não lembro se vivi ou se me contaramo passado na minha vida foi sempre uma coisa constante, sempre...

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Não lembro se vivi... ou se me contaram 1

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Não lembro se vivi... ou se me contaram

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NÃO LEMBRO SE VIVI ...

... OU SE ME CONTARAM...

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Sant’Ana do Livramento,... .

O passado na minha vida foi sempre uma coisa constante, sempre gostei de lembrar e contar histórias. Muitas se perderam e outras não achei conveniente contar. Do que me lembro e quero dividir com quem está lendo, ai vai:

Terça-feira, 22 de janeiro de 1952 – 20:30 horas, noite de lua minguante, já anoiteceu, D.Noemy (minha mãe) começa a se sentir enjoada, primeiras dores, contrações e pede socorro.

Uma parteira já um pouco velha mas bastante conhecida na época de nome Sara foi chamada e se desloca até a esquina das ruas 13 de Maio e Barão do Triunfo. Era um início de uma noite de muito calor, era verão... enfim, não me lembro muito bem de tudo que aconteceu, pois foi neste dia que eu nasci.

Fui batizado com o nome de Raul Nei Marques Almeida, o nome Raul Nei é uma mistura do nome do Raul, um negro alto e forte, que era amigo da família e Nei, irmão mais novo do meu pai

Todas as histórias aqui contadas são “verdadeiras” embora eu não seja o personagem de todas elas, assumo a bronca para não comprometer ninguém. Os nomes, alguns foram omitidos, outros são parecidos aos originais e outros são os próprios, eles que se defendam...

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A ideia do nome NÃO LEMBRO SE VIVI... OU SE ME

CONTARAM é justamente por não ter certeza absoluta de como as coisas aconteceram e por não ter autorização de ninguém para contar estas histórias, se alguém se sentir prejudicado que escreva a sua, se faltou alguma história é que ela se perdeu nas minhas memórias.

Antecipadamente peço desculpas pelos eventuais erros de

gramática, pra diminuir custos eu mesmo fiz a revisão e a diagramação deste livreto. O Word e o Google ajudaram muito.

Como toda história contada esta também é um pouco fantasiada, posso ter confundido alguma coisa e ter inventado alguns diálogos, o que acho bastante normal. A primeira dificuldade vai ser escrever na primeira pessoa... eu, eu, eu.. sem parecer ou querer ser exibida, colorida, come casca de ferida, Vamos ver se no fim das contas a gente chega num resultado satisfatório, da minha parte já estou gostando, recém na página 3.

Este “escrito” me fez lembrar alguns bons amigos que já se foram:

Toninho Sanz – inseparável parceiro das excursões do Colégio Estadual e depois no primeiro ano da PUC. Sempre feliz. Um amigaço.

Maninha – Carmen Maria Andrade Pinheiro, gostava de ouvir as minhas histórias... muitas vezes filei uma bóia na casa dela com o Rubião... figura inesquecível.

Tetela – grande figura das madrugadas frias de Porto Alegre e parceira das rodas musicais em Rondinha.

Carlinhos Nunes – parceiro de viola no Bar do Geraldo, partiu muito cedo. A gente mal teve tempo de se conhecer direito, as poucas jornadas guardam belas lembranças.

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Nenê – companheiro de todas as horas, na culinária, nos bares porto-alegrenses e nas muitas violadas que participamos. Nenê, Camila, Edinho e eu, o quarteto fantástico como ele dizia.

Pepe - José Maria Guerra Damborearena, irmão, companheiro e conselheiro sentimental. Sempre que a parceria se junta várias histórias se relacionam com ele. Sinto muita falta dele.

E deixa também um grande beijo de saudade ao meu pai e minha mãe.

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UM ANO DEPOIS

Naquela época saia nos jornais: Com raízes fincadas na

década de 1950, o “Periquito da Madame” embala os foliões do Brasil e da fronteira-oeste.

A música cantada e tocada pelo grupo “4 Ases e um Coringa” era uma marchinha de carnaval, lançada no carnaval de 1946, fazia sucesso até os primeiros dias de janeiro de 1952, demorava um bom tempo prá vir do Rio de Janeiro até o interior do Rio Grande Sul.

“O periquito da madame, Come milho, come arroz, Come feijão, Mas quase sempre o periquito, Da madame coitadinho, Sofre indigestão.”

O meu irmão que tinha e tem 1 ano mais que eu, começava a

falar e ouvindo a mãe sempre cantando começou a repetir:

- pelica, pelica...

Não demorou e começou a me chama de Pelica. Com o tempo foi abreviando e passei a me chamar LICA, tenho amigos que até hoje não sabem o meu nome.

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Uma vez recebi uma carta do Paulistinha endereçada para Luis Carlos Almeida. Era eu.

Com o tempo incorporei o sobrenome e virei “artisticamente” Licalmeida. Tudo junto.

Nada a ver com a numerologia, pelo menos nunca fiz a prova, mas é um A só.

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HISTÓRIAS DE CRIANÇA

BRINCANDO DE INDIO

“Lá no bananal mulher de branco Levou pra índio colar esquisito Índio viu presente mais bonito Ê, ê, ê, ê, ê, Índio quer apito Se não der, pau vai comer!” (marchinha de carnaval do anos 60)

Naquele nosso tempo de criança sem televisão, sem

video-game, sem computador, sem celular... era preciso que se inventassem as brincadeiras.

Na maioria das vezes elas eram trazidas pelos mais velhos. O máximo que a gente conseguia naquela época era um cinema de rua, um lençol branco atravessado e um projetor, as vezes a gente assistia o filme pelos fundos, tinha muita gente na frente da tela e o melhor ângulo era por tras.

Filmes de capa e espada (Zorro. 3 mosqueteiros) e cowboys (John Wayne, Audie Murphy,...) eram os preferidos e influenciavam muito as brincadeiras, cinema era só aos domingos, um dia...

... entre quatro amigos, meu irmão entre eles, mais o Deco e o Napoleão, resolvemos brincar de índio “americano”, índio brasileiro era coisa que a gente nem sabia da existência. Fomos para o porão da casa onde morávamos e encontramos algumas latas de tinta de pintar parede.

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Dito e feito nos pintamos. Depois de brincar um pouco, subimos até a casa e nos encontramos com a minha Vó que levou um susto e ficou preocupada:

- se o pai de vocês chegar e encontrar vocês desse jeito vai ser um horror.

A chegada do pai, voltando do trabalho era hora de encontrar a gurizada de banho tomado e arrumadinhos (era complicado).

A vó Zizi pegou solvente, esponja, pano sei lá mais o que, só com água não saía aquela tinta desgraçada, parece que grudava na pele. Nos colocou em fila e começou a limpeza. Primeiro um neto, depois o outro e quando chegou a vez dos amigos a velha já cansada não aguentou:

- Vocês... vão agora já, prá casa, que a mãe de vocês vai fazer o serviço.

E lá se foram os dois indiozinhos bem pintadinhos pra casa

deles.

O que aconteceu com eles não sei, nós ficamos de castigo por algumas horas, nada era tão intenso naquela época.

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O CIRCO

“Vai, vai, vai começar a brincadeira Tem charanga tocando a noite inteira Vem, vem, vem ver o circo de verdade Tem, tem, tem picadeiro e qualidade” (letra e música Sidney Muller)

A chegada de um circo na cidade era motivo de festa prá

todo mundo, quase nada acontecia vindo de fora, de tarde nós íamos ver a montagem da lona, das arquibancadas, ver aquela gente toda envolvida numa coisa completamente diferente de tudo que nós tínhamos no dia a dia.

Com a chegada do circo esquecíamos os carrinhos de lomba, as “bulitas”, os aros (um arame com a ponta torcida e uma roda, as boas eram de carrinhos de criança, para empurrar), as aventuras de polícia e ladrão.

Nós fomos pro circo (eu, meu irmão e mais uns, a gente sempre andava em bando) e não sentimos a hora passar, relógio a gente não tinha, quando no meio do ensaio apareceu o meu pai com cara de poucos amigos e poucos filhos, já tinha nos procurado por toda a vizinhança, por todas as casas de amigos e nada dos guris. Fomos levados prá casa pela orelha e de novo ficamos de castigo.

Deitados cada um na sua cama, ninguém podia sair do quarto, ficava a lembrança do palhaço que cantava tocando um velho tambor:

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- toma limonada, não caga nada - toma purgante caga bastante - toma limonada,... Acho que a gente riu um pouco e foi dormir, afinal amanhã

começaria tudo de novo. Outra lembrança de um tempo mais adiante, era o circo montado no pátio da nossa casa, um trapézio no galho da árvore, um palco muito sem vergonha feito de pedaços de caixas de madeira, encenações em cima da letra de algumas músicas. Lembro o “Rei do Gatilho” música de Miguel Gustavo cantada na época pelo Kid Morangueira (Moreira da Silva).

“Começa o filme com o garoto me entregando Um telegrama do Arizona, onde um bandido de lascar Um bandoleiro transviado que era o bamba lá da zona E não deixava nem defunto descansar ....”

A cada frase ou duas, uma encenação, ali iniciavam a carreira artistas hoje consagrados ao anonimato (Regina Almeida, Alvarito, Nei Serrano (o pai tinha uma churrascaria na frente da minha casa) mais meu irmão menor, Ricardo e o mais velho (que vendia bala no circo) Gringo. Um dia meus pais voltaram mais cedo da piscina Santa Rita, normalmente só vinham no fim da tarde e encontraram uma fila de crianças na porta da casa deles, a gente cobrava entrada e neste momento foi decretado o fim do circo. Putiada geral. Lembro também que a nossa casa, de tanta reforma que meu pai fez, o banheiro ficou no meio da casa, janela do banheiro dava pra sala de jantar... então era abrir a janela e cantar, fazer qualquer coisa imitando o que se fazia numa televisão, que a gente tinha em casa e pegava de vez em quando... era a TV Laçador, vira a antena pro lado, bota bombril na ponta, tá aparecendo algo na tela... deixa assim.

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UM BURRO NO FUTEBOL

Uma coisa que todo guri gosta é jogar futebol, comigo não

foi diferente, só com um pequeno detalhe a minha habilidade com os pés é e foi sempre mínima, pra não dizer nenhuma.

Sabe aquela história dos dois craques começarem a escolher os parceiros de time? Eu sempre ficava por último e ainda por cima quando me escolhiam já estava decidido: - vai ser goleiro! Quando “conseguia” jogar na linha..., errava passe, furava em bola, não sabia marcar e me chamavam de burro.

- tem que largar a bola na ponta

- o fulano está sozinho, larga a bola prá ele

- burro, era aqui, to desmarcado

Por mais que eu tentasse jogar a bola não ia para o lugar certo, tinha até a noção do que deveria fazer, mas não conseguia. Mirava prum lado e a bola sempre saia pro outro, ou pra fora. Pra não ser mais chamado de burro larguei o futebol, e até hoje sou mero expectador, e colorado, e que ninguém me chame de burro de novo por isso.

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A minha melhor participação como esportista de futebol, foi na

vitrine do Banco Agrícola Mercantil (depois Unibanco, hoje uma loja comercial, rua dos Andradas esquina com a Uruguai) em 1962.

Brasil Bi-Campeão do Mundo no Chile, eu com 10 anos. A professora Gimina de Educação Física resolveu fazer um quadro vivo com onze meninos e lá estava eu, com a camisa de goleiro (Gilmar) das 10 da manhã as 6 da tarde, em pé, parados em formação de time que tira fotografia.

Terminamos o dia como craques, com fome e uma vontade enorme de mijar, a vida de atleta não é tão fácil.

A professora Cristina Peres de educação física, sabendo das minhas habilidades, nas aulas quando tinha prática de futebol, me colocava como juiz, era fraco também.

Depois destas experiências futebolísticas fracassadas fui jogar basquete, época dos clássicos Irajá x Guanabara, meu time era o Irajá, onde meu pai foi presidente, minha irmã foi rainha, toda a família era esmeraldina.

Depois de um desentendimento por lá resolvi sair do time. Em casa me disseram: pode jogar em qualquer lugar, menos no Guanabara... fui jogar no Sarandi de Rivera, lá a gurizada era chamada de Cebollitas.

Tinha sempre um conselho da mamãe: Irajá, Igreja Metodista e PTB não se metam. Não era ameaça, era conselho mesmo.

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O CINEMA DA GURIZADA

Uma grande diversão da gurizada era a matiné de

domingo, 2 ou 3 filmes seguidos um do outro, um era sempre chato, normalmente os dramas, quem quer drama quando guri... com pequenos intervalos para trocar revistas, figurinhas e se possível um cachorro-quente, uma pipoca, um guaraná Gazapina... mas tinha que sobrar um dinheirinho pra comer um arroz-com-leite no bar do seu Antoninho.

Não podia voltar pra casa com dinheiro. O meu irmão voltava. Eu não.

Tinha muito filme em série que a gente assistia de domingo em domingo, a maioria não era continuação. Os filmes não vinham numa ordem muito cronológica.

Um que me marcou bastante foi Mão-de-ferro e Wynnetou, o mocinho e o seu amigo índio, tempos depois descobri que era falado em alemão, dirigido por Karl May, e isso importa? a gente não prestava atenção em nada mesmo.

Um índio falando em alemão.

A cidade tinha dois bons cinemas, o Internacional e o Colombo, além dos cinemas de Rivera, o Rex, o Avenida e o Astral, quando passava filme do Cantinflas é lógico que a matiné era em espanhol, mas quando tinha Grande Otelo, Ankito, Oscarito, Zé Trindade,... a turma ficava toda no Brasil, já pensando na banana split do Palacinho, ao lado do cinema, onde o principal garçon da casa, o Nei, tinha até pouco tempo um “bar” em Rivera, na av. Presidente Viera.

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Tinha as sessões de Franja-Verde, a gente só entrava se alguém

distraísse o porteiro, era complicado. Hoje chamam de pornô. Outra bela lembrança desta época eram os Chocolatines Aguila, muitas vezes melhor que o filme.

Além destes tinha um cinema, conhecido como Hermes, que ficava numa casa na periferia da cidade perto de onde a gente morava. O projetor ficava dentro da sala, portanto se alguém levantasse da cadeira a cabeça dele era projetada na tela e a parceria já gritava:

- fulano, senta... normalmente eram reconhecidos pelo nariz ou pelas orelhas

Numa das vezes, a última que fui, o cinema estava muito cheio, era gente que se empurrava pra lá, empurrava prá cá, até conseguir um bom lugar. Cadeiras ocupadas a solução do seu Hermes foi colocar alguns caixotes no fundo da sala bem perto do projetor. Os primeiros sentavam de frente pra tela e os “patetas” como eu sentavam de costas pro filme, bunda contra bunda.

Não precisa dizer que no fim da sessão do matiné, quase 5 horas de projeção, o cinéfilo aqui estava com o pescoço virado do avesso.

Acho que o meu problema de coluna começou por aí. Isso foi lá por 1959, a cirurgia foi feita em 1980 Hospital da PUC-RS.

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EM BOAS MÃOS

O Baile de debutantes do Clube Comercial do final dos

anos sessenta era realizado sempre no dia 31 de dezembro. O melhor baile da cidade. Coluna social certa, no APlatéia quem assinava a coluna era a Rosa Dourado. A gente já começava a pensar no próximo a partir do dia 1º de janeiro.

O traje era de gala e a gente fazia gato e sapato prá conseguir se vestir, era camisa de um, sapato de outro, uma vez chequei a ir de sapato marrom porque não consegui um sapato preto. As gurias todas de coque e muito laque, que deixava o cabelo delas bastante duro e empinado. Outra lembrança é que todas sabiam fazer lazanha, que era o prato principal em qualquer jantarzinho adolescente. Também era comum aniversário de 15 anos com traje de gala. “Bolo vivo” eram 15 casais de adolescentes atrás da aniversariante, cada menina segurava uma vela. Muitas delas estão segurando vela até hoje.

Voltando ao Baile de debutantes, como era realizado no final do ano, a gurizada já chegava “embalada” da passagem de ano, que cada um participava em sua casa.

- Meu filho não bebe demais devia ser a frase mais usada. A maioria não chegava no fim do baile.

Nesta época eu andava meio apaixonado, arrastando a asa por uma guria muito bonita que iria debutar no fim do ano e eu só me encontrava com ela na saída do colégio. Encontrava é o termo certo, pois nós saímos do Colégio Estadual e íamos correndo até a rua dos Andradas ver a saída do Colégio das Madres e elas passavam.

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Eu falava muito mais com a irmã dela do que com ela. Acho até

que eu só falava com a irmã. Um dia ela me perguntou se eu queria ser o “Scort” dela no baile de debutantes (acho que é assim que se escreve). Claro que sim.

O “Scort” era o par da moça no baile de debutantes, dançava a segunda valsa, a primeira era ela com o pai. A valsa tocou. Ela dançava com o pai, passado algum tempo pararam de dançar, a música continuava e vieram em minha direção. O salão inteiro olhando. E o velho, pai dela:

- Está entregue.

Ao que eu respondi:

- Em boas mãos.

Foi a primeira lembrança de me olharam com cara de quem comeu graxa e não gostou.

Neste mesmo baile, o conjunto Mocambo era quem tocava e havia um show na metade do baile. Eu havia concorrido num festival em Rivera com uma música (feita prá ela) de nome “A menina dos olhos lilás”. Eles me convidaram prá cantar e o cara de pau foi.

“A menina que tiver os olhos lilás, por favor sorria prá mim...”

O conjunto ensaiava numa garagem perto da minha casa e seguido eu estava nos ensaios, inclusive ensaiando para o I Festival de la Frontera. A luz do baile quem controlava era o Panqueca (um amigo que sabia da história), ele apagou todas as luzes do salão e iluminou só a menina do Colégio das Madres.

Neste dia faltou whisky na copa do bar. A menina hoje é casada e tomara que esteja feliz.

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O CARNAVAL

O carnaval do Clube Campestre só começava com a

chegada do nosso bloco. A cada ano inventávamos uma fantasia diferente. Quando guri a lança-perfume era liberada e a gente usava uma máscara transparente para impedir que nos fosse jogada a tal lança nos olhos. Depois ela foi proibida. Proibida no cartaz na frente do Clube. Dentro do Clube ela era totalmente liberada.

Os motivos usados nas fantasias eram bem criativos, acho que o primeiro, neste não participei, era de Irmãos Metralhas (os bandidos da Disney), depois Viet-Lança (uma alusão a guerra do Vietnã), depois a Klu-Klux-Klança (com máscara na cabeça e dois tubos de lança-perfume fazendo a cruz no peito do carnavalesco), de aqualoco (era ridícula), de bebe-chorão (com as mamadeiras cheias de whisky) e a última foi intitulada Prova de Amor.

Era feita com um saco de estopa (acho que de café) cortada para enfiar as pernas e amarrar nos ombros. Com o calor estes sacos espinhavam o corpo e a gente chegou a conclusão de que só uma gata muito apaixonada iria dançar agarrada a um sujeito enfiado dentro de um saco.

Na saída do Clube Campestre resolvemos dar uma passada no Clube Caixeiral, o pessoal da portaria deixou a turma toda se reunir e chamou a polícia. Um a um dos integrantes do bloco foram entrando no camburão. Ainda houve um retardatário que na saída do camburão fez o motorista parar o carro para que ele também fosse levado junto.

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Dentro da delegacia enquanto nos identificávamos, o inspetor botava a mão na cabeça preocupado, um era filho do Presidente da Associação Comercial, o outro era filho do Major Fulano, o outro... e a parceria a esta hora já jogava sinuca no porão da delegacia, “filava” cigarro de um outro inspetor, tinha um com lança-perfume que queria passar adiante o seu instrumento de folia, o que nesta hora ninguém se identificava como usuário.

Do lado de fora da delegacia já tinha um bom número de gente que tinha acompanhado o camburão. Tudo era festa. De dentro alguns saíam para falar com alguém do lado de fora, de fora também era possível ter acesso ao interior da delegacia, os guardas não sabiam mais o que fazer.

No meio daquela esculhambação toda o delegado de plantão resolver mandar todo mundo embora. Já era dia claro quando o bloco foi libertado, alguns já tinham desistido da fantasia de saco.

Outra lembrança que me vem sempre eram os carnavais de

Rivera, duravam uma semana e era obrigatório tocar intervalos de música carnavalesca do Brasil e música típica do Uruguai.

A orquestra parava de tocar a marchinha “Mamãe eu quero” e a típica entrava com um tango “Mano a mano”.

O bailarino que estava fantasiado de Pierrot dançava tango com a Colombina apaixonado.

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TV 10

A TV Diez de Rivera era o único canal de televisão que se

assistia na época. A maioria dos programas era ao vivo, inclusive as propagandas. O programa de maior audiência era o Show do Tio Manda que o prof. Rubens Mandarino apresentava.

Era um espetáculo com concursos criativos e variados: qual era o bicho mais raro, qual o maior bigode da fronteira, a mulher com o maior número de filhos. A pessoas compareciam ao vivo.

O professor Mandarino inventava qualquer coisa. Era muito divertido.

Um hippie, o Gancho, tinha aparecido por Livramento e ficado por lá, ele era muito bom de guitarra e logo começou a fazer parte do conjunto Os Brasões, que era o melhor grupo de rock da cidade. Eles foram no Show do Tio Manda e resolveram inovar. Coisa de cidade grande, usar play-back. Levaram uma fita gravada, não uma fita-cassete, era uma fita de rolo, de 2 cm, operada pelo Panqueca (sempre ele) num gravador Geloso que hoje é peça de museu. Na hora de largar o som ninguém se entendeu. O cantor mexia a boca e o gravador falhava, as guitarras desligadas não faziam som, mas a bateria... acho que nunca mais se usou este tipo de recurso tecnológico na TV Diez.

A TV Diez marcou época e era asi de positivo. Vários cantores e cantoras se apresentavam na programação da emissora. Entre tantos me lembro da Suzana de los Santos, Peco Dorse “El triunfador”, Coquito, Dionara Fuentes, Los Hermanos Oliveira, Chita,...

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Outra que eu também me lembro, foi com o “Malandro”

Guimarães, nós íamos cantar Renato e Seus Blue Caps “Meu bem eu espero a sua carta...” versão de uma música dos Beatles, e a guitarra dando choque nas cordas (coisa do Panqueca)... só tocava o acorde inicial da frase e tinha que soltar o braço da guitarra, não tinha como parar, inverter a fase e continuar... era ao vivo.

Um grande lance de marketing aconteceu nesta época. O Gordo Levy, o Galo-Véio Baixinho Pepe e outros resolveram fazer um conjunto. Nenhum sabia tocar e não tinham instrumentos. Tinham criatividade. Como existia um grupo americano chamado The Mama’s and the Papa’s fazendo sucesso eles resolveram criar o grupo The Fanta’s and the Coca’s e foram pedir patrocínio ao distribuidor da Coca-cola. A minha carreira de compositor musical estava se desenvolvendo sem muita convicção, o Roberto Carlos cantava Jesus Cristo, Juca Chaves cantava Jeová e eu inventei de cantar Maomé:

“Maomé, Maomé Como é que está como é que é

Ajude todo mundo que ficou em Livramento Ajude um dia o Cati ser campeão de basquete Ajude o Mortadela esquecer a lança-perfume Ajude o Cesinha ganhar outra camionete

Ajude a Suzana ser rainha outra vez Os sonhos do Galo Veio faça tudo realidade Arrume um padrinho pro filho do gordo Marco Faça do Levy o machão desta cidade

Faça do Ricardo um homem em Pelotas Mantenha o Manuelzinho prá-frentex Faça do Bassoa um manequim famoso Abençoe nossa Pochola unissex

Maomé, Maomé Como é que está como é que é”

Mundo afora a guerra comia solta, o Vietnã era destruído pelos

americanos e os Incríveis (maior conjunto da época) atacavam de “Era

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um garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones”. Pau nos americanos.

Na aldeia fiz uma música também criticando a guerra do Vietnã e fui com o gordo Marco cantar na TV Diez. O gordo Marco estava servindo ao Exército Nacional, soldado raso. De noite, no Show do Tio Manda botamos a boca nos americanos, seguindo a cartilha dos Incríveis. Na manhã seguinte eu fui pro colégio e ele pro quartel. Tropa reunida o capitão dá voz de comando:

- Ô rouxinol, tu aí gordinho, vem cá meu rouxinol, vem cá, gaiola prá ti.

O gordo Marco passou um tempo na cadeia, em plena Ditadura

Militar e eu fora uma putiada ou outra do meu pai, seguia indo pro colégio normalmente.

O pai do Mortadela (seu Pereirinha) morava quase na esquina da minha casa, ao lado da casa do Quadrado, não gostou de eu ter composto uma música contra os americanos e na primera vez que me encontrou na rua fez a cobrança:

- tú não vai falar mal da Tcheco-Eslováquia

Nem sabia o que estava acontecendo por lá, mas tinha que ouvir e “obedecer” os mais velhos. Perguntei ao meu pai o que havia, ele me falou de uma invasão russa e na outra semana lá estava eu falando mal dos russos..

O que acontecia na TV Diez a cidade inteira ficava sabendo, várias vezes Suzana, Sandra, Fátima, Décio e eu nos apresentamos por lá, sempre no Show do Tio Manda. Nesta época, 17, 18 anos a maioria das músicas que eu fazia era pra me exibir nas festinhas junto com a gurizada. Outra composição foi: “Saí de casa para estudar

Mamãe me disse com muito receio Meu filho tenha cuidado Não coma a merenda antes do recreio

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Tentei explicar pra minha mamãe Só como o que me convem Se não como vem um outro e come E eu não vou repartir minha merenda com ninguém”

Esta não cantei na TV, seria censurada... acho. Fiz na época também uma versão da música “Do you wanna a

dance“, música lançada por Johnny Rivers em 1966... “O meu grande amor foi embora Nunca mais ele voltou E então

O licalmeida chorou” Outra bobagem da época: “Gostar de você eu gosto E jamais te esquecerei Me chamam Licalmeida Mas meu nome é Raul Nei” Música séria só começou a existir um bom tempo depois...

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A DESCOBERTA DO SEXO

Naquela época era comum o pai dar uma grana (pouca) e

nos mandar pra putaria, mas era a primeira vez.

Junto com o Guri Pinheiro, lá vamos nós, banho tomado, desodorante, partes limpas, foi difícil caminhar até a Av. Brasil, em Rivera, olhando pros lados e ver se ninguém estava nos observando... nos dirigíamos ao cabaret da Negrinha, que outros já haviam frequentado e contavam nas rodas de bar tudo que se fazia por lá. Sem a menor intenção de ficar pra trás da parceria lá fomos nós, malandros de primeira viagem...

Uma casa de madeira, com entrada pela lateral, na sala dois sofás e umas bacias de alumínio já bastante usados e veio a dona da casa ...

- Que é que vocês querem? Como dizer...

- Queremos perder a virgindade... viemos bater um papo... ela,

uma senhora já de certa idade, morena escura, lábios e sobrancelhas pintadas, com um “pouco” mais de experiência que nós resolveu abreviar o diálogo:

– Já sei ... mas vocês vão querer com corpinho ou sem corpinho...

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Na dúvida resposta direta, já que vamos pagar queremos completo:

- COM CORPINHO, estamos pagando, queremos tudo que a gente tem direito...

E não é que tal corpinho era sutiã, passamos mais um bom tempo sem ver ao vivo o que era um seio... O tal corpinho tinha uns arames e o Guri (claro que só ele) saiu de lá todo arranhado no peito. Dentro do quarto, que estava mais pra uma sala mal iluminada, janelas fechadas... tinha uma bacia de alumínio, uma toalha e um pedaço de sabonete.

Se foi bom ou se foi ruim eu não me lembro, mas que chegamos na calle Sarandi com cara de guri feliz, isso sim, chegamos.

O Guri nem olhava pro chão... e assobiava feliz, só ele. A Sarandi até parece que estava com mais luzes naquele entardecer.

Em casa os velhos esperavam pra ouvir a história, contada em

detalhes... saber se o dinheiro deles foi bem aplicado.

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EU TE AMO, EU TAMBEM

A gente morava numa pensão na General Câmara em

Porto Alegre, rua da Ladeira, eu e o Guri Pinheiro, duas camas, um guarda-roupas e uma escrivaninha. Uma janela que dava prum poço de luz grande, mas sem vista para o exterior. A dona da pensão, D. Clô, tinha uma filha muito bonita que logo logo foi eleita miss pensão. Nós não sabíamos ainda o que fazer em Porto Alegre então durante a semana a gente se ocupava em estudos, as vezes um cinema, e no final de semana era um desespero. Nada prá fazer.

Lendo e relendo os jornais começamos a descobrir coisas como o correio sentimental. Moça de 17 anos deseja se corresponder com Jovens da mesma idade para fazer amizade... É claro que o Guri escrevia e colocava o meu nome e eu escrevia com o nome dele. Um dia estávamos no quarto e foram avisar o Guri que tinha gente pra falar com ele. Isso era muito raro a gente não conhecia ninguém. O Guri foi e não demorou pra gritar:

- Almeida, é contigo.

Era uma moça de uma cidade perto de Porto Alegre que tinha vindo conhecer o seu “correspondente”. O Guri ficou escondido atrás da porta e eu com aquela desconhecida na minha frente sem saber o que dizer. Ela se deu conta que tinha entrado numa fria e a gente não se deu conta de que estava brincando com uma pessoa que nada tinha a ver com a nossa solidão.

Era comum na pensão a gente deixar uma carta em cima da escrivaninha e o outro ler. Eu ainda respeitava as namoradas sérias do

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Guri Pinheiro, ele não respeitava nada. Nesta época um outro santanense veio morar na pensão, ele era de uma turma mais velha apesar de ter só um ano mais do que eu. Ele era mais sério, não entrava nas nossas confusões e nos dava muitos conselhos. Com o tempo começou a ler as minhas cartas. As dele eram escondidas no quarto que ele alugava e que era separado do nosso. Era no fim do corredor.

O nome dele: José Maria Damborearena, vulgo baixinho Pepe.

As cabecinhas começaram a pensar.

Guri Pinheiro e eu.

O que vamos aprontar com ele. Nesta época ele já lia nossas cartas, não só as cartas que chegavam como também as cartas que saíam.

Montamos a seguinte situação: escrevi uma carta pro pai da minha namorada em D.Pedrito (era namoro sério) dizendo que assumia casar com ela já que haviam nos surpreendido fazendo sexo depois de uma festa, no meio da praça e que não achava justo a filha dele ficar difamada na cidade. Iria conversar com o meu pai, ela viria morar comigo na pensão ou largaria tudo pra morar com ela numa fazenda em D.Pedrito.

Deixamos a carta em cima da mesa. Quando ele leu a carta levou um susto e veio falar comigo dizendo que eu não podia largar os estudos, que eu era muito novo e que tinha de haver outra solução. Quase aos prantos. Vamos pensar alguma coisa.

Um dia depois ele descobriu a armação e ficou uns quatro dias sem falar conosco.

Mas continuou lendo as cartas.

Numa sexta-feira viajei para D.Pedrito, tinha um Baile do Havai, famoso na cidade, fui de surpresa. Sempre que ia a Dom Pedrito ficava no Hotel Ponche Verde... Quando encontrei com ela veio a triste constatação:

- não recebestes o meu telegrama? respondi que não e passei o baile inteiro sozinho.

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Em Porto Alegre o Guri Pinheiro e o Pepe já tinham aberto o

telegrama,

– Tudo terminado segue carta.

De manhã fui embora para Santana e recebi um novo telegrama:

- Fulana canalha vamos partir para outra. Guri.

E dizer que esta mesma namorada havia me escrito uma carta a pouco tempo dizendo:

- Eu te amo, eu te amo, eu te amo, duas páginas de Eu te amo.

Ao que respondi criativamente:

- Eu também, eu também. Eu também... duas páginas.

Será que ela ficou brava, será que foi por isso que ela me abandonou.

Primeira guampa a gente nunca esquece. Na pensão da Clô a gente vivia pensando em Livramento, só o

corpo estava em Porto Alegre, tudo era Santana... até as brincadeira que a gente “inventava”, qualquer coisa era motivo pra fazer uma sacanagem.

Uma vez saiu no jornal um assassinato em Porto Alegre. Um

cara mandou pra outro uma caixa com uma guampa dentro... prato feito. Recortamos a foto da caixa e mandamos via correio endereçada

pro João Bassôa e colocamos como remetente Roberto Lund Martinez (Panqueca)...

No meio da tarde aparece na pensão o Bassôa bufando de

brabo: - vou a Santana matar o Panqueca... filho da puta tá me

chamando de corno.

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O João que já tinha fama de brigão e era muito ciumento, teve

que ser acalmado... bem devagar fomos contando a história e salvamos o nosso amigo Panks... no mínimo ia apanhar sem saber porque.

Nossa rotina na pensão era cursinho de manhã, estudos de

tarde, lá na pensão mesmo e de noite íamos ao Colégio Infante Dom Henrique, no bairro Menino Deus.

Como era turma do noturno, a maioria tinha mais idade do que

nós, mas nem por isso mais “comportados”. Na primeira aula de física, lembro que o professor mandou

apagar a luz, acendeu uma vela, botou na frente do espelho e explicou coisas como reflexo, distâncias na imagem refletida e depois assoprou a vela.

A turma inteira cantou o “Parabéns a você...”.

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UMA CAIXA DE CITROEN POR UMA BOCA

Quando passei no vestibular tinha a promessa do meu pai

de ganhar um carro, nunca tive paixão alguma por automóveis, nunca gostei de dirigir...

E certa vez andando em Porto Alegre com ele na pracinha Annes Dias em frente a Santa Casa passamos por um carro todo enfeitado com as cores da bandeira dos Estados Unidos, era um Citroen antigo.

Meu pai voltou pra Santana e tempos depois me disse que tinha uma surpresa pra mim, quando eu fosse visitar a família em Santana. Era no mínimo uma vez por mês.

Me mandei pra Santana e lá recebi a surpresa – um Citroen 1945 todo arrebentado estava na garagem me esperando. Me disse:

- Vamos reformar todo ele, vai ficar jóia

Sai pra comprar as tintas, ele seria pintado de amarelo prá não chamar muito a atenção... e voltei pra Porto Alegre.

Um mês depois voltei e lá estava a máquina brilhando, todo azeitadinho, tinindo, pequeno detalhe, meu pai e os cupinchas dele não conseguiram uma caixa pro carango, resumindo: sem caixa não tem marcha e sem marcha não vai nem prá frente nem pra trás.

Um tio em Itaqui (Tio Burgo) por telefone mandou avisar que um sujeito por lá tinha um Citroen velho atirado num canto mas que a caixa daria pra aproveitar, era questão de negociar.

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Guri Pinheiro e eu nos mandamos pra Itaqui buscar aquela caixa

mágica. Chegamos lá direto a casa do Tio Burgo, saímos de carro com meu tio conhecer a cidade, Fomos até a Praça Marechal Deodoro da Fonseca (Praça Central), descemos do carro, caminhamos um pouco e entramos em outro carro, virou a chave e continuamos o passeio, até o Clube Do Comércio no centro da cidade, dali saímos em outro carro.

O Guri estava mais assustado que eu, ele era meu tio há bastante tempo, sabia das esquisitices, vários carros pela cidade com as chaves e ia escolhendo dependendo de onde estivesse. Normal.

Por fim fomos ver o Citroen, o carro não prestava, mas a caixa estava em condições... o tio confirmou. Chegou a hora de negociar o valor, perguntei quanto era e meu tio me apartou:

- Deixa comigo

Se aproximou do dono da “caixa” e mandou:

- como tu quer que eu te pague por esta porcaria

O dono do carro com cara meio com vergonha até, respondeu em voz baixa:

- Seguinte, me dá uma boca e meia.

- Uma pra mim e meia pra minha mulher.

Negócio fechado no hora. O Guri sem entender nada, eu já sabia do tipo de negociação, estranhava o diálogo.

O meu Tio era protético e fez uma dentadura inteira pro dono e fez meia dentadura pra mulher do cara, não lembro se era a de cima ou a de baixo, mas o Citroen tinha uma caixa nova agora.

Podia finalmente andar.

Andei pouco naquele carro, quem mais andava era o Gringo, meu irmão... o freio não funcionava direito, trocar de marcha era um sacrifício, o arranque funcionava de vez em quando, tinha que dar

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manivela, gastava mais gasolina que o Ford Galaxie LTD do Dr. Hugolino, avô do Guri, que enchia o tanque duas vezes pra ir de Santana a Porto Alegre,

Enfim foi trocado por um Jeep e umas panelas... as panelas estavam em bom estado...

...do Jeep nunca mais tive notícias. Ainda nas questões “trânsito” me lembro que as ruas da cidade eram já bastante esburacadas, o prefeito da cidade era o Ney Campos, eu fiz uma musiquinha que dizia: “Tem luz na parte de fora Do parque Internacional Lá dentro é que a coisa mora A escuridão é total Passa gente passa mosquito

Passa a caça e o caçador Se ouve então um grito E não se sabe se é de pavor... ou então Todo mundo tem o seu buraco Cada um tapa como quer Forte, fraco, feio ou bonito Moço, velho, homem ou mulher Mas Santana não tem quem tape Seu buraco anda contra-mão Sr. Prefeito faça uma campanha Tape um buraco ao menos com a mão” Um dia fui numa festa na casa do prefeito, amigo dos filhos

dele, Caiço e Clarinha e ele veio falar comigo: - me disseram que o sr. anda cantando umas musiquinhas por

ai, que falam do prefeito... - pois é ...

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- EU gostaria de ouvir Ele com cara de quem não ouviu e não gostou e eu

cantarolando...a fama que ele tinha era de ser meio estourado, brabo, não levava desaforo pra casa.

No fim tudo terminou em risada, mas que fiquei assustado e

tremendo os dedos e a voz, isso sim. Baita cagaço.

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MODESS

Uma vez numa crise de hemorroidas, daquelas brabas,

me lembrei do meu pai, que usava “modess” (absorvente feminino) quando tinha as crises dele e berrava de brabo... onde já se viu um homem usando modess... ninguém devia passar por isso.

Pensei, pensei e me mandei pra farmácia, isso já com 50 anos... criei coragem e perguntei ao atendente:

- Vocês tem modess...

- Como?

- Modess aquilo que as mulheres usam...

- isso não existe mais, agora temos Sempre Livre, Intimus. Always...

- tá, qualquer um... que seja de tamanho grande

- qual é o da sua preferência

- qualquer um, porra

- pra uso noturno? Com super proteção?

- o senhor vai querer com abas....

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Quase subi no balcão, encabulado e com pressa peguei um, não lembro qual, da mão do atendente, paguei e fui pra casa com o meu modess bem enrolado num papel.

Quando tive nova crise...

... nem pensei em modess, deixa prá lá esta porcaria. Numa das primeiras vezes que senti este problema... uma

ardência muito chata... fui ao médico, no caso meu tio Dr. Ney Almeida... e ele muito gozador me perguntou examinando o local:

- é aqui na entradinha Respondi que sim... E ele na maior cara de pau, rindo: - pensei que ai era saída Bullying...

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A MORTE ANUNCIADA

Um certo amigo meu estava de namorada nova, o que é

sempre uma boa notícia e me convidou pra comer um churrasco na chácara do pai dela. Era uma lenharia com pilhas e pilhas de eucaliptos cortados e que ficava distante do centro da cidade.

Lá fomos nós sem saber que era um churrasco com muitas pessoas. Algo como o lançamento de uma candidatura a vereador ou prefeito. Não conhecíamos quase ninguém a não ser a namorada nova e a amiga que nos acompanhava.

A festa estava uma maravilha, gente animada, todo mundo rindo bastante.

Churrasco bovino e de ovelha, cerveja gelada de várias marcas, talvez whisky e muita conversa jogada fora. No meio da festa, o dono da casa (pai da namorada nova) já meio goleado e com a voz bastante alterada, tirou um revólver da cintura e gritou:

- vou matar quem tá comendo a minha filha.

O amigo entre espanto e dúvida saiu correndo campo afora por cima das lenhas, que caiam e ele subia de novo.

O velho também ficou surpreso e sem entender o que estava acontecendo:

- Ué, quem é aquele baixinho saltando no meio das lenhas.

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é que na tarde ele havia brigado com o genro casado com a outra filha...

Encontramos o nosso amigo, to loco pra dizer quem é , um pouco mais tarde em direção a cidade com o coração na boca e tivemos que explicar tudo pra ele.

Foi gozação por muito tempo. Bom tempos de Bar y Noche do meu amigo Cesar Antonello.

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O CORONEL E O TANGO

Que eu sempre gostei de cantar não é preciso dizer, só

que algumas vezes exagerei na dose, esta é uma delas... estávamos no Bar da Nina, travessa da Ramiro Barcelos, quase Independência, uma castelhana baixinha que cantava muito bem e sempre foi dona de bar, inclusive em Santana.

A cena é mais ou menos assim: estava eu no palco cantando e me pediram um tango, já que eu cantava em espanhol... não tive dúvidas e mandei um Mano a mano

“Rechiflado en mi tristeza, hoy te evoco y veo que has sido En mi pobre vida paria sólo una buena mujer Tu presencia de bacana puso calor en mi nido...” (Carlos Gardel)

... que aliás eu só sabia um pedaço... quando terminou a parte

que eu sabia me retirei do palco, o Coronel que havia pedido o tal tango ficou enlouquecido e saiu atrás de mim:

– Como o Sr. deixa de cantar pela metade uma música destas

– Enchi o saco

– O Sr. sabe com quem está falando?

– Não

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– Com um Coronel da Brigada

Na hora me veio a resposta clássica, que eu já tinha escutado:

- Bem feito, quem mandou não estudar, podia ser médico, engenheiro, advogado....

Só não apanhei porque a Nina me protegeu, o homem queria e

muito me mostrar a força que ele tinha... pra completar, isto o Coronel nunca ficou sabendo, estava comigo o Zé, casado, tinha saído de bermuda e camisa de regata, pra voltar cedo, a mulher estava grávida e ele tinha dito que voltaria cedo... eram quase 5 da manhã e ele viu umas rosas dentro do bar, atrás do balcão, não teve dúvidas:

- Nina, preciso destas flores

- Pero, fue el Coronel que me dio...

- Preciso delas

A Nina deu uma olhada e viu que o Coronel já tinha ido. Deu as rosas pro Zé que chegou em casa cheio de amores e bouquet lindo de rosas... parece que no caminho parou num posto de gasolina e ainda comprou chocolates. Pedia, quase implorando no balcão:

- Chocolate amargo, faz favor...

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O PROFESSOR AGAPITO

Agapito Prates Paula, a quem chamávamos na gozação de

Agapaula Prates Pito, era um religioso de coração enorme, vivia dentro da Igreja, dava aulas de Português e algo parecido com Iniciação Sexual, só para meninos, era quase meu vizinho na rua Conde de Porto Alegre.

Uma vez numa aula sobre masturbação, não que ele ensinasse como se masturbar, divagava sobre o assunto, ele perguntou como andava a masturbada dos meninos...

Galo Véio perguntou se era normal se masturbar 11 vezes ao dia...

O professor quase desmaiou.

Um dia, eu já metido a poeta, resolvi levar uns versinhos que eu escrevia, passados a limpo num caderno espiral. Ele leu e respondeu.

“Alunos são outros filhos Foi bem isso que pensei Quando lia os estribilhos Das trovas do Raul Nei”

Guardo o verso e a lembrança sempre de cor em minha vida.

O professor Agapito era também quem fazia a maior parte das

músicas que as torcidas organizadas cantavam nos ginásios durante os JIPs (Jogos Internacionais da Primavera).

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Com a melodia de Cidade Maravilhosa, a torcida explodia na arquibancada:

“Colégio belo e garboso Cheio de atletas mil Colégio maravilhoso Coração do meio estudantil

Se não ganhares a taça Estadual

Não importa não faz mal Já que o importante é competir Competindo vamos luzir”

Com a melodia de Mulata bossa-nova:

“Estadual entrou na quadra Pra taça conquistar Vamos ganhar Eh,eh,eh...”

E por ai seguia o corso. E a galera cantava e os jogadores

entravam em campo.

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FILHOS DE SANTANA

Em julho de 2003, o Gino e eu conversamos em meu

apartamento na av. França, 1232, terceiro andar sem elevador, sobre o avanço das tecnologias, Internet, Visual Basic e chegamos a conclusão que deveríamos fazer algo na internet, fiquei de bolar um nome... FILHOS DE SANTANA, baseado no que já existia como Filhos de Kennedy, Filhos do Jânio e até Filhos de Gandhi.

O Fabian que trabalha até hoje com o Gino, sabia fazer páginas, seria também nosso parceiro, ele tinha feito uma página bem divulgada em Santana, a Vips Brasil, onde divulgava fotos de festas.

Hoje ele é um fotografo de mão cheia, divulga regularmente no Facebook, tem enorme sensibilidade ao fotografar...

Definimos, mais o Gino e o Fabian um modelo de página e no dia 06 de agosto de 2003 entrou no ar o site filhosdesantana.com.br, com uma Galeria de fotos e um Livro de visitas.

O plano era cada um mandar pra 10 amigos e pedir para que esses 10 mandassem prá outros 10 e assim a corrente foi em frente, 10 acessos, depois 50, chegamos a 700 acessos dia. Em pouco tempo chegamos ao total geral de 10.000 acessos no site.

.

Zeca Pinto, Leka, Carlinhos Rolim, Soraya, Tiozão, D.Gladys, Soninha, Pipe, Guégui, Angela, Pobeto, Elci, M.Adelaide, LH e outros

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3.000 santanenses e de outras cidades foram se juntando ao grupo, que se tornou uma comunidade, se “falavam” todos os dias e muitas amizades foram feitas e refeitas.

Aniversários, batizados, casamentos eram documentados no

site, todo mundo mandava foto de qualquer jeito e tamanho, e só o Fabian sabia mexer, começou a ficar pesado prá ele e então resolvi aprender esta nova tecnologia e hoje 15 anos depois só trabalho com estas ferramentas.

Começaram a acontecer os “Encontros”, primeiro em Porto Alegre, a gente marcava uma data, escolhia um bar/restaurante, avisava a parceria e a festa estava pronta e depois foi se espalhando. Teve encontro em Livramento, claro, em Pelotas, em Caçapava, Montenegro, Barra do Ribeiro e foi se espalhando, Florianópolis, Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador (Bahia) e era comum os santanenses se encontrarem por algum lugar do mundo e mandarem as suas fotos.

Recebíamos mensagens de todo lado, muitos agradecendo a existência do site, e textos como esse que vou reproduzir:

Corujar e charlar nos FDS

por Pipe Cademartori data 15/12/2003

“Sinto-me bem nos FDS! Corujando e charlando com pessoas do meu passado, presente e futuro, sem dúvida. É um resgate de situações de companheirismo, amizade, parceria, turma...como muitos dizem: "é sentar-se na calçada e matear" ou "adentrar no nosso bar e cumprimentar a todos: buenas!".

Poder falar (escrever) o que pensa, uns concordam, outros não e ainda, de pleno direito, os indiferentes.

Mudamos com o tempo! Será mesmo que mudamos tanto assim? Não creio que nossa essência possa ser mudada, podemos ter sofrido alguns planchaços, dissabores, alegrias mil que nos fazem esquecer as tristezas, eu procuro pensar e agir assim, por vezes esmoreço, mas não me entrego fácil e sabem da onde puxo a energia para viver? Da minha essência, nascida em Sant'Anna.

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Pessoas diferentes de mim? No fundo somos todos iguais. Mesmas preocupações, cada qual buscando seu espaço, construir, corrigir, crescer, resumindo: VIVER! E preferencialmente em Paz e com a dita Felicidade!

Citando Francisco Otaviano: "Quem passa pela vida em brancas nuvens. E em plácido repouso adormeceu. Quem não sentiu o frio da desgraça, quem passou pela vida e não sofreu. Foi espectro de homem, não foi homem. Só passou pela vida, não viveu!" (Há quantos anos escuto isto!) Mas é muito profunda e para mim verdadeira.

O que tem a ver tal afirmação com os FDS? Para mim tudo!

Freqüentar, corujar e escrever nos FDS é uma forma de expressar a vida, é viver! Cada qual do seu jeito! Vejo todos saudarem o sentimento de Amizade e suas variáveis (companheirismo, parceria) e já ouvi alguns dizerem que a Amizade é um sentimento mais forte e caro, que o Amor.

Se hoje, dar Bom dia a um desconhecido na rua, por vezes parece estranho, nos FDS acordamos cedo para dar um Buenas para vários companheiros, aqui e nos mais diversos rincões do mundo, que percebo aguardarem e receberem com carinho nossas manifestações.

Diante das tantas judiarias que ocorrem na humanidade, de tantas perdas, cobranças e ganhos materiais que nos são impostos ou nos impomos, são somente materiais ... aqui nos FDS somos privilegiados...por uma razão: "Só precisamos ser nós! Com nossos sentimentos, pensamentos, opiniões, experiências, expectativas... uma pessoa com passado, presente e futuro"...

O termo “corujar” passou a ser usado como, frequentar o site, tanto que uma vez eu estava num trailer no Parque Internacional, tomando a última cerveja da noite e umas moças que trabalhavam na Cazona, que ficava ali perto, vieram até onde eu estava e me disseram:

- Entre um cliente e outro a gente dá uma corujada.

O site não era feito só de alegrias, poucos colaboraram financeiramente e começou a ficar caro pra nós. Tempo de dedicação, formatando textos e fotos todos os dias, hospedagem e registro do site,

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além disso, começaram as discussões, “brigas” por politicagem, agressões y otras cositas.

Uma vez me pediram a fórmula pra fazer um site de São Gabriel, modestamente respondi:

- quem é o Licalmeida de vocês.

O saldo final do site foi positivo, muita gente se encontrou e são amigos até hoje. O site seguidamente é lembrado nas conversas.

Tiramos o site do ar em 2011, quase 8 anos de pleno divertimento e pura cumplicidade.

Tudo um dia chega ao fim.

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PRÁ DAR MEDO EM VOCÊ

No final dos anos 70 a gente se reunia no bar Dom Diego, lá

no fim da Sarandi, saia do entrevero do centro de Rivera e era mais barato. Os garçons eram o Conejo e o Meza. O vinho preferido era o Mil Botellas, que fazia todo mundo acordar com os beiços roxo. Não tinha como dizer em casa: ontem não bebi.

- o que vamos aprontar neste fim de ano. Sempre surgia um motivo pra fazer uma festa... era uma

apresentação no Bar do Cacalo, festa no Campestre ou no Caixeiral...

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era estilo Roberto Carlos, sempre tinha um show no final do ano... claro que guardadas as proporções.

Resolvemos montar uma peça de teatro e apresentar no Cinema Colombo. O Cati seria o produtor, Santaninha o diretor, era o único com alguma experiência em teatro e eu me encarregava do texto/roteiro.

Texto montado, agora era hora de ir a Policia Federal pra liberar a peça. Liberada sem cortes, agora era conseguir o cinema e começar a divulgar.

No dia anterior tínhamos o cinema liberado para ensaios, claro que foi no período da tarde.

A peça era um folhetim com várias cenas que nada tinham a ver umas com as outras...

Com fundo musical do Egberto Gismonti, as bailarinas dançavam algo meio clássico. Silvia, Vanise, Gine e Chinha, terminada a dança entravam em cena alguns homens brigando: Zeca Pinto, Fernando, Bassôa e Jacuzinho ...

Depois tinha uma cena de um homem sentado numa mesa de bar, com uma mulher passeando no palco...

O Cunha entrava pela porta da frente carregando um cartaz, todo sujo de tinta: “No meio de tanta incoerência existe alguma coisa escondida que me faz sorrir” ...

Apagavam-se as luzes e o Duka vestido com a camiseta da seleção brasileira, fazendo pipoquinhas (embaixadas), só que o iluminador botou uma luz estroboscópica na cara dele, como não enxergava nada deu um chutão pra frente em direção a plateia, que foi ao delírio ..

Ninguém entendia nada. Nem plateia, nem atores.

Num canto do palco Santaninha (cavaquinho), eu (violão e voz), Daniel (mijão), Sarará e Ovo na percussão fazíamos o fundo musical.

Faltava a segunda parte... fomos pro Ponto Chic tomar umas e pensar... ainda não havíamos decidido o que fazer, no documento

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entregue a Federal seria um grupo portando placas com as letras da palavra LIBERDADE, que dançariam no palco e no final formariam a palavra.

Nesta época andava por Santana o matemático do Fantástico (Rede Globo), que fazia prognósticos para a zebrinha da loteria esportiva, Oswald de Souza e sua namorada (parece que era Iane o nome dela) e estavam na casa do Dr. Hugolino. O Cati convidou e eles foram ao “teatro”.

Enquanto nós decidíamos a segunda parte, apareceram alguns membros da escola de samba “Aí vem a Marinha” com a namorada do Oswald de biquíni se preparando pra entrar em cena. Isso foi coisa do Cati, tenho certeza. Topamos na hora, eles entraram, os músicos se prepararam e fizemos um grande carnaval em cima do palco, ao som do Ronco da Cuíca (João Bosco – Aldir Blanc).

Foi uma festa com 700 pessoas no cinema, no fim todo mundo se olhava e sorria. Palco e plateia. Não vi, mas garanto que alguns saíram de cara amarrada. A gente se divertiu muito.

Ninguém, nem nós entendemos nada do que acontecia no palco. A ideia era dizer como as pessoas se afastavam de quem

pensava “diferente” ... era um época de cabeludos e pensamentos rebeldes, tudo maconheiro e comunista... as pessoas se afastavam, ficavam com medo... ou como quase se perdeu um amigo.

“Pra dar medo em você Cobras, lagartos, fantasma, terror Miséria, tortura, arranha-céus Esta música nasceu pra dar medo em você Mas agora quem está com medo Não me olhe de cima Se mantenha calado Estou morrendo de medo Do seu comentário Você vai falar mal Você vai falar bem Não importa aonde

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Nem importa pra quem Esta música nasceu pra dar medo em você Mas agora quem está com medo sou eu Falando que estou com medo você Começa a crescer Mas pense depressa comigo e verá Que medo você não pode ter Quem está cantando sou eu Quem está tocando sou eu Quem está se expondo sou Você tá quieto parado, calado Com medo não sei de que” Com certeza esta mensagem não foi passada.

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MISS PUNTA DEL ESTE

Devido ao sucesso do Pra dar medo em você, fomos

convidados a ir a Punta del Este tocar durante o desfile da candidata a miss. Claro que topamos.

Fomos no meu fusca branco, 2 na frente, 3 atrás e mais um “surdão”. Na hora da saída, faltou um da percussão e fomos procurar no cerro do Marco, um cara chamado Unto, que era bom parceiro e bom percussionista.

Ele topou e largamos rumo a playa, o Cati foi de ônibus, junto com a candidata e ficamos de nos encontrar no Porto de Punta.

Chegamos ao amanhecer e fomos direto ao local do encontro, pouco depois o Cati chegou e quando estávamos todos junto e felizes aparecerem os militares uruguaios de metralhadoras em punho e nos cercaram.

Lá não era lugar pra aquela negrada.

Todos dentro do fusca em direção a cárcel y sin hablar. Ficamos numa sala e eles levaram o Santaninha, a gente ouvia muito barulho de descarga, gritos e as vezes passavam com o Santaninha na porta da sala com um revólver na cabeça. O Cati passava os dedos no peito pra cima e pra baixo, sinal característico de “SUJOU”.

Começaram os interrogatórios individuais:

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- donde esta la falopa (maconha)

- porque estan acá.

- Quien les authorizo...

Nada satisfazia aqueles homens, reviraram meu fusca de ponta a cabeça e nada encontraram... só uns remedinhos pra tirar o sono... que no final nos devolveram, afinal musico precisa ficar acordado.

A gurizada ficava na ponta dos pés, calcanhar no ar, mão na cabeça e um miliquinho na frente. Quando cansava e apoiava o pé levava um soco no estomago... e assim passamos aquelas horas na cárcel. Nos soltaram no final da tarde e fomos procurar um lugar pra comer alguma coisa.

Muitas cervezas depois e alguns mejillones... notamos que o Unto tinha sumido, não estava no bar... pânico geral. Um casal argentino que já estava enturmado conosco e tinha um carrinho parecido com o do pai da Mafalda. Se dispôs a ir conosco procurar pelo Unto. Não tínhamos ideia de por onde começar a busca.

Uns no carrinho outros a pé, lá fomos nós... anoiteceu, depois de muita procura, encontramos o Unto na beira da praia com o olhar perdido no oceano.

- O que houve? - Me cansei. Tava indo pras casa e encontrei este lagoão...

No hotel sem estrelas que ficamos hospedados em Maldonado, o esquema era o seguinte: o nosso horário era das 6 da manhã até as 8 da noite, tinha outra turma que ficava das 8 da noite as 6 da manhã. Todo dia tinha a troca de turma. Saiam pedreiros e outros trabalhadores e entravamos nós, músicos, garçons...

Tocamos na festa da candidata e outros lugares em troca de chivitos y cervezas, várias vezes nos cruzamos com os nossos carcereiros o que causava um enorme desconforto.

Uma vez na praça de Maldonado, chapéu no chão e nós tocando Chico Buarque, Milton Nascimento, só a nata da MPB. Poucas moedas

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no chapéu. Uma senhora se aproxima com uma nota graúda de “pesos” e diz: meu sapato já furou... a banda parou, se olhou e mandou ver, um samba que nunca tinhamos tocado: meu sapato já furou, minha meia já rasgou e eu não tenho onde morar... bem afinadinho e com a graspa garantida.

O Cati fechou um contrato pra tocarmos numa exposição de carros, um evento grande... bem no estilo Punta del Este... tocamos e na hora de receber, disseram que não iam pagar... que fossemos falar com o General não sei das quantas que estava no evento... abortamos a missão.

No dia seguinte fizemos as malas e voltamos pra Santana.

Tempos depois encontrei com um dos “torturadores” num bar em Rivera, na mesma madrugada liguei pro Cati contando do encontro e ele me perguntou:

- E aí o que fizeste?

Respondi:

- Nada. Nas outras vezes que fui a Punta del Este sempre fui bem

recebido, chegando até a tocar antes de shows do Vinicius de Moraes, Toquinho e Maria Creuza, mas era outra parceria...

Fomos uns três verões seguidos pra Punta, o pai alugava casa

todo verão e a gente podia levar um amigo ou namorada junto. Normalmente íamos em dois carros, a diretoria com o pai e a bagacerada num outro carro...

... uma vez fomos num Jeep Candango com letreiro do Aviário

Almeida nas portas. Não podíamos desligar o carro, senão teria que empurrar... e aquele carango era muito barulhento, a gente sabia que ele vinha chegando pelo barulho que fazia...

Numa destas idas tinha um trailer oferecendo pra gravar um

disquinho, quase de papelão e lá fui eu me meter a artista, a música era “Fim de papo” com a letra feita pelo baixinho Pepe... ficou furioso quando

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viu o nome dele gravado no disquinho. Vergonha da letra. Não. Ele não gostava de aparecer.

Moço muito reservado. Tempos depois ele me deu uns versos, que ele escreveu no bar

Água na boca, na av. João Goulart... e me fez jurar que eu jamais citaria o nome dele como co-autor, promessa cumprida até hoje:

‘Quando no pampa surgiu Já era quase boca da noite” Isso era tudo... os versos... dai em diante eu deveria escrever

algo mais gauchesco e sem lá, lá, lá... isso estraga a música... foi daí que surgiu o “Lamentos de quero-quero” ... uma das música minhas que mais gosto e que com certeza a que mais cantei em toda a minha “carreira”.

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A FINA FLOR DO LATIFÚNDIO

Outro final de ano, a idéia era fazer uma festa no Clube

Campestre, o Peninha é que deu o nome do espetáculo.

A diretoria do clube ficou com um pé atrás ao saber do nome e da nossa intenção. Afinal a maioria era de fazendeiros e latifúndio era uma palavra que não soava muito bem entre eles ainda mais vindo daquela parceria, que era bastante metidinha a protestos. Rebeldes sem causa.

O presidente do clube era o Prof. Mandarino nosso parceiro desde os tempos do Colégio Estadual e sabia muito bem entender a irreverência dos seus alunos. Explicamos que Fina Flor se referia aos filhos, as crianças que frequentavam o clube. Pedimos que ele fizesse segredo e ele bancou a nossa apresentação frente a diretoria. Cumpriu.

A banda era formada pelos amigos: Santaninha, Ovo, Mijão, Sarará, Unto e eu.

Durante a semana fizemos várias fotos (slides) da gurizada brincando no Campestre e na hora do show, os slides eram projetados na parede do Clube pra espanto de alguns “latifundiários” assustados.

“Pede a banda Pra tocar um dobrado Olha nós outra vez no picadeiro Pede a banda Pra tocar um dobrado Vamos dançar mais uma vez”

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Música: Somos todos iguais esta noite – Ivan Lins.

Tudo teria sido perfeito se não fosse o acontecimento final.

Peninha e João Bassôa foram pra praia, afinal era verão, todos merecem um descanso, no final do show de Chevete branco e levaram toda a arrecadação da bilheteria...

...Esqueceram de nos entregar a grana antes de partir. Resumindo:

... NADARAM!!!

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O CASAMENTO FAZ DE CONTA

Nos tempos de Bar y Noche fiquei enrabichado por uma moça que andava por lá. Morena, alta, bonita e exibida uma barbaridade. Papo vai. Papo vem resolvemos que ela iria morar comigo, ia me casar, o problema era o pai dela.

Me propus a ir na casa dele conversar e marcamos um dia. Quando cheguei o véio já tava deitado, era pouco mais das 20 horas.

A “sogrona” me anunciou na porta do quarto

- Fulano... o Liquinha tá aqui

- Agora não posso, tô tapado Conversando com a “sogrona” chegamos a conclusão que só

casando ela moraria comigo. Não precisava ser na igreja.

Começamos a montar a estratégia... o Leonardo Santana por ser uma figura séria que transmite confiança seria o juiz de paz, marcamos uma data, encomendamos salgadinhos, doces e bebidas, convidamos os amigos, mais os nossos parentes e partimos pra “guerra”.

Conseguimos no escritório do meu pai um daqueles livros velhos de contabilidade que tinha ainda folhas em branco, livro aberto no mês. O juiz de paz (De Goma) declarou mais ou menos assim:

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- Em nome da lei reconheço a união, garanto e estabeleço todos os direitos e deveres entre os noivos em uma cerimônia sem cunho religioso. Que essa união traga felicidades ao casal.

Assinamos o livro, outras pessoas também assinaram. Lembro do meu pai me puxando pra um canto e dizendo:

- Filho da puta. Tu me apronta cada uma...

E seguia feliz da vida tomando seu whisky.

Isso foi em 1991... na Globo passava a mini-série O Sorriso do Lagarto, o Gringo passou a festa inteira botando a língua pra fora e dizendo: o sorriso do lagarto.

A “felicidade”, conforme o confiante casamenteiro ... durou 3 anos.

Valeu a pena a brincadeira.

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O CD DA D. NOEMY

Que a mãe era louca por música não preciso dizer,

arranhava alguma coisinha no piano sempre no tom certo e cantava bem desde o tempo de guriazinha no Cinema Colombo e na Rádio Internacional (em Rivera) programas de auditório da época.

Ela tinha gravado no final dos anos 40 um disco em 78 rotações, acompanhada do Grupo X, onde o tio dela “Major”, grande boêmio da noite santanense, Estevão Nascimento e os irmãos Zimo (grande bordoneo) e Alyrio (violão 4 cordas – meu primeiro professor e padrinho (Tio Negro) faziam parte. Meu pai tinha comprado um gravador de disco (disco mesmo) e faziam gravações caseiras. Uma lástima que estes discos tenham se perdido.. tenho só um na parede da minha casa.

Convenci a mãe a gravar um CD e fomos escolher o repertório. Comecei a procurar e comprar alguns “playback” com orquestração e tudo, depois era só colocar a voz dela.

O problema é que de um dia pro outro ela mudava o repertório, as estrelas são problemáticas.

- Tive pensando e esta eu não vou gravar.

- este tom não tá bom.

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Todos os dias ela vinha na minha casa, ouvia a base no computador e soltava a voz, que já andava meio fraquinha, mas vamos lá, ela estava com 83 anos.

Em uma “faixa” coloquei uns aplausos no final, em outra deixei a voz do Roberto Carlos fazendo dueto com ela e assim o CD foi sendo gravado.

Gravamos Gente humilde, Marina, Cavalgada, Onde voce estiver, As rosas não falam, Castigo, A noite do meu bem, Eu sei que vou te amar, Molambo, Como é grande meu amor por você e encerramos com Canta Brasil, que fazia parte daquele outro “disco” que ela tinha gravado.

Juntamos vários amigos e fizemos uma festa com o show de lançamento do CD. Houve até sessão de autógrafos.

Uma pena que não consegui a base musical de “Meu rouxinol” que era uma das principais músicas do repertório da cantora.

Fiquei muito feliz de ter feito isso e hoje ter uma bela lembrança... e acredito que a Regina que acompanhou todo projeto tambem ficou.

Quando dá muita saudade a gente bota o CD a tocar.

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O BAR DO GERALDO

O nome era Caçarola mas todo mundo dizia o bar do

Geraldo e a gente batia ponto por lá todos os dias: Toninho, Nikita, Baldasso, Hildo, Nenê, Pato, Rato, Xola, Nelsinho, Doutor, Paulão, Gustavo, Rogério, Márcio, Seu Sadi, Bill, João Conceição, Júlio, Walter, Nei, Sergico, Krieger e o pessoal do “Ouro Preto”, time de futebol que frequentava o bar.

Era a primeira vez em toda minha vida de santanense em Porto Alegre que tinha amigos fora do “circuito” Livramento, não demorou e meu violão virou parte do bar. Tinha churrasco e violada todos os dias.

O bar era dividido em duas partes, uma mais seleta onde os moradores do bairro seguido iam jantar, ao meio-dia tinha buffet, do lado esquerdo, o lado do mequetrefe como dizia o seu Valdir, as mesas não tinham toalhas, alguns, normalmente os motoristas de lotação, jogavam cartas, não sei o jogo, nunca me interessei por jogo e no fundo a churrasqueira. A parceria ficava ou na frente com mesinhas distribuídas na área de entrada ou no fundo, assando ou comendo carne.

Vários garçons passaram pelo Geraldo, o mais lembrado por mim foi o Buba, levou o apelido pelo personagem intersexual da novela "Renascer" da Rede Globo. Ele era meio “estranho”, se vestia de palhaço pra animar festas e frentes de lojas no cento, no natal era Papai Noel, o terror das crianças.

Uma vez na frente do bar, um amigo “casado” voltando de uma casa de massagens, balançava o pezinho bem faceiro, quando alguém chamou a atenção que a chinela de dedo dele tinha um prego

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pra segurar a tira que separa os dedos. Ele tinha trocado a chinela na “confusão” da massagem. Voltou prá casa de pé no chão. Tinha um sujeito que frequentava o bar com uma “doença rara”, qualquer barulho ele desmaiava. O véio Sadi só de sacanagem dava um grito bem alto: BATI. E o coitado se esborrachava no chão.

Outra do Sadi, grande figura, o seu Willy, motorista de lotação entra no salão do buffet, com um bolo de dinheiro na mão. Quando chegou perto do buffet... o Sadi deu um tapa na mão dele e com a ajuda do ventilador de teto, esparramou dinheiro pra tudo quanto é lado... tinha 10 pilas no feijão, notas de 5 no arroz, no pure tinha de tudo que é valor...

O avô do Geraldo, seu Ernesto, era uma figura que a parceria gostava muito. Sentava conosco e sempre tinha histórias pra contar.

Quando o time do “Ouro Preto” jogava, a concentração era no bar do Geraldo, antes do jogo um churrasco e depois do jogo voltávamos pro bar. Nelsinho, Doutor, faziam parte dos “Hooligans da Feijó”, iam pro jogo pra xingar o próprio time e bagunçar.

Nos comentários pós jogo o time era bárbaro, no campo há

divergências. Craques de bar.

Como tudo um dia termina, o Geraldo fechou as portas e foi vender peixes e frutos do mar. Hoje trabalha com imóveis, encontro ele de vez em quando pelo facebook.

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O BAR DO IRINEO

Fechado o bar do Geraldo, passamos a frequentar o bar do

Irineo, ficava dobrando a esquina do Geraldo, na esquina da Couto Magalhães com a Portugal. O bar era atendido pelos donos da casa, seu Irineu, D. Miriam, André (vulgo Lili) e o Beleléu

A parceria era quase a mesma, além dos já frequentadores da casa: Pedrão, Roberto, Beleléu, Belchior, Geninho, Getúlio (era parecido com o Getulio Vargas) ,... e mudou o jogo, agora era a vez do general, jogo com dados. Podia bater com força na mesa e gritar.

Ali se falava muito de pescaria e tinha janta todas as quintas-feiras, cada semana era um que fazia, se dividia a conta.

O bar do Geraldo era neutro futebolisticamente, mas o bar do Irineu era gremista, dia de jogo era uma festa, mas não lembro de assistir ou participar de alguma discussão muito forte. Flauta sim, corria solto, de um lado e de outro.

Lá tinha música nos sábado a tarde sob o comando do Betinho (Boinas Azuis), tocava teclado e violão na melhor qualidade, sabia todas as letras de música, qualquer estilo e de qualquer época. Outro que apareceu por lá foi o Edinho, da Barra do Ribeiro, exímio tocador de violão que mais tarde gravamos vários músicas e andamos por vários lugares.

Daí desembarcou do Piaui João Berchmans Carvalho, conhecido no bar por João Piauí, professor de música fazendo pós-

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graduação na UFGRS, grande figura, conhecedor de música popular e tocador de violão.

Resumindo, eu que era o primeiro violão do bar do Geraldo com a chegada do Betinho, fui prá segundo, com o Edinho prá terceiro e com o João Piauí fiquei como quarto violão do bar. Não chegou a traumatizar, mas tinha que aproveitar uma folga deles prá tocar as minhas.

No final chegou o grande João Maldonado, muito pouco

musicalmente nos encontramos e com certeza fui pra quinto lugar. Todos meus bons amigos.

No bar do Irineu não vivi o maior cagaço, tinha ido embora mais cedo, quando a turma viu que estavam roubando um carro nas cercanias, alguns foram pro meio da rua e começaram a gritar.

Os ladrões entraram em outro carro e vieram em direção ao Irineu mandando bala... gente se atirando no chão, se escondendo embaixo das mesas, correndo pro banheiro e a bala comendo solta.

O nego Márcio levou um tiro no pé, foi o único ferido e as paredes

ficaram cheias de buracos de balas. E eu em casa.

No sábado ao meio-dia sempre tinha um churrasco, as vezes eu comprava uma paleta de ovelha no Zaffari e dizia que era de Santana, a parceria lambia os beiços.

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TODOS OS CANTOS SÃO TEUS

Passei mais de 10 anos sem tocar violão... e fui provocado pela Patricia Salgado e pelo Gino a criar uma música para ser o “hino” do site Filhos de Santana. Fizemos um desafio entre os frequentadores para criar um frase que identificasse o site e seus “seguidores”, a frase que venceu foi “Matando saudade a Clic” proposta pelo Galleta e a partir daí surgiu a música com o mesmo nome...

“Matando a saudade a clic Passeando na Sarandi Vendo o cerro de Palomas, Marco e Upamaroti Tomando água do registro Um Riveli e uma Mandarina Uma Norteña na City e um guaraná Gazapina

Matando a saudade a clic Em qualquer lugar do mundo Lembrando aquela menina, ao som de Los Iracundos Descendo a Andradas faceiro Pensando eira nem beira Tem jogo do Colorado contra o Leão da Fronteira

Um clic no site e corujando

Com a força que nos irmana Somos hijos de Rivera Somos filhos de Santana

Matando a saudade a clic Comendo uma parrillada

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Vai uma bala do Pinga e uma carrapinhada Lembranças das professora Esquecendo aquele carão Num baile do Caixeiral eu perdi pela primeira vez meu coração

Um clic no site e corujando Com a força que nos irmana Somos hijos de Rivera Somos filhos de Santana Licalmeida, jun/2004” A minha mãe insistia em cantar a música como “Matando cachorro a grito”, ficava bom também, meio estranho, mas... mãe é mãe. Para gravar a música meu amigo Edinho Souza, da Barra do Ribeiro, meu maestro soberano, como diria o Chico, abraçou a idéia, fez os arranjos e tocou todos os instrumentos... a gente já andava tocando algumas coisas lá pelo bar do Irineu, voltei a tocar violão e recuperei algumas músicas antigas que estavam nas gavetas e partimos para gravar um CD, só músicas minhas e eu cantando... de novo o Edinho fez todos os arranjos e tocou todos os instrumentos.

Ele tinha um estúdio no apartamento dele e todas as tardes a gente se reunia pra gravar, tomar uns cafés e sonhando em vender milhões de discos.

Foram vendidas aproximadamente 400 cópias, só minha mãe comprou dez...

As músicas eram todas minhas, a maioria eram aquelas engavetadas pelo tempo que a gente foi recuperando e outras eu fiz pro CD.

Entre as músicas estava “Lamento de quero-quero”, que nunca

deixei de cantar desde os ano 70, quando compus e mandei pra Califórnia da Canção, me devolveram com um carimbo de censurada só porque eu dizia “quero-quero o açoite longe dos quartéis... ai, ai, ai,...” as vezes na noite alguém me pedia pra cantar o Ai ai ai...

Outra que recuperei no CD foi “Lindos olhos” uma marchinha de

carnaval, só conhecida em Santana porque o Mocambo tocava nos

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bailes, tempos depois descobri na mini-série da Globo “Hoje é dia de Maria”, que essa música era metade do Villa Lobos, “que lindos olhos, lindos tem você, que só agora, só agora reparei...” que aprendi com a minha Mãe e como tinha só um pedaço, escrevi a parte final.... “No jardim da minha vida, há lugar pra mais um amor...”

Pouco mais de um ano depois resolvemos fazer um segundo

CD... faríamos diferente, as músicas seriam minhas mas cantadas por outras pessoas... amigos da noite e parceria em geral.

Compus a música que seria o nome do disco “As razões que a própria canção desconhece e fiz três parcerias com a Izar, o Pipe e o Diego Pereira nas letras... uma balada, uma milonga e um bolero.

Participaram do disco: Leôncio Severo – cantando Aprendiz de domador (letra do Pipe) Kako Xavier – cantando Bilhete e Ganas y comichão Ricardo Pacheco – Chamamecero Rafael Brasil – Cantarizar (letra da Izar Silveira) Rosa Franco – Made in Brasil e São razões que... Edinho Souza – Assim pensando Cantei o bolero Yo sin ti (letra do Diego Pereira) e todos

cantamos juntos a música “Nosso canto”... que fiz pensando nesta parceria:

“Nem sempre somos a cara e a coragem Nem sempre somos o medo e esperança Nem sempre somos a flecha e o alvo Nem sempre somos o fiel e a balança Nem sempre somos o diabo e a cruz Nem sempre somos o búzio e o destino Nem sempre somos o trevo e a sorte

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Nem sempre somos a pipoca e o menino Nem sempre somos a farinha e o saco Nem sempre somos a pedra e o caminho Nem sempre somos o bar e a cachaça Nem sempre somos a flor e o espinho Nem sempre somos o grito e o silêncio Nem sempre somos a capa e a espada Nem sempre somos o pão e a manteiga Nem sempre somos o violeiro e a estrada Mas sempre somos música Nosso canto e a nossa voz Somos parceiros porque nos achamos Somos vida somos nós...” ... desta vez foi gravado no estúdio do Kako Xavier, que junto

com Edinho fizeram todos os arranjos e tocaram juntos.

Fizemos perto das 100 cópias... era uma brincadeira que a gente gostou de fazer.

Com esses “eventos” voltei a tocar violão, só isso já valeu a pena, hoje tá meio parado por conta de um AVC que me deixou o braço esquerdo com problemas, com fisioterapia e persistência de novo volto a tocar... se der tempo, cada vez mais a vida vai escasseando.

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OS INCRÍVEIS NA FESTA DA USES

União Santanense dos Estudantes Secundários,

(USES) era uma entidade séria (não muito) mas depois que o gordo Levy se tornou presidente, ela nunca mais foi a mesma coisa.

A diretoria – social da entidade era o Ernesto Pereira (Mortadela) e eu, resolvemos trazer simplesmente Os Incríveis para tocar no baile dos JIP, que era promovido pela USES, eles eram o maior sucesso no Brasil inteiro com sucessos como O Milionário, Era um garoto que amava os Beatles e os Rollings Stones... o plano era um show no Ginásio Mallet, aberto ao grande público e depois um baile no Clube Comercial.

No ginásio foi tudo normal, casa cheia... No clube foi outra história... eles avisaram que chegariam tarde

pra tocar, tipo 2 da manhã e contratamos o conjunto feminino Stardust, pra iniciar o baile. Este conjunto era composto por: Zanigrei, Neuza Vargas, Mirtha de Paula, Fátima Lombardi, Ieda, Sandra Lagarreta e Luiza Bety, tocando bateria, baixo, guitarra, teclado, piston, sax e voz, respectivamente. Até agora tudo normal. Eles chegaram depois das 3 pra fazer o show.

Tocaram, encantaram e fim de baile.

Juntamos todos os dinheiro que tinha e não dava pra pagar o cachê, faltava bastante plata...

As duas partes se reuniram na sala da diretoria e começou a discussão, o empresário deles, Marcos Lazaro, conhecido no Brasil

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inteiro e trabalhando com toda a Jovem Guarda, começava a ficar meio irritado, estes guris de mierda... ele era argentino.

Não estava na sala da diretoria e as coisas ficam um pouco confusas pra mim, não tenho nítida recordação do acontecido, só o que me contaram...

Os irmãos Luis Carlos e Leonardo Alves, os Mellizos, foram nomeados advogados da USES, sem nunca terem exercido a profissão e sem diplomas, lá se foram discutir com o empresário:

- vocês chegaram tarde

- foram pro cassino jogar e o pessoal ficou esperando

- tinham que tocar o baile inteiro

- no, no, no... usteds tenem que pagar ahora

- Não vamos pagar, vocês não cumpriram o acordado

- no, no, no... hicimos lo combinado

Resumindo:

- quanto de plata tienem, carajo

- alguém disse o valor arrecadado, claro que bem menos que o combinado.

Eles sentiram o drama... pegaram o dinheiro e foram embora com o rabo no meio das pernas.

Durante o baile toda a diretoria tomava whisky e este valor não entrou no acordo, foi pago pelos Incríveis.

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O PAVOR DE MORTADELA

Saiu na ZH que eu iria me apresentar no Bar do Encontro

do meu querido Pernambuco, que era o dono deste bar na rua da Republica, Cidade Baixa.

O bar era uma rua com calçada e mesinhas dos 2 lados, uma ruela, no fundo o bar propriamente dito e uma porta que dava pra um picadeiro no fundo.

A gente sentava em arquibancadas redondas de madeira e

ficava assistindo apresentações de todos os tipos, músicas, dança, teatro... tinha a banda da casa, mas tinha espaço também pra quem quisesse dar uma canja.

Claro que eu ia pro picadeiro. Cheguei até a fazer um show individual, acompanhado pelo Cleber Ovo... “Lagandaia, pecho, pecho y corazón”.

Quando saiu a notícia do show na Zero Hora, meu pai em Livramento leu... e me ligou:

- então agora tu tá de artista em Porto Alegre...

- pensei que tu tinha ido pra estudar Engenharia.

- vou suspender a tua mesada, enquanto tu decide se vai ser músico ou engenheiro.

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Nesta época estava passando uns dias em Porto Alegre o Daniel (famoso Mijão da escola de samba Ai vem a Marinha). Parceiro de percussão em várias jornadas musicais.

A situação foi ficando caótica, o pouco de grana que eu ganhava, pagava o aluguel e olhe lá. Foi quando o Mijão resolveu conseguir um pouco de comida prá nós. Ele saia e voltava com arroz e mortadela.

Confesso que eu comia, mas aquele cheiro que ficava no apartamento, de mortadela frita, era um kitinete, sala, cozinha e banheiro. Me deixou este pavor de mortadela, não posso sem olhar que me vem o cheiro. Mortadela vagabunda.

Quando morei em São Paulo, me levaram pra comer a melhor mortadela do mundo... Um bar muito bem apresentado, balcão de madeira as peças penduradas na parte de cima do bar, presunto, pata negra, salames, no balcão um queijo grande cortado pela metade...

Sentamos e pedimos a tal mortadela. Tudo muito chic, fatias cortadas fininhas, pão novinho, um belo vinho tinto e veio aquele cheiro de mortadela, a lembrança daquela época, do Mijão, do dono do bar que ele fazia “uns servicinhos” pra ganhar arroz e mortadela.

Não deu pra encarar, sou muito mais um presunto magro.

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BAR DO CIRO

Quando fechava o bar do Geraldo era comum uma parte da parceria ainda querer ficar na noite. A nossa opção natural era o bar do Ciro, ficava aberto até 4, 5 da manhã e sempre tinha gente.

Ficava na Vasco da Gama, entre a João Teles e a Felipe Camarão, bairro Bonfim, era uma garagem em “L” com uma parte mais ampla no fundo, que é onde a parceria ficava.

O Ciro jogava xadrez com alguns clientes, enquanto servia os comes e bebes, mais bebes é claro. O público era bem diferente do Geraldo e do Irineu. Lá apareciam os “bixo grilo” mais estranhos possíveis.

Lá fiz meu aniversário de 40 e poucos anos e aconteceu uma cena no mínimo estranha. Uma amiga, uma gringa de pernas grossas e de mini-saia cantava o “Parabéns a você” e um outro amigo veio por trás dela e passou a mão na bunda.

Confusão geral, separa pra cá, separa pra lá, quando tudo

estava mais ou menos normal... reclamei ao mão boba... como é que tu me faz uma coisa dessas... almeida, aquela bunda merecia uma palmeada.

Seguidas vezes estava no bar e alguem me perguntava: e o palmeador, não veio?

Uma outra vez aconteceu de aparecer no bar, o Paulo Cesar Pereio e o Nei Lisboa. O Paulo Cesar veio e sentou no meu lado e

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começou a reclamar do Nei... que cara chato, não aguento mais e ficou na mesa bebendo, conversando, contando histórias e otras cositas.

Acontecia de tudo naquele bar... afinal estávamos no Bomfim O Gordo Renato chegou no bar acompanhado do Vitor (vulgo

Clint), andava sempre armado era da polícia e fizeram uma brincadeira, chegar no bar com o carro da polícia com a sirene ligada.

Quando pararam na frente. A parceria dentro do bar foi a

loucura, tinha gente que estava no balcão e acabou sentado numa mês com pessoas que ele nem conhecia.

Brincadeira de mau gosto pra frequentadores de um barzinho

tranquilo... isso não se faz.

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LEMBRANCINHAS CURTAS

... o meu primo Guego (Alexandre Almeida) achava estranha a nossa televisão, TV Diez, os Tres Patetas falavam em espanhol e se chamavam Los Tres Chiflados. Ele assistia os mesmo programas na TV em Porto Alegre.

... parceiro de cursinho estudando em Rivera, “reforço” de química, dizendo que estava entendendo tudo da matéria, só não sabia o que era “oxigeno”.

... quando fui na casa do Milton Nascimento em Tres Pontas, Minas Gerais, junto com o Danilo Ventimiglia e o Roque, tinha um pôster enorme, do tamanho da parede da sala... o Pimentinha me cutuca e diz: olha... Vinicius de Moraes e era o Tancredo Neves junto com o Milton e o clube da esquina.

... numa festinha na minha casa, já nos anos 80, uma moça que participava da mesma, veio me reclamar: o teu amigo comeu os botões da minha blusa. Eles vinham do “garimpo” que é como a gente chamava a domingueira do Recreativo. Lembra Zé.

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... estavamos no Rio, num barzinho, tomando Chopp e jogando conversa fora... quando a Andréia (casada com o Guri), resolve que iamos embora... Guri vai no banheiro e quando volta o garçon se aproxima e coloca 2 chopps prá nós e diz: cortesia da casa.

Daqui a pouco de novo: cortesia da casa... lá pela quinta

cortesia, explosão na mesa com sotaque carioca... Ricarrrdo, o que é que voce feiz... o Guri tinha pago meia duzia de cortesias e o garçon is entregando... a última cortesia foi de pé.

... e aquele amigo, recém separado, contando quase aos prantos: tinha certeza que ela ia voltar... e ela voltou, num caminhãozinho e levou tudo, até a grade de ferro da porta da frente.

... numa festa no meu apartamento em Porto Alegre. Anos 90, a menina que sofria um belo do assédio, me disse no meio do arreto... calma, calma, só tenho 18 anos... ao que respondi, meio constrangido... mas eu já tenho quase 50, vamos acelerar.

... no apartamento de um amigo, a babá vem na sala e diz, carregando um garotinho no colo... o “gurizinho” não quer dormir... ela era linda, umas pele cor de cuia, um lindo sorriso, umas pernas bem torneadas... ao que eu respondi... escolhe um outro... silêncio na sala.

O gurizinho se retirou chorando. E a dona da casa me olhando

com cara de quem não gostou..

... na Assembléia Legislativa do estado do Rio Grande do Sul, a galeria de estudantes protestava aos gritos, e com o braço direito levantado... pelo estado de direito... pelas liberdades democráticas... pela anistia ampla, geral e irrestrita... então o Peninha (Dr. Euler)

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calmamente se levanta e grita desesperado em direção ao auditório: Pelo amor de Deus.

... quando voltei a morar em Santana em 2012 e querendo agitar e juntar a parceria, criei o FaceCook, foram vários encontros com uma parceria reduzida, eu ia pra cozinha inventava um prato, cozinhava e se rachava a conta. Foi bom enquanto durou, bela parceria e muitos pratos diferentes.

... Santana deve ser o único lugar no mundo que teve um “mudo” fofoqueiro, ele fazia trejeitos com o corpo para dizer que o fulano era viado... ou com 2 dedos da mão para indicar que beltrano era corno...

... e aquele amigo que estava em plena calle Sarandi dentro do carro com a namorada num final de tarde tomando um mate e chega uma castelhana e faz a pergunta... no me olvidé en la noche de ayer, en tu coche mis guantes... atônito ele responde: que guantes, que coche, que noche, que ayer...

... e aquele outro que foi escolhido o “Principe da Noite” numa boate gay em Porto Alegre.. quando era encenada uma peça do século 1 A.C., o imperador romano Júlio César foi vítima de uma conspiração de senadores para tirá-lo do cargo.

Entre eles estava o seu filho adotivo Marcus Brutus. O complô

resultou no assassinato do imperador a punhaladas pelo grupo de

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senadores. Na hora da morte, Júlio César reconheceu o filho entre os seus algozes e proferiu a frase. "Até tu, Putus, meu filho”.

... quem lembra do disco de papel, do Agnaldo Rayol cantando A Praia, em 1965 patrocinado pela Kolynnos, pasta de dente.

... e uma vez em Ceilândia, cidade ao redor de Brasília, fomos visitar um amigo do Arthurzinho Borba. Na sala um pôster gigante com a foto do casal que nos recebia totalmente pelados... sentados de frente pra nós, não consegui ficar natural no bate-papo que se desenrolava. Com 17 anos. Saindo de Livramento, acho que não disse uma palavra.

... jogando ping-pong na parte do porão do Clube Caixeiral, a gurizada se divertia quando chegou o Quincas Sanz, olhou prá mesa e disse: esta rede tá frouxa... a gente não conseguiu pregar direito, não tem martelo, alguém disse. Vou resolver o problema de vocês. Tirou um revolver 45 e com o cabo bateu forte no prego e a rede ficou firme. A gurizada é que tremia.

... outra vez em Brasília, visitando os Prado Pereira (Tchupa, Portugues, Mádia, Moema e D. Elza, fui convidado pra comer um churrasco na “fazenda” do tio do Gustavo, que tinha andado por Santana a pouco tempo... surpresa: o tio era o Juscelino Kubitschek, nada mais que o presidente da república que tinha construído a capital do Brasil.

Lá fui comer um churrasco e andar a cavalo, que foi a parte mais

difícil, não sou gaúcho de apartamento mas nunca fui chegado as lides gaudérias. Cavalo eu conhecia de longe.

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... férias em Santa Catarina, já voltando...Rogério Mamarela, vulgo Mete-Bala, e eu paramos num barzinho a beira-mar pra tomar caipira e relaxar um pouco. Veio a garçonete: boa tarde, o que vocês querem... uma caipira, tudo o que restava da viagem eram R$ 5,00... de kiwi ou comum, comum 3, de kiwi 4...vou querer de kiwi...

Mete-bala saltou em cima de mim depois que a garçonete saiu...

nós com 5 pilas e tu pede a mais cara, é um burguesinho “quera” da fronteira...puta que pariu... tomamos em silêncio. A moça voltou e ele entregou os 5,00 dizendo: o troco é teu.

... uma vez no Rio, com o Gino e o castelhano Enrique fomos assistir Paulinho da Viola no People, com o Guri de cicerone... quando chegamos ele estava no balcão do bar tomando uma, não me aguentei e fui falar com ele. Falei de Santana, de música... e quando ele foi se dirigindo ao palco, passou por nós e perguntou: e ai gaúcho qual é música? Respondi cantando “a razão porque mando um sorriso, e não sofro...” e ele me corrigiu: “e não corro”...

“A razão porque mando um sorriso E não corro É que andei levando a vida Quase morto”

(Paulinho da Viola – Prá um amor no Recife)

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... uma vez o pai me cobrou de fazer um jingle para o Aviário Almeida, que era um dos negócios dele, lá foi: “O pintinho vai crescendo, sempre alegre a cantar. Depois vai prá panela vamos todos cozinhar. “Que bom que é comer qualidade. Frangos do Aviário Almeida... o melhor desta cidade”.. chegou a tocar algumas vezes na Rádio Cultura. Acho que não ganhei cache até hoje.

... indo acordar o Guri depois de uma noitada no final de semana... Almeida, ontem dei um tiro que saltou quadra de campo pra tudo quanto é lado, ele nunca acordava de bom humor, no tempo de cursinho ele só começava a falar na hora do recreio, mas esse dia acho que se acordou melhor humorado.

... uma vez na minha casa em Santana estavamos fazendo um churrasco e um amigo veio trazer um cachorrinho prá botar em cria com a minha cadelinha Chimbica, todo limpinho, sacudindo a cola, como prevendo suas futuras atividades. Fiz um comentário normal, sem convicção: este cusco vai me encher o saco. O nego Fuma que estava por perto e ouviu , não teve dúvidas: deixa que eu resolvo. Pegou o cachorro e atirou por cima do muro. Caiu no terreno vazio ao lado, que era um banhado só. Lá fomos buscar o cãozinho, dar banho, esperar passar o susto e soltar no pátio prá começar os trabalhos de pro-criação. E o nego Fuma não parava de repetir: ele falou que cachorrinho ia incomodar.

... um dia, a parceria do basquete do Irajá, foi jogar (era tipo um treinamento) no 8º Regimento (Quartel), os milicos como adversários... durante o jogo um soldado passa a bola pro Coronel e avisa: é tua... o Coronel não vai na bola e corrige o soldado... tá errado o pronome... o correto é: é sua.

... uma vez, meu pai estava hospitalizado com problemas de pulmão e quando fui visita-lo me chamou num canto da cama e baixinho

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me disse: tu que é o mais inteligente dos meus filhos... dá um jeito e me consegue cigarro...

Puxa-saco me provocando... saí do hospital montando o plano: um livro antigo, no caso era um Robinson Crusoé, capa dura que fiz um buraco quadrado em várias páginas devidamente colado, tipo as bíblia dos cowboys, que levavam um revolver, coloquei dentro uns 4 cigarros, a lateral de uma caixa de fósforos e alguns pauzinhos. Fui pro hospital com o livro embaixo do braço,

Entreguei prá ele. Reclamou do livro escolhido: já li. Abriu. Soltou

um sorriso e se foi ao banheiro. Fumou os quatro cigarros de uma vez, saía fumaça na janelinha do banheiro. Fui expulso do quarto, proibido de novamente visita-lo.

Quem não gostou foi meu irmão Gringo, que a partir daí tinha

que fazer todos os plantões e acompanhamento do paciente.

... a parceria ir presa em Rivera, era uma coisa meio comum, mas uma vez, o “presidiário”, acho que era o Gugo Bravo, foi puxar o saco do carcereiro que lia um jornal e disse: comissário... el periódico esta “convertido” (de cabeça pra baixo)... ao que solenemente o “homem” respondeu: el comissário lee como se le antoja.

... viajando de Porto Alegre pra Santana numa Kombi, acho que era do Carinha (Walter Silva) caiu um geladeira em cima do meu violão, quebrou o braço... fiz uma novela pra minha mãe, meu melhor amigo tinha quebrado o braço, estava inconsolável, quase chorando... ela deu um jeito e me mandou o dinheiro pra comprar um violão novo. Coisas que só a mãe da gente e a música explicam.

... viajando pra Santana com o Rubião, Maninha e a Mariana bem novinha, de colo, a gente sempre saía por volta das 18 horas, quase todo fim de semana, Rubião botava gasolina e dirigia... perto de São

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Gabiel uma pedra quebrou o vidro da frente do fusca, um carro que nos ultrapassou... fomos até o Batovi andando bem devagar, noite, começava a chover...

Resolvemos pedir uma carona, prá Maninha e prá Mariana, nós

“homens” iriamos no fusca, mesmo na chuva... uma examinada no restaurante e entrei o Roberto Planella que se dispôs a levar a dupla feminina.

No caminho Rubião me pergunta quem era o cara: não sei

direito, só sei que corre de carro em Rivera... o Rubião não deixou por menos, acompanhou o Opala turbinado, com meu fusca de vidro quebrado e com chuva... só não dava era pra abrir os olhos, o resto foi tranquilo...

... quando moramos em Rivera, em cima de onde era a Medida Exata, na Sarandi quase em frente ao Cine Rex, foi pouco tempo mas uma lembrança sempre vem. Minha mãe “fritou” uma linguiça na água, ficou tão boa que o Lito (um amigo que fizemos por lá) filava quase sempre uma bóia, e esta janta nos marcou, ele comeu até a piola das linguiças.

...quando voltei de São Paulo, com uma mão na frente e outra atrás, fui morar no que nós chamávamos de Condomínio Horizontal, na verdade era uma senhora, D. Maria, que alugava peças no fundo do pátio da casa dela. Era na rua Santos Pedroso bairro Navegantes. Os moradores eram 2 taxistas, um caminhoneiro, mais o Walter (meu amigo do bar do Geraldo) e eu. Seis casinhas de madeira, banheiro coletivo, muitas frestas e seis pessoas. Um dos taxistas vivia bêbado e trabalhava normalmente. O outro era especialista naquele joguinho de três copos e uma bolinha, jogava muito no centro e ganhava sempre, escondia a bolinha com rara habilidade.

...outra boa lembrança que tenho é do bar El Tronio, ficava na descida da Sarandi, em no início de Rivera a esquerda de quem vai.

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Quem atendia o bar era o Rudi, um argentino muito educado que apareceu por lá não se sabe como. Diziam ser um meticuloso ladrão foragido do país dele. Era boa gente,..

Ali era o paradouro da Onda (os ônibus intermunicipais do

Uruguay). O bar tinha movimento de passageiros na madrugada e nós. A gente tinha o costume de sempre dizer: “Quando passa la Onda... se saluda”

... no tempo em que morava na pensão da Clô, junto com o Guri, era comum ele sair nos sábados a tarde pra treinar o papo.

Ficava disfarçadamente na Salgado Filho esperando que

passasse uma garota, quando chegava perto ele saía conversando, qualquer coisa.

Uma tarde de chuva o Guri foi visto correndo com uma “gata”

atrás de guarda-chuva tentando acertar ele.

... quando me separei, confesso que fiquei meio “galinha” e andava pra cima e pra baixo sempre acompanhado, mil festas no Bar Y Noche, churrasco e piscina na minha casa.

Até hoje encontro gente que diz que foi numa festa lá e eu não

consigo lembrar... todas as semanas pegava o João e a Carolina que eram pequenos e saía pra jantar ou comer alguma coisa. Numa das vezes o João me pergunto: Lica... quem é a Tia de hoje?

... meu pai me chamou perguntando: que história é esta que tu está comprando o Bar y Noche (melhor boate da cidade)... nunca pensei nisto, respondi... nunca pensou é, sei de fonte segura que tu está negociando com eles... a fonte dele era mais confiável que eu...

Não tinha como convencer o homem. Eu não tinha dinheiro e nem sei também se o bar estava a venda, acho que não.

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... uma última e recente historinha... minha neta Helena quando

veio me visitar,,, estávamos na sala todo mundo falando ao mesmo tempo e ela me puxa do braço... vô Lica, presta a atenção!... ela com 3 anos, eu com 66... acho que foi um aviso de fim de carreira.

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GRANDES HOMENS DA MINHA VIDA

Dr. HUGOLINO ANDRADE

Falar do Dr. Hugo é falar da Lolô, Josefina Irigoyen

Andrade, é falar daquela casa da Andradas sempre com as portas abertas e que todos os dias depois do almoço dava uma passada por lá...

Falar do Dr. Hugo é falar do Dalmo, da D. Marta, do Guri, da Maninha, do Cati, da Vó Paulina, da tia Ruiva e de tantos outros que como eu freqüentavam aquela casa...

Falar do Dr. Hugo é falar dos bons whiskys, dos bons restaurantes, do bom papo... na época que morávamos numa pensão na Gal. Câmara 424, Porto Alegre, centro, anos 70, Guri e eu nos deliciávamos em belos almoços no Napoleão, no Plaza, City Hotel e tantos outros... nesta época o Guri e eu aprendemos com ele, que gorjeta se dá pro garçon antes de fazer o pedido... depois é só festa.

Falar do Dr. Hugo é falar do bom humor, ele não era homem de gargalhadas, mas sim de felicidades.... do riso fino... uma vez o Guri comprou umas naftalinas, apareceram baratas na pensão... Dr. Hugo

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aconselhou que ele comprasse um bodoque... assim seria mais fácil de matar as baratinhas...

Falar do Dr. Hugo é falar de respeito... nos anos de chumbo, 1964 em diante, ele era contra a revolução militar e muito bem posicionado, mas nem por isso deixou de conviver e se relacionar com quem estava identificado com o golpe militar... nunca vi ele e o Dalmo discutirem... o Dr. Hugo nos ensinou respeito...

Falar do Dr. Hugo é falar de grandiosidade, de saber que existe um mundo melhor, de ser generoso, confiar na vida, acreditar na esperança, fazer sonhos renovados todos os dias... ter um mundo de memórias pra contar em conversas informais... foi muito bom ser amigo do Dr. Hugo... ele nos ensinou a dignidade de sermos nós...

O meu pai era contador dele e uma vez “aconselhou” que ele deveria gastar menos... Dr. Hugo mostrou ao meu pai uma carta escrita pelo pai dele, 40 anos atrás, “aconselhando” a mesma coisa... se não fiz o que meu pai me pediu... tu acha que vou fazer agora o que tu me pede...

Com o Dr. Hugo eu aprendi o beijo, o Guri e o Cati sempre beijaram ele, numa época em que homem não beijava homem, gostei tanto daquilo que comecei a beijar meu pai...

Uma lágrima pela saudade e um sorriso pelas lembranças... Vô Hugo... um beijo.

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DAGOBERTO ALMEIDA

Normal é dizer que aprendi muito com ele, todos sempre

aprendem... mas o que mais me lembro do meu pai é o jeito que ele tinha de “enfrentar” situações...

Como tenho um ano de diferença com meu irmão mais velho, quando pequenos a gente dividia muita coisa, pedaço de bolo, barra de chocolate, um pedaço de torta napolitana... o pai nos ensinou que o processo teria que ser... um “reparte” e o outro escolhe... não tinha como dar errado...

Quando voltei pra Santana, prá trabalhar com ele, primeira providência que ele me deu foi me chave do escritório e dizer: agora é tudo contigo... tu abre e fecha o escritório... não podia me atrasar, nem sair mais cedo.

Outra lembrança... levei a Santana um colega de Porto Alegre, conhecia pouco o garoto, mas naquela época a gente era amigo fácil... filho de pai rico, já tinha carro, frequentava os melhores lugares do Portinho... depois de algumas festas em Santana/Rivera, chegando quase a hora de vir embora, ele me disse... terminou o meu dinheiro... só tenho cheque...

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Naquele tempo não tinha caixa eletrônico... respondi na hora... sem problemas, o pai troca um cheque pra ti... falei com o pai... sem problemas, dinheiro pra cá, cheque pra lá... quando estávamos “embarcando” de volta, o pai me chamou e disse... vou adiantar a tua mesada... e me deu o cheque do amigo... e eu... e se não tiver fundos... o amigo é teu, cobra dele...

Nos anos 70, fui com uma parceria tocar e cantar em Punta Del Este e acabamos presos, na chegada, sem motivo aparente, pela pinta, um cabeludo e cinco “negão” no meio da burguesia uruguaia, mais o Tiricia (Cati) que viajava por fora, ia de ônibus, nós de fusca... ele ficou sabendo, claro, e me deu uma putiada daquelas de fazer xixi sem ter vontade... falei que os “milicos” não ouviam o que a gente dizia... que eu não tinha culpa (será?)...

Anos depois ele estava pescando com amigos em San Gregório, interior do Uruguay, e se envolveram numa confusão... terminaram presos... me contou que tiraram o cinto da calça “larga” que ele usava, passou o tempo inteiro na cadeia com as calças na mão... dias depois ele veio a Porto Alegre e me convidou pra almoçar, no meio do almoço me disse... aqueles “milicos” não ouvem o que a gente tem a dizer... não adianta argumentar com eles, sei que foi um pedido de desculpas e ele também sabia que nós não éramos tão certinhos assim... muito menos “eles” os milicos...

Sempre beijei o meu pai e sempre chamei de Senhor e como se diz na fronteira, nunca tutiei o meu pai (chamar de tu)

... onde o Senhor estiver, um beijo.

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EPILOGO

Uma das últimas músicas que escrevi e tá difícil sair outra, mas acho que serve prá refletir meu estado de espírito hoje, quando encerro este livreto:

“Meio agauderiado (Licalmeida)

Ando meio agauderiado Pensando nas coisas do coração Sonhando fronteiras sem linhas ilusórias Assustado como cusco em dia de trovão

Ando meio apartado Seria bom se não tivesse saudade Ando meio abichornado Vez em quando guampa torta Querendo cumplicidade

Ando meio agauderiado Pensando em tempos de estiagem Sonhando em voltar no tempo Corrigir uma ou outra bobagem

Ando meio atrapalhado Seria bom se não fosse verdade Ando meio espraiado Quase sempre cabisbaixo Com planos pela metade

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Mas o tempo é meu amigo Meu parceiro de tantas jornadas Vou deixar ele andar sozinho Prá quando sentar a poeira Seguir as suas pegadas

Mas o tempo também é traiçoeiro E revela coisas que a gente quer esconder Vou seguir agauderiado Enquanto este tempo cabreiro Me lembrar de te esquecer”

Foi muito bom escrever e lembrar estas pequenas histórias,

algumas não achei conveniente colocar neste “resumo de vida”, para evitar conflitos e/ou mal entendidos.

De qualquer maneira acho que consegui chegar no objetivo inicial, resguardar minhas memórias, antes de começar a esquecer por completo, que é o que a vida sempre faz com a gente.

Um beijo do tamanho de Santana a todos que

conseguiram chegar até aqui.

Muito obrigado.

[email protected]

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