6. Escrever de noite;

7. Ver os outros felizes com alguma coisa que eu faço;

8. Inventar histórias para a filhota

adormecer;

9. Sonhar com coisas impossíveis;

10. Lembrar-me dos meus avós.

Esta é a minha lista. Nem todos os dias a

cumpro, e por isso mesmo são dias menos felizes.

Desafio-vos a fazer a vossa lista e a

experimentar. Para ser feliz, é preciso

procurar ser feliz!

Δ

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As cores verdadeiras – GS- 27/05/2015

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Seria bom virmos dotados de um dispositivo que

mostrasse as nossas verdadeiras cores. Acho que

se tivéssemos de apostar numa melhoria enquanto

capacidade especial, este seria por certo um

dos “upgrades” a fazer no nosso código genético.

Assim, munidos de um qualquer aparelho em forma

de prisma, ser-nos-ia mostrada a decomposição

da luz nas suas cores e a partir daí saberíamos

de que elementos os outros seriam feitos. No

fundo, tratar-se-ia de replicar o que já se faz

na astrofísica na descoberta de novos mundos e

corpos celestes, em que a partir da análise de

um código de cores, é possível identificar os

elementos existentes nesses locais a milhões de

anos-luz. Neste caso, pouco me interessaria

saber os componentes da tabela periódica de que

somos compostos. Acredito mesmo que pouca

diferença haveria entre uns e outros: somos

feitos da mesma massa. O que seria interessante,

neste possível “upgrade”, seria que nos fosse

revelado as verdadeiras cores das pessoas que

encontramos, ou seja, as suas qualidades

enquanto “humanos”. Seria certamente mais fácil

não ser enganado, desiludido, ou mesmo

violentamente surpreendido.

Confesso que a escrita deste texto iniciou antes

mesmo dos acontecimentos da semana passada. No

entanto, esses mesmos acontecimentos revelam a

extrema necessidade de não nos deixarmos levar

pelas aparências exteriores. Todos já sabemos

isso; é aliás uma daquelas frases que ouvimos

como certas desde pequenos, mas de uma forma ou

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de outra, só nos apercebemos da sua verdadeira

validade, na altura em que nos enganamos em

relação a alguém.

No meio dos meus naturais festejos de sofá,

mostrando a quem me é próximo o que eu entendo

ser a natural alegria da vitória, um vídeo

assombra-me de tal forma que me causa um

sobressalto. Hoje é discussão geral e foi tema

de noticiários. Na hora não tive dúvidas da

importância daquelas imagens e do que revelava

do caráter “humano”: quer do fardado que agride;

quer do fardado que abraça e tenta acalmar a

criança. De seguida, inexplicavelmente, no meio

de festejos, uma “intifada”, digna de uma

qualquer guerra civil ou revolta popular. Claro

que não fiquei bem… não podia. Para mim, o

futebol deve ser alegria e festa, e não uma

propagação de ódios e de frustrações pessoais.

Passada a surpresa e a tristeza, lembrei-me de

novo do início do meu texto e da utilidade do

dispositivo descrito ou da necessária melhoria

genética. É que se o tivéssemos, seria possível

ver para além das fardas e para além da cor das

camisolas. Aquele polícia, sobre o qual só

preciso de saber a data da sua expulsão, seria

visto automaticamente como um barril de pólvora

e por isso colocado no devido lugar, dentro de

um quarto acolchoado ou noutro sítio qualquer

onde pudesse usar o bastão sem incomodar

ninguém. Ao verem as suas verdadeiras cores,

nunca estaria num lugar de comando, nunca usaria

uma farda que tem como missão “assegurar a

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legalidade democrática, garantir a segurança

interna e os direitos dos cidadãos”. Mas nada

de confundir uma árvore com a floresta: quase

no mesmo frame televisivo, entre o desespero e

pânico da criança que me causou um aperto na

garganta, consegui ver a verdadeira humanidade

do outro agente, muito provavelmente abaixo na

hierarquia das divisas, mas muito acima na sua

capacidade de ser gente. À primeira vista, as

mesmas cores da farda, mas com aquele tal

dispositivo ou melhoria genética, seria fácil

escolher a quem pedir ajuda se tivesse a minha

filha pela mão. E os outros? Usando a mesma

camisola encarnada, que deveria significar

orgulho, respeito e alegria pela vitória. Eram

todos iguais? Claro que não eram! Uns eram

criminosos, arruaceiros e bestas e isso há de

todas as cores. É preciso ver a verdadeira cor

das pessoas, já que a que usam no exterior nada

diz da sua qualidade. Cientistas, toca a

trabalhar!

Δ

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A rosa vaidosa e a visita inesperada. – GS- 13/06/2015

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Conta-se por ai que em certo jardim lá para os

lados do Marão, vivia uma rosa muito bonita e

cheirosa, mas terrivelmente vaidosa.

Para esta rosa, era importante ser a flor mais

bonita, esmerada e organizada do jardim. Era

uma questão de honra! Só assim se percebia a

sua mania das limpezas. Passava os dias a

reclamar com a bicharada que pousava nas suas

pétalas, pois vinham carregados de pólen e

sujavam tudo, deixando-a sempre maldisposta e

carrancuda.

Entravam sem limpar as patinhas, «Que mal-

educados!» Pensava em voz alta a rosa vaidosa,

sem se importar que a ouvissem. Ficava mesmo

irritada! É que quando falamos de insetos, temos

de nos lembrar que são logo três pares de patas,

seis ao todo, a deixar pegadas de pó amarelado

por todo lado.

Era todo o dia a mesma coisa: mal acabava de

varrer, lá vinha uma abelha ou um zangão ou

mesmo uma borboleta armada em modelo a sujar-

lhe a arrumação. Sempre de vassoura na mão, sem

aspirador que lhe valesse, a rosa apressava-se

por ficar mais brilhante do que as gotas de

orvalho, que de manhã caiam das suas folhas.

À sua volta, consta que acontecia o mesmo às

suas vizinhas, mas estas, mais relaxadas, até

gostavam de toda aquela animação e recebiam de

sorriso aberto todos os hóspedes temporários,

por muitos desastrados que fossem.

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Um dia, farta de tanto limpar, e irritada com o

constante descuido dos seus visitantes,

resolveu escrever um letreiro com a frase

“Proibida a entrada a insetos e a animais

similares”. A frase não deixava dúvidas, ela

não queria visitantes, muito menos visitantes

de patas empoeiradas.

Pela primeira vez sentou-se descansada a olhar-

se ao espelho, apreciando de todos os ângulos

as suas pétalas, caule e folhas. Era realmente

uma rosa bonita, cheirosa e agora sem pó. Ao

olhar-se ao espelho, julgava-se mesmo a rosa

mais bonita daquele jardim, plantado lá para os

altos do Marão.

Sem nunca perceber os efeitos da polinização,

não ficou de imediato alarmada quando viu as

suas pétalas perderem a cor ou quando viu cair

algumas das suas folhas, outrora muito verdes e

seguras. Ao seu lado, todas as outras rosas se

mantinham viçosas e vistosas e com grande

atividade social, tanto quanto uma rosa pode

desejar.

Todo o jardim se mostrava sorridente, com flores

coloridas e bem-dispostas, borboletas e abelhas

a voar por todo o lado, oferecendo aos mais

atentos uma composição de zumbidos, escrita em

lá menor.

Uma dessas abelhas, um pouco míope e

habitualmente desastrada, acabou por não ler o

letreiro que estava na entrada da rosa e aterrou

aos trambolhões numa das suas pétalas, deixando

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Agora conto eu João Cunha Silva

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a rosa aparentemente furiosa com toda aquela

confusão. «Não sabes ler!», disse-lhe de modo

pouco simpático.

No entanto, apesar da rispidez da sua resposta,

a rosa vaidosa não deixou de apreciar aquela

entrada imprevista. A verdade é que tinham sido

dias de tédio a conversar sozinha com o seu

espelho e a admirar a limpeza e organização das

suas pétalas, que de dia para dia pareciam menos

brilhantes e saudáveis.

A abelha Augusta pediu desculpa pela

intromissão, e quando se preparava para voar

para outra flor, logo a rosa, visivelmente mais

satisfeita, a convidou para um chá.

Passaram horas a conversar e as cores voltaram

de imediato à flor, conta quem viu. Agora à sua

porta havia já outro letreiro: “A entrada a

insetos e a animais similares é muito bem-

vinda!”

Δ

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O primeiro dia de aulas – GS- 30/07/2015

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Parece contraditório falar do primeiro dia de

aulas em plenas férias, mas tenho os meus

motivos. Ele há dia mais especial do que este?

Quase todos os anos o revejo nos rostos e

olhares da pequenada. No entanto, este ano vai

ser especial: o friozinho na barriga vai ser a

dobrar. Alerto que a memória deste dia foi

certamente alterada pelo tempo e pela vontade

racional de tudo bater certo e estar articulado

num texto com princípio, meio e fim.

Era manhãzinha cedo e entramos na sala com olhos

brilhantes, ainda que ligeiramente assustados.

Envergonhados e um pouco sem jeito, sentamo-nos

pouco a pouco, seguindo as indicações da

professora, que parecia tão grande, enorme. Tão

grande como as cadeiras onde nos sentávamos,

que deixavam os nossos pés lá fora no recreio,

ainda a brincar no baloiço. A voz da professora

ouvia-se em todo lado, parecia que trovejava e

por vezes até pareciam sair faíscas.

Assustados, todos nos encolhemos, olhando para

baixo enquanto alguns rodopiavam com os pés.

Estávamos juntos pela primeira vez! Era mesmo

um grande dia.

Sentados dois a dois por ordem alfabética,

enfrentamos pela primeira vez o desafio de

termos um estranho ao nosso lado, a respirar

mesmo à nossa beirinha e a partilhar o nosso

espaço. Um olhar ou outro trocado, uns sorrisos

escondidos, mas sem muita coragem de nos

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olharmos diretamente, não vá estarmos a fazer

alguma coisa de errado.

Um barulho fora do comum ouve-se do exterior,

como se arrastassem muitas cadeiras ao mesmo

tempo, mesmo por cima de nós. De forma

automática, virámos todos a cabeça lá para fora.

De pescoço esticado, como se de um filme se

tratasse, conseguimos ver aparecer na janela da

sala um Caterpiller gigante, ou no nosso dizer

uma catrapilha. Era de um amarelo muito vivo

que contrastava com o cinzento dos paralelos da

rua, e parou mesmo em frente da janela da nossa

sala com os seus braços mágicos a subir e a

descer.

Alvoroço! Agitação total e pela primeira vez,

todos soltamos completamente a respiração, sem

medo de sermos ouvidos. Levantamo-nos uns atrás

dos outros de forma espontânea para espreitar à

janela, e como alguns ainda eram muito pequenos,

trataram mesmo de subir para cima das mesas, na

procura do melhor lugar para ver aquela máquina

de sonho.

Mas já estávamos na escola, e na escola parecia

que já não havia lugar para sonhar ou agir de

forma verdadeira, nem saltar quando vemos

alguma coisa entusiasmante. Era preciso manter

a ordem e à ordem de trovão da professora, todos

corremos aflitos para o lugar. Foi aí que vi o

meu companheiro de carteira verdadeiramente

pela primeira vez. Quis o destino e o nome que

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ele se sentasse ao meu lado e a partir daí se

tenha tornado no meu melhor amigo.

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Ensaio sobre o absurdo! – GS- 27/8/2015

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Uma das piores coisas que nos pode acontecer é

imaginarmos uma situação absurda, (ou nem

sequer a conseguir imaginar, de tão absurda), e

passado algum tempo sermos confrontados com

essa mesma realidade. Não há nada pior para o

nosso ego! Por um lado revela que a nossa

imaginação é muito limitada, e que os nossos

horizontes são de alguma forma curtos; por outro

lado revela que não estamos bem enquadrados com

o mundo em que vivemos e que há toda outra

realidade que nos ultrapassa e o que nos parece

absurdo, afinal não é assim tanto.

São vários exemplos de absurdidades que me

lembro para ilustrar esta situação. Se

perguntassem a qualquer contemporâneo da

segunda Grande Guerra que 6 000 000 (seis

milhões) de pessoas seriam mortas de forma

industrializada, todos achariam absurdo; no

entanto aconteceu; pela mesma altura se

perguntassem às mesmas pessoas se algum dia

seriam lançadas bombas que destruíssem cidades

inteiras de uma só vez, todos achariam absurdo.

Mesmo que fosse tecnicamente possível, isso

nunca seria feito; no entanto faz este mês 70

anos que as bombas “Little Boy” e “Fat Man”

arrasaram as cidades japonesas de Hiroshima e

Nagasaki. O absurdo novamente aconteceu.

E não faltam mais exemplos e nem será necessário

ir a grandes enciclopédias e a manuais de

história, (se bem que isso não faça mal nenhum).

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Basta abrir os jornais diários para vermos

testados os nossos limites de absurdidade. Há

dez anos (isto para ser cuidadoso com os espaços

temporais) alguém imaginaria que um ex-

Primeiro-Ministro estivesse preso, isto sem

recorrer à piada fácil e à vox populi que

normalmente qualifica os políticos. Nem aqueles

que o queriam muito, com ou sem razão,

acreditavam mesmo que isso fosse possível. Era

absurdo? Era, mas mais uma vez aconteceu. E

sobre o BES a mesma coisa. O absurdo novamente

a pregar partidas à nossa imaginação. E a

revolta social, justa, devo dizer, motivada

pela morte do leão Cecil, comparada com a quase

indiferença com que se tratam as mortes diárias

dos refugiados que tentam entrar na europa. É

absurdo não é? Mas está a acontecer mesmo agora!

Apesar de tudo, há um lado positivo na busca do

que para os outros é absurdo; atrevo-me a dizer

que depende quase sempre da salubridade dos

sonhos. Vejamos: quando Kennedy disse em 1961

que antes do final dessa mesma década tinha como

grande objetivo colocar um homem na Lua, e

trazê-lo de volta vivo, uma grande maioria deve

ter achado absurdo, muitos dos quais elementos

da própria NASA. Neste caso ainda bem que o

absurdo aconteceu. E a circum-navegação de

Fernão de Magalhães? Absurdo aos olhos de

muitos, por certo, mas aconteceu. E o que dizer

de Galileu e a absurdidade de defender o

Heliocentrismo? Absurdo por certo!

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Se não se lutasse pelo absurdo ainda haveria

escravos, as mulheres não votariam, as crianças

não tinham direito a ser crianças, a democracia,

mesmo que aparente, não existiria. Para uns,

todos estes passos foram passos dados no

absurdo. (Ainda bem que alguém acreditou que o

absurdo era o inverso.)

Há este lado positivo da procura pelo absurdo;

este alargamento contínuo dos nossos limites e

das nossas possibilidades enquanto humanos.

Muitos disseram que seria absurdo tentar lançar

um livro. Entretanto, lancei três e estou a dois

meses de lançar o quarto e não consigo parar de

escrever e de criar histórias. Se me

perguntassem há pouco mais de quatro anos se eu

imaginaria isto, eu diria que era absurdo. Se

calhar continua a ser… Às tantas, mesmo nos dias

de hoje, continua a parecer absurdo um neto de

um sapateiro e de um afinador de máquinas

industriais querer ser escritor e não ter medo

de o dizer e lutar por isso todos os dias que

se levanta, independentemente da indiferença

geral. Há por isso diferentes tipos de absurdos,

mas que não deixam de ser absurdos, uma vez que

contrariam a razão e a normal lei das coisas,

com que muitos gostam de viver.

Por isso, dotar-me-ei de metas impossíveis,

objetivos intransponíveis e de absurdos

saudáveis. Essa será a minha revolta, acho mesmo

que sempre foi e sempre será, pois não me

importo de continuar como Sísifo, a carregar a

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pedra do meu sonho até ao ponto mais alto da

montanha, para quando ela inevitavelmente

descer, a fazer subir de novo, e de novo, e de

novo… Mas isto pode muito bem ser um absurdo.

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A realidade e a ficção –GS-13/08/2015

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É cada vez mais difícil distinguir o que é a

realidade do que é ficção. O que era realidade

transforma-se em ficção e o que parecia ficção

transforma-se assustadoramente em realidade.

Para quem escreve isto é verdadeiramente um

desassossego: pensamos que estamos a criar algo

novo e somos subitamente acordados com a

realidade, uma realidade suficientemente

parecida com que imaginamos, de modo a mandar o

que escrevemos para o lixo.

A ficção é a verdade assente na mentira, isto

é: o possível e verosímil daquilo que

simplesmente não é verdadeiro. Não tenho um

crocodilo como animal de estimação, mas se

tivesse teria de criar o seu espaço, teria de o

alimentar, passear, e entretanto … esperar não

ser comido. A imaginação só têm rédea solta até

certo ponto; há sempre uma âncora que nos prende

aos nossos valores e vivências e que por isso

nos limitam. A ficção assenta assim em algo que

apesar de não ser real, poderia muito bem ter

sido ou poderá ainda ser, caso se verifiquem

determinados parâmetros e determinadas

circunstâncias. Não imagino nenhuma que me

levasse a ter um crocodilo como animal de

estimação, mas se isso acontecesse eu teria de

ter todas essas preocupações, isto se quisesse

que a minha história fosse aceite por um leitor,

que vejo sempre como exigente. Nem sempre

apliquei estes mesmos princípios ao longo da

minha escrita, mas reconheço que o deveria ter

feito. Lembro-me sempre daquele dia, quando

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numa escola, numa sessão de apresentação do meu

primeiro livro “A Maria da Lua”, um aluno me

perguntou como é que os passarinhos, que

plantaram as flores na lua, passaram a atmosfera

da terra. Bem tentei dizer que deveriam levar

uns capacetes especiais, mas percebi naquele

momento que deveria ter dado uma resposta melhor

no texto, já no momento, foi a melhor resposta

que saiu.

Sabemos que ao entrar no mundo da fábula e da

ficção logo se aplicam outras regras e outras

fórmulas. O ”Era uma vez…” abre-nos um portal

infindável de possibilidades. No entanto, mesmo

quando nos deparamos com a existência de animais

falantes, ou com naves espaciais a saltar de

planeta em planeta, repletas de seres estranhos

de múltiplos membros e olhos a lutar ou a

conviver, há sempre uma organização de base já

conhecida que deverá ser verosímil e plausível

de ter acontecido naquelas circunstâncias. Com

Alice tudo estava bem até aparecer um coelho

falante que a levou a um mundo onde toda a

lógica é desafiada. No entanto, mesmo nesse

mundo do faz de conta há uma ordem e regras

próprias. É assim tão diferente do que que se

passa no mundo real? Quantas vezes não pensamos

o mesmo de costumes de povos diferentes ou mesmo

de costumes de comunidades dentro do nosso país?

Queimar um gato não vos parece estranho e

próprio de ficção (doentia é certo!)? A

realidade derrota a ficção por KO.

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Na ficção começa-se sempre com uma premissa

silogística “Se estamos em 2045, logo as nossas

roupas serão de uma forma estranha, as nossas

armas serão lasers, as nossas viagens

rotineiras serão feitas de pequenos aviões e as

nossas vias serão a 200 metros do chão… deixo

que a vossa imaginação tome conta do resto, mas

desde já aviso que estava a com a imagem da

série Jetsons na cabeça. A partir daqui, toda a

construção tem de fazer sentido, e quando não o

faz é porque se procuram efeitos de pura ironia

ou efeitos cómicos como o avental do robot da

série mencionada.

A este propósito e para demonstrar que as minhas

referências não passam apenas pelos desenhos

animados, tenhamos em atenção os livros de José

Saramago, quer o Ensaio sobre a Cegueira quer o

Ensaio sobre a Lucidez. Todos começam com uma

ideia “E se…” A partir daqui, de uma forma

brilhante (o Nobel não é certamente por acaso)

somos levados para um mundo em que se o “E se…”

fosse real, não tenho qualquer dúvida que o

descrito seria o mais próximo da realidade. Para

mim seria exatamente assim que tudo

aconteceria. Só um conhecimento profundo da

humanidade permitiu Saramago chegar a esse

ponto de perfeição pois é exatamente assim que

nos comportamos perante aquelas mesmas

situações. Antes não fosse, mas a história tem

demonstrado o contrário…

O ano é de estreia é 2006 e o protagonista do

filme é Clive Owen e conta com outros atores de

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renome como Julianne Moore e Michael Caine. O

filme com o título original “Children of Men”

apresenta-nos um cenário apocalítico no ano de

2027 onde as mulheres deixaram de conseguir

engravidar e a humanidade caminha para a

extinção. No entanto não é isso que me chamou

particularmente a atenção: no filme as

fronteiras estão fechadas à volta do Reino

Unido, e pessoas desesperadas tentam entrar.

Não sei… apenas me lembrei desta ficção tão

afastada da realidade dos nossos dias. Longe de

nós isto estar a acontecer mesmo agora!

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©João Cunha Silva/2015

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