no ano em que o tmjb comemora parafernália de cabos · a menina júlia, o espectáculo...

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Poesia no meio da parafernália de cabos Já se ultimam os preparativos para a apresentação de A menina Júlia, o espectáculo tecnicamente mais exigente deste Festival, já descrito como uma tentativa de fazer cinema ao vivo. Estará em cena amanhã e no dia seguinte e, surpreendentemente, bastaram seis semanas para montá-lo. Pelo menos, é o que nos conta um dos elementos da produção quando fazemos uma visita aos bastidores. Nº 9 – 12 de JULHO de 2015 10 anos dum Teatro Azul, fru- to dum sonho, pegada do per- curso da vontade inquebran- tável de quem ousou projectar sempre para mais além. Nem a sua belíssima arquitectura, nem a qualidade dos seus equipamentos, nem o nível e diversidade da programação são o que mais fundo nos toca. A alma deste espaço é a liga- ção do público que o frequenta e das gentes que o dirigem. É um espaço que tem a dimen- são do humano. É por isso que este teatro é nosso: local de convívio, reflexão, diverti- mento, onde podemos também almoçar ou jantar, porque comer e beber numa roda de amigos faz também parte da festa da vida. Recordo o lançamento da primeira pe- dra, a inauguração e o quase sobre-humano esforço da CTA para conseguir ultrapassar as dificuldades que então teve que enfrentar. Memórias que nos revisitam e nos ajudam a manter a nossa confiança no ser humano. Impossível não recordar, entre os que foram, o Canto e Castro, o António Assunção, o Morais e Castro, o Virgílio Martinho, tal como, entre os vivos, não destacar o papel da Teresa Gafeira tanto no palco como na vida real (real?). Dans ma maison tu viendras. Je pense à autre chose mais je ne pense qu’a ça (Prévert) É também isto a memória: o rio que não pára, mesmo quando julgamos não estar a vê-lo. Neste nosso, teu, Teatro Azul, Joaquim, permanecerás, presença viva que se impõe mesmo quando julgamos não dar por ela. Viva o TMJB e viva o Joaquim Benite! No ano em que o TMJB comemora dez anos, publicamos 15 textos de artistas, dirigentes e amigos ligados ao percurso deste teatro. 10 anos TMJB Por J.P. Noronha* * É um dos membros mais antigos do Clube de Amigos do TMJB. E sta manhã, o palco da Sala Principal do TMJB tinha ainda a aparência de um esta- leiro. Do alto da plateia, dava para perceber a profusão de cabos e a confusão de línguas que os técnicos falavam lá em baixo. Quando nos aproxima- mos do palco, o olhar detém-se sobre uma mesa repleta de ob- jectos metodicamente dispos- tos: uma bacia, uma caixa de fósforos, dois frasquinhos com rolhas que fazem “pop” quan- do se destapam. Caminhando pelo cenário, é o chão coberto de fitas adesivas que nos cha- ma a atenção. “São marcações”, explica Pablo, quando dá pelos intrusos. “Estas, em forma de Y, indicam a posição da câmara para cada plano. Estas aqui correspon- dem ao contorno do pé da cadei- ra ou da porta entreaberta, para que o operador de câmara filme exactamente por aquela nesga.” E Pablo aponta. Explica-nos que é responsável pelos adereços e por desfazer os emaranhados de cabos que possam dificultar a captação de imagens ao vivo. A originalidade desta encena- ção de A menina Júlia, uma peça de Strindberg que conta a his- tória da jovem aristocrata que seduz um criado da casa, reside justamente na fusão de “um im- perativo tecnológico e de um im- perativo poético”. Katie Mitchell e Leo Warner propõem, por um lado, considerar o enredo da perspectiva de Kristin, a cozi- nheira que estava noiva de Jean e que entretanto foi preterida pela patroa, e, por outro lado, tornar acessíveis aos especta- dores de teatro as expressões e os gestos que, em função da distância a que estes se sentam do palco, costumam passar des- percebidos. Nesta encenação, todas as sequências são pro- jectadas no telão gigante que foi colocado acima do cenário. Pablo leva-nos em seguida até à mesa em que reparáramos no início. Lá se replicam (e ampli- ficam), em tempo real, os sons produzidos durante a represen- tação. Existe um monitor que filma em permanência certas partes do interior do cenário – e, quando lá dentro umas mãos se aproximam de uma bacia, cá fora abre-se uma torneira perto do microfone; quando acolá se mexe a sopa, arranha-se aqui o Apesar da complexidade, A menina Júlia requer uma equipa técnica reduzida. © Rui Carlos Mateus fundo de um tacho de esmalte. A acção dos actores e dos téc- nicos está sincronizada ao se- gundo. Do lado esquerdo fica a mesa de close-up, onde os du- plos dos actores que estão em cena imitam os seus movimen- tos, permitindo aos operadores de câmara filmar com clareza, sem mudanças bruscas de pla- no. Existe, por exemplo, uma réplica da bancada de cozinha montada no interior do cená- rio, exactamente com a mesma mancha, exactamente com o mesmo buraco, com as caixas das velas e dos fósforos colo- cadas exactamente na mesma posição. Desconfiamos. “Não há nada que já esteja previamente gravado?” Não. Não resistimos e comentamos: “Bom… Então há muita coisa pode correr mal…” Pablo responde: “Sim, é verdade. Mas esta é equipa técnica mais forte que já alguma vez pisou o palco da Schaubühne. No fundo, memorizámos uma dança. Apela- mos à nossa memória corporal em cada representação. Mas, mesmo assim, o que acontece em palco não deixa de ser teatro, não deixa de haver poesia no meio desta pa- rafernália tecnológica”.

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Page 1: No ano em que o TMJB comemora parafernália de cabos · A menina Júlia, o espectáculo tecnicamente mais exigente deste Festival, já descrito ... fósforos, dois frasquinhos com

Poesia no meio da parafernália de cabosJá se ultimam os preparativos para a apresentação de A menina Júlia, o espectáculo tecnicamente mais exigente deste Festival, já descrito como uma tentativa de fazer cinema ao vivo. Estará em cena amanhã e no dia seguinte e, surpreendentemente, bastaram seis semanas para montá-lo. Pelo menos, é o que nos conta um dos elementos da produção quando fazemos uma visita aos bastidores.

Nº 9 – 12 de Julho de 2015

10 anos dum Teatro Azul, fru-to dum sonho, pegada do per-curso da vontade inquebran-tável de quem ousou projectar sempre para mais além. Nem a sua belíssima arquitectura, nem a qualidade dos seus equipamentos, nem o nível e diversidade da programação são o que mais fundo nos toca. A alma deste espaço é a liga-ção do público que o frequenta e das gentes que o dirigem. É um espaço que tem a dimen-são do humano. É por isso que este teatro é nosso: local de convívio, reflexão, diverti-mento, onde podemos também almoçar ou jantar, porque comer e beber numa roda de amigos faz também parte da festa da vida. Recordo o lançamento da primeira pe-dra, a inauguração e o quase sobre-humano esforço da CTA para conseguir ultrapassar as dificuldades que então teve que enfrentar. Memórias que nos revisitam e nos ajudam a manter a nossa confiança no ser humano. Impossível não recordar, entre os que foram, o Canto e Castro, o António Assunção, o Morais e Castro, o Virgílio Martinho, tal como, entre os vivos, não destacar o papel da Teresa Gafeira tanto no palco como na vida real (real?). Dans ma maison tu viendras. Je pense à autre chose mais je ne pense qu’a ça (Prévert) É também isto a memória: o rio que não pára, mesmo quando julgamos não estar a vê-lo. Neste nosso, teu, Teatro Azul, Joaquim, permanecerás, presença viva que se impõe mesmo quando julgamos não dar por ela. Viva o TMJB e viva o Joaquim Benite!

No ano em que o TMJB comemora dez anos, publicamos 15 textos de artistas, dirigentes e amigos ligados ao percurso deste teatro.

10 anos TMJBPor J.P. Noronha*

* É um dos membros mais antigos do Clube de Amigos do TMJB.

Esta manhã, o palco da Sala Principal do TMJB tinha ainda a aparência de um esta-

leiro. Do alto da plateia, dava para perceber a profusão de cabos e a confusão de línguas que os técnicos falavam lá em baixo. Quando nos aproxima-mos do palco, o olhar detém-se sobre uma mesa repleta de ob-jectos metodicamente dispos-tos: uma bacia, uma caixa de fósforos, dois frasquinhos com rolhas que fazem “pop” quan-do se destapam. Caminhando pelo cenário, é o chão coberto de fitas adesivas que nos cha-ma a atenção. “São marcações”, explica Pablo, quando dá pelos intrusos. “Estas, em forma de Y, indicam a posição da câmara para cada plano. Estas aqui correspon-dem ao contorno do pé da cadei-ra ou da porta entreaberta, para que o operador de câmara filme exactamente por aquela nesga.” E Pablo aponta. Explica-nos que é responsável pelos adereços e por desfazer os emaranhados de cabos que possam dificultar a captação de imagens ao vivo. A originalidade desta encena-ção de A menina Júlia, uma peça

de Strindberg que conta a his-tória da jovem aristocrata que seduz um criado da casa, reside justamente na fusão de “um im-perativo tecnológico e de um im-perativo poético”. Katie Mitchell e Leo Warner propõem, por um lado, considerar o enredo da perspectiva de Kristin, a cozi-nheira que estava noiva de Jean e que entretanto foi preterida pela patroa, e, por outro lado, tornar acessíveis aos especta-dores de teatro as expressões e os gestos que, em função da distância a que estes se sentam do palco, costumam passar des-percebidos. Nesta encenação, todas as sequências são pro-jectadas no telão gigante que foi colocado acima do cenário. Pablo leva-nos em seguida até à mesa em que reparáramos no início. Lá se replicam (e ampli-ficam), em tempo real, os sons produzidos durante a represen-tação. Existe um monitor que filma em permanência certas partes do interior do cenário – e, quando lá dentro umas mãos se aproximam de uma bacia, cá fora abre-se uma torneira perto do microfone; quando acolá se mexe a sopa, arranha-se aqui o

Apesar da complexidade, A menina Júlia requer uma equipa técnica reduzida.

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fundo de um tacho de esmalte. A acção dos actores e dos téc-nicos está sincronizada ao se-gundo. Do lado esquerdo fica a mesa de close-up, onde os du-plos dos actores que estão em cena imitam os seus movimen-tos, permitindo aos operadores de câmara filmar com clareza, sem mudanças bruscas de pla-no. Existe, por exemplo, uma réplica da bancada de cozinha montada no interior do cená-rio, exactamente com a mesma mancha, exactamente com o mesmo buraco, com as caixas das velas e dos fósforos colo-cadas exactamente na mesma posição. Desconfiamos. “Não há nada que já esteja previamente gravado?” Não. Não resistimos e comentamos: “Bom… Então há muita coisa pode correr mal…” Pablo responde: “Sim, é verdade. Mas esta é equipa técnica mais forte que já alguma vez pisou o palco da Schaubühne. No fundo, memorizámos uma dança. Apela-mos à nossa memória corporal em cada representação. Mas, mesmo assim, o que acontece em palco não deixa de ser teatro, não deixa de haver poesia no meio desta pa-rafernália tecnológica”.

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O espectador condenado à morte liga-se ao teatro do absurdo.

RestauRante da esplanada

- Panados de peixe c/ limão e especiarias

- Feijoada à brasileira

Hoje

amanhã

- Pescada c/ crosta de pão e queijo

- Costeletas de porco c/ chucrute

Matei Vişniec é um dos autores romenos mais representados em to-

do o Mundo, logo a seguir a Eugène Ionesco. O espectador condenado à morte, que tem ama-nhã a sua primeira apresentação neste Festival de Almada, con-ta-se entre as suas peças mais célebres e integra o repertório do Teatro Nacional de Cluj-Na-poca desde Dezembro de 2013. Através dela, a companhia da segunda cidade mais populosa da Roménia acerta contas com a história recente do seu país, levando à cena uma paródia dos mecanismos do sistema judicial e de manipulação ideológica do regime de Ceauşescu. Neste caso, o autor imaginou que um espectador se sentava no banco dos réus e que, como testemu-

ção inventadas pelo consumismo, pela sociedade virtual e numérica, pela indústria do entretenimento, muito mais difíceis de denunciar e de dissecar”. O dispositivo cénico concebido para a encenação de Răzvan Mureşan aproxima os espectadores da cena, ora ins-pirando-lhes o desconforto dos réus, ora tornando-os cúmplices dos devaneios dos acusadores.

Não dar tréguas ao espectadornhas, se arrolavam a rapariga que recolhe os bilhetes à entra-da, a funcionária do bengaleiro, a empregada do bar e o fotógra-fo do teatro. Imaginou também que os advogados esgrimiam argumentos disparatados, que vão desde o número da cadeira que coube ao espectador até à frequência com que este pisca os olhos. Escrita em 1984, O espectador condenado à morte não escapou, como é óbvio, ao crivo da censu-ra. Vişniec partiu para o exílio, adquiriu nacionalidade francesa e só em 1992 viu esta peça ser representada no seu país de ori-gem. Todavia, continua a reco-nhecer a sua actualidade, já que, no seu entender, “o mundo con-temporâneo tem sido confrontado com imensas formas de manipula-

Uma actividade avessa a regras

O Encontro da Cerca des-ta manhã, intitulado Política cultural e criação

artística, reuniu à volta da mesa os encenadores Roberto Bacci, David Ojeda e António Pires, a tradutora romena Maria Rotar e a actriz brasileira Tânia Pires. Numa conversa moderada pelo jornalista João Carneiro, cada um dos participantes expôs a re-alidade teatral dos seus países de origem, criticando, de um modo geral, a intervenção cultural do Estado. Roberto Bacci recordou o início da sua carreira, em Itá-lia, quando existia “um caos mais ou menos organizado” e ninguém se importava de realizar todo o tipo de tarefas e de bater a todas as portas em busca de financia-mento. David Ojeda, director da companhia espanhola Palmyra Teatro, discorreu sobre o con-flito que trava diariamente com as instituições oficiais, aprovei-tando o seu lugar de professor

na RESAD para mostrar que é necessário contemplar o traba-lho artístico e pedagógico que é feito fora delas. Quanto à reali-dade brasileira, Tânia Pires des-creveu um momento de incerte-za devido à chegada recente de um novo ministro. A Lei Roua-net está prestes a ser alterada, transformando um sistema de subvenção que depende do me-cenato das empresas num mo-delo federal de distribuição de apoios. António Pires lamentou, por sua vez, a burocracia e as situações omissas na lei portu-

Uma dor segue o calcanhar da outra, tão rápidas se perseguem.Rainha, IV, 7.

21h30 A menina JúliaTeatro Municipal Joaquim Benite

aGenda de amanHã

Palmyra teatro

teatro NacioNal cluj-NaPoca

teatro do Bairro

16h00 Atra bilisTeatro-Estúdio António Assunção

18h00 A minha Pedra de RosetaTeatro-Estúdio António Assunção

20h30 Orquestra típica milongueira de Lisboa Escola D. António da Costa

21h30 Quatro santos em três actosTeatro do Bairro

leitura eNceNada

21h30 O espectador condenado à morteTeatro Municipal Joaquim Benite

música Na esPlaNada

schauBühNe am lehNiNer Platz

Os participantes, provenientes de cinco países diferentes, sublinharam a tendência normalizadora da política cultural.

© N

icu

Che

rciu

© L

uana

San

tos

guesa e destacou as estratégias a que recorre para colmatar a fru-galidade do financiamento. Ma-ria Rotar acabou por ser a voz discordante no painel, dando conta de uma realidade cultural que assegura a rotatividade na direcção dos teatros romenos e onde é praticamente inexisten-te a iniciativa independente. Mas, no final, poucas dúvidas restaram quanto à impossibili-dade de conciliar a vocação nor-malizadora do Estado com uma actividade que é, por natureza, anómala e avessa a regras.