nimuendaju_1958_machacaris

10
flmS 0480 REVISTA DE ANTROPOLOGIA UIRETOR: EGON SCHADEN, UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS CAIXA POSTAL 5459, SÃO PAULO, BRASIL Curt Nimuendajú ÍNDIOS MACHACARÍ SEPARATA DO VOLUME 6.°, NÚMERO 1. JUNHO D E 19S8. NMkrthtk f) m S im jtathropos O 4 ? 0 Biblioteca Digital Curt Nimuendajú http://biblio.etnolinguistica.org/nimuendaju_1958_machacari

Upload: rexnfoid

Post on 17-Nov-2015

3 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Relatório de Curt Nimuendajú após visita a um grupo maxakali em 1939.

TRANSCRIPT

  • flmS 0480 REVISTA D E ANTROPOLOGIA

    UIRETOR: EGON SCHADEN, UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE D E FILOSOFIA, CINCIAS E L E T R A S

    CAIXA POSTAL 5459, SO PAULO, BRASIL

    Curt Nimuendaj

    N D I O S M A C H A C A R

    SEPARATA DO VOLUME 6., NMERO 1. JUNHO D E 19S8.

    NMkrthtk f ) m S im

    jtathropos O 4 ? 0

    Bib

    liote

    ca D

    igit

    al C

    urt N

    imue

    ndaj

    ht

    tp:/

    /bib

    lio.e

    tnol

    ingu

    isti

    ca.o

    rg/n

    imue

    ndaj

    u_19

    58_

    mac

    haca

    ri

  • N D I O S M A C H A C A R

    Curt Nimuendaj

    Temos a satisfao de publicar neste nmero um relatrio indito de Curt Nimuendaj, datado em Belm do Par, aos 22 de maio de 1939, e dirigido ao Ten.-Cel. Vicente de Paula Teixeira da F . Vasconcelos, en-to Chefe do Servio de Proteo aos ndios . Em vista da escassez de informes fidedignos sobre os Machacar, as observaes do eminente cien-tista falecido em 1945 se revestem de especial importncia. Dos dados aqui expostos alguns foram aproveitados no capitulo "The Mashakal, Patash, and Malali Linguistic Families" (Alfred Mtraux and Curt Nimuendaj), do Handbook of South American Indians (vol. I , pgs. 541-545, Washington, 194(5), editado por Julian H. Steward. Ao Prof. Darcj r Ribeiro, etnlogo do Servio de Proteo aos ndios, que teve a bondade de nos fornecer uma cpia do relatrio, apresentamos os nossos cordiais agradecimentos.

    E. Sch.

    Tendo concludo a minha viagem aos ndios da zona compreendida entre os Rios Contas e Doce, cumpre-me em primeiro lugar agradecer mais uma vez ao S. P . I . na pessoa do seu digno chefe as gentilezas com que me v i tratado, durante a minha estada nos Postos Paraguau, Guido Marl ire e Pancas.

    Como a minha permanncia no primeiro desses Postos coincidisse com a viagem de inspeo do sr. Cap. H . Diniz Ribeiro, e sabendo que a chegada do mesmo fiscal era esperada nos Postos do Rio Doce quando de l me retirei, vejo-me ipso facto dispensado de qualquer apreciao sobre as condies dos ndios naqueles estabelecimentos, certo que es-tou de que o sr. Cap. Diniz j vos ter dado todas as informaes que possam interessar ao Servio, com aquele critrio seguro que tive ocasio de admirar nele.

    Peo, portanto, apenas licena para chamar a ateno do S . P . I . para um agrupamento de ndios que vive fora dos raios de ao do Ser-vio: os Machacar , nos formadores do rio I tanham (Rio de Alcoba- a ) no Estado de Minas, junto divisa oriental com o Estado da Bahia.

    1. NOME Desconheo a origem do nome Machacar . le no pertence nem ao Tupi , nem lngua prpria da t r ibo . Poucos entre os ndios o conhecem hoje como designao neobrasileira, antiquada para aquela parte de tribo que habitava no Jequitinhonha. Pronunciam-no "Matchkadi", pois sua lngua no possui nem ch, nem r, nem 1.

  • 54 Curt Nimuendaj

    O nome mencionado pela primeira vez por Silva Guimares em 1734 na forma de Machacar . Navarro de Campos (1808) escreve Ma-xacuri. Ayres Cazal: Machacaris, Saint-Hilaire: Machaculis, o Prnci-pe von Neuwied: Machacalis e Machacaris, Pohl: Machacalis, da mes-ma forma Tefilo Ottoni, e Martius: Machacaris. Este lt imo d co-mo sinnimos t a m b m Majacars, Majacals e Machacarys.

    Os vizinhos neobrasileiros no conhecem nenhum nome particular para a tribo em ques to .

    A autodenominao Monac bm (opostpalatal, c tch, o , bm reduzido). O final em co bm se encontra frequentemente em nomes de tribos desta famlia lingustica: Assim os Machacar desig-nam com o nome de Keyg-co bm (de kehy sapucaia) a tribo vizi-nha dos Patacho, e os Mono-x, Capo-x, Cumuna-x e talvez os prprios Pata-x sejam membros da mesma famlia lingustica.

    Os ndios, com seu conhecimento deficiente da lngua brasileira, no me puderam traduzir o mon do nome Mona-co bm, mas compreenden-do muito bem o que eu desejava saber, explicaram-me mimicamente: voltando da roa mon; chegando a casa de volta da viagem mo-na. Nos meus apontamentos lingusticos encontro: moni entra: Monac bm portanto parece significar: os que voltaram (para casa). Ignoro o acontecimento histrico em que se baseia esse nome.

    Saint-Hilaire menciona uma tribo dos Monax, Monox ou Munu-x que, alguns anos antes da viagem dele (1817), veio em nmero de 200 cabeas do Cuyat ( ? ) , formando depois com os restos dos Malalis e outras tribos a populao indgena do Quartel de P e a n h a . A julgar pelo pequeno vocabulrio tomado por aquele viajante, trata-se de uma tribo aparentada, mas no idntica aos Monac bm Machaca r .

    HISTRIA A histria dos Machacar se desenrolou na rea com-preendida entre o Jequitinhonha ao norte, o So Mateus ao sul, o Atln-tico a leste e o meridiano de 41 30' a oeste.

    Ao que me consta, a primeira meno da tribo feita numa carta de 26 de naio de 1734, do Mestre de Campo Joo da Silva Guimares, clebre pelas suas empresas na regio do Mucuri , So Mateus e Rio Doce durante a primeira metade do sculo X V I I . (Felisbelo Freire: Histria Territorial do Brasil. I . Rio, 1906; pg. 161) . No ano de 1730 comeou le a sua conquista das cabeceiras do So Mateus. Parece-me entretanto que naquela poca ainda pairava certa confuso sobre a si-tuao delas e que o que era t ido como cabeceira do So Mateus de fato eram afluentes do M u c u r i .

    Relata F. Freire: "Em busca das cabeceiras do rio So Mateus, o chefe da bandeira (J . da Silva Guimares ) tinha de atravessar regies habitadas por certas tribos. A primeira com que lutou foi a dos Macha-caris, inimigos acrrimos do todo bandeirante que no fosse paulista. Neste encontro perdeu o seu i rmo e muitos membros da bandeira. E m

  • ndios Machacar 55

    vista da resistncia dos Machacaris, Silva Guimares desistiu do seu in-tento de galgar as cabeceiras do So Mateus e dirigiu-se para as do Rio Doce".

    Na segunda metade do sculo X V I I I , provavelmente em consequn-cia da ento j muito pronunciada expanso das tribos dos Botocudos, foi pelo menos uma parte dos Machacar obrigada a recuar a t beira-mar: em 1786 se submeteram 120 membros desta tribo em Porto Alegre, na foz do Mucur i . E m 1798 eles moravam juntos com os seus parentes de lngua, os Macun , perto de Caravelas. (Incio Accioly Cerqueira: Dis-sertao Histrica, Etnogrfica e Poltica. Rev. Inst. Hist. Geogr., X I I . Rio, 1849, pg. 143) (Saint-Hilaire: Voyage. I I , pg. 206. Pohl: Reise, I I , pg. 468) .

    E m 1801 esses Machacaris se retiraram novamente da costa para o interior, aparecendo em Tocois, no Baixo Jequitinhonha, onde per-maneceram at 1804. Depois foram transferidos rio acima para o en-to Quartel de So Miguel pelo comandante Ju l io Fernandes Leo, que naquela poca mantinha a guerra contra os Botocudos no Jequiti-nhonha. Jul io incorporou os homens da tribo ao destacamento debai-xo do seu mando, mas, como os outros soldados perseguissem as mulhe-res dos ndios, estes se retiraram outra vez rio abaixo, primeiro para a Ilha do Po, onde em 1817 foram visitados por Saint-Hilaire (op. cit., I I , pg. 208) e depois ainda mais longe, para a boca do Ribei ro Prates, onde os encontrou Pohl (op. cir., I I , pg. 446) no ano seguinte.

    Visivelmente, porm, esses Machacar da costa e do Jequitinhonha s representavam uma parte da tribo, enquanto a outra se manteve no interior em relativa independncia, se bem que em lutas com os Boto-cudos ( Ipky-cayk Orelhas grandes) . Assim o Prncipe von Neu-wied em 1816 encontrou uma pequena aldeia de Machacar no Baixo Jucurucu (Rio do Prado. Reise, I , pgs. 234, 275, 285. Ayres Cazal: Corografia Braslica, I I , pg. 7 4 ) .

    O aldeamento dos Machacar no Jequitinhonha, atual vila Guarani, tinha o nome de Farrarxho e a princpio progrediu bem ( T . Ottoni: Notcia, pg. 194) . Existiu como tal a t os fins do sculo passado. De-pois os ndios, devido ao aperto cada vez mais insuportvel, e que s trazia um nmero sempre crescente de adventcios neobrasileiros ao po-voado, tiveram de retirar-se rumo a leste, para o Ribeiro do Rubim (do sul) . Os poucos que permaneceram em Farrancho morreram ou se misturaram aos neobrasileiros.

    No Rubim, os Machacar tiveram a sua aldeia na margem esquer-da, pouco acima da atual vila U n i o . E m 1917, um homem abastado, conhecido por Tenente Henrique, apossou-se das terras da aldeia, man-dando demarc- las . Como os ndios teimaram em no levar em conta as suas pretenses, negando-se a evacuar o lugar, o Tenente Henrique em 1921 assaltou-os mo armada e, matando uma dzia deles, disper-

  • 56 Curt Nimuendaj

    sou o resto, que afinal procurou refgio entre aqueles seus parentes que desde tempos antigos habitavam na regio das cabeceiras do I t anham (Rio de Alcobaa) .

    TERRITRIO ATUAL. Os Machacar consideram c o m o terras desde tempos antigos habitavam na T e g i o das cabeceiras do Rio I ta-nham pela margem esquerda, e igualmente a situada em ambas as mar-gens da gua Boa que despeja no Ribeiro do Norte, afluente t a m b m do I tanham, que corre paralelo a o Umburanas e a oeste dele. Este ter-ritrio, relativamente pequeno, mede uns 12 k m de N E a SO, e uns 10 de N O a SE. O nmero dos Machacar a existentes de 120-140 cabe-as . U m tero deles s o mestios. No h Machacar fora dessa r e a .

    H duas aldeias, cada uma de 13 a 15 choas, a primeira sobre a margem esquerda da gua Boa, a segunda, 7 k m a leste dela, na mar-gem do Umburanas, no lugar denominado P da Pedra. No se trata, porm, de dois grupos locais definitivamente separados, e sim de uma e a mesma comuna, que, total ou parcialmente, habita ora numa, ora noutra aldeia. Todas as famlias t m choas e a maioria t a m b m plan-taes em ambas as aldeias. Quando eu em comeo de janeiro de 1939 procurei a tribo, estava ela reunida at o lt imo membro na gua Boa. E m fins de janeiro ela se achava dividida em partes iguais entre as duas aldeias. Em comeo de fevereiro todos estavam juntos na aldeia do P da Pedra, mas em fins do mesmo ms uma parte j se tinha novamente retirado para gua Boa. Frequentemente encontrei membros da mes-ma famlia em ambas as aldeias.

    No compreendi bem a razo dessa diviso, mas suponho que ela forma apenas uma medida de preveno contra os intrusos que amea-am as terras dos ndios. Se estes deixassem qualquer das duas aldeias desamparadas por um ano apenas, os intrusos imediatamente haviam de apossar-se da "tapera", enquanto pela forma como procedem eles man-tm de fato a posse de ambos os pontos, sem terem necessidade de se dividirem definitivamente em dois grupos locais, o que talvez lhes re-pugnasse por motivos sociolgicos.

    A terra, apesar de ligeiramente acidentada, era tima para a la-voura. Os ribeires gua Boa, Pradinho e Umburanas conduzem exce-lente gua e nunca secam.

    Hoje, porm, j dois teros desse paraso dos ndios lavradores e caadores, que estava coberto de mata ininterrupta, esto transformados em vastas pastagens de capim-colnia, na sua maior parte sem uma nica rez, pelos intrusos; e com isto cheguei ao ponto principal da minha ex-posio.

    A.S RELAES ENTRE NDIOS E INTRUSOS. Quando h uns 20 anos atrs os primeiros moradores neobrasileiros fundaram o po-voado de Umburanas, j vivia entre os Mac ia :ar um certo Joaquim Fa-

  • ndios Machacar 57

    gundes, que possua a confiana dos ndios. Segundo a tradio, esse be-nemrito sertanejo gastou a soma de 38:000$000 para "amansar aquelas feras", que eram os Machacar , alis j mais do que mansos quando em 1816 a 1818 foram visitados por Saint-Hilaire, Pohl e Neuwied. No sei onde le apresentou a sua conta de despesas ao Governo, que natu-ralmente no a reconheceu. Fagundes ento resolveu considerar toda a terra da tribo como constituindo diversas posses deles, que le vendeu sucessivamente por preo total aproximadamente igual quela soma que le pretendia ter gasto com o "amansamento" dos ndios. Para moradia destes ltimos no ficou um nico palmo sequer. De fato Fagundes t i -nha a algumas benfeitorias, feitas porm exclusivamente pelo brao dos ndios "dele".

    Por diversas vezes le recebeu do Governo roupas e ferramentas para os ndios. Fagundes apresentou os compradores das terras como amigos particulares dele e portanto t ambm dos ndios, e estes ltimos a princpio no fizeram questo de deixrlos morar junto . Quando, po-rm, Fagundes tinha embolsado o pagamento da venda das lt imas ter-ras dos ndios, le tratou de sumir da zona, deixando que os ndios, do-nos das terras, e os neobrasileiros compradores das mesmas se entendes-sem como podiam.

    Na cabea dos Machacar nem coube sequer um vislumbre da ideia de que podiam ter perdido o direito sobre as terras. Se os intrusos pa-garam ou no ao sr. Fagundes, lhes era e ainda inteiramente indife-rente. Quando, portanto, alguns destes quiseram assumir atitudes de "donos legtimos", os ndios tiveram isto como afronta e roubo luz meridiana e, enquanto em nada incomodavam certos outros moradores com os quais continuavam a viver bem, romperam com aqueles que eles qualificaram de "portugueses ruins", perseguindo e maltratando-os de to-da forma, para obrig-los a abandonar as terras dos Machacar . Em mais de um caso j conseguiram o seu intento e num at no deixaram o com-prador nem sequer tomar p nas terras que comprara. Outros intrusos, porm, mostram-se mais renitentes. A tt ica dos Machacar ento a seguinte:

    Pela manh cedo rompem todos os adultos da aldeia, homens e mulheres, rumo ao stio do "portugus ruim", os homens com os seus arcos e flechas, que ainda sabem manejar com percia, ou s vezes tam-bm com algumas espingardas velhas, as mulheres com as suas redes de carga as costas.

    Estas invadem a plantao do intruso, vista do dono, colhendo e destruindo o que bem entendem, enquanto os homens, de armas em pu-nho esperam que o prejudicado esboce um gesto de protesto, para cer-car-lhe imediatamente a casa, intimando-o a abandonar as terras na mes-ma hora sob a ameaa de morte dele e da famlia, e insultando-o de toda maneira. O ameaado, para escapar pelo menos momentaneamente de

  • 58 Curt Nimuendaj

    tal aperto, recorre ento ao clssico "brabos no sejam": "Compadre: Eu bom p' ra tu!", oferecendo aos ndios, para livrar-se deles, algum porco ou outra coisa que eles exijam. Assim procederam os Machacar , p. ex., com um tal Jovino durante a minha estada entre eles.

    Resulta desta prt ica que a situao cada vez mais se agrava, mes-mo porque os Machacar comeam a ver nessas expedies de pilhagem no s uma represlia justa, como t a m b m um meio fcil de obter man-timentos. E ' de admirar que nenhuma dessas cenas ainda degenerasse em derramamento de sangue, o que s se explica pela ndole no fundo muito pacfica daqueles ndios.

    Isto, porm, nenhuma garantia oferece para o futuro, podendo haver um massacre de lado a lado qualquer dia.

    N o adianta agradar depois os ndios com presentes para faz-los en-gulir com melhor boa vontade algumas recomendaes de no mais pro-cederem desta forma, como o fz, segundo me contaram, o sr. Joo Silva, que no sei que autoridade no vizinho povoado do Norte e que me pa-rece, alis, muito bem intencionado quanto aos ndios. No o conheo pes-soalmente. Os Machacar no precisam' de agrados, nem de conselhos. Eles precisam de uma deciso definitiva: Ou as terras continuam a ser deles, conforme eles entendem, e ento os intrusos ou se retiram ou que lhes paguem o arrendamento. Ou as vendas de Joaquim Fagundes so consideradas legais, e ento dem-se aos ndios outras terras para sua ha-bitao, porque enfim 140 ndios no podem ficar sem mais nem menos nos galhos dos paus. Previno, porm, a quem se quiser ocupar da soluo do problema de que pela maneira que eu conheo os Machacar , estes nunca consentiro em uma m u d a n a .

    O que facilita at certo ponto a soluo do problema maneira dos ndios o fato de que nenhum dos intrusos a t hoje se julga bem seguro de sua compra, tendo todos a conscincia de que tais compras no passa-ram de grossa bandalheira que o Governo dificilmente reconhecer . O que no convm absolutamente manter sob qualquer pretexto o status quo, por exemplo pela nomeao de algum encarregado em Umburanas ou Norte com a incumbncia de evitar atritos entre os ndios e intrusos, comprando a boa vontade dos ndios por meio de presentes, mas deixan-do persistir ad infinitum a causa de tais atritos.

    Havia entre os vizinhos dos ndios certos que de vez em quando iam fazer uma visita aldeia levando uma lata de querosene de cachaa, com a qual embriagavam homens e mulheres para fazer dessas lt imas o que bem entendiam. Aconteceu t a m b m que, algum tempo antes da minha chegada, veio a Umburanas um Machacar com sua mulher. Embriaga-ram o ndio e jogaram-o na rua e trancaram a ndia num quarto, onde foi violada sucessivamente por t rs indivduos. Informaes sobre este e ou-tros casos semelhantes com o sr. Clarindo de tal, morador em Umburanas.

  • ndios Machacar 59

    Consta-me que o acima mencionado sr. Joo Silva se esforou bas-tante para pr termo venda e distribuio gratuita de cachaa aos n-dios, proibindo a venda aos negociantes de Umburanas e ameaando os contraventores.

    TRAJE. Os Machacar trajam como os neobrasileiros mais po-bres. Os homens nos seus trapos sujos e rasgados de roupas feitas para estaturas diferentes das deles oferecem um aspecto desagradvel . As mu-lheres vestem-se com um pouco mais de asseio e gosto. Durante as suas danas noturnas os homens aparecem nus, o membro colocado contra o abdmen e o prepcio metido debaixo do cordo da cintura. Homens de mais de 40 anos ainda t m os lbulos das orelhas e o lbio inferior furados. Ocasionalmente ainda se pintam de urucu.

    RELIGIO Todos os Machacar so batizados, mas no t m a menor ideia de Cristianismo. Acorrem s festas anuais da igreja de Um-buranas, porque o padre nessa ocasio costuma distribuir entre eles al-guns pequenos presentes.

    A religio consiste num culto s almas dos defuntos (nyam) . Este culto privativo dos homens e dos meninos maiores de 12 anos. Todo o sexo feminino e os meninos menores so mantidos em ignorncia ou mes-mo propositadamente iludidos sobre o que se passa entre os iniciados. Fazem-nos crer que as prprias almas dos defuntos passeiam de noite pe-la aldeia, metidas em certas vestimentas de mscaras (toktub), e que o rudo noturno dos brinquedos do "Co" voz dessas mesmas almas. O lugar do culto um rancho um pouco distanciado da aldeia, onde nenhu-ma mulher jamais pe os p s . No v i nenhuma manifestao de culto solar ou lunar, mas de notar que num poste (mi -manum) que levan-tam' em certa poca, para por le descerem as almas do cu terra, se acham pintadas as imagens do Sol e da L u a .

    O enterro hoje feito maneira neobrasileira.

    SOCIOLOGIA. A famlia dos Machacar patrilinear e pelo menos predominantemente patrilocal. No existem fratrias exogmicas, nem outras divises duais. H raros casos de poliginia provenientes de sororato e de levirato, fora dos quais a poliginia no parece ocorrer.

    Os Machacar t m dois chefes: Paciku (Francisco? Pacf ico?), de 60 anos de idade, e Joo, que poda ter uns 10 anos mais. No so che-fes por serem os mais velhos, pois existem mais dois outros de igual ida-de que no so chefes. So sobretudo autoridades em assuntos religio-sos e cerimoniais, mas quando fui roubado durante a minha primeira es-tada em gua Boa, Paciku sem vacilar e com pleno sucesso se encar-regou t ambm de me restituir o roubo.

    ECONOMIA. Os Machacar vivem sobretudo da lavoura, que eles, como todas as tribos da mesma famlia lingustica, j conheciam an-

  • 60 Curt Nimuendaj

    tes do contacto com os civilizados, mas desconhecem a t hoje o plantio do algodo e do fumo.

    U m meio eficaz de "expremer" os ndios, tornando as terras inabi-tveis para eles aquela j mencionada ttica dos intrusos de transfor-mar as matas de lavoura em capinzais.

    Persuadiram at os prprios ndios de que deviam plantar capim-colnia nas suas capueiras, em vez de deix-las descansar para novas la-vouras, e depois perguntaram cinicamente aos ndios, o que eles ainda queriam em terras que s serviam para criadores de gado, como eles, intrusos!

    A caa em terras dos Machacar , como em todo esse serto, est ho-je quase completamente destruda pela ganncia dos negociantes de couros silvestres. Nos pantanais das margens do Umburanas encontram-se ainda capivaras, que os ndios caam com lanas . A pesca exercida com anzis, pus e t imb, mas no com a flecha, de pouca importn-cia. Os ndios criam grande nmero de cachorros, mas poucos porcos e galinhas. De gado cavalar ou vacum eles no possuem nenhuma rez.

    E m dois pontos existem pequenos cafezais mal cuidados.

    MORADIA. As choas dos Machacar so pequenas e mal fei-tas, de planta retangular, de Cumieira ou meia-gua, cobertas de casca de pau ou capim. Algumas t m paredes de barro. E m gua Boa as cho-as formam quase uma rua, em P da Pedra no consegui descobrir or-dem nenhuma.

    Dormem em giraus sobre trapos de roupa, pois raramente possuem uma esteira. Outros dormem no cho, beira do fogo. As suas redes de imbira de ambava s servem para descansar durante o dia.

    Antigamente os Machacar no sabiam fazer cestos de espcie al-guma, que eles substi tuam por bolsas em tcnica de rede, de todos os tamanhos. Hoje fabricam bonitos cestinhos pela tcnica dos seus vizi-nhos neobrasileiros.

    Desde tempos pr-colombianos as mulheres fabricam panelas e ti-jelas de barro simples, mas bem feitas.

    LNGUA. No h um nico Machacar que falasse o suficiente da lngua brasileira para manter uma conversao corrente. O princi-pal impecilho para eles se aperfeioarem est na mania dos seus vizinhos neobrasileiros de nunca falarem com eles em brasileiro claro e correto, mas sim naquela lngua ridiculamente mutilada e mal pronunciada, pr-pria dos ndios quando querem fazer uso da lngua brasileira sem sab-la . Com esta fala corrupta misturam ainda sem necessidade alguma uns tantos substantivos ou mesmo adjetivos da prpria lngua Machacar , justamente aqueles que os ndios sabem muito bem em brasileiro tam-bm . Os que falam "corretamente" desta maneira tm-se em conta de "lnguas" e indispensveis para qualquer pessoa que venha de fora e

  • ndios Machacar Cl

    que queira tratar com os Machacar , oferecendo-se logo para ajeitar os "bichos" para o visitante.

    O fato de eu rejeitar todos os "lnguas" e entendidos que se oferece-ram e de ir sozinho em procura da aldeia dos Machacar que eu nunca dantes tinha visto causou verdadeiro espanto entre os moradores de Umburanas, que no fundo t m todos um instintivo pavor do ndio, achan-do indispensvel que se adule e bajule o ndio quando se queira ir aldeia.

    O idioma dos Machacar muito parecido com as lnguas do Ma-cun, Copox, Cumanax, Panhame e Monox, hoje todos extintos, e mostra t a m b m alguma semelhana com o Pa tax e o Malal , este l t imo t a m b m hoje lngua morta. Martius reuniu essas tribos e mais algumas outras no grupo lingustico dos "Goytacs", admitindo algum parentesco com o grupo J . Steinen reduziu o grupo Goytac aos Machacar , Ma-cun, Capax, Cumunax e Panhame e, sob reserva, os Patax, e fz dele uma subdiviso do grupo J . Ehrenreich, Rivet e o P. Schmidt conser-varam esta classificao. Somente em 1931 o tcheco C. Loukotka, exa-minando outra vez detidamente os escassos vocabulrios existentes, che-gou concluso de que essas lnguas, inclusive o Malal , mas exclusive o Patax, foram uma famlia linguistica completamente independente da famlia J , e acho que teve nisto r azo . T a m b m a cultura dessas t r i -bos, tanto a material como a espiritual, os distanciava grandemente dos J .

    Aproveito a oportunidade para reiterar-vos os meus protestos de es-tima e gra t ido.

    Curt Nimuendaj