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TEORIA DE GALOIS — NOTAS DE CURSO NIVALDO MEDEIROS Resumo. Estas são notas para o curso de Álgebra III, bacharelado em Matemática, da Universidade Federal Fluminense. São uma introdução, algo sucinta, da teoria básica de extensões de corpos e da correspondência de Galois, ênfase em extensões finitas, que formam o núcleo da segunda parte do curso. Procurei escrevê-las em seções curtas, de até três páginas, que correspondem aproximadamente a cada uma das aulas. Estão em elaboração e pedem sua compreensão, paciência. Quaisquer observações, considerações, recomendações, sugestões, correções (tradução: estou realmente pedindo ajuda!) são muito bem-vindas. Para contribuir ou encontrar versões mais recentes, dê uma espiada em www.professores.uff.br/nmedeiros 24 março 2016 N. e Sumário 1 Primeira Parte 2 1. O começo 2 1.1. Equações lineares e quadráticas 2 1.2. Equações cúbicas 3 1.3. Equações de grau superior 4 2. permutar é preciso 5 2.1. Newton em simétricos 5 2.2. Discriminantes 7 2.3. Lagrange em cúbicas 8 3. extensões de corpos 9 3.1. Corpos 9 3.2. Adjunção 9 3.3. Álgebra Linear 10 3.4. O grau em torres de extensões 11 4. extensões algébricas 12 5. extensões separáveis 15 6. extensões normais 16 7. extensões, agora de homomorfismos 18 1

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TEORIA DE GALOIS — NOTAS DE CURSO

NIVALDO MEDEIROS

Resumo. Estas são notas para o curso de Álgebra III, bacharelado em Matemática, daUniversidade Federal Fluminense. São uma introdução, algo sucinta, da teoria básicade extensões de corpos e da correspondência de Galois, ênfase em extensões finitas, queformam o núcleo da segunda parte do curso. Procurei escrevê-las em seções curtas, deaté três páginas, que correspondem aproximadamente a cada uma das aulas. Estão emelaboração e pedem sua compreensão, paciência.

Quaisquer observações, considerações, recomendações, sugestões, correções (tradução:estou realmente pedindo ajuda!) são muito bem-vindas. Para contribuir ou encontrarversões mais recentes, dê uma espiada em

www.professores.uff.br/nmedeiros

24 março 2016N.

e

Sumário

1Primeira Parte 21. O começo 21.1. Equações lineares e quadráticas 21.2. Equações cúbicas 31.3. Equações de grau superior 42. permutar é preciso 52.1. Newton em simétricos 52.2. Discriminantes 72.3. Lagrange em cúbicas 83. extensões de corpos 93.1. Corpos 93.2. Adjunção 93.3. Álgebra Linear 103.4. O grau em torres de extensões 114. extensões algébricas 125. extensões separáveis 156. extensões normais 167. extensões, agora de homomorfismos 18

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2 NIVALDO MEDEIROS

8. teoria de Galois 218.1. A correspondência de Galois 218.2. Extensões galoisianas 229. raízes da unidade 2710. solubilidade por radicais 30Segunda Parte 3411. corpos algebricamente fechados 3411.1. O fecho algébrico 3411.2. O teorema fundamental da álgebra 3512. a característica de um corpo 3512.1. Corpos finitos 3613. o teorema do elemento primitivo 3814. depois do horizonte 39Referências 39

Anéis são comutativos, com unidade e exigimos 1 6= 0. O anel dos inteiros módulo n édenotado por Zn. Letras gregas (σ, τ, ρ, . . . ) indicam homomorfismos. Um homomorfismode anéis σ : A → B, por definição, satisfaz: σ(u + v) = σ(u) + σ(v), σ(u· v) = σ(u)·σ(v)e σ(1A) = 1B.

Em geral, k, E, F denotam corpos; elementos de um corpo serão denotados por u, v,w.Corpos com um número finito ` de elementos são denotados por F`. Até a Seção 11 apenassubcorpos dos números complexos são considerados. A palavra: simplicidade.

Escrevo |S| para indicar a cardinalidade do conjunto S.Para grupos, Dn é o grupo diedral das simetrias de um polígono regular de n lados, e

portanto possui 2n elementos; Cn é o grupo cíclico de ordem n.Em anéis de polinômios, as indeterminadas são sempre denotadas por x, x1, x2, etc, em

letras minúsculas, como por exemplo em k[x] e k[x1, . . . , xn].Não utilizo “⊃” para indicar inclusões estritas e logo F ⊃ k permite que F seja eventual-

mente igual a k. Idem para “⊂” .

ÁLGEBRA III - 17 MAR 2016 3

Primeira Parte

1. O começo

Nestas notas tratamos do problema de encontrar raízes de polinômios. Para iniciar aconversa, vamos pensar apenas em polinômios cujos coeficientes são números reais.

Em primeiro lugar, consideramos a questão da existência de raízes. Tendo resolvido isso,a pergunta seguinte é: como determiná-las?

A primeira questão tem uma resposta satisfatória, cuja primeira demonstração foi as-sunto da tese de doutorado de Gauss:

Teorema Fundamental da Álgebra. Todo polinômio não-constante com coeficientescomplexos possui uma raiz nos números complexos.

Passamos então à questão seguinte: gostaríamos de uma fórmula ou, pelo menos, umalgoritmo para encontrar essas raízes. Embora não seja possível determiná-las exatamentepara um polinômio escolhido ao sabor do acaso, bons algoritmos existem e hoje em diatemos bons computadores que rapidamente nos fornecem boas aproximações, com precisãoa nosso bel prazer; mas este é tema mais afim da Análise Numérica do que da Álgebra.

Nossa busca aqui é em outra direção: procuramos fórmulas exatas. Tais fórmulas existempara polinômios de grau pequeno e são bem conhecidas. Façamos um passeio breve.

1.1. Equações lineares e quadráticas. Começamos com polinômios lineares. Não hámuito a dizer aqui: uma equação

ax+ b = 0 (a 6= 0)possui apenas uma solução, a saber, x = −b/a.

Os babilônios possuíam métodos para resolver algumas equações quadráticas já em 1600a.C., assunto que hoje é tema de longas listas de exercícios no ensino médio. . . Procuramosresolver

ax2 + bx+ c = 0 (a 6= 0). (1)Completamos o quadrado ou, de maneira equivalente, perfazemos a substituição x = y −b/2a, obtendo

a(y−b

2a)2 + b(y−

b

2a) + c = ay2 − by+

b2

4a+ by−

b2

2a+ c = ay2 −

b2

4a+ c

ou seja, para resolvermos a equação (1) basta resolvermos

ay2 −b2

4a+ c = 0

e isso, espero que estejamos de acordo, é algo que sabemos fazer: as soluções são y =

±√b2−4ac2a

. Substituindo agora o valor de x, reobtemos a familiar

x =−b±

√b2 − 4ac

2a(2)

4 NIVALDO MEDEIROS

Eis a nossa fórmula. Em retrospectiva, o que fizemos foi transmutar (1) em uma equaçãomais simples, da forma y2 − u = 0, que declaramos saber resolver. Esta é a estratégia queseguiremos adiante.

1.2. Equações cúbicas. Métodos para resolver equações cúbicas são, quando comparadasao caso quadrático, recentes. Fórmulas remontam a Scipione del Ferro, Niccolo Fontana(Tartaglia), Cardano, em versões que datam do séc.XVI. Consideramos agora

ax3 + bx2 + cx+ d = 0 (a 6= 0). (3)

Tome x = y − b/3a. Como exercício: esta substituição elimina o termo de grau 2; somoslevados a ay3 + ry+ s = 0. Dividindo por a, chegamos a

y3 + py+ q = 0 (4)

com p = r/a e q = s/a. Podemos supor p, q ambos não-nulos, pois caso contrário asolução já está em nosso alcance.

Para resolver (4), escrevemos uma raiz como uma soma

y = u+ v (5)

com u, v ambos não-nulos. Não há nenhum mal nisso, mas não parece haver bem al-gum. . . Seja como for, substituindo em (4),

(u+ v)3 + p(u+ v) + q

= u3 + v3 + q+ (3uv+ p)(u+ v)

e logo para encontrar uma raiz é suficiente que{u3 + v3 = −q

3uv = −p(6)

e, passe de mágica, temos um sistema que podemos resolver. Da segunda equação obtemosv = −p/3u e substituindo na primeira,

u3 −p3

27u3+ q = 0

ou equivalentemente

u6 + qu3 −p3

27= 0.

Tomando z = u3, vem

z2 + qz−p3

27= 0

uma equação quadrática, com a qual já sabemos lidar: z = −q2±√

q2

4+ p3

27. Escolhendo

u =3

√−q

2+

√q2

4+p3

27vem de (6) que v =

3

√−q

2−

√q2

4+p3

27.

ÁLGEBRA III - 17 MAR 2016 5

Para obter as outras soluções, tomamos uma raiz cúbica da unidade, o número complexo

ω = e2πi/3 = cos(2π/3) + i sen(2π/3)

que satisfaz ω3 = 1. Note que ω 6∈ R. Agora convido você a verificar que se se o par (u, v)é uma solução de (6), então os pares (ωu,ω2v) e (ω2u,ωv) também são soluções de (6).Seguem daí as expressões para as raízes de (4):

y1 =u+ v

y2 =ωu+ω2v (7)

y3 =ω2u+ωv

Como todo polinômio real de grau ímpar tem uma raiz real, vem que se p, q ∈ R, entãopelo menos uma destas três raízes sempre é um número real.

A expressão para as raízes de x3 + px+ q = 0:

3

√−q

2+

√q2

4+p3

27+

3

√−q

2−

√q2

4+p3

27(8)

é uma fonte de surpresas. Por exemplo

f = x3 + 3x− 14

tem 2 como raiz e logo f = (x − 2)(x2 + 2x + 7). As outras raízes são −1± i√6, que não

são números reais. Assim, segue de (8) que3√7+√50+

3√7−√50 = 2 (9)

que é sempre meio desconcertante à primeira vista. E para os que gostam desse tipo decoisas, identidades parecidas em grau superior podem ser obtidas de maneira similar; porexemplo,

5√712+

√506945+

5√712−

√506945 = 4.

1.3. Equações de grau superior. Fórmulas para raízes de equações de grau 4 foramdescobertas não muito depois da solução da cúbica, e são devidas a Ferrari, Descartes,Euler, Lagrange, entre outros. Como é de se esperar, são um pouco mais complicadas,mas tem uma característica em comum com as fórmulas para graus 2 e 3: as raízes sãodescritas em termos de radicais aplicados aos coeficientes. Convido você a dar uma olhadanas notas de aula da profa. Maria Lúcia Villela [Vilella] aqui da UFF ou em [Stillwell94].

Naturalmente, o sucesso levou os matemáticos a buscarem soluções similares para asequações de grau 5. Lagrange tinha um método que unificava a obtenção de todas as fórmu-las para grau ≤ 4, mas seu método não produzia resultados para as quínticas. Instalou-sea dúvida: tais fórmulas para equações de grau 5 de fato existem?

Ruffini fez tentativas entre 1799 e 1813, obtendo avanços, mas sem sucesso; e Abel pu-blicou um artigo com a primeira demonstração da impossibilidade em 1824, resultado por

6 NIVALDO MEDEIROS

vezes referido como o teorema de Abel–Ruffini. Entretanto a teoria definitiva foi estabe-lecida por Évariste Galois (1811–1832), publicada postumamente em 1846. A problema,dito de maneira precisa, é o seguinte: dada uma equação polinomial

arxr + · · ·+ a1x+ a0 = 0

como determinar se é possível encontrar uma expressão para as raízes que envolvam so-mente as operações +,−,×,÷, ?

√· aplicadas sucessivamente aos coeficientes? Quando isto

acontece, dizemos que o polinômio é solúvel por radicais. Para equações quadráticas, cú-bicas e quárticas isto sempre ocorre, mas não em geral!

A compreensão das técnicas para demonstrar isto é o assunto do nosso curso: para cadapolinômio sobre o corpo k associa-se um grupo finito, o seu grupo de Galois. O teorema deGalois é: um polinômio é solúvel por radicais se e somente se seu grupo de Galois possuiuma propriedade especial — o nome técnico é solúvel. Verificar se dado grupo é solúvel ounão, é relativamente simples.

Um exemplo concreto. O polinômio x5−4x+2, de grau 5, não é solúvel por radicais: nãoexiste uma fórmula para expressar suas raízes utilizando apenas as operações aritméticaselementares e raízes ?-ésimas aplicadas aos coeficientes. Veja o Exemplo 10.7.

2. permutar é preciso

2.1. Newton em simétricos. Nosso problema é buscar expressões para raízes de umpolinômio em termos dos seus coeficientes. Caminhamos aqui no sentido contrário: dadasas raízes, o que podemos dizer sobre os coeficientes?

Sejam u1, . . . , un indeterminadas sobre um corpo k. Consideramos o polinômio geral

f = (x− u1)(x− u2) · · · (x− un)

onde x é uma outra indeterminada sobre k. Expandindo,

f = xn − s1xn−1 + s2x

n−2 + · · ·+ (−1)jsjxn−j + · · ·+ (−1)nsn

vem que os coeficientes de f são dados por:

s1 = u1 + · · ·+ uns2 =

∑i<j

uiuj = u1u2 + u1u3 + · · ·+ un−1un

s3 =∑i<j<k

uiujuk . . . (10)

sr =∑

i1<···<ir

ui1 · · ·uir . . .

sn = u1 · · ·unexpressões que de fato tem uma forma muito particular: se fazemos qualquer permutaçãodas variáveis u1, . . . , un, estes polinômios não se alteram.

ÁLGEBRA III - 17 MAR 2016 7

Um polinômio f em k[u1, . . . , un] é simétrico se f(u1, . . . , un) = f(uσ(1), . . . , uσ(n)) paraqualquer permutação σ em Sn. Dizendo de outra forma, os polinômios simétricos são ospolinômios invariantes pela ação do grupo de permutações Sn.

Os polinômios s1, . . . , sn são os exemplos fundamentais, e são denominados simétricoselementares. Outros exemplos:

a2 + b2 + c2, 4a3 + 4b3 + 4c3 + 7ab+ 7ac+ 7bc+ 12abc

são simétricos em a, b, c.

Teorema 2.1 (Newton). Todo polinômio simétrico p(u1, . . . , un) pode ser escrito comoum polinômio nos polinômios simétricos elementares si = si(u1, . . . , un).

De maneira precisa: Seja k um corpo. Dado um polinômio simétrico p ∈ k[u1, . . . , un],existe um único polinômio h ∈ k[t1, . . . , tn] tal que p = h(s1, . . . , sn).

Demonstração. [BMST10] Definimos uma relação de ordem total nos polinômios simétricosem n variáveis. Primeiro, comparamos monômios. Escrevemos

aue11 · · ·uenn � bu

f11 · · ·u

fnn

se

(1) e1 + · · ·+ en > f1 + · · ·+ fn;(2) ou e1 + · · · + en = f1 + · · · + fn e (e1, . . . , en) é lexicograficamente maior que

(f1, . . . , fn), isto é, existe i tal que e1 = f1, . . . , ei−1 = fi−1 mas ei > fi.

Para polinômios p, q ∈ k[u1, . . . , un], escrevemos p � q se o maior monômio de p (seutermo inicial) é maior do que o maior monômio de q. Note que em um polinômio simétrico,seu termo inicial aue11 · · ·uenn é tal que e1 ≥ e2 ≥ · · · ≥ en.

A demonstração do teorema é por indução com relação à ordem total acima definida,sendo a base da indução constituída pelos polinômios constantes (que são simétricos), paraos quais o resultado é trivialmente verdadeiro. Agora, dado um polinômio simétrico p comtermo inicial aue11 · · ·uenn , considere o polinômio simétrico

ase1−e21 se2−e32 · · · sen−1−enn−1 senn

cujo termo inicial é

aue1−e21 (u1u2)e2−e3 · · · (u1u2 · · ·un−1)en−1−en(u1u2 · · ·un)en = aue11 · · ·u

enn

ou seja, o mesmo de p. Assim

p � p− ase1−e21 · · · sen−1−enn−1 senn .

Como o polinômio p−ase1−e21 · · · sen−1−enn−1 senn é simétrico, pela hipótese de indução ele podeser escrito em função de polinômios simétricos elementares. Logo o mesmo vale para p,como desejado. �

8 NIVALDO MEDEIROS

Eis alguns exemplos:

u21 + · · ·+ u2n = s1 − 2s2

u31 + · · ·+ u3n = s31 − 3s1s2 + 3s3

u41 + · · ·+ u4n = s41 − 4s21s2 + 4s1s3 + 2s

22 − 4s4.

O teorema de Newton é o pilar sobre o qual residem as aplicações da teoria dos grupos(permutações) no estudo algébrico das raízes de polinômios.

Vejamos como funciona. Suponha que f = xn+an−1xn−1+ · · ·+a0 é um polinômio comcoeficientes em Q e que os ui’s não são indeterminadas, mas sim as raízes complexas dopolinômio f. Então os coeficientes de f são dados pelos polinômios simétricos elementaresavaliados nas raízes: aj = (−1)jsj(u1, . . . , un); ou seja, são sempre obtidos através dasequações (10). Isto para equações quadráticas

f = x2 − (u1 + u2)x+ u1u2

não é nada além da frase: o termo linear é a soma das raízes com sinal trocado e o termoconstante é produto das raízes.

A principal observação é que, pelo Teorema de Newton, qualquer expressão simétricanas raízes u1, . . . , un é expressa em termos dos coeficientes de f, mesmo que não saibamosexplicitamente quais são as raízes ! E podemos usar isto para determinar relações, isto é,equações envolvendo as raízes; se as temos em número suficiente, podemos resolver e daíescrever as raízes em termos dos coeficientes. Se o nome do jogo é simetria, o nome dojogador é: Lagrange.

2.2. Discriminantes. Nossa próxima obsessão é procurar por expressões simétricas nasraízes. Entre muitas, há uma particularmente notável, o discriminante: se u1, . . . , un sãoas raízes de f = xn + an−1xn−1 + · · ·+ a0 ∈ k[x], observe que∏

i<j

(ui − uj)

é invariante por permutações pares, mas tem seu sinal trocado por uma permutação ímpar.Logo seu quadrado,

disc f :=∏i<j

(ui − uj)2

é invariante por qualquer permutação e portanto, pelo Teorema de Newton, pertence aocorpo k. Uma conexão importante é que o discriminante pode ser obtido via a matriz deVandermonde: disc f = det(V(u1, . . . , un))2, onde

V(u1, . . . , un) =

1 1 · · · 1u1 u2 · · · unu21 u22 · · · u2n...

...un−11 un−12 · · · un−1n

ÁLGEBRA III - 17 MAR 2016 9

Vejamos o singelo caso das equações quadráticas. Tome f = x2 + bx+ c. Então

∆ = disc f = (u1 − u2)2 = (u1 + u2)

2 − 4u1u2 = b2 − 4c.

Eis que temos um sistema linear em função dos coeficientes de f

u1 + u2 = −b

u1 − u2 =√∆

e ao resolvê-lo obtemos, mais uma vez,

u1, u2 =−b±

√b2 − 4c

2.

Exercício 2.2. Para cúbicas:

disc(x3 + px+ q) = −4p3 − 27q2 (11)

Compare com as expressões que aparecem na fórmula de Cardano (8).

2.3. Lagrange em cúbicas. Considerar apenas o discriminante não é suficiente paraencontrar fórmulas para raízes em grau superior a dois. O método de Lagrange (que foiexpandido amplamente por Galois) consiste em encontrar mais expressões simétricas paraas raízes, na tentativa de “capturar suas simetrias”.

Considere f = x3 + ax2 + bx + c ∈ Q[x] e sejam u1, u2, u3 ∈ C suas raízes. Tomeω = e2πi/3 = −1/2+

√3i/2 uma raiz cúbica da unidade. Lagrange nos convida a considerar

u = (u1 +ωu2 +ω2u3)

3.

Como ω3 = 1, segue que este elemento é invariante pelas permutações pares de S3, mas aspermutações ímpares o levam a

v = (u1 +ω2u2 +ωu3)

3

Assim, embora u e v não sejam invariantes separadamente, qualquer expressão simétricaenvolvendo ambos o é. Em particular, u + v e u· v são invariantes e, pelo Teorema deNewton, podem ser escritos em termos dos coeficientes a, b, c. Com algum trabalho (arelação 1+ω+ω2 = 0 pode ajudar) encontramos

u+ v = − 2a3 + 9ab− 27c

u· v = a6 − 9a4b+ 27a2b2 − 27b3.

Definimos um polinômio auxiliar

r(x) = x2 − (u+ v)x+ u· v

conhecido como a resolvente de Lagrange; seus coeficientes pertencem ao mesmo corpodos coeficientes de f, são números racionais. Seu grau é menor do que o de f, e portantosabemos resolvê-lo, encontrando os valores de u e v.

10 NIVALDO MEDEIROS

Finalmente, para obter as raízes, acrescentamos a equação linear correspondente aocoeficiente de x2 às duas que já possuímos e obtemos o sistema

u1 + u2 + u3 = − a

u1 +ωu2 +ω2u3 =

3√u

u1 +ω2u2 +ωu3 =

3√v

Resolvendo, expressamos as raízes em termos de radicais nos coeficientes do polinômio f.Notável!

Exercício 2.3. Tomando a = 0, b = p e c = q, encontre u e v, resolva o sistema acima erecupere as soluções em (7), obtidas pelo método de Cardano.

Exercício 2.4. Se f é uma cúbica e r é sua resolvente, então −27 disc(f) = disc(r).

3. extensões de corpos

3.1. Corpos. Um corpo é um anel onde todo elemento não-nulo é invertível. Os exemplosmais familiares:

• O conjunto dos números racionais Q = {p/q | p, q ∈ Z, q 6= 0};• Os números reais R;• Os números complexos C = {a+ bi | a, b ∈ R};• Para p ∈ Z primo, o anel Zp dos inteiros módulo p.

Uma extensão de corpos consiste simplesmente de dois corpos k e F, onde k é um subcorpode F. Escrevemos F ⊃ k. O corpo de base de extensão é o corpo k. São exemplos: R ⊃ Q,C ⊃ R, C ⊃ Q.

Estamos interessados no comportamento relativo e não absoluto: estudamos proprieda-des do par F, k e não somente de um dos corpos.

Exercício 3.1. Mostre que o conjunto

{a+ b√2 | a, b ∈ Q}

é um corpo que contém Q.

3.2. Adjunção. Dada uma extensão de corpos F ⊃ k, temos um processo para criar corposintermediários entre k e F: se S ⊂ F é um subconjunto qualquer, a adjunção k(S) é, pordefinição, o menor subcorpo de F contendo k e S. Quando S = {u1, . . . , un} é um conjuntofinito, denotamos k(S) por k(u1, . . . , un).

O caso mais simples é o da adjunção de um único elemento, que consideramos agora.Tomemos u ∈ F. Pense bem: qualquer corpo contendo k e u deve conter todas as potênciasde u, bem como combinações lineares envolvendo essas potências digamos: anun + · · · +a1u+a0, com os ai’s em k; ou seja, polinômios de k[x] avaliados em u. Além disso, todas asfrações de elementos desse tipo deve estar presentes, um vez que um corpo contém inversosde elementos não-nulos. De fato,{ f(u)

g(u)| f, g ∈ k[x], g(u) 6= 0

}(12)

ÁLGEBRA III - 17 MAR 2016 11

já forma um corpo, como você está convidado a verificar no exercício abaixo. Este é entãok(u), o menor subcorpo de F contendo k ∪ {u}.

Exercício 3.2. Mostre o conjunto definido em (12) é de fato um subcorpo de F. Emseguida, prove que Q(

√2) coincide com o corpo definido no primeiro exercício.

O caso de um número finito de elementos é similar:

k(u1, . . . , un) ={ f(u1, . . . , un)g(u1, . . . , un)

| f, g ∈ k[x1, . . . , xn], g(u1, . . . , un) 6= 0}. (13)

Não há mistério algum em adjunções sucessivas:

Exercício 3.3. Mostre que k(u, v) = (k(u))(v).

Quando S é um conjunto possivelmente infinito, k(S) é ainda conjunto das frações depolinômios avaliados em elementos de S, com uma ressalva: usamos apenas um númerofinito indeterminadas para cada polinômio, mas permitimos que este número fique arbitra-riamentre grande.

Exercício 3.4. Seja i =√−1 ∈ C. Então C = R(i) e Q(i) = {a+ bi | a, b ∈ Q}.

3.3. Álgebra Linear. Seja F ⊃ k uma extensão de corpos. Evidentemente podemossomar elementos de F e também realizar produtos de elementos de F com elementos dek. Sendo operações dos corpos k e F, elas se comportam decentemente: são comutativas,associativas, possuem elemento neutro, vale a distributividade, etc. Ou seja, F possui aestrutura de espaço vetorial, com o corpo k fazendo o papel dos “escalares”.

Sim, é um ponto de vista mais abstrato do que o usual. Os escalares são o corpo debase da extensão e portanto podem variar. Isto, provavelmente, é bem diferente do quevocê aprendeu no seu primeiro curso de Álgebra Linear, onde os escalares são sempre osnúmeros reais.

A boa notícia é essencialmente todos os conceitos e resultados do seu saudoso cursoainda são válidos aqui, sem custo, mesmas demonstrações. São exemplos: independêncialinear, geradores, bases, dimensão, etc. Entretanto, estes conceitos agora tem que sertomados relativamente ao corpo de base: assim, falamos de k-independência linear, k-bases, transformações k-lineares, etc.

Este ponto de vista é extremamente útil no caminho que iremos percorrer. De qualquermodo, um aviso: a intuição geométrica tem que ser adaptada.

Exemplo 3.5. O corpo Q(√2) é um Q-espaço vetorial de dimensão dois: os “vetores” 1

e√2 formam uma Q−base. De fato, formam um conjunto de geradores, como visto nos

Exercícios 3.1 e 3.2; e são linearmente independentes sobre Q, visto que se a, b ∈ Q sãotais que a + b

√2 = 0, então a = b = 0, pois

√2 não é um número racional. Escrevemos

dimQ Q(√2) = 2. Para pensar: quanto vale dimQ(

√2) Q(√2)?

É uma situação curiosa, não? Ambos os corpos Q(√2) e Q estão contidos na reta R.

Um desenho ingênuo seria: um monte de pontos desconexos contidos na reta real. . . E podepiorar: os corpos k e F podem ter um número finito de elementos.

12 NIVALDO MEDEIROS

O grau de uma extensão F ⊃ k é simplesmente a dimensão de F como k-espaço vetoriale a denotamos [F : k]. Assim, o grau é a cardinalidade de qualquer k-base de F. Umaextensão é dita finita se o seu grau é finito, infinita caso contrário.

Exercício 3.6. [F : k] = 1 se e somente se F = k.

Exercício 3.7. Qual a dimensão de R como espaço vetorial sobre Q?

3.4. O grau em torres de extensões. Seja F ⊃ k uma extensão de corpos. Seja E umcorpo intermediário, F ⊃ E ⊃ k (neste caso dizemos que temos uma torre de extensões).Como vimos, tanto F quanto E têm uma estrutura de k-espaço vetorial; mas podemostambém considerar F como um espaço vetorial tendo E como corpo de escalares. Este tipode situação é nova, não? Há uma relação entre os graus de todas estas extensões.

Teorema 3.8 (Multiplicatividade do grau). Dada uma torre k ⊂ E ⊂ F, a extensãok ⊂ F é finita se e somente se as extensões k ⊂ E e E ⊂ F são finitas. Precisamente:se u1, . . . , um é uma base de E sobre k e v1, . . . , vn é uma base de F sobre E, então uivj,i = 1, . . . ,m, j = 1, . . . , n é uma base de F sobre k. Em particular:

[F : k] = [F : E][E : k].

Demonstração: Se F ⊃ k é uma extensão finita, então E ⊃ k é finita pois E é um subespaçovetorial de F; e F ⊃ E é também finita, uma vez que E contém k.

Reciprocamente, dado v ∈ F, escreva v =∑bjvj, com bj ∈ E para cada j. Em seguida,

expressamos cada bj em termos da base de E sobre k, digamos bj =∑

i aijui (aij ∈ k), eobtemos

v =∑

j(∑

i aijui)vj =∑

i,j aijuivj

e portanto osmn elementos uivj geram F como um k-espaço vetorial. Afirmamos que esteselementos são linearmente independentes. De fato, dados aij ∈ k,

0 =∑

i,j aijuivj ⇐⇒0 =

∑j(∑

i aijui)vj ⇐⇒0 =

∑i aijui, para j = 1, . . . , n ⇐⇒

0 = aij, para j = 1, . . . , n, i = 1, . . . ,m.

É sugestivo utilizar diagramas para representar extensões de corpos. Assim, na situaçãodo enunciado do teorema:

F

n

E

m

k

e o grau de F ⊃ k é m·n.

ÁLGEBRA III - 17 MAR 2016 13

4. extensões algébricas

Seja F ⊃ k uma extensão de corpos. Um elemento u ∈ F é algébrico sobre k se existeum polinômio f ∈ k[x] não-nulo que tenha u como raiz. Se não é algébrico, u é chamadotranscendente sobre k. Sem dúvida o caso de maior interesse é k = Q, quando falamossimplesmente de números algébricos ou números transcendentes.

Assim,√2,

3√5, i e e2πi/3 são números algébricos, pois são raízes de x2− 2, x3− 5, x2+ 1

e x3 − 1, respectivamente. Outro exemplo: 4√2 é algébrico sobre Q(

√2), pois é raiz de

x2 −√2 ∈ Q(

√2)[x]. Por fim, π é algébrico sobre R; e é também algébrico sobre Q(π),

pois é raiz do polinômio x− π.Seja u ∈ F algébrico sobre k. Dentre os polinômios não-nulos em k[x] que tem u com

raiz, há aqueles cujo grau é mínimo. Se p é um destes, então multiplicando-o por constanteadequada obtemos um polinômio mônico (isto é, o coeficiente do seu termo de mais altograu é 1). Estas propriedades determinam unicamente p, como veremos a seguir; ele échamado o polinômio minimal de u sobre k, simbolizado pu,k.

Exemplo 4.1.

(1) Uma das raízes do polinômio x2− 2 é√2. Como

√2 6∈ Q, ele é de fato o polinômio

minimal.(2) O polinômio f = x3−5 tem u = 3

√5 como raiz e é, de fato, o seu polinômio minimal

sobre os racionais; com efeito, seja p = pu,Q. Realizamos a divisão euclidiana eobtemos f = qp + r com r = 0 ou grau r < grau f. Como f(u) = p(u) = 0, vemque r(u) = 0 e logo devemos ter r = 0, pela minimalidade do grau de p. Sendof irredutível em Q[x] (Eisenstein), vem que q é uma constante. Como f e p sãomônicos, q = 1, ou seja, p = f.

(3) Os polinômios minimais de i e e2πi/3 sobre os racionais são, respectivamente, x2+ 1e x2 + x+ 1.

(4) O polinômio minimal de 4√2 sobre Q é x4 − 2; já sobre Q(

√2) é x2 −

√2.

Exercício 4.2. Prove que um polinômio minimal pu,k é irredutível em k[x].

Teorema 4.3. Seja F ⊃ k uma extensão de corpos, u ∈ F algébrico sobre k e p ∈ k[x] seupolinômio minimal. Então:(a) Dado f ∈ k[x], então f(u) = 0 se e somente se p divide f. Em particular, p é o único

polinômio mônico irredutível em k[x] que tem u como raiz.(b) Seja n o grau de p. Então 1, u, u2, . . . , un−1 é uma base de k(u) sobre k.

Demonstração: Provemos o item (a). Realizamos a divisão euclidiana de f por p e encon-tramos polinômios q, r ∈ k[x] tais que

f = qp+ r

onde r = 0 ou grau r < graup. Como f(u) = p(u) = 0, temos r(u) = 0 e logo devemos terr = 0, pela minimalidade do grau de p. Assim p divide f. O item (a) agora se segue doExercício 4.2.

14 NIVALDO MEDEIROS

Para o item (b), tome uma combinação linear a0 + a1u + · · · + an−1un−1 = 0 sobrek. Então todos os ai’s são nulos, pois caso contrário a0 + a1x + · · · + an−1xn−1 seria umpolinômio de grau menor que do que o de p e que anula u. Portanto 1, u, . . . , un−1 é umconjunto linearmente independente sobre k.

Mostrar que eles formam um conjunto de geradores requer um pouco mais de trabalho.Um elemento v em k(u) se escreve como f(u)/g(u), com f, g ∈ k[x] e g(u) 6= 0. Do item(a) vem que p não divide g e logo mdc(p, g) = 1, pois p é irredutível. Assim, existems, t ∈ k[x] tais que

sp+ tg = 1

e como p(u) = 0, temos que t(u) = 1/g(u). Logo h = ft é um polinômio com coeficientesem k e tal que v = h(u). Dividindo h por p, obtemos h = qp + r, onde r = a0 + a1x +· · · + an−1xn−1 ∈ k[x]. Mais uma vez, como p(u) = 0, obtemos v = r(u) o que conclui ademonstração. �

Do teorema: se um polinômio mônico e irredutível anula u, então ele é o seu polinômiominimal. Se temos a boa fortuna de utilizar algum critério indireto para determinar airredutibilidade (Eisenstein, por exemplo), determinamos então o polinômio minimal edaí o grau da extensão envolvida. Além disso, para elementos algébricos sobre k nãonecessitamos de frações para descrever o corpo k(u):

Exercício 4.4. Se u é algébrico sobre k, então k(u) = k[u] onde k[u] := {f(u) | f ∈ k[x]}.O que você tem a dizer sobre a recíproca?

Uma extensão F ⊃ k é algébrica se todo elemento de F é algébrico sobre k.

Proposição 4.5. Toda extensão finita é algébrica.

Demonstração. Suponha F ⊃ k finita, digamos de grau n. Então, dado u ∈ F, os n + 1elementos 1, u, u2, . . . , un são necessariamente k-linearmente dependentes, ou seja, existema0, . . . , an ∈ k não todos nulos tais que u é raiz do polinômio a0+a1x+· · ·+anxn ∈ k[x]. �Exercício 4.6. Uma extensão k(u) ⊃ k é finita se e somente se u é algébrico sobre k.

Exercício 4.7. Uma extensão algébrica é necessariamente finita?

Para motivar o próximo resultado considere a seguinte situação:√2 e√3 são números

algébricos e não é difícil mostrar que u =√2 +√3 é também um número algébrico. De

fato, u2 − 5 = 2√6 e logo u4 − 10u2 + 1 = 0. É natural perguntar se x4 − x2 + 1 é o

polinômio minimal de u sobre Q.

Exercício 4.8. Vamos calcular o grau da extensão Q(u) ⊃ Q. As ferramentas: multipli-catividade do grau em extensões e o item (b) do Teorema 4.3. Vale a pena acompanhar oargumento via o diagrama abaixo.

(1) Mostre que√2 6∈ Q(

√3) e logo [Q(

√2,√3) : Q] = 4.

(2) Note que temos uma torre de extensões

Q ⊂ Q(√6) ⊂ Q(

√2+√3) ⊂ Q(

√2,√3).

Mostre agora que√2+√3 6∈ Q(

√6).

ÁLGEBRA III - 17 MAR 2016 15

(3) Conclua que Q(√2 +√3) = Q(

√2,√3) e daí que x4 − 10x2 + 1 é o polinômio

minimal de√2+√3 sobre Q.

Q(√2,√3)

2 2Q(√2+√3)

2

Q(√2)

2

Q(√6)

2

Q(√3)

2

Q

Esse foi um exemplo simples. Se você se tentar provar que 57√75 + 75

√57 é um número

algébrico tentando encontrar o polinômio que o anule, rapidamente se convencerá de quenão é um bom negócio. Há uma outra maneira.

Proposição 4.9. A soma, diferença, produto e quociente de elementos algébricos são ele-mentos algébricos.

Demonstração: Sejam u, v ∈ F algébricos sobre k. Pelo Exercício 4.6, as extensões k(u) ⊃ ke k(u, v) ⊃ k(u) são finitas; pela multiplicatividade dos graus, k(u, v) ⊃ k é também umaextensão finita e logo algébrica, pela Proposição 4.5. Portanto, u± v, u · v e u/v (v 6= 0)são algébricos sobre k, uma vez que pertencem a k(u, v).

F

k(u, v)≤n

k(u) k(v)

n

k

Exercício 4.10. No diagrama acima: [k(u, v) : k(u)] ≤ [k(v) : k].

Vem do legado de Cantor que os números algébricos foram um conjunto enumerável,e portanto são “poucos". Por outro lado, não sabemos muitos exemplos explícitos denúmeros transcendentes. Até 1844 a sua existência era uma questão em aberto, quandoLiouville mostrou que números cuja expansão decimal contém cadeias cada vez maiores de

16 NIVALDO MEDEIROS

zeros são transcendentes, como por exemplo∑∞

n=0 10−n!. Determinar se um dado número

é transcendente ou não é uma questão bem mais difícil. Hermite demonstrou que e étranscendente em 1873, usando métodos analíticos; e Lindermann provou que π é umnúmero transcendente em 1882, baseando-se nas ideias de Hermite. Uma demonstraçãoelegante pode ser encontrada em [Rowen95, Appendix A].

5. extensões separáveis

Esta é uma seção curta. Seu objetivo é responder ao seguinte “desafio”: como determinarse um polinômio tem raízes repetidas sem fatorá-lo?

Tome k um subcorpo de C. Seja u ∈ C uma raiz de um polinômio f ∈ k[x]. Da divisãoeuclidiana vem que f = (x−u)g ou seja, x−u divide f. Dizemos que u é uma raiz simplesse (x− u)2 - f. Para detectar raízes simples buscamos ajuda do Cálculo.

Escreva f = anxn + · · ·+ a1x+ a0, com os coeficientes em k. Tomando-se a derivada dafunção definida por f, obtemos um polinômio

f ′ = nanxn−1 + · · ·+ 2a2x+ a1

que ainda tem coeficientes em k. Se f, g ∈ k[x], então(f+ g) ′ = f ′ + g ′ e (f·g) ′ = f ′·g+ f·g ′.

Agora:

Exercício 5.1. u é raiz simples de f ⇐⇒ f(u) = 0 mas f ′(u) 6= 0.

Por definição, um polinômio f ∈ k[x] é separável se todas as suas raízes são simples,ou seja, não possui raízes “repetidas”. De maneira equivalente, se f possui grau n, entãof é separável se e somente se f possui n raízes distintas em C. Observe que a noção deseparabilidade diz respeito somente ao polinômio em questão e independe do corpo ondeele se encontra; note o contraste com a noção de irredutibilidade.

Usando o critério da derivada, temos uma resposta para a questão do início da seção:

Proposição 5.2. Seja k um subcorpo de C. Um polinômio f ∈ k[x] é separável se esomente se mdc(f, f ′) = 1. Em particular, se f é irredutível em k[x], então f é separável.

Demonstração. A primeira afirmação do enunciado decorre imediatamente do Exercício5.1, pois se d = mdc(f, f ′) ∈ k[x], então as raízes de d em C são raízes tanto de f como def ′. Finalmente, se f é irredutível, então f não divide f ′ já que grau f ′ = grau f− 1. �

Um elemento de uma extensão F de um corpo k é separável sobre k se seu polinômiomínimo sobre k é separável. A extensão é separável se todos seus elementos são separáveissobre o corpo de base.

Para subcorpos dos complexos toda extensão é separável, em virtude da Proposição 5.2.Isto, porém, não vale para um corpo arbitrário. A palavra-chave aqui é característica zero.Veja a seção sobre característica para mais informações.

Exercício 5.3. Se F ⊃ k é separável e E é um corpo intermediário, então F ⊃ E e E ⊃ ksão separáveis.

ÁLGEBRA III - 17 MAR 2016 17

6. extensões normais

Nesta seção estudamos homomorfismos em extensões de corpos que fixam o corpo debase. Este caminho nos leva ao encontro de um tipo particular de extensões, conhecidascomo normais, que examinamos com detalhe.

Mais uma vez, consideramos somente subcorpos dos números complexos.Começamos com um aquecimento:

Exercício 6.1. Seja σ : A → B um homomorfismo de anéis. Se A é um corpo, então σ éinjetivo.

Seja F ⊃ k uma extensão de corpos. Tome u um elemento de F e seja f um polinômionão-nulo em k[x] que tenha u como raiz. Seja σ : F → C um homomorfismo com umapropriedade especial: suponha que σ(a) = a para todo a ∈ k. Então σ(u) é também umaraiz de f. Isto é muito simples: se f = anxn + an−1xn−1 + · · ·+ a0, então

0 = f(u) =⇒ 0 = σ(f(u)) = σ(anun + an−1u

n−1 + · · ·+ a0)= σ(an)σ(u)

n + σ(an−1)σ(u)n−1 + · · ·+ σ(a0) (14)

= anσ(u)n + an−1σ(u)

n−1 + · · ·+ a0= f(σ(u))

Seja S ⊂ C o conjunto das raízes de f. Como todo homomorfismo de corpos é injetore S é finito, segue que σ induz uma permutação em S. Está aberto o caminho que noslevará ao grupo de Galois. (Incidentalmente, fica justificado porque escolhemos C comocontra-domínio: lá encontramos todas as raízes.)

Sejam F, F ′ extensões de um corpo k. Um k-homomorfismo σ : F → F ′ é um homomor-fismo que estende a identidade de k, isto é, σ|k = idk, isto é, σ(a) = a para todo a ∈ k.Representamos essa situação em um diagrama:

Fσ // F ′

kid // k

Dizemos que σ é um k-endomorfismo se aplica F em si mesmo, ou seja, σ(F) ⊂ F; e umk-automorfismo de F é um k-isomorfismo, ou seja, σ(F) = F.

Os k-automorfismos de F com a operação de composição formam um grupo, que é deno-tado por Galk(F) ou também Autk(F).

Exercício 6.2. A aplicaçãoQ(√2)→ C dada por a+b

√2 7→ a−b

√2 é um homomorfismo.

Exercício 6.3. Suponha F = k(u1, . . . , un). Mostre que todo k-homomorfismo fica com-pletamente determinado pela sua ação nos geradores de F. Precisamente: se σ, σ ′ : F→ F ′

são k-homomorfismos, e σ(ui) = σ ′(ui) para i = 1, . . . , n, então σ = σ ′ (ou seja:σ(v) = σ ′(v), ∀v ∈ F). Em particular,

σ(F) = k(σ(u1), . . . , σ(un)).

18 NIVALDO MEDEIROS

(Sugestão: utilize a descrição da equação (13))

Exercício 6.4. Se k é um subcorpo de C, então k ⊃ Q (pois 1 ∈ k). E vale também quetodo homomorfismo σ : k→ C é um Q-homomorfismo (pois σ(1) = 1).

Para encurtar referências no futuro: os k-conjugados de um elemento u ∈ F são simples-mente as raízes (em C) do seu polinômio minimal sobre k.

A equação (14) tem consequências interessantes. Um k-homomorfismo F → C permutak-conjugados; se todos eles já estão em F, temos uma aplicação de F em si mesmo, ou seja,um endomorfismo.

Definição 6.5. Sejam f ∈ k[x] um polinômio e S ⊂ C o conjunto de todas as raízes de f,isto é, S = {u ∈ C | f(u) = 0}. O corpo de decomposição de f sobre k é o corpo k(S). O grupode Galois de f sobre k é o grupo de automorfismos desta extensão: Galk f := Galk k(S).

Uma extensão finita F ⊃ k é normal se F é o corpo de decomposição de algum polinômionão-nulo em k[x].

Exemplo 6.6.(1) Q(

√2) é normal sobre Q.

(2) Se ω = e2πi/n ∈ C é uma raiz n-ésima da unidade, então Q(ω) é o corpo dedecomposição de xn − 1, pois suas raízes são 1,ω, . . . ,ωn−1. Logo Q(ω) ⊃ Q énormal.

(3) A extensão C ⊃ R é normal.(4) O corpo Q( 4

√2, i) é normal sobre Q, pois é o corpo de decomposição de x4−2, cujas

raízes são ± 4√2,±i 4

√2.

Exercício 6.7. Toda extensão de grau 2 é normal.

Manfredo Perdigão do Carmo é um excelente professor e geômetra, famoso por palestrasmemoráveis e frases de efeito. Uma delas:

Uma boa definição deve estar grávida de teoremas.Assim seja.

Proposição 6.8. Se uma extensão F ⊃ k é normal, então todo k-homomorfismo F→ C éum endomorfismo.

Demonstração. Escrevemos F = k(u1, . . . , ur) onde os ui’s são as raízes de f ∈ k[x]. Então(14) nos diz que um k-homomorfismo σ : F → C permuta estas raízes e, em particular,σ(ui) ∈ F para cada i = 1, . . . , r. O resultado agora segue do Exercício 6.3. �

Assim, para extensões normais, homomorfismos que fixam o corpo de base não vão alugar algum: tudo acontece dentro da própria extensão.

Há mais surpresas. Antes, um resultado auxiliar.

Lema 6.9. Seja F ⊃ k uma extensão algébrica. Então todo k-endomorfismo de F é umautomorfismo.

ÁLGEBRA III - 17 MAR 2016 19

Demonstração: Dado u em F, seja S = {k-conjugados de u }∩F. Então um k-endomorfismoσ leva o conjunto S em si mesmo; e, sendo injetor e S finito, induz uma bijeção em S.Portanto existe v ∈ S tal que σ(v) = u. Concluímos que F = σ(F). �

Eis a conclusão do que provamos até aqui, enunciada como um teorema e não comocorolário, devido à sua importância.

Teorema 6.10. Se F ⊃ k é uma extensão normal, então todo k-homomorfismo F → C éde fato um automorfismo.

7. extensões, agora de homomorfismos

Seja F ⊃ k uma extensão algébrica. Buscamos descrever os k-homomorfismos σ : F→ C,isto é, as extensões da identidade de k ao corpo F. Se u ∈ F, vem da equação (14) que σleva u em algum dos seus k-conjugados. Nossa questão é sobre existência: dado v ∈ C umk-conjugado de u, é possível estender a identidade de modo que u 7→ v?

A resposta é positiva, e podemos generalizar: de fato, podemos estender não somente aidentidade, mas qualquer homomorfismo.

Dados λ : k→ k ′ e um polinômio f = anxn + an−1xn−1 + · · ·+ a0 em k[x], definimos

fλ = λ(an)xn + λ(an−1)x

n−1 + · · ·+ λ(a0) ∈ k ′[x]que é o polinômio obtido aplicando-se λ aos coeficientes de f. Sejam agora u ∈ F uma raizde f, F ′ uma extensão de k ′ e σ : F→ F ′ e um homomorfismo que estende λ. Então σ(u) éuma raiz do polinômio transformado fλ. A conta é a mesma de (14):

0 = σ(0) = σ(anun + an−1u

n−1 + · · ·+ a0)= σ(an)σ(u)

n + σ(an−1)σ(u)n−1 + · · ·+ σ(a0) (15)

= fλ(σ(u))

uma vez que σ(a) = λ(a) para todo a ∈ k. Um diagrama:

Fσ // F ′

kλ // k ′

Exercício 7.1.(f+ g)λ = fλ + gλ e (f · g)λ = fλ · gλ. (16)

Em particular, se λ é um isomorfismo, então f é irredutível em k[x] se e somente se fλ éirredutível em k ′[x].

Eis a almejada descrição de extensões de homomorfismos em extensões finitas.

Teorema 7.2 (Extensão). Sejam k(u) ⊂ C uma extensão finita de um corpo k, p opolinômio minimal de u sobre k, λ : k→ C um homomorfismo e v1, . . . , vr ∈ C as distintasraízes de pλ. Então λ possui exatamente r extensões σi : k(u)→ C, dadas por u 7→ vi.

20 NIVALDO MEDEIROS

Demonstração: Toda extensão de λ leva u em uma raiz de pλ, como vimos em (15).Reciprocamente, denote k ′ = λ(k) e seja v uma das raízes de pλ ∈ k ′[x]. Pelo Teo-

rema 4.3, cada elemento de k(u) pode ser escrito como f(u) para algum f em k[x]. Entãoa aplicação σ : k(u)→ k ′(v) dada por

σ(f(u)) = fλ(v)

está de fato bem definida: se f, g ∈ k[x] são tais que f(u) = g(u), então (f − g)(u) = 0 elogo p divide f− g; segue daí que pλ divide (f− g)λ e portanto fλ(v) = gλ(v). Finalmente,as igualdades em (16) mostram que σ é um homomorfismo, que evidentemente estende λ.A prova está terminada. �

Corolário 7.3. É sempre possivel estender homomorfismos em extensões finitas.

Demonstração. Dada k ⊂ F finita, temos uma torre

k = F0 ⊂ F1 ⊂ · · · ⊂ Fr = F

onde Fi = Fi−1(ui) com ui algébrico sobre Fi−1. Agora basta aplicar o Teorema 7.2 suces-sivamente a cada passo da torre. �

Depois de lavoura feita com tanto cuidado, hora de colhermos frutos.

Corolário 7.4. Se F ⊃ k é normal e E é um corpo intermediário, então todo k-homomorfismoE→ C se estende a um k-automorfismo de F.

Demonstração. Segue imediatamente do Corolário 7.3 e do Teorema 6.10. �

É fácil construir extensões normais. Decidir se uma dada extensão é normal é uma outraestória. . .

Suponha que F é uma extensão normal de k. Dado u ∈ F, seja v ∈ C um k-conjugadode u. Do Teorema 7.2 existe um k-homomorfismo k(u) → C que leva u 7→ v; peloCorolário 7.4, podemos estendê-lo a um k-automorfismo de F e logo v ∈ F. Um resumo doque acabamos de mostrar:

Corolário 7.5. Se F ⊃ k é normal, então os k-conjugados de elementos de F estão em F.

Temos assim um critério para mostrar que uma extensão não é normal. Por exemplo,Q( 4√2) ⊃ Q não é uma extensão normal, pois os Q-conjugados de 4

√2 são ± 4

√2,±i 4

√2; os

dois últimos não são números reais e logo não pertencem ao corpo Q( 4√2).

Exercício 7.6. A extensão Q( 3√2, i) ⊃ Q não é normal.

Vamos calcular nosso primeiro grupo de Galois.

Exemplo 7.7. Sejam u = 3√2 e ω = e2πi/3 ∈ C uma raiz cúbica da unidade. O polinômio

minimal de u sobre Q é f = x3−2, e suas raízes são u,ωu eω2u. O corpo de decomposiçãode f sobre Q é F = Q(u,ωu,ω2u) = Q(u,ω). Então F ⊃ Q é uma extensão normal cujo

ÁLGEBRA III - 17 MAR 2016 21

grau é 6, uma vez que ω 6∈ Q(u).

Q(u,ω)

Q(u)

3

Q(ω)

2

Q

Repetimos o modus operandi da prova do Corolário 7.3 para descrever os automorfismosde G = GalQ f. Pelo Teorema 7.2 existem exatamente três Q-homomorfismos

σi : Q(u)→ C i = 0, 1, 2

dados por u 7→ ωiu. Como F = Q(u)(ω) e o polinômio minimal de ω sobre Q(u) ép = x2 + x + 1, vem do Teorema de Extensão que cada σi se estende a exatamente adois homomorfismos σij : F → C, j = 1, 2, dados por ω 7→ ωj (note que pσi = p). Como[F : Q] = 6, estas são todas as possíveis extensões. Agora, F ⊃ Q é normal e daí cada σij éde fato um automorfismo, pelo Teorema 6.10. Em resumo,

G = {σ0,1, σ0,2, σ1,1, σ1,2, σ2,1, σ2,2}

e cada automorfismo σij : F → F fica definido pela sua ação no par u,ω (Exercício 6.3),segundo a tabela abaixo:

σ0,1 : u 7→ u, ω 7→ ωσ0,2 : u 7→ u, ω 7→ ω2

σ1,1 : u 7→ ωu, ω 7→ ωσ1,2 : u 7→ ωu, ω 7→ ω2

σ2,1 : u 7→ ω2u, ω 7→ ωσ2,2 : u 7→ ω2u, ω 7→ ω2

Para um grupo de ordem 6, há apenas duas possibilidades: ou é cíclico, isomorfo a C6, oué isomorfo ao grupo S3 de permutações de 3 elementos. E agora?

Comparemos os automorfismos σ2,1σ1,2 e σ1,2σ2,1. Mais uma vez, basta calcular a com-posição no par u,ω; temos

(σ2,1σ1,2)(u) = σ2,1(ωu) = σ2,1(ω)σ2,1(u) = ω(ω2u) = u

(σ2,1σ1,2)(ω) = σ2,1(ω2) = ω2

e logo σ2,1σ1,2 = σ0,2; por outro lado,

(σ1,2σ2,1)(u) = σ1,2(ω2u) = σ1,2(ω)2σ1,2(u) = (ω2)2(ωu) = ω2u

(σ1,2σ2,1)(ω) = σ1,2(ω) = ω2

ou seja σ1,2σ2,1 = σ2,2. Assim G não é abeliano e, consequentemente, G ∼= S3. 2

Exercício 7.8. Calcule as ordens dos elementos do grupo G no exemplo acima.

22 NIVALDO MEDEIROS

Exercício 7.9. Mostre que GalQQ( 4√2) ∼= Z2. Note que [Q( 4

√2) : Q] = 4 mas o grupo de

automorfismos tem ordem 2. . . Qual a origem da discrepância?

Para terminar esta seção, recorde que se um grupo G age em um conjunto S, então cadaelemento de G induz uma permutação dos elementos de S. A ação é transitiva se cadaórbita é igual ao próprio conjunto S, isto é: dados u, v ∈ S, existe σ ∈ G tal que σ(u) = v.

Proposição 7.10. Seja f um polinômio irredutível em k[x], de grau n. Então Galk f éisomorfo a um subgrupo de Sn que age transitivamente nas raízes de f.

Demonstração. Seja S ⊂ C o conjunto das raízes de f e F = k(S) o corpo de decomposiçãode F. Como f é separável (Proposição 5.2), temos |S| = n. Como vimos, cada elementode Galk f define uma permutação em S e logo temos um homomorfismo Galk f → Sn;este homomorfismo é injetor, pois σ = idF se e somente se σ(u) = u para todo u ∈ S.Finalmente, escolha u, v ∈ S. Pelo Teorema 7.2 existe um k-homomorfismo k(u) → Clevando u 7→ v, que se estende a um automorfismo de F (Corolário 7.4). Logo a ação étransitiva. �

8. teoria de Galois

8.1. A correspondência de Galois. Seja F ⊃ k uma extensão de corpos e tome G =Galk F o grupo de automorfismos desta extensão. Um elemento u ∈ F é um ponto fixo deum automorfismo σ ∈ G se σ(u) = u.

A cada corpo intermediário k ⊂ E ⊂ F fica associado a um subgrupo de G, a saber

GalE F = {σ ∈ G | σ(u) = u, ∀u ∈ E}o subgrupo dos automorfismos que estendem a identidade de E; dizendo de outra forma,são os k-automorfismos de F para os quais todos os elementos de E são pontos fixos.Reciprocamente, seja H um subgrupo de G. Definimos

FH = {u ∈ F | σ(u) = u, ∀σ ∈ H}o conjunto dos pontos fixos por todos os automorfismos pertencentes a H. Este é corpointermediário na extensão F ⊃ k: de fato, como só consideramos k-automorfismos, elecontém k; e se u, v ∈ FH, então

σ(u+ v) = σ(u) + σ(v) = u+ v (∀σ ∈ H)donde u+ v ∈ FH. Uma conta análoga funciona para u− v, u· v e u/v. Denominamos FHo corpo fixo por H.

A correspondência de Galois é o par de aplicações{corpos intermediários

de F ⊃ k

}{subgrupos de G}

E 7−→ GalE FFH ←− H

.

A correspondência de Galois reverte inclusões, como você deve verificar. Em geral, estasaplicações não desfrutam de outras propriedades emocionantes, como serem injetoras ou

ÁLGEBRA III - 17 MAR 2016 23

sobrejetoras ou inversas uma da outra. Ainda assim, sucessivas aplicações fazem crescer ocorpo ou grupo com o qual começamos:

Exercício 8.1. Dado um corpo intermediário E, tome H = GalE F. Então paraE 7→ H 7→ FH

vale que E ⊂ FH. Reciprocamente, dado um subgrupo H, seja E = FH. Então paraH 7→ E 7→ GalE F

tem-se que H ⊂ GalE F. Encontre exemplos onde não valem as inclusões opostas.

8.2. Extensões galoisianas.

Definição 8.2. Uma extensão é galoisiana (ou de Galois) se é normal e separável.

Mais uma vez: como estamos considerando apenas subcorpos dos complexos, nossasextensões são automaticamente separáveis e logo, aqui, uma extensão é galoisiana se esomente se é normal.

É instrutivo acompanhar a demonstração da proposição a seguir pelo Exemplo 7.7.

Proposição 8.3. Se F ⊃ k é galoisiana finita, então |Galk F| = [F : k].

Demonstração. Escreva F = k(u1, . . . , us), onde os ui’s são algébricos sobre k. Construímosa torre

k = F0 ⊂ F1 ⊂ · · · ⊂ Fs = Fonde Fi = Fi−1(ui). Seja pi o polinômio minimal de ui sobre Fi−1. Temos

|{raízes de pi em C}| = graupi = [Fi : Fi−1]

onde a igualdade da esquerda vem do fato de que cada pi é separável (Proposição 5.2).Segue então do Teorema 7.2 que um homomorfismo possui exatamente [Fi : Fi−1] extensõesno i-ésimo passo da torre. Assim, se começamos com a identidade de k, podemos estendê-la a F → C por exatamente [F1 : F0] · · · [Fs : Fs−1] = [F : k] maneiras distintas. Como aextensão é normal, segue do Teorema 6.10 que todas estas extensões são automorfismos, oque termina a demonstração. �

Veremos a seguir que as extensões galoisianas finitas são exatamente aquelas para asquais a correspondência de Galois é bem comportada, ou seja, as aplicações da correspon-dência de Galois são de fato bijeções.

Lema 8.4. Se F ⊃ k uma extensão separável tal que [k(u) : k] ≤ n para cada u ∈ F, entãoa extensão é finita e vale [F : k] ≤ n.

Demonstração: Seja v em F escolhido de forma que [k(v) : k] seja máxima. É suficientemostrar que F ⊂ k(v).

Tome u ∈ F. Como k(u, v) ⊃ k é finita e separável, existe um elemento w tal quek(u, v) = k(w) (um elemento primitivo; veja o Teorema 13.1). Então as desigualdades

[k(v) : k] ≤ [k(u, v) : k] = [k(w) : k] ≤ [k(v) : k]

são de fato igualdades e portanto u ∈ k(v), como queríamos. �

24 NIVALDO MEDEIROS

Apresentamos agora o principal resultado desta seção, o célebre Teorema Fundamentalda Teoria de Galois, devido a Emil Artin:

Teorema 8.5 (Artin). Sejam F um corpo e G um subgrupo finito qualquer do grupo deautomorfismos de F. Então F ⊃ FG é uma extensão galoisiana de grau |G|, cujo grupo deGalois é G.

Demonstração: Denote k = FG. Dado u ∈ F, seja S ⊂ F o conjunto das diferentes imagensde u pelos elementos de G, digamos S = {u = u1, . . . , ur}. Observe que r ≤ |G|. Definaf =∏

i(x− ui), um polinômio em F[x], de grau r.Cada elemento de G induz uma permutação no conjunto S das raízes. Como os coefi-

cientes de f são os polinômios simétricos elementares (10) nos ui’s, segue-se que cada umdestes coeficientes é fixado por todos os elementos de G, ou seja, pertencem ao corpo fixopor G. Assim f é de fato um polinômio em k[x], que tem u como raiz.

Em suma, mostramos que todo elemento de F é raiz de um polinômio separável em k[x]cujas raízes estão em F, ou seja, F ⊃ k é separável e normal. Agora, como G ⊂ Galk F,temos

|G| ≤ |Galk F| = [F : k] ≤ |G|

onde a igualdade vem da Proposição 8.3 e a desigualdade da direita segue do Lema 8.4, jáque [k(u) : k] ≤ grau f ≤ |G| para cada u ∈ F. Portanto as desigualdades acima são defato igualdades, concluindo a demonstração do teorema. �

Corolário 8.6. Se F ⊃ k é uma extensão galoisiana finita, então a correspondência deGalois é uma bijeção. De modo preciso, as aplicações{

corpos intermediáriosde F ⊃ k

}{subgrupos de Galk F}

E 7−→ GalE FFH ←− H

são a inversa uma da outra. Além disso, |H| = [F : FH] e [FH : k] = (Galk F : H).

Demonstração: Tome E um corpo intermediário e seja H = GalE F. Como a extensão F ⊃ Eé galoisiana finita, vem da Proposição 8.3 que |H| = [F : E]; agora, pelo Exercício 8.1,

F ⊃ FH ⊃ E

e como [F : FH] = |H| (Teorema de Artin), temos que a inclusão da direita é de fato umaigualdade, como desejado.

Por outro lado, sendo Galk F finito, segue do Teorema de Artin que GalFH F = H paratodo subgrupo H, o que prova que a correspondência de Galois é de fato uma bijeção. Paraas igualdades do final do enunciado, já verificamos a primeira; e a segunda é consequênciado bom e velho Teorema de Lagrange da teoria de grupos. �

ÁLGEBRA III - 17 MAR 2016 25

Um diagrama, mil palavras: para extensões F ⊃ k galoisianas finitas,

F

|H|

{id}

FH = E

(G:H)

←→ H = GalE F

k G

Exemplo 8.7. Sejaω = e2πi/5 = cos(2π/5)+i sen(2π/5) ∈ C uma raiz 5-ésima da unidade,isto é, ω5 = 1. As raízes do polinômio x5 − 1 são 1,ω, . . . ,ω4. Temos x5 − 1 = (x − 1)p,onde p = x4 + · · ·+ x+ 1. Pelo critério de Eisenstein, p é irredutível em Q[x], pois 5 é umnúmero primo. Logo a extensão Q(ω) ⊃ Q é galoisiana de grau 4; os Q-conjugados de ωsão ω, . . . ,ω4.

Seja G o grupo de automorfismos desta extensão. Cada automorfismo σ ∈ G devepermutar as raízes de p e fica completamente determinado pela sua imagem σ(ω). LogoG = {σ1, σ2, σ3, σ4} onde σj(ω) = ωj. Note que σ1 = id; e aplicando sucessivamente σ2,obtemos

ω 7→ ω2 7→ ω4 7→ ω8 = ω3 7→ ω6 = ω

e logo σ2 tem ordem 4. Portanto G = 〈σ2〉 é isomorfo a Z4.Sendo cíclico de ordem 4, o grupo G possui um único subgrupo próprio, que tem ordem

2, a saber H = 〈σ22〉 = 〈σ4〉. Daí, pela correspondência de Galois, a extensão Q(ω) ⊃ Qpossui apenas um subcorpo intermediário não-trivial, o corpo fixo por H. Para determiná-lo, tome u = ω + ω−1. Note que σ4(u) = u e portanto u ∈ Q(ω)H. Como ω−1 = ωé o conjugado complexo de ω, vem que u ∈ R e daí Q(ω) ⊃ Q(u) é uma extensãode grau 2, pois ω 6∈ Q(u) e ω é raiz de um polinômio quadrático em Q(u)[x], a saber(x−ω)(x− ω) = x2 − ux+ 1. A correspondência de Galois é bem simples:

Q(ω)

2

{id}

Q(ω+ω−1)

2

←→ H

Q G

Exemplo 8.8. Revisitamos agora o Exemplo 7.7, usando a mesmo notação ali estabelecida.Vimos que o corpo F de decomposição do polinômio x3− 2 é uma extensão de grau 6 sobreQ, e cujo grupo de Galois sobre é isomorfo ao grupo simétrico S3. O grupo S3 possuiexatamente 3 subgrupos de ordem 2, a saber 〈σ0,2〉, 〈σ1,2〉, 〈σ2,2〉 e exatamente um subgrupode ordem 3. Da correspondência de Galois vem que existem exatamente 3 subcorposintermediários E tais que [F : E] = 2; como Q(u),Q(ω2u) e Q(ωu) são extensões de grau3 de Q, distintos entre si, estes são os corpos em questão. O subcorpo restante é Q(ω)

26 NIVALDO MEDEIROS

que fica associado ao subgrupo gerado por σ1,1, que é um elemento de ordem 3 de G. Eiso diagrama que descreve a correspondência:

Q(u,ω)

2

3

2

2

{id}

Q(u) Q(ω2u) Q(ωu) 〈σ0,2〉 〈σ1,2〉 〈σ2,2〉

Q(ω) 〈σ1,1〉

Q G

Exercício 8.9. Mostre que o diagrama do exemplo anterior está correto, isto é, queQ(ω3−iu) é corpo fixo por 〈σi,2〉, para i = 0, 1, 2.

Exercício 8.10. Um caso em que a extensão não é normal: descreva a correspondênciade Galois para Q( 4

√2) ⊃ Q.

Duas extensões E, E ′ de um corpo k são chamadas conjugadas se existe um k-isomorfismoE→ E ′. Recorde que dois subgrupos H,H ′ de um grupo G são conjugados se existe σ ∈ Gtal que H ′ = σHσ−1.

Lema 8.11. Seja F ⊃ k uma extensão galoisiana finita. Então dois corpos intermediáriosE e E ′ são conjugados se e somente se GalE F e GalE ′ F são subgrupos conjugados em Galk F.

Demonstração: Começamos com a seguinte

Afirmação: Dado σ ∈ Galk F, então Galσ(E) F = σ(GalE F)σ−1.De fato,

τ ∈ Galσ(E) F ⇐⇒ τ(σ(u)) = σ(u), ∀u ∈ E⇐⇒ (σ−1τσ)(u) = u, ∀u ∈ E⇐⇒ σ−1τσ ∈ GalE F⇐⇒ τ ∈ σ(GalE F)σ−1.

Seja agora λ : E → E ′ um k-isomorfismo. Como F ⊃ k é uma extensão finita e normal,estendemos λ um k-automorfismo σ : F→ F. Então σ(E) = E ′ e da Afirmação segue-se queGalE F e GalE ′ F são conjugados.

Reciprocamente, se GalE F e GalE ′ F são conjugados, então decorre da Afirmação queGalE ′ F = Galσ(E) F para algum σ ∈ Galk F. Como F ⊃ k é galoisiana finita, vem dacorrespondência de Galois que E ′ = σ(E), o que termina a prova. �

Teorema 8.12 (Segundo Teorema Fundamental). Seja F ⊃ k uma extensão galosianafinita e E um corpo intermediário. Então a extensão E ⊃ k é normal se e somente se

ÁLGEBRA III - 17 MAR 2016 27

GalE F é um subgrupo normal de Galk F. Nesse caso,

Galk E ∼=Galk FGalE F

.

Demonstração: Pelo Lema 8.11:

GalE F é normal em Galk F ⇐⇒ σ(E) = E, ∀σ ∈ Galk F

e a condição do lado direito é válida se e somente se E ⊃ k é uma extensão normal: vocêestá oficialmente convidado a verificar. Isto prova a primeira afirmação do teorema.

Por outro lado, se E ⊃ k é uma extensão normal, então a restrição de um k-automorfismode F ao corpo E induz de fato um automorfismo (Teorema 6.10). Temos portanto umhomomorfismo de grupos

|E : Galk F→ Galk Eque é sobrejetor, uma vez que todo k-automorfismo de E se estende a um k-automorfismode F (Corolário 7.4); seu núcleo evidentemente é GalE F, pois estes são os automorfismos quefixam E. Segue do Teorema dos Homomorfismos que vale o isomorfismo do enunciado. �

Traduzindo em um diagrama: para extensões F ⊃ k galoisianas,

F {id}

E

normal ⇐⇒H

normal

k G (e nesse caso Galk E ∼= G/H)

Exemplo 8.13. Denote E = Q( 4√2) e F = Q( 4

√2, i). Então F ⊃ Q é uma extensão normal.

O seu grupo G de automorfismos não é abeliano: de fato, como E ⊃ Q não é normal, vemdo Teorema 8.12 que o subgrupo H = GalE F não é normal em G.

Exercício 8.14. No exemplo anterior, mostre que |G| = 8 e que GalQQ(i) é cíclico deordem 4. Mais ainda, encontre σ, τ em G tais que

G = 〈σ, τ〉, σ4 = 1, τ2 = 1 e τσ = σ3τ

(estas são as relações necessárias para demonstrar que G ∼= D4, o grupo das simetrias deum quadrado).

Exemplo 8.15. Um exemplo mais longo, para o qual você está escalado(a) para preencheros detalhes.Tome u =

√2, v = 3

√5 e ω = e2πi/3 uma raiz cúbica da unidade. Considere

F = Q(u, v,w). Então F ⊃ Q é galoisiana, de grau 2 · 3 · 2 = 12, graus correspondentes àtorre

Q ⊂ Q(u) ⊂ Q(u, v) ⊂ Q(u, v,ω) = F.

Os elementos do grupo de Galois G da extensão podem ser descritos da seguinte maneira:

G = {σijk | i = 0, 1, j = 0, 1, 2, k = 1, 2}

28 NIVALDO MEDEIROS

onde σijk fica dado por (u, v,ω) 7→ ((−1)iu,ωjv,ωk).Seja n2 o número de subgrupos de G com ordem 22 = 4. Pelos teoremas de Sylow, temos

n2 ≡ 1 (mod 2) e n2 | 3

e logo n2 = 1 ou n2 = 3. Como decidir? Olhamos para a extensão: temos pelo menos 3subcorpos intermediários distintos E tais que [F : E] = 4, a saber: Q(v),Q(ωv) e Q(ω2v).Estes, de fato, são os únicos pois pela correspondência de Galois, obtemos três subgruposde G com ordem 4 e logo n2 = 3. Novamente pelos teoremas de Sylow, os três gruposcorrespondentes a esses corpos são conjugados e segue daí pelo Lema 8.11 que esses trêscorpos são conjugados.

Também pelos teoremas de Sylow, G possui exatamente um subgrupo de ordem 3, queé normal em G; decorre da correspondência de Galois que existe exatamente um subcorpointermediário K com [F : K] = 3. Uma inspeção rápida nos leva a K = Q(u,ω). Note queK ⊂ Q é normal, como previsto pelo segundo Teorema Fundamental.

É natural tentar caracterizar o grupo G. Existem exatamente 5 grupos de ordem 12 nãoisomorfos entre si. Dois deles são abelianos (Z12 e Z2 × Z6), que estão fora. Restam A4,D6 e Z3 o Z4. . . 2

Exercício 8.16. No exemplo anterior, encontre os subgrupos G1, G2 e G3 associados aoscorpos Q(v),Q(ωv) e Q(ω2v) e determine elementos g ∈ G tais que gGig−1 = Gj paracada i, j.

9. raízes da unidade

Seja n ≥ 1 um inteiro. Um elemento ω em um corpo F é uma raiz n-ésima da unidadese ωn = 1, ou seja, se é uma raiz do polinômio xn − 1. A ordem de qualquer raiz n-ésimada unidade como elemento do grupo multiplicativo F∗ é, portanto, um divisor de n; a raizé dita primitiva se sua ordem é igual a n.

O conjunto Un(F) das raízes n-ésimas é um subgrupo finito do grupo multiplicativo deum corpo, sendo portanto cíclico e cuja ordem divide n; vale que |Un(F)| = n se e somentese F possui uma raiz n-ésima primitiva.

Exemplo 9.1. É claro que U1(F) = {1} e U2(F) = {±1} para qualquer corpo F. Consideren ≥ 3. Para os números complexos, temos Un(C) ∼= Zn e uma raiz primitiva da unidadeé e2πi/n = cos(2π/n) + i sen(2π/n). Já para os números racionais ou reais, Un(Q) =Un(R) = {1} ou {±1} caso n seja par ou ímpar, respectivamente.

Recordemos alguns fatos sobre grupos cíclicos. Se G é cíclico de ordem n, então G ∼= Zn.Se g é um gerador de G, então ga é um outro gerador se e somente se mdc(a, n) = 1 e logoG possui exatamente φ(n) geradores, onde φ é a função de Euler. Um automorfismo de Gleva um gerador em outro gerador, sendo portanto da forma g 7→ ga com mdc(a, n) = 1.Segue daí que Aut(G) ∼= Z∗n.

Proposição 9.2. Tome k um subcorpo dos números complexos e ω ∈ C uma raiz n-ésimaprimitiva da unidade. Então a extensão k(ω) ⊃ k é galosiana e seu grupo de Galois é umsubgrupo de Z∗n, sendo portanto abeliano.

ÁLGEBRA III - 17 MAR 2016 29

Demonstração. Como k(ω) é o corpo de decomposição do polinômio xn − 1, a extensãok(ω) ⊃ k é normal e logo galoisiana. Seja σ um automorfismo desta extensão. A restriçãode σ ao grupo das unidades U = Un(k(ω)) induz um automorfismo deste grupo. Comobrinde, ganhamos um homomorfismo Galk k(ω) ↪→ Aut(U) ∼= Z∗n dado pela restrição,σ 7→ σ|U; este homomorfismo é injetor, pois σ = id se e somente se σ(ω) = ω.

Uma descrição mais concreta: como σ induz um automorfismo de U, temos σ(ω) = ωa

onde mdc(a, n) = 1. Por outro lado, como um k-automorfismo de k(ω) fica determinadopela sua imagem em ω, vem que σ fica determinado este expoente, e denotamos aσ = a.O homomorfismo Galk k(ω) → Z∗n fica dado por σ 7→ aσ. Note que στ 7→ aσaτ, pois(στ)(ω) = σ(ωaτ) = ωaσaτ . �

Temos uma descrição mais precisa quando o corpo de base são os números racionais.

Teorema 9.3. Sejam n ≥ 1 e ω ∈ C uma raiz n-ésima primitiva da unidade. Então[Q(ω) : Q] = φ(n). Consequentemente, GalQQ(ω) ∼= Z∗n.

Demonstração. Começamos com um resultado auxiliar.

Afirmação: Se ω é uma raiz n-ésima primitiva da unidade, f seu polinômio minimal sobreQ e p é um primo tal que p - n, então

f(ωp) = 0.

De fato, como f divide xn − 1, existe h ∈ Q[x] mônico tal que

xn − 1 = fh

Pelo Lema de Gauss, f, h ∈ Z[x]. Assuma que a Afirmação não valha, ou seja, f(ωp) 6= 0.Então h(ωp) = 0, o que significa que ω é uma raiz de h(xp). Como f é o polinômiominimal de ω, temos h(xp) = fg para algum polinômio g e, como anteriormente, temosg ∈ Z[x]. Considerando essa igualdade módulo p, temos

h(xp) = hp = fg em Zp[x]

e como Zp[x] é um domínio fatorial, segue-se que f e h possuem um fator comum. Masxn− 1 = fh temos uma contradição, pois o polinômio xn− 1 é separável uma vez que p - n.Logo nossa Afirmação vale.

Passemos à prova de que cada raiz n-ésima primitiva é uma raiz de f. Com efeito,tome m com mdc(m,n) = 1 e decomponha m = p1 · · ·pr como produto de primos, nãonecessariamente distintos. Dado que nenhum dos pi’s divide n, segue da Afirmação quef(ωp1) = 0 e daí pωp1 ,Q divide f; portanto estes polinômios são iguais, pois são irredutíveis.Agora, tome ω1 = ω

p1 ; esta é uma raiz n-ésima primitiva da unidade, e com o mesmo ar-gumento provamos que pω1,Q = pωp21 ,Q. Assim prosseguindo, concluímos que os polinômiosminimais de ω e ωm coincidem.

Em resumo, provamos que grau f ≥ φ(n). A outra desigualdade e a última afirmaçãodo enunciado seguem da Proposição 9.2. �

30 NIVALDO MEDEIROS

Dado um inteiro n positivo, o n-ésimo polinômio ciclotômico é o polinômio minimal,sobre k, de uma raiz n-ésima primitiva. Quando k = Q, o denotamos por Φn; vimos noTeorema 9.3 que este polinômio tem grau φ(n).

Exercício 9.4. As raízes de Φn são exatamente as raízes n-ésimas primitivas da unidade.

Exemplo 9.5. Se p é um número primo, então Φp = xp−1 + xp−2 + · · · + x + 1, poiseste polinômio divide xp − 1 e é irredutível sobre os racionais (troque x 7→ x + 1 e useEisenstein). Se n não é um número primo, encontrar Φn dá um pouco mais de trabalho.Por exemplo, Φ6 = x

2 − x+ 1 e há pelo menos duas maneiras de verificar isto. Uma delasvem do exercício acima: tomando ω = e2πi/6, basta multiplicar (x − ω)(x − ω−1) (noteque ω−1 = ω). A outra é recursiva, descrita pelo exercício abaixo.

Exercício 9.6. Prove que xn − 1 =∏

d|nΦd em Q[x], onde d percorre os divisores de n.Sugestão: agrupe as raízes n-ésimas de unidade de acordo com sua ordem e observe quepara um divisor d de n existem exatamente φ(d) raízes d-ésimas primitivas da unidadeem C. A partir daí fique de olho no Exercício 9.4.

Uma extensão F ⊃ k é ciclotômica se F é o corpo de decomposição do polinômio xn − 1para algum n.

Para ωn = e2πi/n, vimos que Q(ωn) ⊃ Q tem grupo de Galois Z∗n. No Exemplo 8.7descrevemos o caso n = 5 com detalhe: vimos ali que o grupo de Galois é cíclico, isomorfoa Z4 ∼= Z∗5. De fato, vale o seguinte (veja [GL02]):

Teorema 9.7. O grupo Z∗n é cíclico se e somente se n = 2, 4, pr ou 2pr, onde p é umprimo ímpar.

Exemplo 9.8. Analisamos agora o casoω = e2πi/8, uma raiz 8-ésima primitiva da unidade.A extensão Q(ω) ⊃ Q é galoisiana e tem grau 4, vide Teorema 9.3. Logo seu grupo

de automorfismos também tem ordem 4, digamos G = {σ1, σ3, σ5, σ7}. Os índices foramescolhidos dessa maneira porque cada σj é definido por ω 7→ ωj, uma vez que um auto-morfismo permuta as raízes primitivas da unidade (que são as raízes do polinômio minimalde ω, pelo Exercício 9.4). Temos

σ23 = σ25 = σ

27 = id

poisω32 = ω52 = ω72 = 1 uma vez que 32 ≡ 52 ≡ 72 ≡ 1 (mod 8).

Logo não existem elementos de ordem 4 e portanto G ∼= Z2 × Z2, como previsto peloTeorema 9.7. Os corpos fixos correspondentes aos subgrupos 〈σ3〉, 〈σ5〉, 〈σ7〉 são todos ossubcorpos intermediários não-triviais da extensão, e os apelidamos F3, F5, F7.

Como encontrar esses corpos? Para grupos cíclicos 〈σ〉 há um truque clássico: bastaacompanhar a ação de σ no gerador da extensão e tomar a soma. Por exemplo, como σ3leva ω 7→ ω3 7→ ω, vem que u = ω+ω3 é fixado por este automorfismo e logo Q(u) ⊂ F3;e como [F3 : Q] = [G : 〈σ3〉] = 2 e u 6∈ Q (desenhe!), obtemos F3 = Q(u).

ÁLGEBRA III - 17 MAR 2016 31

Q(ω) {id}

Q(u) F5 F7 〈σ3〉 〈σ5〉 〈σ7〉

Q G

Exercício 9.9. Encontre os outros dois corpos fixos no exemplo anterior. Se estiver debom humor, descreva a correspondência de Galois para Q(e2πi/9); restando algum fôlego,faça para Q(e2πi/12).

10. solubilidade por radicais

Estamos em condições de resolver o problema levantado no início destas notas: decidirquando um polinômio tem suas raízes expressas em termos das operações +,−,×,÷, n

√·

aplicadas aos coeficientes. Nossa estratégia é reformular o problema em termos de extensõesde corpos e em seguida resolvê-lo via a correspondência de Galois.

Como motivação, considere os exemplos:

Exemplo 10.1.

(1) Tome f = x4 − 6x2 + 7 ∈ Q[x]. Suas raízes são ±√3±√2. Para obtê-las, conside-

ramos a torre de extensões

Q ⊂ Q(√2) ⊂ Q(

√2)(√3+√2) ⊂ Q(

√2,√3+√2)(√3−√2)

obtidas adjuntando-se uma raiz de um elemento da extensão anterior. O últimocorpo da torre, contém todas as raízes de f. Note que todo elemento deste corpose escreve como somas, produtos e quocientes de raízes quadradas sucessivamenteaplicadas a números racionais.

(2) Tome f = x3 + 3x − 14 = (x − 2)(x2 + 2x + 7). Suas raízes são 2,−1 ± i√6 e

pertencem à extensãoQ ⊂ Q(

√−6)

onde√−6 é uma raiz do polinômio x2+6. Por outro lado, se utilizamos as fórmulas

de Cardano em (7), as raízes se escrevem como

u+ v, ωu+ω2v e ω2u+ωv

onde u =3√7+√50, v =

3√7−√50 e ω = e2πi/3 é uma raiz cúbica da unidade.

Considere a torre de extensões

Q ⊂ Q(ω) ⊂ Q(ω)(√50) ⊂ Q(ω,

√50)(

3√7+√50)

que são obtidas adjuntando-se sucessivamente raízes quadradas e cúbicas de ele-mentos da extensão anterior. Mais uma vez, o maior corpo da torre contém todasas raízes do polinômio f (note que u+v = 2, veja (9)). Um destino, vários caminhos.

32 NIVALDO MEDEIROS

Dado a em um corpo k, uma raiz n-ésima de a é um elemento u em alguma extensãode k tal que un = a. Escrevemos u = n

√a. Um aviso sobre a simbologia: ao contrário da

convenção para números reais (onde n√a denota a única raiz positiva de xn − a), no nosso

contexto n√a é sempre ambíguo e indica qualquer uma das raízes de xn − a.

Uma extensão F ⊃ k é radical se pode ser decomposta em uma torre

k = F0 ⊂ F1 ⊂ · · · ⊂ Fr = Fde modo que cada corpo é obtido adjuntando-se uma raiz ?-ésima de um elemento do corpoanterior, isto é: Fi = Fi−1( ni

√ai) onde ai ∈ Fi−1 e os ni’s são inteiros positivos.

Um artifício, tão simples quanto útil: se todos os ni’s são iguais entre si, digamosn1 = · · · = nr = n, a extensão é dita n-radical ; e de fato toda extensão radical é m-radicalpara algum m: basta tomar m = n1 · · ·nr.

Um polinômio f ∈ k[x] é solúvel por radicais se existe uma extensão radical F ⊃ k talque f se decompõe em F (note: não pedimos aqui que F seja o corpo de decomposição def, mas apenas um corpo no qual f se fatore linearmente).

Exercício 10.2. Se F ⊃ E e E ⊃ k são radicais, então F ⊃ k é radical.

Antes de provar o teorema de Galois, precisamos de dois resultados auxiliares. O primeirodescreve o grupo de Galois em extensões obtidas adjuntando-se raízes.

Lema 10.3. Suponha k é um subcorpo de C e que k contém uma raiz n-ésima primitivada unidade. Dado a ∈ k, a extensão k( n

√a) ⊃ k é galosiana com grupo de Galois cíclico.

Demonstração. Seja ω ∈ k uma raiz n-ésima primitiva e denote u = n√a. Temos que

xn − a é um polinômio em k[x] que possui n raízes distintas, a saber u,ωu, . . . ,ωn−1u eportanto a extensão k(u) ⊃ k é normal — e logo galoisiana.

Um automorfismo σ desta extensão fica determinado pela sua ação em u. Daí, comoσ(u) = ωaσu para algum aσ ∈ {0, . . . , n− 1}, o expoente aσ determina σ. Definindo

Galk k(u)→ Zn (a 7→ aσ)

obtemos um homomorfismo, pois στ 7→ aσ + aτ, já que στ(u) = σ(ωaτu) = ωaσ+aτu.Finalmente, se σ 7→ 0, então σ(u) = u e logo σ = id, e portanto nosso homomorfismo éinjetor. Isto termina a prova. �

Eis o segundo, de natureza puramente técnica.

Lema 10.4. Considere uma extensão F ⊃ k (de subcorpos de C) n-radical. Então existeum corpo N ⊃ F tal que a extensão N ⊃ k é normal e n-radical.

Demonstração. Por hipótese, existe uma torre

k = F0 ⊂ F1 ⊂ · · · ⊂ Fr = Ftal que Fi = Fi−1(ui) e onde ui é raiz de xn − ai−1 ∈ Fi−1[x].

Podemos supor que k contém uma raiz n-ésima primitiva da unidade (adjunte caso sejanecessário). Então k(u1) é o corpo de decomposição de xn − a0, e portanto F1 ⊃ k é umaextensão normal. Tome f1 =

∏σ(x

n − σ(a1)) onde σ percorre o grupo de automorfismos

ÁLGEBRA III - 17 MAR 2016 33

Galk F1. Então cada σ fixa cada um dos coeficientes de f1, o que mostra que f1 ∈ k[x]; eadjuntando as raízes de f1 sucessivamente ao corpo F1, obtemos um corpo R, que é umaextensão n-radical de F1. Logo R ⊃ k é uma extensão normal (é dada pelo corpo dedecomposição de f1) e n-radical. Assim prosseguindo, obtemos a extensão N ⊃ F ⊃ kdesejada. �

Recorde que um grupo G é solúvel se existe uma cadeia de subgrupos

G = G0 B G1 B G2 B · · · B Gn = {id}

tal que cada quociente Gi−1/Gi é um grupo abeliano.

Proposição 10.5. Seja N um subgrupo normal de um grupo G. Então G é solúvel se esomente se N e G/N são solúveis.

Teorema 10.6 (Galois). Suponha que k é um subcorpo de C. Dado f ∈ k[x], seja F ocorpo de decomposição de f. Então f é solúvel por radicais se, e somente se, Galk F é umgrupo solúvel.

Demonstração. Suponha que f é solúvel por radicais. Então existe uma extensão n-radicalR ⊃ k tal que R ⊃ F. Seja ω = e2πi/n ∈ C uma raiz n-ésima primitiva da unidade. EntãoR(ω) também é uma extensão n-radical de k. Pelo Lema 10.4, existe N ⊃ R(ω) tal queN ⊃ k é normal e n-radical.

Temos então uma torre de corpos (começamos adjuntando a raiz da unidade)

k = N0 ⊂ k(ω) = N1 ⊂ N2 ⊂ · · · ⊂ Nr = N

onde Ni = Ni−1( n√ai) e ai ∈ Ni−1 para i ≥ 2.

Sejam G = GalkN e Gi = GalNi N. Da correspondência de Galois, obtemos uma cadeiade subgrupos

G = G0 B G1 B G2 B · · · B Gr = {id}onde cada subgrupo é de fato normal no seguinte, uma vez que Ni−1 ⊂ Ni é uma extensãonormal e tendo em vista o Teorema 8.12. Do mesmo teorema vem que Gi−1/Gi é isomorfoa GalNi−1 Ni, e este grupo é abeliano: para i = 1 isto segue da Proposição 9.2, pois N1 ⊃ ké ciclotômica; para i ≥ 2, vem do Lema 10.3 que o grupo de Galois de Ni ⊃ Ni−1 é cíclico,pois o corpo de base destas extensões contém uma raiz n-ésima primitiva da unidade.

Logo G é um grupo solúvel. Finalmente: como F ⊃ k é normal, mais uma vez lançamosmão do Teorema 8.12 para concluir Galk F ∼= G/GalFN, que é um grupo solúvel pelaProposição 10.5. Terminamos assim esta parte da demonstração.

A recíproca requer algo mais, aguarde em uma versão futura destas notas. �

Exemplo 10.7. Considere f = x5 − 4x+ 2 ∈ Q[x]. Afirmamos que o seu grupo de Galoisé isomorfo ao grupo S5 de permutações de 5 elementos.

Com efeito, sejam F o corpo de decomposição de f sobre Q e G = GalQ F. Como vimosna Proposição 7.10, podemos ver G como um subgrupo de S5. Como f é irredutível, temosque [Q(u) : Q] = 5 para qualquer raiz u de f. Isso nos diz que 5 divide [F : Q] = |G|; vem

34 NIVALDO MEDEIROS

do Teorema de Cauchy que G contém um elemento de ordem 5 e logo possui um 5-ciclo(se p é primo, todo elemento de ordem p de Sp é um p-ciclo).

Por outro lado, uma análise com derivadas e convexidade lá dos nossos bons temposde Cálculo mostram que f possui exatamente duas raízes complexas não-reais, que sãoconjugadas entre si. Daí, se τ : C→ C é a conjugação complexa, então τ troca essas duasraízes e fixa as outras três; ou seja, τ|F, visto como um elemento de G, é uma transposição— note que a restrição de τ a F de fato define um automorfismo, pois F ⊃ Q é normal.

Em resumo, G é um subgrupo de S5 que contém um 5-ciclo e uma transposição e logoG = S5 (se p é primo, então Sp é gerado por um p-ciclo e uma transposição). Como S5 nãoé um grupo solúvel, vem do Teorema 10.6 que o polinômio f não é solúvel por radicais. 2

Do lado positivo da força, é claro que existem equações quínticas solúveis por radicais.Eis um exemplo interessante, explicado em detalhe em [BSW02, p. 29]:

x5 + 15x+ 12 = 0

tem como uma de suas soluções

5

√−75+ 21

√10

125+

5

√−75− 21

√10

125+

5

√225+ 72

√10

125+

5

√225− 72

√10

125

e as outras raízes tem expressão similar.

Exercício 10.8. Os polinômios x5 − 20x2 + 20, x5 + x− 1 e x5 − 2ax+ a (a ≥ 2) tambémtem S5 como grupo de Galois e portanto não são solúveis por radicais sobre Q.

Exercício 10.9. A construção do Exemplo 10.7 generaliza-se com facilidade: Se p é umprimo e f é um polinômio irredutível em Q[x] de grau p com exatamente duas raízescomplexas não-reais, então GalQ f ∼= Sp, o grupo de permutações de p elementos.

Você consegue encontrar um exemplo para p = 7?

ÁLGEBRA III - 17 MAR 2016 35

Segunda Parte

11. corpos algebricamente fechados

11.1. O fecho algébrico. Todo polinômio não constante com coeficientes complexos possuiuma raiz em C. Este é o famoso Teorema Fundamental da Álgebra. Apresentamos abaixo(Teorema 11.7) uma demonstração, mais algébrica, que faz uso da correspondência deGalois e da teoria de grupos.

Uma consequência é que todo polinômio em C[x] se decompõe totalmente, isto é, podeser escrito na forma c(x− z1) · · · (x− zn) onde c, z1, . . . , zn são números complexos.

Se k é um corpo qualquer, não necessariamente contido em C, o que podemos dizer?Nossa questão é: dado um polinômio em k[x], existe um corpo que contenha todas suasraízes? Mais ambiciosamente: existe um corpo que contenha todas as raízes de todos ospolinômios de k[x]?

A resposta é. . . sim!

Teorema 11.1 (Kronecker). Dado um polinômio p com coeficientes em um corpo k, existeuma extensão finita F ⊃ k na qual p de decompõe totalmente.

Demonstração: Podemos supor que p é irredutível em k[x] (caso não seja, consideramos umfator irredutível de p). Considere o ideal (p) ⊂ k[x] dos múltiplos de p e seja F = k[x]/(p)o anel quociente. Afirmamos que F é de fato um corpo. Com efeito, seja f ∈ k[x] tal quef 6= 0. Então p não divide f e, sendo p irredutível, mdc(p, f) = 1. Logo existem g, h ∈ k[x]tais que gp+ fh = 1, ou seja, fh = 1. Assim f é invertível em F.

O homomorfismo k→ F dado por a 7→ a é injetivo e logo F contém uma cópia isomorfade k. Finalmente, x é uma raiz de p, pois p(x) = p = 0 em F. Esta extensão é finita, umavez que F = k(x).

Tendo encontrado em F uma raiz u de p, fatoramos p = (x − u)g com g ∈ F[x], econstruímos uma extensão finita de F que contenha uma raiz de g; assim prosseguindo, emum número finito de etapas obtemos uma extensão de k contendo todas as raízes de p. �

Se temos uma coleção finita de polinômios, então uma aplicação sucessiva do teorema deKronecker nos fornece uma extensão com todas as raízes desses polinômios. A demonstra-ção para uma coleção infinita é mais elaborada, necessariamente envolve o Lema de Zorne, sorrateiramente, a omitimos; consulte [Lang02], [Morandi96].

Um corpo F é algebricamente fechado se cada polinômio não-constante em F[x] possuiuma raiz em F. O corpo dos números complexos é um exemplo. Um fecho algébrico de umcorpo k é um corpo algebricamente fechado F tal que a extensão F ⊃ k é algébrica.

Fechos algébricos sempre existem e são, essencialmente, únicos:

Teorema 11.2. Seja k um corpo qualquer. Então k possui um fecho algébrico. Ainda, seF e F ′ são dois deles, então existe um k-isomorfismo F→ F ′.

Dada a unicidade, usualmente denotamos um fecho algébrico de k por k.

36 NIVALDO MEDEIROS

Exemplo 11.3. O corpo C é um fecho algébrico do corpo R dos números reais. Porém,C não é um fecho algébrico de Q, já que a extensão é transcendente. De fato, Q ⊂ C é oconjunto de todos os números algébricos.

Exercício 11.4. Mostre que Q é enumerável. O que você tem a dizer sobre a dimensãode Q como espaço vetorial sobre Q?

Exercício 11.5. Se F é um corpo algebricamente fechado contendo k e

A = {u ∈ F | u é algébrico sobre k},

então A é também é algebricamente fechado e logo A é um fecho algébrico de k.

11.2. O teorema fundamental da álgebra. Como uma aplicação da teoria de Galois,provamos agora que todo polinômio complexo não-constante possui uma raiz complexa.

A prova que apresentamos aqui repousa sobre um fato topológico: a reta real é conexa(suspeito que qualquer prova deva envolver esse fato, ainda que indiretamente — apreciariamuito se você puder me dizer algo mais profundo a respeito), o que implica que todopolinômio real de grau ímpar possui uma raiz real.

Para polinômios de grau pequeno não há muito a fazer.

Exercício 11.6. Todo polinômio de grau 2 com coeficientes complexos possui uma raizem C. Em particular, não existem extensões de C de grau 2.

Teorema 11.7. O corpo dos números complexos é algebricamente fechado.

Demonstração: Suponha que u é algébrico sobre C e seja N o fecho normal da extensãoC(u) ⊃ R. Então N ⊃ R é uma extensão galoisiana finita. Seja G seu grupo de Galois.

Sejam H o 2-subgrupo de Sylow de G e F = NH o seu corpo fixo. O índice [G : H] éigual ao grau da extensão F ⊃ R, e logo um número ímpar. Portanto, dado v ∈ F, o seu opolinômio mínimo sobre R tem também grau ímpar e consequentemente, pelo Teorema doValor Intermediário, possui uma raiz em R. Isso mostra que v ∈ R. Concluímos F = R, ouseja, H = G, e logo |G| é uma potência de 2.

Afirmamos que |G| = 2: caso contrário, tomaríamos um subgrupo não-trivial dentro do2-grupo G de índice 2 e teríamos, pela correspondência de Galois, uma extensão de grau 2de C, contradição com o resultado do Exercício 11.6.

Finalmente, segue da nossa afirmação que N = C e daí que u ∈ C, demonstrandoportanto que C é algebricamente fechado. �

12. a característica de um corpo

Entre todos os anéis, o dos números inteiros possui uma propriedade muito especial:para um anel k qualquer, sempre existe o homomorfismo canônico ϕ : Z→ k, dado por

n 7→ n · 1k = ±1k ± · · · ± 1k (|n| vezes).

O núcleo e a imagem deste homomorfismo são objetos interessantes. O núcleo é um idealde Z e logo da forma pZ para algum inteiro p ≥ 0. O número p é chamado a característica

ÁLGEBRA III - 17 MAR 2016 37

do anel k, que denotamos por car k. De maneira equivalente e talvez mais compreensível,a característica de k é o menor inteiro positivo p tal que

1k + · · ·+ 1k = 0 (p vezes) (17)

sendo que cark = 0 se isso não acontece.Há restrições para os possíveis valores de p quando k é um domínio. De fato, nesse

caso a imagem também é um domínio. Agora, pelo Teorema dos Homomorfismos, valeϕ(Z) ∼= Z/pZ e, como sabemos, este quociente é um domínio se e somente se p é zero ouum número primo. Isso acontece em particular no nosso contexto, nos casos em que k éum corpo, o que voltamos a assumir de agora em diante.

Essas duas situações, característica zero e positiva, dividem os corpos em classes bemdistintas. Por um lado, suponha que k tenha característica zero. Então ϕ é injetivo e logoϕ(Z) ∼= Z. Tomando o corpo de frações, concluímos que k contém uma cópia isomorfado corpo Q dos números racionais. Assim, todo corpo de característica zero possui umnúmero infinito de elementos. Se, por outro lado, cark = p > 0, então k contém um corpocom p elementos, a saber, ϕ(Z) ∼= Z/pZ. Aqui pode acontecer que k seja finito ou infinito.

O corpo primo k0 do corpo k é por definição o seu menor subcorpo, isto é, a interseção detodos os subcorpos de k. Passamos agora a caracterizar todos os possíveis corpos primos.

Seja F ⊂ k0 ⊂ k o corpo de frações da imagem do homomorfismo ϕ : Z → k0 acima,agora com contra-domínio em k0. Sendo F um subcorpo de k, temos, por definição, quek0 ⊂ F e logo F = k0. Assim, os únicos corpos primos existentes, a menos de isomorfismos,são Q e Z/pZ, para p primo. De agora em diante batizamos o único corpo com p elementospor Fp. Resumindo:

Proposição 12.1. A característica de um corpo k é zero ou um número primo. Quandocark = 0, o corpo contém uma cópia isomorfa do corpo Q dos números racionais; secark = p > 0, então k contém uma cópia isomorfa de Fp.

Exemplo 12.2.(1) Qualquer subcorpo de C tem característica zero.(2) Dado um primo p > 0, seja F o corpo de frações do anel de polinômios Fp[x]. Em

outras palavras, os elementos de F são frações da forma f/g de polinômios em Fp[x]com g 6= 0. Então F é um corpo com um número infinito de elementos e comcaracterística p.

12.1. Corpos finitos. Um corpo é finito se possui um número finito de elementos. Oscorpos finitos são particularmente importantes em aplicações, como criptografia, códigoscorretores de erros, processamento de imagens e muitas outras.

Um corpo finito F necessariamente possui característica positiva, uma vez que não contémuma cópia de Q. Então F ⊃ Fp, onde p = car F é um número primo. Em particular F é umFp-espaço vetorial de dimensão finita, digamos n. Temos assim um isomorfismo de espaçosvetoriais (Fp)n = Fp × · · · × Fp e em particular o corpo F possui pn elementos. Acabamosde mostrar que a cardinalidade de qualquer corpo finito é uma potência de um númeroprimo. Por exemplo, não existem corpos com 10 ou 36 elementos.

38 NIVALDO MEDEIROS

O conjunto F∗ das unidades de F é um grupo multiplicativo, de ordem pn − 1. Dadoa ∈ F∗, segue do teorema de Lagrange que sua ordem divide pn − 1 e logo apn−1 = 1.Incluindo o zero, temos que todo elemento de F é uma das raízes de xpn − x, que são emnúmero ≤ pn. Mas esta é a cardinalidade de F; a conclusão é que existem de fato pn raízes,que são exatamente os elementos de F.

Reciprocamente, vamos mostrar que todo corpo finito pode ser construído desta maneira.Sejam dados um número primo p e um inteiro n ≥ 1. Tome F um fecho algébrico de Fp.Sendo p primo, p divide

(pi

)para cada i = 1, . . . , p− 1 e logo

(a+ b)p = ap + bp

para quaisquer a, b ∈ F. Indutivamente, obtemos

(a+ b)pr

= apr

+ bpr

(r ≥ 0). (18)

Seja S ⊂ F o conjunto das raízes do polinômio xpn − x. Dados a, b ∈ S, segue de (18)a+b ∈ S e, evidentemente −a, ab e 1/a (a 6= 0) são elementos de S. E como 0, 1 tambémestão em S, temos que S é um subcorpo de F. Finalmente, xpn−x é um polinômio separável(tome a derivada), e logo suas raízes são distintas duas a duas, o que mostra |S| = pn.

Eis o resumo de todo nosso bate-papo.

Teorema 12.3. Se F é um corpo finito, então |F| = pn, onde p é a característica de F.Reciprocamente, dados p primo, n ≥ 1 e fixado um fecho algébrico de Fp, então existeexatamente um único corpo finito com p elementos, denotado Fpn, que é dado pelas raízesdo polinômio xpn − x. Finalmente,

Fpm ⊂ Fpn ⇐⇒ m | n.

Demonstração. Basta provar a última afirmação do teorema. Se Fpm ⊂ Fpn é uma extensãode grau a, então do isomorfismo de espaços vetoriais Fpn ∼= (Fpm)a vem que pn = (pm)a,donde n = ma. Reciprocamente: se m | n, então xpm − x divide xpn − x e daí vem queFpm ⊂ Fpn . �

Eis um diagrama que ilustra o reticulado formado pelos corpos finitos:

Fp8 Fp12...

Fp4 Fp6 Fp9 · · ·

Fp2 Fp3 Fp5 Fp7

Fp

ÁLGEBRA III - 17 MAR 2016 39

13. o teorema do elemento primitivo

Seja F ⊃ k uma extensão de corpos. Dizemos que u é um elemento primitivo da extensãose F = k(u). Seu pressentimento está correto: nem toda extensão admite um elementoprimitivo. Mas isto ocorre em uma situação bem geral, um resultado muito útil.

Teorema 13.1 (Elemento primitivo). Seja F ⊃ k uma extensão finita e separável. Entãoexiste w ∈ F tal que F = k(w).

Demonstração: A prova se divide em dois casos. No primeiro, supomos que k é um corpofinito. Então F é também um corpo finito e logo basta tomar w como um gerador do grupomultiplicativo F∗ (que é cíclico).

Assuma k infinito. Começamos com o caso em que F é gerado por apenas dois elementos,digamos F = k(u, v). Sejam f, g ∈ k[x] os polinômios minimais de u, v sobre k e {u =u1, . . . , ur} e {v = v1, . . . , vs} as raízes desses polinômios. Escolha c ∈ k tal que

u+ cv 6= ui + cvjpara todo i e todo j ≥ 2, ou seja, escolha c fora do conjunto finito

{(ui − u)/(v− vj) | i = 1, . . . , r, j = 2, . . . , s}.

Tome w = u + cv. Então v é uma raiz dos polinômios g(x) e f(w − cx), que estão emk(w)[x]. Seja h o polinômio minimal de v sobre k(w). Então h divide tanto g(x) comof(w − cx); por outro lado, segue da escolha de c que v é a única raiz comum de g(x) ef(w − cx) e, como h é separável, obtemos h = x − v. Concluímos que v e a posteriori u,estão em k(w), o que termina este caso.

Para o caso geral: como F ⊃ k é uma extensão finita, temos F = k(u1, . . . , un) onde cadaui é algébrico sobre k e perfazemos indução sobre o número n de geradores, aplicando ocaso anterior: k ⊂ k(u1, u2) ⊂ k(u1, u2, u3) = k(w,u3) ⊂ · · · . Convido você a preencheros detalhes. �

A demonstração fornece um método para encontrar um elemento primitivo.

Exercício 13.2. Encontre elementos primitivos para as extensõesQ(√2,√3) eQ(

√2,√3,√5)

sobre os números racionais.

Há ainda uma outra variante, devida a Steinitz, em termos dos corpos intermediários.

Teorema 13.3. Uma extensão é finita e separável se e somente se possui um número finitode corpos intermediários.

Demonstração. �

e

40 NIVALDO MEDEIROS

14. depois do horizonte

Há ótimas referências para aprender mais sobre o assunto. A lista apresentada abaixonão é completa e acredito que qualquer tentativa nesse sentido seria vã. Alguns comentáriossobre as escolhas que fiz.

Emil Artin [Artin66] é o clássico, um primor em simplicidade e elegância; Serge Lang (umaluno de Artin) [Lang02] é semi-enciclopédico; Patrick Morandi [Morandi96] é moderno,bem escrito, apontando conexões com tópicos mais avançados; John Stillwell [Stillwell94]é ligeiro e me agrada bastante pela simplicidade e eficiência, e ainda traz consigo algode história; David Cox [Cox12] é recente, com viés computacional, de rara riqueza emexemplos e construções clássicas. O artigo da Wikipedia [Wiki] é quase obrigatório: é aponta de um novelo que traz prazer ao puxar, seja pela matemática, seja por aprendermais da tragédia que pairou, insistente, sobre a curta vida de Galois.

Enfim, minha predileção recai sobre Galois Theory, de Ian Stewart [Stewart03] e Algebra,de Michael Artin [Artin91], duas delícias explícitas de leitura.

Referências

[Artin66] E. Artin, Galois Theory, Notre Dame Mathematical Lectures Number 2, 1966.[Artin91] M. Artin, Algebra, Prentice-Hall, 1991.[BSW02] B.C. Berndt, B.K. Spearman and K.S. Williams, Commentary on a unpublished lecture by G.N.

Watson on solving the quintic. Mathematical Intelligencer 4(24), 1 5–33, 2002.[Cox12] D. Cox, Galois Theory, 2nd. edition, John Wiley & Sons, 2012.[GL02] A. Garcia, Y. Lequain, Elementos de álgebra, Projeto Euclides, IMPA, 2002.[Herstein75] I. Herstein, Topics in Algebra, 1975.[Kaplansky69] I. Kaplansky, Fields and Rings, University of Chicago Press, 1969.[Lang02] S. Lang, Algebra, GTM 211 (Revised third ed.), Springer-Verlag, 2002.[Morandi96] P. Morandi, Field and Galois Theory, GTM 167, Springer-Verlag, 1996.[BMST10] F. Brochero, C. Gustavo Moreira, N. Saldanha, E. Tengan, teoria dos números, IMPA, 2010.[Rotman98] J. Rotman, Galois Theory, (New York, 1998).[Rowen95] L. Rowen, Algebra: Groups, Rings, and Fields, A. K. Peters, Ltd., 1995.[Galois] E. Galois, Œuvres Mathématiques, Journal de Liouville, 1846.[Stewart03] I. Stewart, Galois Theory, Chapman & Hall, 2003.[Stillwell94] J. Stillwell, Elements of Algebra, UTM, Springer, 1994.[Tignol88] J.-P. Tignol, Galois’ Theory of Algebraic Equations, Longman, New York, 1988.[Vilella] M. L. Vilella, Notas de aula para o curso de Álgebra III, UFF, 2010.[Wiki] Wikipedia, Évariste Galois: pt.wikipedia.org/wiki/Évariste_Galois