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Nietzsche O racionalismo é a negação da vida «Da minha vontade de saúde, de vida, fiz a minha filosofia» «Para o forte, o conhecimento, o dizer sim à realidade é uma necessidade tal como para o fraco, sob a inspiração da fraqueza, também é uma necessidade a cobardia e a fuga perante a realidade o ‘ideal’» «Condeno o Cristianismo, lanço contra a Igreja a mais temível de todas as acusações que alguma vez um acusador pronunciou. Ela é a maior de todas as corrupções que pensar se podem.» «O Super-homem é o sentido da Terra... Eu ensino-vos o Super-homem. O homem é algo que deve ultrapassar-se». Na segunda metade do século XIX, o pensamento de Nietzsche constitui-se como a crítica mais radical e violenta contra a cultura ocidental estabelecida. Essa contestação atinge a cultura europeia em todas as suas modalidades: filosofia, religião, moral, arte, ciência, etc. A cultura ocidental está, segundo Nietzsche, envenenada por uma certa moral, por uma atitude antinatural que desvaloriza o mundo sensível, o mundo do devir, tudo o que é corpóreo, em nome da Razão e do Espírito. Os valores e os ideais que a cultura europeia promoveu são o resultado de uma vontade empenhada em instaurar a racionalidade a todo o custo. Esta sobrevalorização da Razão é, para Nietzsche, um sintoma de decadência, de falta de vitalidade. O racionalismo ocidental atrofiou a vida humana porque desvalorizou de uma forma radical este mundo e esta vida, transformando em mundo verdadeiro e superiormente real um mundo artificialmente construído, que nada mais traduz do que a incapacidade e a impotência perante a realidade, isto é, perante o sofrimento, a dor, tudo o que no mundo terreno nos inquieta, desconcerta e ameaça. Esta negação da vida, de tudo o que é sensível, corpóreo, dos instintos, das paixões, produziu grandes obras intelectuais, esteve na origem de brilhantes produções do espírito, mas revela-se, no fundo, profundamente imoral. Os valores promovidos ao longo de séculos no Ocidente são valores nocivos, prejudiciais, opostos a uma relação saudável com a vida. Não são o produto de uma Razão pura, mas a criação de uma vontade fraca e impotente, incapaz de enfrentar a realidade e dizer sim à vida na sua totalidade. A Razão é o instrumento de uma vontade de vingança contra a realidade sensível, é um meio de a destituir de qualquer valor, de desprezar tudo o que na realidade é difícil de dominar ou controlar: o corpo, os sentimentos, as paixões, o carácter imprevisível do devir, no qual a vida consiste. Descobertas as raízes indecentes da cultura ocidental, a imoralidade e os baixos instintos que profundamente a determinam, exige-se o derrube dos valores e ideais que, pretensamente racionais, nada mais são do que a negação de uma racionalidade saudável. A decadência, segundo Nietzsche, começa com a filosofia socrático-platónica. O pensamento ocidental tem identificado a verdade com o Bem, mas o que se tem considerado verdadeiro representa uma construção artificial que nega a realidade e o que se tem considerado bom corresponde a uma condenação de tudo o que é natural, das raízes profundas da vida. Nietzsche avalia negativamente o pensamento europeu desde Sócrates até aos nossos dias. Como o cristianismo, herdeiro do platonismo, ocupa um lugar central no desenvolvimento da cultura ocidental, ele é, aos olhos de Nietzsche, o agravamento e a consolidação de uma atitude negativa perante a vida. O que é comum ao platonismo e ao cristianismo é o facto de julgarem a vida à luz de certos valores que Nietzsche denuncia como niilistas. O que os caracteriza ê a procura do Além, de um mundo que transcende este e que, embora não seja mais do que uma ficção, será considerado como o mundo verdadeiro e como o mundo do Bem. O desgosto niilista de viver faz com que o cristianismo não represente uma reacção vital contra a decadência helenística mas a sua continuação lógica. O próprio platonismo tinha afirmado a

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Nietzsche

O racionalismo é a negação da vida

«Da minha vontade de saúde, de vida, fiz a minha filosofia»

«Para o forte, o conhecimento, o dizer sim à realidade é uma necessidade tal como para o fraco, sob

a inspiração da fraqueza, também é uma necessidade a cobardia e a fuga perante a realidade — o

‘ideal’»

«Condeno o Cristianismo, lanço contra a Igreja a mais temível de todas as acusações que alguma vez

um acusador pronunciou. Ela é a maior de todas as corrupções que pensar se podem.»

«O Super-homem é o sentido da Terra... Eu ensino-vos o Super-homem. O homem é algo que deve

ultrapassar-se».

Na segunda metade do século XIX, o pensamento de Nietzsche constitui-se como a crítica mais

radical e violenta contra a cultura ocidental estabelecida. Essa contestação atinge a cultura europeia

em todas as suas modalidades: filosofia, religião, moral, arte, ciência, etc.

A cultura ocidental está, segundo Nietzsche, envenenada por uma certa moral, por uma atitude

antinatural que desvaloriza o mundo sensível, o mundo do devir, tudo o que é corpóreo, em nome da

Razão e do Espírito. Os valores e os ideais que a cultura europeia promoveu são o resultado de uma

vontade empenhada em instaurar a racionalidade a todo o custo. Esta sobrevalorização da Razão é,

para Nietzsche, um sintoma de decadência, de falta de vitalidade.

O racionalismo ocidental atrofiou a vida humana porque desvalorizou de uma forma radical este

mundo e esta vida, transformando em mundo verdadeiro e superiormente real um mundo

artificialmente construído, que nada mais traduz do que a incapacidade e a impotência perante a

realidade, isto é, perante o sofrimento, a dor, tudo o que no mundo terreno nos inquieta, desconcerta

e ameaça. Esta negação da vida, de tudo o que é sensível, corpóreo, dos instintos, das paixões,

produziu grandes obras intelectuais, esteve na origem de brilhantes produções do espírito, mas

revela-se, no fundo, profundamente imoral.

Os valores promovidos ao longo de séculos no Ocidente são valores nocivos, prejudiciais, opostos a

uma relação saudável com a vida. Não são o produto de uma Razão pura, mas a criação de uma

vontade fraca e impotente, incapaz de enfrentar a realidade e dizer sim à vida na sua totalidade.

A Razão é o instrumento de uma vontade de vingança contra a realidade sensível, é um meio de a

destituir de qualquer valor, de desprezar tudo o que na realidade é difícil de dominar ou controlar: o

corpo, os sentimentos, as paixões, o carácter imprevisível do devir, no qual a vida consiste.

Descobertas as raízes indecentes da cultura ocidental, a imoralidade e os baixos instintos que

profundamente a determinam, exige-se o derrube dos valores e ideais que, pretensamente racionais,

nada mais são do que a negação de uma racionalidade saudável.

A decadência, segundo Nietzsche, começa com a filosofia socrático-platónica.

O pensamento ocidental tem identificado a verdade com o Bem, mas o que se tem considerado

verdadeiro representa uma construção artificial que nega a realidade e o que se tem considerado bom

corresponde a uma condenação de tudo o que é natural, das raízes profundas da vida. Nietzsche

avalia negativamente o pensamento europeu desde Sócrates até aos nossos dias.

Como o cristianismo, herdeiro do platonismo, ocupa um lugar central no desenvolvimento da cultura

ocidental, ele é, aos olhos de Nietzsche, o agravamento e a consolidação de uma atitude negativa

perante a vida. O que é comum ao platonismo e ao cristianismo é o facto de julgarem a vida à luz de

certos valores que Nietzsche denuncia como niilistas. O que os caracteriza ê a procura do Além, de

um mundo que transcende este e que, embora não seja mais do que uma ficção, será considerado

como o mundo verdadeiro e como o mundo do Bem.

O desgosto niilista de viver faz com que o cristianismo não represente uma reacção vital contra a

decadência helenística mas a sua continuação lógica. O próprio platonismo tinha afirmado a

necessidade de distinguir «mundo verdadeiro» (o mundo das Ideias imutáveis e eternas) do «mundo

aparente» (o mundo sensível ou do devir), tendo definido o «mundo verdadeiro» como razão de ser

ou fundamento do aparente.

A inevitável consequência desta distinção será o descrédito e a negação da realidade do mundo

sensível ou do devir. Neste sentido, platonismo e cristianismo são manifestações sucessivas de uma

atitude fundamentalmente niilista (dizer não à vida, considerar «este mundo» como imperfeito, como

uma falsa realidade) que determina inteiramente o curso da civilização europeia.

Ao criticar a cultura ocidental remontando às suas origens socrático-platónicas, Nietzsche vai revelar

que tipo de homem é aquele que tem necessidade de contrapor ao mundo sensível ou do devir um

outro mundo e porque razão esse outro mundo é considerado como um «mundo verdadeiro».

A mentalidade do metafísico, que Nietzsche «considera como uma cobardia perante a realidade»,

não tolera a imprevisibilidade, a instabilidade e a dor que são características desta: um tal mundo fá-

lo sofrer, um tal mundo desgosta-o, um tal mundo é odioso. Determinado por estes sentimentos ou

instintos negativos, desejando vingar-se de um mundo que ele é incapaz de suportar e ao qual atribui

a causa dos seus sofrimentos, o fraco ou o impotente constrói um mundo artificial à imagem dos seus

desejos de segurança e estabilidade, de paz e de continuidade e é de tal modo profundo o seu desejo

de que exista esse mundo que o vai transformar em mundo verdadeiramente real ou superior. Ao

analisar a génese desse tal mundo, Nietzsche não pode deixar de evidenciar que esse mundo é uma

construção da fraqueza perante o único mundo real. Aquilo que o Ocidente se habituou a considerar

como a verdadeira realidade, e que em linguagem cristã terá o nome de «reino de Deus» ou «vida

eterna», é afinal a miserável invenção de vontades fracas e impotentes, o produto do delírio doentio

daqueles que nada mais são do que realidades falhadas, seres impotentes e débeis. Poderíamos

comover - nos com este desejo de estabilidade e de paz mas, o «outro mundo» não é inventado

simplesmente para consolar mas para satisfazer uma vontade de vingança, um ressentimento

mesquinho em relação ao único mundo real. Assim, não se deformou simplesmente a realidade ou

esta vida ao sobrepor-lhe como infinitamente superior uma outra. Com efeito, o «outro mundo» ou

«a outra vida» são ficções destinadas a desprezar, a caluniar e a destituir de qualquer valor o mundo

do devir. São estes instintos baixos que, por paradoxal que pareça, determinam subterraneamente os

valores, as grandes construções espirituais (morais, religiosas, filosóficas) de que o Ocidente se

orgulha.

Assim, o combate de Nietzsche contra a cultura ocidental, intoxicada pelo platonismo e pelo seu

herdeiro populista que é o cristianismo, é feito com o objectivo de reafirmar a vida, de a libertar de

uma moral que a atrofia, a contamina e a nega nas suas raízes mais profundas. Não é de admirar que

um dos aspectos mais profundos da crítica de Nietzsche à cultura ocidental seja a crítica à moral.

Com efeito, ela é a raiz de tudo, isto é, de todos os valores que a cultura ocidental promoveu. Por

moral, devemos entender a resposta que o homem dá à questão «Como devo agir?» ou «Como devo

viver?» Desde bem cedo se estabeleceu na cultura ocidental que o homem devia agir rejeitando tudo

o que é natural ou sensível.

A atitude moral tem sido o convite à evasão do mundo sensível em direcção ao mundo inteligível,

dito perfeito e mais valioso. A moral ocidental tem sido a expressão do ódio e da vontade de

vingança própria daqueles que negam autêntica realidade a este mundo, tem sido um produto tóxico

(moralina) que envenena a relação do homem com o mundo e com a vida, que impede a entrega

plena à existência terrena, que inventa paraísos artificiais que transformam a realidade num inferno.

Enquanto o homem não se aperceber de que o «outro mundo» nada vale e que só este é que conta, a

sua relação com a vida será doentia, enquanto o homem não se aperceber de que onde cresce a dor e

o sofrimento também crescem a felicidade e a alegria, continuará a ser uma realidade doente.

Numa obra inacabada e somente publicada em 1901, um ano depois da sua morte, obra essa

constituída mediante a elaboração e recomposição de fragmentos que Nietzsche deixara dispersos, o

autor de Assim Falava Zaratustra define o que sempre foi o objectivo da sua reflexão.

«É preciso destruir a moral para libertar a vida.»

[Nietzsche, Vontade de Poder, vol I]

Traçado esse plano, estabelece o meio que permitirá cumpri-lo:

«Basta provar que a própria moral é imoral, no sentido em que até agora se entendeu este termo.»

[Nietzsche, op. cit.vol. I]

Todo e qualquer sistema moral (há morais e não a moral) é determinado por um conjunto de

instintos que para Nietzsche são de dois tipos: afirmativos e glorificadores da vida ou negativos e

caluniadores. A moral, seja ela qual for, tem um fundamento psicofisiológico, ou seja, é a partir do

corpo do sujeito que julga e da forma como este com aquele se relaciona que se constitui a

perspectiva sobre a vida chamada valor. A moral, nas suas diversas formas, é manifestação ou

sintoma de uma determinada espécie de vida: ascendente ou descendente.

«Destruir a moral» significa destruir uma certa espécie de moral, mostrar a sua imoralidade, ou seja,

que ela satisfaz instintos de ódio, vingança e ressentimento que são um desmentido dos seus próprios

princípios. Veremos mais adiante como essa operação corrosiva se efectua.

«Libertar a vida» significa libertar uma certa forma de vida de uma moral que a intoxica, a denigre e

impede a sua plena manifestação.

O NOSSO PERCURSO

l. O perspectivismo e o método genealógico

Para Nietzsche não há factos ou realidades objectivas mas simplesmente interpretações. A verdade

absoluta é uma ficção: a verdade é uma mentira a partir do momento em que se pretende absoluta ou

objectiva e não simplesmente um modo de ver, uma perspectiva, uma interpretação desse texto

complexo que é o mundo.

Mas o que é uma interpretação? É um significado que é criado a partir da perspectiva em que se

coloca, melhor dizendo, que o intérprete manifesta. O platonismo, o cristianismo, são determinadas

interpretações da vida e do mundo, correspondem a uma determinada forma de avaliação, tal como,

num plano oposto, a filosofia de Nietzsche. A interpretação enquanto avaliação — juízo de valor —

que dá um «sentido» e um «valor» à vida, é uma manifestação da vontade de poder, isto é, dessa

força vital que, segundo Nietzsche, constitui a pulsão ou instinto fundamental imanente a tudo o que

existe. Todas as formas culturais criadas pelo homem são expressões de uma só coisa: a vontade de

poder. Contudo, a vontade de poder não é unívoca, isto é, pode assumir diversas formas. Assim,

Nietzsche fala de vontade de poder fraca ou negativa (que se vira contra a própria vida) e de vontade

de poder forte ou afirmativa (que diz sim à vida).

O homem é, para Nietzsche, o ser que avalia, que produz valores. Enquanto manifestação da vontade

de poder, os valores são sintomas ou de uma vontade débil ou de uma vontade forte, em suma, de um

certo tipo de vitalidade. O perspectivismo, ao transformar todos os nossos valores, ideias ou

doutrinas em simples interpretações, em perspectivas, em relações, saudáveis ou doentias, com a

vida, abre o caminho ao método genealógico. A análise genealógica consiste em remontar à origem

dos nossos valores ou ideias, em desocultar a sua raiz profunda, em revelar a sua génese partindo do

suposto de que as produções culturais do homem são o sintoma ou a tradução de determinados

instintos, de uma vontade que nega ou afirma a vida. Em suma, são interpretações que manifestam o

tipo de vitalidade do intérprete, a sua relação com a vida, os seus desejos ou instintos mais

profundos. Entendendo os valores e as ideias não como realidades objectivas — como algo existente

em si — o método genealógico traçará a génese dos produtos culturais do Ocidente (a moral, a

filosofia, a religião, etc.) considerando-os como interpretações que manifestam uma vontade débil,

incapaz de enfrentar a vida na sua desconcertante complexidade e odiando o mundo e a vida por

causa dessa impotência, dessa debilidade.

2.A Génese moral (imoral) da Metafísica ocidental

A cobardia — a impotência perante o real — e o ódio, a vontade de vingança, estão na origem de

uma interpretação do mundo e da vida que considera que a verdade e o bem não são próprios deste

mundo, ou seja, do mundo sensível ou do devir. Para Nietzsche, o dualismo sensível - inteligível é

obra de uma vontade débil que não suporta o confronto com o mundo terreno, vingando-se ao

desvalorizá-lo, ao considerá-lo como mundo aparente, sem consistência, falso.

O «outro mundo» é considerado superiormente real não porque seja realmente superior, mas porque

satisfaz o desejo de segurança, de estabilidade, de paz e de repouso que se julga não se poder

encontrar neste mundo. Em suma, o «outro mundo» é considerado efectivamente real porque o

julgamos bom, e julgamo-lo bom porque pensamos que lá, ao contrário daqui, não há dor,

sofrimento e morte. A metafísica ocidental é, assim, uma moral disfarçada, uma visão da realidade

condicionada por uma determinada concepção acerca do que é o bem e do que é o mal. Esta visão

moral é, segundo Nietzsche, profundamente imoral.

Com efeito, o que está na base desse mundo que é imaginado como melhor do que este é o

ressentimento, a vontade de vingança em relação ao mundo em que vivemos, mundo que é difícil de

controlar, que é ameaçador, provocando muitas vezes angústia e sofrimento.

Sob o nome de racionalismo tentou-se disfarçar os baixos instintos, a imoralidade, a partir dos quais

se constituiu essa ficção nociva que é o «mundo das ideias», o «mundo verdadeiro», o «mundo

inteligível». Desconcertante conclusão da análise genealógica: o mundo dito «superior» é uma

invenção de realidades falhadas. Sócrates e Platão são a origem sonante desta perniciosa

interpretação.

3. A imoralidade da moral cristã

Mas Sócrates e Platão são apenas o começo — o que já não é pouco — dessa interpretação

racionalista ou idealista (débil) da realidade. É o cristianismo que vai adaptar, desenvolver e

popularizar o legado socrático-platónico.

3.1. Como a moral cristã se tornou interpretação dominante

A moral cristã é, para Nietzsche, a forma acabada de decadência, de promoção de instintos baixos e

nocivos a uma relação saudável com a vida. E um «platonismo para o povo» que inventa o dogma do

«pecado original» para transformar em «mau» o que é saudável e que corresponde aos instintos

primordiais da vida. O ódio ao sensível é o seu «ideal». Débeis mas astutos, os padres intoxicaram

com a ficção do «pecado original» todos os homens: fracos e fortes. Fizeram com que os fortes

avaliassem a sua força inocente na perspectiva dos fracos, tornando-se assim culpados. «Há

vergonha em ser feliz no meio de tanta desgraça». A partir do momento em que o forte se rende ao

juízo do fraco «Tu és mau, logo eu sou bom» dá-se o triunfo da «moral» dos fracos, a baixeza

transforma-se em nobreza. O cristianismo perverte o significado da palavra «bom». Esquece-se de

que a palavra «bónus» em latim significava também «o guerreiro». A resignação e a renúncia

tornam-se virtudes.

São valores antinaturais que acabam por triunfar através da casta sacerdotal (dos padres), que vão

erigir como verdadeira moral o desprezo por tudo o que é sensível e natural, acabando por intoxicar

com essa mensagem o homem ocidental.

3.2. Deus como instrumento de crucificação da vida

Em nome de Deus declarou-se guerra aos instintos fundamentais da vida (a agressividade, a dureza,

o prazer etc.), valorizou-se a mortificação do corpo e criou-se um modelo de homem que, a limite,

consiste num castrado ideal. Fomentou-se o desprezo deste mundo através da glorificação de valores

mesquinhos como a obediência, o sacrifício e a humildade, que são instintos de decadência próprios

de homens fracos. Inventou-se o pecado, que é um atentado contra vida. Com o conceito de pecado

destruíram-se as formas e os valores mais nobres da vida, pervertendo-a na sua raiz. Transformou-se

o homem num ser pecador e culpado que, para obter o perdão e a felicidade no outro mundo, devia

aceitar o sofrimento auto-imposto, a mortificação da carne e dos instintos.

Em suma, educou-se o homem no desprezo absoluto por si próprio, transformando-se o masoquismo

em virtude.

O fundamento desta mensagem religiosa e moral que atenta contra as raízes da vida é Deus. Em

nome de Deus tudo o que é prejudicial à vida transformou-se em valor supremo. Por isso, Deus é a

mais criminosa das invenções, dado que, em seu nome, se profanou aquilo que há de mais sagrado,

isto é, a vida.

4. A morte de Deus e o niilismo

Deus revela-se um contra-senso. A sua existência torna-se incrível. Nietzsche traça o diagnóstico do

século xix: morreu a fé em Deus. O homem foi progressivamente tomando consciência do

desperdício mortificante que era o «ideal ascético»: orientar a vida para Deus e segundo os preceitos

«divinos». Desaparecendo Deus do horizonte da vida humana, urge estar à altura dessa «Boa Nova».

Não se pode continuar a viver como se Deus não tivesse morrido, ou seja, a acreditar ainda em

verdades absolutas, negação do poder criador do homem; não se pode viver sem qualquer valor,

entregue a uma existência mesquinha. Estar à altura da «morte de Deus» implica colocar a vida

acima de qualquer suspeita, de qualquer objecção, preferi-la a todo e qualquer outro valor. A

«sagração da vida», do mundo do devir, um «sim sem reservas» e para sempre, eis o que definirá o

novo modelo de humanidade: o super-homem.

5. O super-homem e o eterno retorno

Liberta a vida da sua negação doentia (Deus), aquele que a afirma plena e saudavelmente,

efectuando a transmutação de todos os valores que reinaram durante séculos, tem o nome de Super-

homem. Este é o homem que, morta a fé em Deus, se apercebe de que não tem outra alternativa —

para não sucumbir também — senão inventar de novo um «sentido para a Terra», porque não só a

Terra mas todo o universo não tem sentido a não ser aquele que o homem quiser dar. Em termos

sintéticos, podemos caracterizar o que tornaria o homem um ser sobre-humano:

Quer esta vida como absoluta e única.

Quer esta vida de tal maneira que diz sim ao eterno retorno de tudo o que se vive, aclama a ideia de

que esta vida será revivida infinitamente tal como foi vivida. Reviverá eternamente quer o prazer

quer a dor.

Rejeita a metafísica dualista própria da moral cristã, porque, vivendo como se esta vida tivesse uma

duração infinita, destrói a cisão mundo do devir (passageiro) - mundo do ser (eterno): durando

infinitamente, o mundo do devir é eterno, é o verdadeiro mundo do ser.

A moral cristã, ao dizer que a verdadeira vida estava noutro mundo, tentava reduzir esta vida, o

mundo do devir, a nada. O Super-homem declara um amor absoluto à terra, para ele esta vida é tudo,

porque a concebe como se fosse eterna.

O Super-homem liberta a vida do fardo do «Além» e concebe-se a si próprio como o sentido da

Terra: Deus atrofiava a vida humana impedindo a entrega plena ao mundo do devir, à Terra.

O Super-homem recupera a «Inocência» porque, consciente de que a crença em Deus (ser fictício

que serve para desvalorizar esta vida) é um contra-senso, declara a ausência definitiva de um juiz

absoluto do Bem e do Mal (Deus): esta vida não está submetida a juízos morais absolutos, ela está

para além do Bem e do Mal. Como é eterna, sobre ela não se pode pronunciar nenhum «Juízo Final».

UMA INTUIÇÃO FUNDAMENTAL: A CONCEPÇÃO DIONISÍACA DA VIDA

A filosofia de Nietzsche pretende ser um sim sem reservas à vida, uma forma de aquiescência

superior e exuberante que abraça e celebra a vida na sua totalidade, mesmo nos seus aspectos

chocantes, problemáticos e enigmáticos.

Esta celebração da vida, para além do bem e do mal, do verdadeiro e do falso, encontra--se, segundo

Nietzsche, nas tragédias gregas, mais propriamente em Esquilo e Sófocles. Essas obras

apresentavam um tipo de homem que assumia o carácter trágico da vida, as suas contradições, os

seus sofrimentos e caprichos, sem lhe opor valores pretensamente superiores que permitissem julgá-

la e condená-la. Bem pelo contrário, os gregos da «Idade trágica» embora reconhecendo o carácter

aterrador da vida — o terrível poder do destino — celebravam alegremente esta vida. A consciência

e a crença vigorosa de que a vida é a unidade enigmática da criação e da destruição, da dor e do

prazer, da morte e da vida, eis aquilo em que consiste a visão trágica ou dionisíaca da vida.

«Semelhante fé é a mais elevada de todas as crenças possíveis: baptizei-a em nome de Diónisos.

É, pois, nos mistérios dionisíacos, na psicologia do estado dionisíaco, que se exprime o facto

fundamental do instinto helénico — a sua 'vontade de viver'. Que é que o heleno garantia para si,

com estes mistérios? A vida eterna, o eterno retorno da vida; o futuro prometido e consagrado no

passado; o sim triunfal à vida para além da morte e da mudança; a verdadeira vida como a

sobrevivência global mediante a procriação, através dos mistérios da sexualidade. Por consequência,

o símbolo sexual era, para os gregos, o símbolo venerável em si, o autêntico sentido profundo dentro

de toda a religiosidade antiga. Cada pormenor no acto da geração, da gravidez, do nascimento,

suscitava os mais elevados e festivos sentimentos. Na doutrina dos mistérios, a dor é sacralizada: as

'dores da parturiente' santificam a dor em geral — todo o devir e todo o crescimento, tudo o que

garante o futuro, tem por condição a dor [...] Para que exista o prazer de criar, para que se afirme

eternamente a vontade de viver, deve também eternamente existir a 'dor da parturiente' [...] tudo isso

significa a palavra Diónisos; não conheço simbolismo mais elevado do que este simbolismo grego, o

das Dionísias. Nele se experimenta religiosamente o mais profundo instinto da vida, o do futuro da

vida, o da eternidade da vida — o próprio caminho para a vida, a procriação, como o caminho

sagrado [...] Só o cristianismo, com o seu ressentimento básico contra a vida, fez da sexualidade algo

de impuro: cobriu de imundície o começo, o pressuposto da nossa vida [...]»

A concepção dionisíaca da vida sacraliza os instintos fundamentais, afirma festivamente a unidade

do homem com a natureza, colocando-se assim nos antípodas da moral cristã que, segundo

Nietzsche, é profundamente antinatural. O representante supremo da religiosidade pagã — Diónisos

— é a forma suprema de divinização da vida.

«É aqui que eu colocaria o ideal dionisíaco dos Gregos: a afirmação religiosa da vida no seu todo, de

que não se nega nada, de que nada se corta (notar que o acto sexual acompanha-se aí de

profundidade, de mistério, de respeito).»

[Nietzsche, A Vontade de Poder. ]

A adesão firme de Nietzsche à visão dionisíaca da realidade determinará profundamente o seu

pensamento e a sua crítica à cultura ocidental desde Sócrates até à época em que viveu.

A sua fórmula será, então: «Preferir a vida a todo e qualquer outro valor, ser a sua máxima

afirmação, santificá-la como totalidade em que bem e mal, dor e gozo, crueldade e alegria estão

necessariamente enlaçados»

Referindo-se à sabedoria trágica dos grandes gregos pré-socráticos, Nietzsche dirá:

«A afirmação do desvanecimento e da aniquilação, o elemento decisivo numa filosofia dionisíaca, o

dizer sim à oposição e à guerra, ao devir, com a radical renúncia ao próprio conceito de 'ser' — eis o

que em todas as circunstâncias devo reconhecer como a minha maior afinidade com o que até agora

foi pensado.»

[Nietzsche, Ecce Homo.]

2. ENCONTROS IMPORTANTES: SCHOPENHAUER E WAGNER

2.1. A influência de Schopenhauer

O livro que encaminhou Nietzsche para a filosofia foi a obra de Schopenhauer intitulada O Mundo

como Vontade e Representação (1819).

Nessa obra Schopenhauer afirmava que a verdadeira essência do homem era a vontade e não a razão.

Viver é querer, desejar. A vontade de viver era, para Schopenhauer, uma força implacável, um

instinto fundamental e cego que arrastava o homem na senda indefinida e infinita do desejo.

Segundo Schopenhauer, a dinâmica do desejo era fonte de sofrimento. Insaciável, a vontade faz com

que o homem viva a dor da insatisfação. É preciso, diz Schopenhauer, que o homem se esforce por

negar a vontade, renunciando ao desejo e à consequente infelicidade. A vida é fonte renovada de

sofrimento: urge negar a vontade de viver, estancar a dinâmica absurda do desejo, mediante uma

existência meramente contemplativa — a arte liberta das dores do mundo — ou pelo ascetismo.

O fascínio por esta sombria filosofia foi superado, rapidamente, por Nietzsche.

Articulando a filosofia hindu com a crítica kantiana, o seu sistema (exposto era O Mundo como

Vontade e como Representação, 1819) é a análise do mundo como ilusão a partir do primado da

Vontade sobre a Representação. A sua moral pessimista, fundada sobre a piedade, visa o

aniquilamento da «vontade de viver», de uma vida pensada como «história natural da dor». Será uma

influência importante no pensamento de Niezsche.

Outras obras: A Quádrupula Raiz do Princípio de Razão Suficiente (1813); Sobre a Vontade na

Natureza (1830; Fundamentos da Moral (1841); Aforismos sobre a Sabedoria na Vida (póstuma).

Aceitando a ideia de que a vontade faz viver e sofrer, Nietzsche não negará a vida, não sucumbirá à

fraqueza de rejeitar a vontade de viver, mesmo nos seus aspectos terríveis e dolorosos. Para o

«discípulo» de Diónisos, as doutrinas ascéticas ou de renúncia à vida serão objecto de violentas

críticas.

«Nietzsche foi atraído para Schopenhauer pelo ateísmo deste último, pela sua negação do

sobrenaturalismo e da transcendência, pela sua doutrina do carácter fundamentalmente irracional do

universo — num forte contraste com Hegel, que era o verdadeiro fel, tanto para Schopenhauer como

para Nietzsche — e pela sua subordinação do intelecto à vontade. Estes elementos mantiveram-se

comuns em ambos, mas, à medida que as ideias peculiares a Nietzsche se foram desenvolvendo e

foram tomando uma forma concreta, ele chegou a verificar, a uma luz sempre mais clara, a antítese

que havia entre Schopenhauer e ele próprio. Na filosofia de Schopenhauer, o ideal do homem é a

negação da vida, ao passo que na filosofia de Nietzsche é a afirmação da mesma vida.

Os homens 'não têm de fugir à vida, como os pessimistas, mas, como alegres convivas de um

banquete, que desejam as suas taças novamente cheias, dirão sim à vida: Uma vez mais!' Assim

Nietzsche desenvolveu-se fora de Schopenhauer e, se, por um lado, temos o pessimismo de

Schopenhauer combinado com um ideal predominantemente negativo de comportamento, temos, por

outro lado, o optimismo de Nietzsche combinado com um ideal predominantemente positivo e activo

de comportamento.»

[Frederíck Coppleston, Nietzsche, Filósofo da Cultura, Porto, Livraria Tavares Martins, 1979, p.

211.]

2.2. O fascínio de Wagner

O primeiro encontro entre Nietzsche e Wagner verificou-se em 17 de Maio de 1869, na segunda-

feira de Pentecostes. Nietzsche espera, antes de entrar e ser apresentado a Wagner, que o mestre

acabe a execução do primeiro acto de Siegfried. Algumas notas chegam até ele, cheias de um

vibrante «heroísmo» que não encontrara até aí senão prefigurado nos seus antecessores gregos —

Heraclito e Empédocles. Em seguida uma voz feminina convida-o a entrar no círculo. É Cosima von

Bulow, que, desafiando as convenções sociais, se instalou junto daquele que ama. Fala-se de tudo:

de Schopenhauer, dos Gregos, da tragédia, do papel que deve ser restituído à música nestes séculos

ameaçados pela decadência. Nietzsche é imediatamente conquistado.

Tudo predispõe Nietzsche à euforia: a revelação de uma música que exprime o fundo trágico da

alma, o impulso e o refluxo das suas mais elevadas aspirações, a estranha fusão do amor e da morte,

a única que pode satisfazer, a justificação da paixão pelo génio, cujo exemplo é a união de Cosima e

de Wagner, acima dos juízos mesquinhos e dos vãos remorsos, além da coincidência entre destino e

liberdade, do destino mais pessoal, que contém a fórmula do oráculo de Delfos: «Torna-te no que

és».

Parece haver um acordo total entre a orientação do pensamento de Nietzsche — a oposição entre o

apolíneo, forma de ser que se desenvolve no seio das aparências, na claridade das apaziguantes

ilusões, e o dionisíaco, invocador e revelador do fundo atormentado e apaixonado do ser insaciado

— e as ideias de Wagner. Não procurava este através do mito uma imagem globalmente inteligível

da história da vida humana «desde os começos da sociedade até à dissolução do Estado»,

Contudo, uma divergência torna-se cada vez mais nítida. Wagner torna-se presa de «filtros

mágicos». No termo do esforço sobre-humano que o divinizou, o homem cuja imagem ele nos

oferece aspira ao seu próprio aniquilamento. Sonha perder-se no nirvana. Wagner aceita de

Schopenhauer uma doutrina da salvação pela arte, pela compaixão, pela destruição da vontade de

viver. Mal acaba Tristão e Isolda, vemo-lo diluir esse imenso canto humano, demasiado humano, no

fervor supraterrestre.Wagner perde-se em confusas visões do Além.

São completamente diferentes as aspirações de Nietzsche desde essa época. A arte verdadeiramente

educativa não poderia, para ele, nascer de encantamentos e de malefícios, fazer-nos penetrar através

das suas encantações no mundo verdadeiro para lá do véu de Maia, esse tecido enganador das

aparências. A arte deve reconciliar-nos com este mundo em que vivemos, porque não há outro que

nos possa servir de refúgio. É à própria vida que nos devemos entregar, confiando-nos aos seus

fluxos e refluxos, mesmo que o preço da alegria seja pago com experiências dolorosas. A arte que

nos é necessária deve ser uma arte viril e não efeminada, adequada às nossas esperanças terrestres.

Wagner, tudo o indica, equivocou-se.

Não terá ele confundido a arte dionisíaca, a arte que liberta, a arte criadora que brota de urna

plenitude excessiva e que conquista a alegria no seio do mais atroz sofrimento com a arte dos

séculos da decadência, essa máquina de esfrangalhar os nervos, essa música entediante e sem força

que, envolvendo-se em nebulosos vapores, abandonava o homem aos seus terrores mórbidos, para

lhe ensinar, afinal, a renúncia e o esquecimento?

Só Nietzsche permanece fiel àquele que julgou ser o ideal de Wagner: ressuscitar, mediante a estreita

ligação entre o mito, a poesia e a música, uma arte inspirada no helenismo mais puro, capaz de

transportar para o plano apolíneo, onde a segurança se adquire à saída de um longo labirinto de

tormentos e de dúvidas, o delírio orgiástico do deus Diónisos. Ao pessimismo viril que aceita o

destino do homem com os seus riscos e a sua grandeza, a conquistar à custa de duras provas e

torturas, sucede em Wagner o pessimismo efeminado e insano que cultiva a dor e finalmente abdica.

É a metafísica de Schopenhauer que Wagner transpõe para o plano musical.

Esse ideal negativo é para Nietzsche repugnante.

Deixemos Wagner e Schopenhauer entregues à avaliação implacável de Nietzsche:

«Interpretei a música de Wagner como a expressão de uma potência dionisíaca da alma: nela

acreditei surpreender o estrondo de uma força subterrânea há séculos comprimida e que, enfim

atinge a luz, indiferente a que tudo o que hoje se pudesse chamar cultura sofresse um abalo. Vê-se

em que interpretei mal, vê-se igualmente no que enriqueci Wagner e Schopenhauer: de mim mesmo.

Toda a arte e toda a filosofia devem ser consideradas como remédios e encorajamentos à vida em

crescimento ou em decadência e supõem sempre sofrimentos e sofredores. Mas há duas espécies de

sofredores: os que sofrem por superabundância de vida, que querem uma arte dionisíaca e uma visão

trágica da vida interior e exterior — e os que sofrem por empobrecimento da vida, que pedem à arte

e à filosofia a calma, o silêncio e um mar pacífico — ou então ainda as convulsões, o

enferrujamento, a ebriedade. A dupla necessidade destes Wagner responde tão bem como

Schopenhauer. Negam a vida, caluniam--na, e por isso mesmo são os meus antípodas.»

[Nietzsche, Le Crépuscule des idoles, Paris, ed. Mercure de France, 1942, pp. 66-67.]

[Exposição baseada em Jules Chai-Ruy, Pour connaítre Ia pensée de Nietzsche,

Paris, Bordas, 1977, pp. 39 a 48.]

3. SÓCRATES E A ORIGEM DA DECADÊNCIA DA CULTURA OCIDENTAL

Para Nietzsche, Sócrates (e Platão) é um momento decisivo no percurso cultural do Ocidente. Com

ele acaba a grande época da tragédia grega — glorificação da vida mesmo nas suas dimensões

dolorosas e sombrias — e começa uma época em que a tendência é a de procurar fugir às

contradições, aos sofrimentos, a tudo o que a vida tem de sensível e de físico. Sócrates, no entender

de Nietzsche, inventou a metafísica, transformou a filosofia na procura do inteligível e do eterno

(supra-sensível) pregando a renúncia ao mundo sensível, ao mundo do devir e ao corpo, considerado

como o «o carcereiro da alma». Inaugura-se com Sócrates uma atitude que caracterizará, em geral, a

cultura ocidental: a «calúnia do sensível», a desconfiança em relação ao corpo e aos sentidos, o

desprezo e a condenação de tudo o que é natural. Com Sócrates faz-se da vida aquilo que deve ser

julgado em nome da razão, em nome de valores considerados «superiores», tais como a Verdade e o

Bem, identificados com o divino, o supra-sensível. A decadência, a atitude antivital ou antinatural

surge claramente com Sócrates, que estabelecerá a distinção entre dois mundos, identificando o

inteligível com o mundo real e verdadeiro e o sensível com o mundo ilusório e falso. Sócrates

sobrevalorizou o aspecto lógico-racional, fez da razão o centro de toda a interpretação da realidade e

da verdade o valor supremo. Nele está a raiz dessa «venerável» tradição que se resume na fórmula:

«Filosofar é procurar a verdade com toda a nossa alma». Tudo submetendo ao juízo da razão,

Sócrates vai, segundo Nietzsche, interpretar a arte trágica como algo irracional porque apresenta

efeitos sem causas e causas sem efeitos. Por isso deve ser ignorada. As tragédias — os escritos e as

peças de Esquilo e Sófocles — afastavam o homem do caminho da verdade, não obedeciam à razão

(que tudo quer claro e distinto). Sócrates colocará a tragédia clássica na categoria das «artes

aduladoras», como conjunto de emoções agradáveis mas inúteis, «indignas de filósofos». Sócrates é

o radical oposto da concepção dionisíaca da vida, do homem trágico. Ele é o homem teórico:

Enquanto que em qualquer homem produtivo o instinto é uma força afirmativa e criadora e a

consciência uma força crítica e negativa, em Sócrates o instinto torna-se crítico e a consciência

criadora». Com a sobrevalorização do homem teórico abandonou-se o fenómeno do trágico, que

exprimia a natureza profunda da realidade. Distinguir o verdadeiro do aparente — «sublime ilusão

metafísica» — era, para Sócrates, a única actividade digna do homem. Querer a verdade, o

conhecimento puramente racional, eis o lema de Sócrates. Nietzsche interrogar-se-á sobre o valor

deste querer. Porquê querer a verdade, a razão? O que é que em nós quer a verdade? Que vontade,

que tipo de vitalidade, se manifesta neste querer a verdade?

Para Nietzsche, Sócrates, sob o nome de verdade, oculta e ao mesmo tempo manifesta o ódio ao

sensível, ao corpo, às paixões, ao devir, em suma, a procura da verdade racional traduz-se numa

desvalorização da vida.

Com o racionalismo socrático-platónico começa a decadência.

«Em vez de confiar no corpo e nos instintos, Sócrates faz da razão a verdadeira realidade do homem,

ó que consistirá em reprimir a natureza, os sentidos, os instintos, ou seja, em transformar a

decadência num modelo de humanidade.

A razão vai condenar a vida, os sentidos, os instintos. O doente que não pode suportar a vida no que

esta tem de sensível, de físico, vai vingar-se maldosamente, vai amaldiçoar o corpo e glorificar os

argumentos da razão. Transformando a razão na «verdadeira força» do homem, o fraco, o homem de

vitalidade débil e enfraquecida, vai afirmar-se pretensiosamente como superior rebaixando o seu

adversário através da dialéctica (discurso em que as teses do adversário são submetidas à tortura da

negação racional). Nietzsche vê no diálogo socrático uma forma de o «homem da razão»

ridicularizar o seu interlocutor.

O ataque de Nietzsche a Sócrates é, em alguns aspectos, grosseiro e injusto. O que nos interessa é,

contudo, ver o sentido desse ataque. Para Nietzsche a filosofia não é um puro discurso, racional e

objectivo: confiar na razão é também escolher um certo tipo de combate que tem a ver como o tipo

de homem que se é. Para Nietzsche, quando um homem decide escolher-se como ser racional e

sobrevalorizar a razão é porque, muito provavelmente, tem necessidade de uma razão tirânica para

reprimir e recalcar a desordem dos seus instintos, o seu desequilíbrio psicofisiológico. Abandonar os

instintos em favor de um mestre despótico, a razão, é, segundo Nietzsche, o sinal de uma vontade

despótica, de um desejo de ser autoridade, de dominar-se a si mesmo e de dominar os outros: ser

racional a todo o custo é, diz Nietzsche, expressão de uma vontade muitas vezes sádica de dominar

por certos meios. Ora, estes meios são mais sintomas do que remédios, porque a razão pode ser um

falso médico que torna o homem cada vez mais doente ao pretender salvá-lo. Vendo na dimensão

sensível ou corpórea a fonte de todos os conflitos, desgraças e discórdias que, segundo ele,

transformam a vida humana num inferno, Sócrates julga ver na razão (a dita fonte do consenso e da

concórdia) o remédio para todos estes males. Mas acaba por transformar o homem num ser anémico

e mórbido, que deve auto-reprimir-se, calar completamente a voz dos instintos, chegando ao ponto

de querer a morte do corpo para salvar a alma desta prisão. É preciso já estar muito doente para

querer este remédio: a salvação é, no fundo, uma perdição, sintoma ou manifestação de uma vontade

doentia.

[Eric Blondel, Nietzsche — Comentário à Obra O Crepúsculo dos ídolos, Paris, Hatier, pp. 18-19.]

Nietzsche estende à história da filosofia ocidental as violentas críticas que dirigiu a Sócrates.

Podemos concentrar em quatro pontos a ontologia de Nietzsche, isto é, a sua concepção da realidade:

1 — O mundo sensível, em devir, é real porque é mutável: é o mundo em que realmente vivemos.

2— 0 «Ser», «mundo verdadeiro» = nada, não são realidades propriamente falando mas sim

abstracções, invenções.

3 — É absurdo falar de um «outro mundo» que não o mundo sensível. Para a análise genealógica,

própria de Nietzsche, este absurdo é o sinal de que a metafísica manifesta uma vontade de se vingar

do mundo sensível.

Por conseguinte, o dualismo (Ser-Devir); (mundo inteligível — mundo sensível) é um sinal de

decadência e Nietzsche opõe-lhe a arte, mergulhada no sensível, e que afirma de uma forma

dionisíaca (antidualista) a realidade.

Por que razões surgiram estas ficções, porque se inventou este dualismo (Ser--devir) que desvaloriza

o mundo sensível, do devir? O método genealógico coloca a questão deste modo: que tipo de homem

precisa desta ficção e se agarra a ela de tal modo que a transforma em verdade absoluta mediante a

qual orienta a sua existência?

O dualismo próprio da metafísica e da moral ocidentais é uma perspectiva, uma ficção ou um erro

útil a certos homens, a um certo tipo de vida. Vejamos como Nietzsche revela a génese ou a origem

dessa atitude que ele considera um erro pernicioso e uma ficção nociva, prejudicial.

A genealogia da metafísica e da moral ocidental

1. O PERSPECTIVISMO: FORÇA E FRAQUEZA NA INTERPRETAÇÃO DO REAL

O perspectivismo é uma concepção segundo a qual não conhecemos a realidade em si: não há

verdades absolutas, mas avaliamos sempre de um determinado ponto de vista. As nossas concepções

podem resultar de uma grande variedade de motivações (a cada tipo de homem a sua verdade).

A verdade não é fixa, eterna ou absoluta, mas está ligada à realidade psicofisiológica do homem que

avalia, isto é, que produz valores ou ideias. Assim, como na base dos nossos juízos e valores está um

determinado tipo de vida e não um sujeito abstracto, uma visão global e única da realidade é uma

ficção: quando julgamos (emitimos juízos) fazemo-lo sempre do nosso ponto de vista e por isso os

nossos juízos são avaliações e não verdades absolutas.

A tradicional oposição entre verdade e erro reduz-se para o filósofo alemão a diferença de

interpretação. Tudo é interpretação:

«Não há factos, somente há interpretações.»

Estas são obra da vontade de poder, negativa ou positiva, daquele que interpreta. Há a interpretação

do forte e a do decadente, a do senhor e a do escravo, a do criador e a do homem reactivo, a do são e

a do doente.

Se tudo é interpretação, nem todas as interpretações se equivalem. Certas interpretações são baixas,

reactivas, niilistas; outras são nobres, activas, criadoras. Assim, a crença de raiz platónica num

«mundo-verdade» é perversa porque provém não do instinto vital mas do cansaço de viver; assim a

ciência é plebeia e falsificadora porque provém da necessidade banal de manipular e de comunicar.

Toda a interpretação provém dos instintos. Mas há bons e maus instintos:

Todo o conhecimento é uma ilusão vital, verdadeiro porque útil a determinadas formas de vida.

Contudo, há erros vis e servis e erros ou ilusões nobres que exprimem a exuberância da saúde e do

«sim» a esta vida.

O valor de um conhecimento depende da nobreza do instinto e do tipo de vida que prefere aquele

que interpreta e não do seu objecto.

O conhecimento é um processo de interpretação que se funda nas necessidades vitais daquele que

interpreta, melhor dizendo, na sua forma de encarar a vida.

2. O MÉTODO GENEALÓGICO: O QUE VALEM OS VALORES DOMINANTES NA

CULTURA OCIDENTAL

O método genealógico é um novo tipo de análise filosófica que consiste em remontar à origem dos

nossos juízos de valor para revelar que eles são sintomas de um determinado tipo de homem, de vida

ou de vontade. Por outras palavras, os nossos juízos de valor, as nossas avaliações da realidade, são a

manifestação do ser daquele que avalia (e Nietzsche não distingue o ser da sua manifestação).

A análise da génese dos valores vai revelar dois tipos fundamentais de atitude perante a vida: uma

atitude decadente e sem vitalidade (vontade de poder fraca ou negativa) e uma atitude sadia,

exuberante (vontade de poder forte ou afirmativa).

Para Nietzsche, viver é enunciar juízos de valor. Avaliar é interpretar a realidade de uma certa

forma, é afirmá-la ou negá-la, valorizá-la ou denegri-la. O homem é o «centro» dessa interpretação.

E para quê remontar ao centro de todas as avaliações? Precisamente para avaliar os valores que até

agora (Séc. XIX) o homem ocidental tem promovido,1' avaliando ao mesmo tempo o tipo de vida e a

atitude perante a vida que eles manifestam. Se o homem é aquele que, por essência, avalia, nos

valores que promove manifesta-se aquilo que é: ou um ser decadente e sem vitalidade ou um ser de

vontade exuberante e afirmativa. Assim, a partir dos valores morais, religiosos, filosóficos que até

agora o homem ocidental estabeleceu, pode-se fazer o diagnóstico da cultura ocidental, do tipo de

homem ou de vontade que está na sua génese.

Nietzsche põe em relevo o seguinte: a cultura ocidental tem sido dominada por valores próprios de

homens decadentes, falhados, incapazes de aderir à vida na sua totalidade complexa. Os valores

estabelecidos pela cultura ocidental são a expressão de um tipo dominante de homem e de vontade:

decadente, que se sente impotente perante a realidade sensível, procurando no outro mundo não só a

consolação, como a forma de se vingar deste mundo, desvalorizando-o e negando-o.

Em suma, o homem ocidental, ao criar determinados valores, interpretou o mundo e a vida à luz de

um sentido supra terreno, sendo isso sintoma de infidelidade à Terra, de impotência e cobardia, de

negação do mundo e da vida. Tudo isto foi o lamentável resultado de uma excessiva valorização da

razão, de uma sobrevalorização do inteligível, sintoma, por sua vez, de um ódio declarado a tudo o

que é sensível e terreno, tal como é visível no platonismo, no qual toda a cultura ocidental se

inspirou.

Ao contrário dos métodos tradicionais, o objectivo do método genealógico não é demonstrar a

verdade ou a falsidade de um determinado conjunto de teorias ou de doutrinas. Estas não têm sentido

em si mesmas, são simplesmente juízos de valor ditados por uma certa vontade, por uma certa

psicologia e fisiologia dos pensadores, em suma, por uma determinada vitalidade. São avaliações

que se tornam sintomas, isto é, testemunhos do tipo de vida ou de homem que os produz.

Nota importante

Ser fraco é uma atitude que se revela quer em grandes pensadores, quer em homens fisicamente

robustos, economicamente poderosos, etc. É uma atitude de homens psiquicamente frágeis que não

conseguem dizer sim à realidade e perante o que nela é difícil de dominar (o corpo, os sentimentos,

as paixões, o carácter enigmático e inconstante do mundo terreno), adoptam a renúncia e a vingança

sobre o sensível como ideal de vida.

É decadente ou fraco aquele que não tem força suficiente para enfrentar a realidade tal como ela é e

diz não à realidade sensível (ao mundo do devir, a «este mundo»), denigre a vida do corpo e o

«aquém» para preferir uma razão abstracta e repressiva (em nome da qual se considera o «outro

mundo» como real e superiormente verdadeiro, desvalorizando «este mundo» — aquele em que

vivemos —, como aparente, sem realidade própria).

2. 1. A análise genealógica da verdade

Para Nietzsche, colocar o problema da verdade é colocar a questão do valor da verdade.

Habitualmente, os filósofos definiram a sua investigação como procura da verdade, manifestando um

respeito pela verdade como valor em si, indiscutível e não subordinável a outros valores. Ora, é isto

que Nietzsche vem pôr em causa. Fazer da verdade um valor em si é afirmar que é preciso querer a

verdade pela verdade. Há algo de moralista neste conceito de verdade e Nietzsche vai detectar o que

está por trás desta vontade de verdade, colocando duas questões:

1 — Porquê querer a verdade?

Com efeito, a vida não respeita a verdade, entendida como conhecimento objectivo e de certa forma

imutável. Ela é feita de aparências, de erros, de dissimulações. De certa forma, Nietzsche vê no

respeito pela verdade o respeito por algo que pode ameaçar a vida.

2 — Que querem verdadeiramente aqueles que dizem querer a verdade?

A verdade é uma simplificação, uma representação redutora do mundo, uma vez que este está

sempre em devir, mudando segundo a perspectiva que adoptarmos. A verdade assegura uma

representação estável do mundo do devir. Por isso mesmo, querer a verdade é querer a segurança.

Este ideal ajuda algumas pessoas a viver mas também ameaça a vida, retirando-lhe a sua parte de

risco.

3. A GÉNESE (I) MORAL DA METAFÍSICA OCIDENTAL

a) A prova da vida separa os homens, i.e., distingue ou revela dois tipos de homens:

— Os fortes ou afirmativos

— Os fracos ou negativos

b) O que caracteriza o homem forte? O sim à vida na sua totalidade, a afirmação que não nega nem

rejeita a coexistência do sofrimento e do prazer, da dor e da alegria, querendo a vida tal como ela é.

O que caracteriza o homem fraco? A incapacidade de suportar a vida, o ódio à mudança e à

incerteza, a convicção de que a vida é assim, mas não deveria ser assim

c) Dizer que a vida não é como devia ser é desvalorizá-la. A desvalorização radical surge quando se

chega à afirmação de que há uma «outra vida», infinitamente melhor, onde não há lugar para a dor, o

sofrimento, a angústia e a morte. Uma dualidade ou divisão se estabelece: a vida que se deseja

ardentemente («a outra vida») e a vida que não se pode suportar e que é um caminho de lamentações

(«esta vida»).

d) Quando se considera a «outra vida» superior e preferível a «esta vida» não se manifesta só o

desejo de o homem fraco se consolar das derrotas da vida. A invenção da «outra vida» do «outro

mundo» nasce do desejo de vingança sobre «este mundo», «esta vida». Que melhor vingança há do

que transformar o mundo que nos faz sofrer em mundo inferior, imperfeito?

e) Foi Platão o primeiro a falar do dualismo cosmológico: aquilo que o Cristianismo popularizou sob

o nome de «outro mundo», «o Além», «O Reino dos Céus» era na filosofia platónica o «mundo

inteligível, das ideias», «o mundo do ser».

O «Aquém», o «mundo terrestre» da moral cristã, era em Platão o «mundo sensível», o «mundo do

devir», imperfeito porque, ao contrário do inteligível, estava constantemente a sofrer transformações.

f) Em Platão (Sócrates) encontramos as raízes do pensamento ocidental. Nietzsche diz que

encontramos em Platão aquilo que é característico do pensamento

metafísico. Segundo Nietzsche, o metafísico é o homem que, incapaz de enfrentar a realidade única

(o mundo do devir), inventa um mundo que satisfaça os seus desejos de segurança, certeza e

estabilidade, para nele se

refugiar. Tal invenção é obra do ressentimento: o mundo do devir é desconcertante, muitas vezes

cruel, gerador de angústia e sofrimento. Facilmente se odeia «este mundo». Facilmente se esquece o

que tem de bom e agradável. Então imagina-se um «outro mundo» e chama-se-lhe «mundo do ser»,

da «verdadeira realidade», porque se concebe esse mundo como perfeito, inalterável e imutável. O

mundo que para o fraco é o mundo ideal, desejado transforma-se, para ele, em «mundo real». O

mundo que, para o fraco, é insuportável (o único mundo real) transforma-se em «mundo aparente»,

falso.

g) Nietzsche diz que este dualismo metafísico (mundo do ser-mundo do devir tem um fundamento,

uma raiz moral. Por que razão se considera o «mundo do ser» como o mundo verdadeiramente real,

o mundo da verdadeira vida7 O mundo sensível, o mundo do devir é instável, enganador, causa

sofrimento e dor; vivê-lo é uma dura e dolorosa experiência. É um mundo mau. Porquê" Porque faz

sofrer. Chama-se-lhe então mundo do mal. O mundo inteligível, o mundo do ser, é um mundo que se

imagina como regular, constante, estável. Dele estão ausentes a morte a dor e a incerteza essas

intoleráveis realidades. Se não faz sofrer, o «mundo do ser» é bom Chama-se-lhe então mundo do

Bem.

Está descoberta a raiz moral da metafísica. O mundo metafísico, transcendente, i.e., o mundo do ser,

é considerado o mundo verdadeiro não por ser verdadeiro ou real mas por ser agradável, bom.

Imaginou-se um mundo bom, oposto ao insuportável e mau mundo do devir. Deu-se-lhe o nome de

mundo do ser, da realidade verdadeira porque se julga que ele permite fugir ao sofrimento. A divisão

ou o dualismo mundo do ser-mundo do devir tem a sua origem na divisão entre o que é bom e o que

é mau, entre o bem e o mal. Como bem e mal são conceitos morais diremos que a metafísica

ocidental, de raiz platónica, tem um fundamento moral. A metafísica é uma moral disfarçada.

h) Esta moral que se esconde na metafísica é extremamente imoral. Analisámos a génese do mundo

do ser e desocultámos os valores a que ele corresponde (a vontade de repouso, a falta de coragem

perante «esta vida», a incapacidade de criar). O homem que preza o «outro mundo» e despreza «este

mundo», seja um grande pensador ou um homem comum, é o homem minado pelo ressentimento

acerca de uma realidade que considera má e desprezível porque se sente cobarde perante ela. A

genealogia (a análise da génese) da metafísica ocidental revelou que esta é um idealismo de doentes

e medíocres, de seres decadentes, i.e., incapazes de afirmar a vida na sua totalidade. A imoralidade,

i.e., a vontade de denegrir, de caluniar o sensível e o corpóreo está na raiz do mundo do ser.

i) Inventou-se o «mundo do ser», entenda-se o «mundo do Bem», para declarar o ódio ao mundo que

não se consegue suportar. Inventou-se o mundo do Bem absoluto, e transformou-se o mundo do

devir, no qual bem e mal coexistem e são indissociáveis, no mundo do Mal, no mundo

completamente mau. Na base desta falsificação está o ressentimento. A criação de um mundo dito

superior é uma revolta dos frustrados, dos falhados, contra tudo o que a vida tem de bem sucedido.

Negando uma realidade que a sua impotência transforma em mundo doloroso e insuportável, o fraco

estabelece como realidade suprema aquilo que resulta do seu desejo de negar «este mundo»: «o

outro mundo».

Como é que esta visão moralista da realidade se tornou dominante? Como é que a moral que nega a

vida (a moral dos fracos e vingativos, a moral cristã) se tornou a moral da humanidade, melhor

dizendo, do homem ocidental?

A imoralidade da moral cristã

1. COMO A MORAL CRISTÃ SE TORNOU INTERPRETAÇÃO DOMINANTE

A moral cristã é produto de um determinado tipo de homem, um homem: fraco, incapaz de assumir a

vida na sua complexa união de sofrimento e prazer, criação e destruição, nascimento e morte, horror

e alegria. O que Nietzsche, em geral, critica nessa moral é o facto de ela corromper e atrofiar a vida

humana. Eis os pontos essenciais da sua crítica:

A moral cristã é decadente porque dignifica os falhados da vida.

É imoral porque transforma em dever a vontade do nada, a negação da vontade de viver plenamente

«esta vida».

É criminosa porque declara que é preciso matar as paixões, os instintos. Esta moral é antinatural,

declara guerra à natureza.

É doentia porque exige, como condição da santidade, a mortificação e a crucificação da vida (do

corpo).

É dualista porque baseada na proliferação das antinomias: alma-corpo, aquém--além, céu-terra,

profano-sagrado, etc.

Este dualismo é empobrecedor porque transforma um dos termos, que é ilusório e fictício, em

realidade, para tentar reduzir a nada o outro termo, que é real e efectivo.

É profana, não sagrada, porque declara como baixo aquilo que é supremo: o sim à vida na sua

totalidade. Profana «esta vida» e proclama sagrado o que deriva desta profanação.

É niilista porque visa negar esta vida e este mundo. Nietzsche diz que o mundo que se inventou para

dar um sentido a «este mundo» é um contra-senso porque não se dá sentido a este mundo negando-o

e caluniando-o.

Pretende ser uma moral de salvação, mas a «salvação» é a suprema perdição porque implica a

mortificação, a castração dos instintos superiores de vitalidade. «Salvai-vos!» significa «Afundai-

vos!», «Perdei-vos para esta vida porque ela não merece ser vivida por si». Há algo de fúnebre nesta

receita «salvadora».

Como é que esta visão moralista da realidade se tornou dominante? Como é que a moral que nega a

vida (a moral dos fracos e vingativos, a moral cristã) se tornou a moral do homem ocidental?

Como pode o fraco dominar o forte?

Fazendo com que este prefira o que lhe é desfavorável, ou seja, conduzindo-o à depreciação dos

instintos que o definem como forte. Numa só palavra, intoxicando-o, fazendo-o sentir a sua

exuberância, a sua esplêndida harmonia com o caos da vida, como pecado, como privilégio indevido.

Como se dá no nobre, no forte, a infiltração da mentira mais ignóbil, a mentira do Ideal, eis o que

veremos em seguida.

l. l. O «padre ascético» como agente da intoxicação e da corrupção generalizada da vida

No princípio era a força bruta, a bestialidade. A violência pura e simples presidia às relações entre os

homens. Os senhores primitivos manifestavam o seu ser na dominação brutal e selvagem dos que a

eles se submetiam. Era o reino do ferro e do sangue, da pura força instintiva. Como se dá a passagem

do estado animal ou estado natural ao estado social?

Os mais fortes, os dominadores, os conquistadores, constrangem os mais fracos ao respeito de

determinadas regras de vida. A força fez deles organizadores natos. A organização das relações

sociais não nasce, portanto, de um contrato mas sim de um constrangimento. A lembrança do ferro e

do sangue transforma os fracos em seres obedientes, capazes de obedecer, força-os a criar a

consciência do dever. O temor da punição obriga o fraco a renunciar à satisfação imediata dos seus

desejos, a respeitar a ordem estabelecida pelo forte, a saber cumprir as exigências da vida social.

Esta repressão dos instintos, necessária à organização da vida em sociedade, está na origem da «má

consciência». Ela surge primeira- ' mente no fraco, no escravo, que, incapaz de se impor ao senhor,

interioriza a sua agressividade, dirige-a contra si mesmo, recrimina-se, sente como uma «falta» a

exteriorização e expansão dos seus instintos. Os senhores estabelecem o seu ser como ponto de

referência de toda a acção e de toda a valoração. O que entrava a afirmação do seu ser e do seu agir é

considerado «mau». A sua moral baseia-se no orgulho, na independência a respeito de toda e

qualquer norma exterior. A dúvida («será que estou a proceder bem?») não faz parte da sua moral.

Esta consiste na criação de valores que se fundam na espontaneidade agressiva da sua acção, uma

espontaneidade que não sabe o que é a falta. Confiantes, inocentes opressores (porque não sabem o

que é a «falta»), são violentos nas suas obras e nos seus gestos porque a natureza assim faz os fortes

e os senhores.

Das considerações já expostas podemos perspectivar o tipo de operação que permitirá ao fraco

submeter o forte: dar a este má consciência, ou seja, impedi-lo de satisfazer os seus instintos

agressivos, conduzindo-o à introversão, à interiorização dessa agressividade.

Contudo, para que isso aconteça, o conceito de «má consciência» vai sofrer uma transformação

religiosa: nascendo no escravo como consciência de estar em falta quando não cumpre a ordem

estabelecida pelo senhor, a má consciência vai transformar-se em pecado, em falta livremente

cometida contra a vontade de Deus. Veremos que a tentativa de generalização da má consciência,

entendida como consciência pecadora, é a forma de o ressentimento característico do escravo

triunfar. O fraco vive ao mesmo tempo a experiência da interiorização, da introversão dos seus

instintos, e a do ressentimento, da inveja daquele que é e age plenamente. Trata-se de envenenar o

forte, intoxicá-lo aproveitando de algum modo o abalo que nele provoca a passagem brusca do

estado animal ao estado social. Com efeito, a vida em sociedade determina que no forte a

consciência gradualmente se imponha ao instinto como princípio do agir. A entrada em sociedade é

uma armadilha para o forte. A perda da inocência que progressivamente se verifica conduzirá ao

extremo da consciência de si como pecador.

O agente, o promotor desta intoxicação, é o «padre ascético». A sua acção é complexa, pois capta o

ressentimento da massa dos fracos, inverte a direcção deste ressentimento (assim surge a má

consciência como pecado) com a finalidade de subtilmente contaminar os fortes e sãos, que sentem

alegria e empenho em viver. Desmontemos, nos seus momentos essenciais, este processo.

a) A fase do ressentimento

Já referimos em que consistia o ressentimento, no capítulo anterior. Surge naquilo que podemos

chamar a fase judaica da moral ocidental. Os judeus representam, em termos históricos, a figura da

revolta contra os senhores. Os judeus são, não por determinismo genético mas por conjuntura

histórica, o «génio vingativo» por excelência. Tendo a sua raiz num tipo de vida enfraquecida, débil

e impotente, o ressentimento exprime-se do seguinte modo: aquele que é forte é a causa da minha

fraqueza, aquele que afirma a vida é a causa do meu desgosto dela. Em suma:

«Eu sofro, logo a culpa é deles».

[Nietzsche, A Genealogia da Moral, vol. III, § 15. °

b) A mudança de direcção do ressentimento

Corresponde à fase propriamente cristã da moral, à valorização do espírito e à desvalorização do

corpo. A mudança de direcção do ressentimento consiste na sua interiorização. O padre ascético

transforma o «Eu sofro logo a culpa é deles» no «Eu sofro logo a culpa é minha».

«Eu sofro: alguém deve ser a causa — assim raciocinam todas as ovelhas doentes. Então, o pastor, o

padre ascético, responde-lhe: — É verdade minha ovelha, alguém deve ser a causa disso: mas és tu,

tu mesmo, que és causa de tudo isso.»

[Nietzsche, A Genealogia da Moral, vol. III, § 15. °]

Perguntando pela causa do seu sofrimento, o fraco procura, perante o seu pastor, um responsável

para se vingar. Baseado no dogma do pecado original, o «padre ascético» diz--lhe que o seu

sofrimento é o resultado de um castigo divino provocado por uma falta livremente cometida contra a

Sua Vontade. Ao homem doente que procura uma explicação para o seu sofrimento, um sentido para

a realidade, o padre ascético pinta o quadro de uma humanidade enraizada no mal, infeliz, porque

originariamente pecadora. A sua capacidade em compreender o pessimismo, o desencanto do fraco,

é profunda: o ódio a esta vida, determinado pela incapacidade de dela triunfar, só poderá ser

aplacado com a invenção de um reino onde todos os males serão curados. Encarnação do desejo de

viver noutro lado, no Além, ou seja, do ideal ascético, o padre, o pastor do enorme rebanho dos

falhados, acrescenta ao dogma do pecado original o dogma da redenção dos pecados. De algo que

simplesmente destruía o sofrimento torna-se meio de salvação ou redenção. Do «Eu sofro» passamos

ao «Eu quero sofrer», esta vida é um «vale de lágrimas» mas devemos suportá-la para merecer a

outra, a «verdadeira vida». O «padre ascético» 1, declara o homem radicalmente culpado, fala

seriamente de um Deus juiz, que pune e castiga o pecado e que exige submissão e obediência.

c) A contaminação dos fortes

A má consciência, a consciência de si como pecador, apesar de poder parecer o contrário, não

favorece os senhores, melhor dizendo, não conduz os escravos à humildade e obediência. Estas

agora só têm sentido perante Deus, aquele perante o qual, como ensina o padre ascético, estamos em

falta.

O ressentimento, a vontade de vingança e de triunfo sobre os valores dos fortes, é o que determina a

intervenção do pastor do rebanho dos fracos. A má consciência (o sentir-se culpado, originariamente

culpado) acaba por envenenar o forte, que, na passagem à civilização, à organização social, vê

progressivamente a consciência sobrepor-se ao instinto. Da consciência passa-se à má consciência.

De orgulhoso nos seus instintos agressivos e sãos, o forte, impressionado com o semblante sério e

com o aparente auto-domínio do padre ascético, passa a sentir-se culpado, a perder a confiança nos

seus valores. O poder espiritual do pastor abala a confiança que ele tinha em si e no seu corpo e,

julgando o seu privilégio o resultado de uma qualquer acção maldosa ou faltosa, o forte é

enfraquecido pela culpabilidade.

«Há vergonha em ser feliz perante tanta miséria e sofrimento.»

[Nietzsche, A Genealogia da Moral, vol. m, § 14. °

(I) O padre ascético é o agente da intoxicação e da corrupção generalizada da vida. É um fraco, um

homem que, consumido pelo desejo do Além, despreza esta vida, julgando-a inferior, mas é também

determinado pelo desejo de exercer um ascendente sobre os homens.

É essa vontade de domínio que o liga à terra. O pecado e o ressentimento dos «pecadores» a respeito

desta vida são os «filões» dos quais não pode prescindir. Só pode conservar o seu poder

envenenando ao mesmo tempo que cura. «Os teus pecados estão perdoados mas tu continuas a ser,

em virtude do Pecado Original, um pecador.»

Tornados todos os homens pecadores, o padre ascético está em condições de exercer o seu domínio

sobre os homens. Ele tem a receita que visa salvar os pecadores da perdição. Essa receita de salvação

é a moral cristã.

A vitória do ideal ascético, a venenosa transformação do homem em pecador e em penitente,

corresponde a uma perversão da moral dos nobres, dos fortes; transforma-se em virtude a

incapacidade de viver, a renúncia à vida, considera-se forte aquele cuja alma, desejosa de comunhão

com Deus, luta penosamente contra os instintos, as paixões, contra o corpo.

Os valores resultantes desta inversão perversa são determinados pela vontade de poder vingativa dos

falhados e invejosos, conduzidos pelos inimigos mais maldosos da vida: os padres. O que era

considerado bem torna-se mal. A força, a agressividade tornam-se injustiça, a coragem dos fortes

torna-se brutalidade, a sua alegria de viver, gozo egoísta e deboche. Exalta-se a fraqueza, a

impotência, a mansidão.

Infiltrando a ideia de pecado original na consciência humana em geral, fazendo de cada homem um

pecador que deve penitenciar-se mediante a luta contra os afectos, as paixões e tudo o que o prende à

terra, ao sensível, o padre ascético homologa o ressentimento dos fracos e faz com que os seus

valores triunfem. Apresentando uma doutrina que corresponde à vontade de vingança dos doentes e

dos vencidos da vida, o austero pastor satisfaz ao mesmo tempo a sua vontade de domínio sobre a

vida dos homens. São estes impotentes astutos, estes homens cansados do real e intoxicados de Ideal,

que determinam a figura que o homem ocidental, segundo Nietzsche, apresenta.

«Homens não suficientemente aristocratas para perceber a hierarquia dos seres e o abismo que se

estende entre um homem e outro, eis os homens que, com a sua 'igualdade perante Deus', reinaram

até aos nossos dias sobre o destino da Europa, até finalmente obterem uma espécie em estado de

menoridade, quase risível, um animal gregário, qualquer coisa benevolente, doentia, medíocre, o

Europeu de hoje.»

[Nietzsche, Para além do Bem e do Mal, §62.°]

1.2. Deus como instrumento de crucificação da vida

Como já vimos, a vontade de vingança sobre os que vencem a prova da vida e dominam os

incapazes é decisiva para a invenção do supra-sensível.

Deus é o instrumento desta vingança, desta calúnia da vida, do sensível. Com efeito, o mundo do ser,

da verdadeira realidade, é o «reino de Deus», o ser omnipotente, eterno e infinito.

O fraco vai compensar a sua impotência real numa potência imaginária (Deus), juiz que condena os

fortes e os seus instintos e consola os débeis. Deus nasce da vontade de vingança sobre a vida bem

sucedida, sobre a vida ascendente, ou seja, a vida que glorifica a terra, o sensível, e procura dar

forma à pluralidade dos fenómenos, isto é, ao devir. Fiel à terra, não a ultrajando, o nobre afirma a

vida na sua caótica e infinita riqueza, não fugindo às contradições que ela naturalmente contém.

Negando uma realidade que a sua impotência transforma em mundo doloroso e insuportável, o fraco

instaura como suprema realidade uma negação. Interpreta Deus como uma aranha que tece o mundo

segundo as leis da não contradição, porque a sua (do fraco) incapacidade é alérgica à contradição.

Contraditório, «este mundo» não está à altura do criador. É um mundo mau, em falta.

Não sendo capaz de educar os seus instintos, o impotente tortura-se e recalca-os. Esta luta contra a

anarquia dos seus instintos esgota-o, debilita-o. O Deus-Espírito que ele projecta no Além como

consolação para esta longa tortura que é a vida não é o simples Consolador. O impotente, dada a sua

mesquinhez, transforma o «seu» Deus num ser mesquinho, que, em troca da «paz de espírito» numa

outra vida, exige a dilaceração do corpo. O preço da consolação é a virtude entendida como

recalcamento e tortura dos instintos, daquilo que no homem é natural. O Deus-Espírito transforma-se

em Deus-Pai a quem o filho (paradoxalmente seu criador) presta contas. Assim, através de um Pai

imaginário, o falhado justifica o seu sofrimento: «Sofro, devo sofrer para me tornar virtuoso e digno

do Além, do verdadeiro Ser, de Deus.»

«Descobre em 'Deus' o que pode haver de mais oposto aos seus verdadeiros e irremissíveis instintos

animais, reinterpreta esses instintos animais como uma falta para com Deus (como hostilidade,

rebelião, revolta contra o 'Senhor', 'o Pai', o antepassado e princípio do Mundo) e vive a tensão da

antítese entre Deus e o Diabo; o não que ele diz a si mesmo, à natureza, à espontaneidade, à

realidade do seu ser, torna-se fora de si mesmo um Sim, algo real, Deus, Santidade de Deus, juízo de

Deus, execução das altas obras de Deus, Além; eternidade, martírio sem fim, inferno, castigo e falta

incomensuráveis.»

[Nietzsche, A Genealogia da Moral, trad. do Autor, vol m, § 22.°]

O ressentimento cria valores contranaturais que pretendem anestesiar e entorpecer esta vida,

vingando-se das contradições, do desconcerto e da terrível imprevisibilidade que ela manifesta. A

criação máxima desse ressentimento, Deus, o Senhor do «mundo do ser», é uma ilusão, um Nada

que a vontade de poder vingativa, obstinada em retirar qualquer valor ao mundo, à terra e à vida,

eleva à condição de Suprema realidade, de Ens realissimum. Atribuir ao Irreal (ao simples produto

do desejo de vingança e de amparo) o estatuto de verdadeira realidade e a uma utopia (o «mundo do

ser») o estatuto de lugar ou mundo de eleição não é um erro, uma simples consequência de um

delírio. É uma ilusão útil que permite ao falhado sobreviver (dar à sua vida miserável um sentido que

para o forte é um contra--senso) e alimentar o seu desejo de vingança, ansiando pelo Juízo Final.

A baixeza está na origem do Todo-Poderoso. As características que o definem, em radical oposição

ao que define a realidade humana, são o sintoma de que Deus é criado para negar, desvalorizar,

falsificar. Evidenciemos esse contraste:

Sendo Eterno e Imutável, é uma forma (a forma suprema) de desvalorização do mundo temporal ou

do devir. Só se considera verdadeiramente real aquilo que é eterno, não tem começo nem fim.

Sendo o Pai que está no céu, é uma forma de desvalorização do mundo terrestre ou sensível. Este

separa os «filhos» do «Pai».

Sendo puro Espírito, é a forma suprema de condenação do corpo: a crucificação do corpo (1) é a

condição da ascensão à paz de alma. O corpo é o que nos prende ao mundo sensível, ao mundo

imperfeito e perigoso do devir, a este «vale de lágrimas».

Deus como Bem supremo é a forma suprema de culpabilização da existência humana, um legislador

cujas leis e exigências esgotam a vida humana, transformando-a num calvário em troca de uma

recompensa no Além (imortalidade da alma). Para a moral cristã «este mundo» é contraditório,

absurdo, não está à altura do criador. É um mundo mau, em falta.

Deus definido como Absoluto opõe-se flagrantemente ao relativismo inerente à existência humana.

Esta é um texto passível de inúmeras interpretações, das quais nenhuma é absolutamente exacta. A

omnisciência do Absoluto, de Deus, tem como função desvalorizar o conhecimento humano, sempre

relativo.

A morte de Deus, o niilismo e o super-homem

Deus, como Juiz do bem e do mal, era o fundamento da moral cristã. Nietzsche critica a moral cristã

como moral que atrofia e nega a vida porque inventa uma outra vida para desvalorizar a que

vivemos. O objectivo dessa crítica é libertar esta, libertando-a de uma moral que se vai denunciar

como imoral e indigna porque intoxicante. Ora, isso só é possível mostrando que Deus, o suporte ou

o fundamento dessa moral antinatural, não é digno de crença porque é unia invenção ou ficção dos

que não conseguem suportar a vida, ou seja, é a negação da vida. Para suprimir a moral cristã, que

condena a existência, é, portanto, necessário suprimir Deus. «Bem e mal são os preconceitos de

Deus».

Em nome de Deus, puro espírito, declara-se guerra à sexualidade, a fonte da vida. A santidade,

entendida como espiritualização castradora da sexualidade, é o ideal que a moral cristã aponta ao

homem como seu dever, para agradar a Deus. Um Deus a quem agrada este tipo de homem,

mutilado, este tipo de vida doentia, é uma realidade corrompida e degenerada. Em nome de tudo o

que é sagrado (a vida é o sagrado por excelência), devemos desmascarar como ficção nociva este

Deus profanador da vida.

O conceito cristão de Deus é a suprema das contradições — é considerado fonte da vida eterna mas

está ao serviço de tudo o que nega e desvaloriza a vida. Porquê? Porque a «Vida eterna» nada mais é

do que o resultado do ódio a «esta vida», à terra, à natureza. Declara-se, mediante esse conceito

(vida eterna), a guerra à vontade de viver, de glorificar a vida. Assim, a vida acaba onde começa o

«Reino de Deus».

Que Deus, que não passa de uma realidade imaginária, de ilusão, sirva para crucificar «esta vida»,

negando-a nos seus fundamentos mais profundos, é algo que não se pode suportar mais. Um tal Deus

é incrível, é um contra-senso. Só a sua morte (a declaração de que Ele é uma ilusão nociva, é indigno

de crença) pode libertar e desintoxicar a vida, salvá-la da prisão do Absoluto.

A expressão «morte de Deus» deve ser entendida como significando que a fé em Deus morreu, que

um tal ser em flagrante contradição com a vida é incrível.

A «morte de Deus» corresponde a um acontecimento histórico, é um facto da civilização do século

xix e Nietzsche considera-o o último acontecimento da história do cristianismo. O clima cultural dos

séculos XVIII e XIX permite-nos compreender a desaparição de Deus do horizonte das coisas

humanas. O Iluminismo lutou contra a intolerância e o obscurantismo da Igreja; o progresso

científico, herdeiro legítimo das Luzes, deu ao homem confiança no seu poder, levando-o a julgar-se

a medida de todas as coisas; as revoluções sociais e políticas destruíram a ideia de que certos

governos humanos eram de direito divino, isto é, de que certos homens eram os representantes de

Deus na Terra e que o seu governo era um mandato de Deus. Porventura, o mais profundo golpe na

fé em Deus foi desferido por Darwin. A doutrina da evolução das espécies negava que a espécie

humana tivesse sido criada à parte das outras espécies, tivesse sido objecto de uma criação especial.

Adão e Eva não são os pais da humanidade, nunca existiu o paraíso nem faz sentido a ideia de

inferno. Pode dizer-se que não é simplesmente a palavra de Deus que é posta em causa, mas a

própria existência de Deus como criador do homem.

1. O NIILISMO COMO CONSEQUÊNCIA NECESSÁRIA DA EVOLUÇÃO DA CULTURA

OCIDENTAL

O niilismo é uma consequência da morte de Deus. O reino de Deus, a «outra vida», era o Sentido, a

bússola ou o centro de referência da vida humana. Deus era o fundamento dos valores essenciais que

orientavam a vida humana. Morta a fé em Deus, os valores tradicionais perdem qualquer valor, a

Terra deixa de estar ligada ao céu e a luz divina já não se projecta sobre a vida humana.

Uma vez perdido o seu Centro de referência ou o seu Sentido, a vida e o mundo parecem não ter

sentido nenhum. A sensação de que já nada faz sentido, de que falta uma finalidade, de que tudo fica

à deriva, corresponde à experiência do niilismo. Extinguindo--se a Luz e o Sentido, todos os valores

tradicionais perderam a validade, a vida humana fica à deriva sem qualquer bússola que a oriente,

sem qualquer Luz que a ilumine.

O niilismo significa, portanto, a desvalorização de todos os valores «superiores», de todas as

respostas que a metafísica ocidental deu ao problema do sentido do mundo. A expressão «a morte de

Deus» resume esse acontecimento que é a perda dos valores fundamentais que até agora a cultura

ocidental tinha promovido, dado que Deus era o fundamento último desse sistema de valores ou

dessa interpretação dualista do mundo.

Contudo, o niilismo não é simplesmente algo que decorre da morte de Deus, porque ele significa não

só a desvalorização dos valores da cultura europeia como também a lógica interna do

desenvolvimento dessa cultura. Com efeito, todos os valores criados pela cultura ocidental são falsos

valores, são a negação da própria vida, são o resultado de uma vontade de nada. Assim, o niilismo

pode ser visto como consequência da interpretação que ao longo dos séculos se deu do mundo e da

vida. Os valores da cultura ocidental são niilistas e embora se tenha encoberto esse niilismo através

de ideias como verdadeira vida, reino de Deus, etc., ele acaba por revelar-se completamente ao

declarar-se incrível o Ser no qual todos os valores negativos e prejudiciais se fundamentavam.

Colocou-se o sentido desta vida numa outra, afirmou-se que a finalidade da existência terrena era o

«reino dos céus». Por isso, a «morte de Deus» revela não só que os valores tradicionais nada valiam

(eram prejudiciais) como também que a vida e o mundo humanos não têm um sentido em si mesmos.

É preciso dar-lhe um novo sentido para ultrapassar o niilismo, que é uma consequência da visão

doentia, racionalista, que se teve da vida humana.

«Por que razão é o advento do niilismo algo de necessário ? Porque os nossos valores anteriores

atingem com ele as suas consequências últimas; porque o niilismo é a consequência lógica dos

nossos valores e dos nossos ideais mais altos, porque foi preciso passar pelo niilismo para descobrir

o valor real destes valores.»

[Nietzsche, A Vontade de Poder, vol. III, § 9. °]

l. l. O niilismo como grande perigo

A morte de Deus, a boa nova, pode, de acordo com o tipo de vida que a interpreta, dar lugar a

diferentes, a opostas formas de comportamento. O niilismo será interpretado de forma negativa ou de

forma positiva de acordo com a realidade (intérprete fraco — intérprete forte) daquele que avalia

esse evento. Assim, a morte de Deus encerra as mais altas promessas e os mais temíveis riscos.

A negação de Deus é acompanhada pela preocupação de permitir a expansão da vontade criadora do

homem. Se Deus existisse, existiria uma ordem de valores absolutos que seriam dados objectivos

que a vontade humana encontraria já estabelecidos. O homem, que Nietzsche concebe como criador

de valores, veria a sua criatividade atrofiada e negada por Deus. Ora, saber estar à altura desse

enorme acontecimento, desse acto tremendo que é a morte da fé no Absoluto, exige que o homem se

torne diferente do que tem sido até agora. Esta transfiguração do homem, que cria novos valores e se

supera a si mesmo tornando-se vontade que afirma plenamente esta vida, tem como símbolo o super-

homem.

Nietzsche espera que a «morte de Deus» seja o começo de uma nova etapa da história. Chegou o

momento de o homem ser o senhor de si mesmo. Há que fazer da «morte de Deus» um grandioso

renascimento e uma contínua vitória sobre nós mesmos. Há que corresponder à grandeza desse acto.

O homem, que assume a responsabilidade do acto que fez desaparecer o juiz absoluto do Bem e do

Mal, vive o calafrio da liberdade, da inocência: esta vida não está sujeita a juízos morais absolutos,

ela está para além do Bem e do Mal. Há, contudo, dois tipos de situações possíveis que impedem a

ultrapassagem do niilismo, da ausência do Sentido e do contra-senso que a vida do homem até agora

tem sido.

1.1.1. O niilismo passivo: o «homem superior» e o «último homem»

a) Pode fazer-se como se nada tivesse acontecido, ou seja, recebe-se a notícia da morte de Deus mas

continua-se a agir como se os valores dos quais ele era o fundamento não morressem com ele, ou

seja, ainda se acredita em valores absolutos, objectivos.

E a figura do «homem superior» que aqui se apresenta. A moral do «homem superior» é o produto

irrisório de um ser débil que, morto o Pai, não deixou de ser o «menino de Deus».

O «homem superior» já não acredita em Deus, mas, contudo, não se libertou totalmente da

dependência em relação ao Ser Supremo. Com efeito, paira sobre os seus actos a sombra de Deus. O

«não» ao ilusório «outro mundo» não se transforma em «sim» à terra. Um certo «instinto teológico»

continua a envenenar a sua relação com o mundo, com a realidade em devir ou em mudança. Não se

apercebendo de que com Deus morreu o Absoluto, a sua metafísica mantém os traços de uma

teologia mascarada. Vive ainda segundo os pressupostos da metafísica que o Deus extinto

fundamentava, ou seja, continua a desvalorizar o mundo do devir, a segregar o veneno do

ressentimento. A «sombra de Deus» encobre a sua existência e estende-se sobre os novos ídolos (os

novos absolutos) — a Razão, o Estado, a Pátria, a Justiça — que permitem ao homem desprezar o

devir. Desaparecido o Senhor, este homem não abandona totalmente o papel de escravo. É

demasiado débil para estar à altura de um acontecimento enorme no qual participou: a morte do

Deus da culpa e do ressentimento. De tal modo assim é que o ressentimento define a sua relação com

o devir, fonte de todo o sofrimento porque condena a vida ao desgaste, à insatisfação, à imperfeição.

A sua procura do absoluto, mesmo sob forma não religiosa, é ainda o sintoma de uma vontade de

poder negativa, que se recusa a dar valor próprio a «este mundo». Desconhecendo ou escondendo a

si mesmo que nenhuma moral absoluta é possível sem Deus, o Absoluto, o «homem superior»

revela-se como uma suprema decepção, um ateu débil e inconsequente. É incapaz de assumir o

destino grandioso que a morte de Deus exige do homem, é impotente para levar às suas últimas

consequências criadoras a denúncia da «mentira sagrada» ou «teológica». A sua negação de Deus é

uma manifestação de impotência porque, para se proteger da realidade temível do devir, abriga-se à

sombra de Deus, seguindo, em termos gerais, o tipo de moral que nele se fundava.

A sua conduta é ambígua: acredita no Diabo, não compreendendo que este só existia em relação a

um Deus que morreu. Acreditar no Diabo significa que, apesar de derrubado o fundamento dos

antigos valores (sagrados, celestes), estes permanecem sob uma forma laicizada (terrestre, humana).

Como a sombra não é senão a projecção de uma determinada realidade, a sombra de Deus, morto

Deus, é uma ficção, uma ilusão maior do que o próprio Deus.

b) Pode haver uma entrega complacente e desprezível à ausência de qualquer sentido ou valor, ou

seja, rejeitam-se quer os antigos valores quer a necessidade de criar um novo sentido para a vida.

Temos aqui a figura do mais desprezível dos homens — o «último homem». Para ele Deus era um

senhor demasiado exigente, que impedia um sono tranquilo, uma existência confortável, sem deveres

pesados. Não quer fardos antigos nem novos.

O «último homem» é o homem sem qualquer valor, o homem que quer dormir tranquilo e viver

longe de qualquer tarefa pesada ou grandiosa.

O «último homem» é o mais desprezível dos homens, porque rejeita quer os valores antigos quer a

criação de novos valores. Nele a humanidade atinge o extremo da mediocridade e da degradação. Se

o «homem superior» sucumbia ao fascínio da consolação da moral teológica, o «último homem» não

quer carregar o fardo dos antigos valores nem trilhar a via árdua da criação de uma nova axiologia

(de novos valores).

Se acolhemos a «morte de Deus» como uma espécie de novidade milagrosa cujas razões nos

escapam, podemos ser niilistas passivos, como é o caso do «último homem». Este interpreta a

«morte de Deus» como sinónimo de desaparição de qualquer ideal e de qualquer valor. Não se

empenha em dar um novo sentido à vida, desresponsabiliza-se, fazendo desse acto o seu valor

supremo. O «último homem» é o homem sem qualquer valor, sem qualquer finalidade a não ser uma

existência tranquila e fácil no meio desse agradável vazio criado pela «morte de Deus».

Neste tipo de homem — último porque é o tipo mais baixo de humanidade — a mediocridade atinge

o seu extremo. Deus era invenção de medíocres e de falhados, mas mais vil do que o «sentido»

nocivo que o crente dava à vida é a vontade de não lhe dar sentido nenhum.

Deus era um Senhor demasiado severo que, exigindo que o homem vivesse à sua imagem, impedia

um sono tranquilo, uma existência confortável, sem responsabilidades. O desvanecimento do Ideal é

interpretado pelo mais desprezível dos homens como manifestação do contra-senso de qualquer

ideal. É o homem que com um riso cínico se entrega a um prazer e a uma «felicidade» à sua altura,

ou seja, mesquinhos. Eis, de acordo com Jean Granier, o programa de vida deste homem sem valor:

«Eliminação, engenhosamente programada, de tudo o que, na realidade, é fonte de conflitos, de

lutas, de tensão — logo de superação de si. Trata-se de reduzir a existência humana a uma

sonolência aprazível e ininterrupta, a uma irresponsabilidade divertida. Reconhecemos aqui os traços

da moderna 'sociedade de consumo' versão técnica e publicitária do niilismo passivo.»

[Jean Granier, Nietzsche, Paris, PUF, p. 34.]

1.2. O niilismo activo: a «morte de Deus» como grande vitória

Contra o niilismo passivo do «último homem» e do «homem superior», Nietzsche faz a defesa do

niilismo activo. Por esta expressão deve entender-se a consciência de que os antigos valores que

serviram de fundamento à vida humana não caíram por si , mas por obra de uma vontade que já não

conseguia suportar a calúnia e o desprezo acerca desta vida e deste mundo.

O niilismo activo não consiste em dizer não pura e simplesmente mas em negar aquilo que negava a

vida, propondo novos valores em harmonia com a realidade, uma nova atitude perante a vida.

Aquele que se alegra com a «morte de Deus», que a saúda como uma Boa Nova, não o faz por

ressentimento, para se vingar dos que intoxicaram a humanidade. Esmagado sob o peso de valores e

de instituições que revelaram o seu fundamento ilusório, o homem da vontade de poder afirmativa

sente abrir-se e expandir-se o horizonte da sua acção. Os valores supremos perdem a sua validade, o

seu carácter intocável e puro, e mostram a baixeza, a «imoralidade» que está na sua origem.

«O niilismo é então a consciência de um enorme desperdício de forças, a tortura do 'em vão', a

vergonha de si mesmo, como se tivéssemos mentido a nós . mesmos demasiado tempo.»

[Nietzsche, A Vontade de Poder, vol. i, § 12.° A.]

A «hora do grande desprezo» por si mesmo é uma hora estimulante, porque, envergonhado com a

sua mediocridade o homem sente que é imperativo ultrapassar-se a si mesmo. O homem que tem

vergonha de se assemelhar ao homem do dualismo moralista é aquele que nega o que foi em favor

do que será. Descobre que a destruição e o declínio são condições de passagem a uma vontade de

poder construtiva. No seio do grande desprezo abriga--se a grande veneração.

A morte de Deus clarifica o que se pretendia ocultar (que o Ideal é uma mentira) e entrega o homem

a si mesmo e à realidade que durante tanto tempo foi negada. Todo o reino dos valores supra-

sensíveis, na perspectiva da vontade de poder criadora, desaparece e, com ele, as normas e os fins

que orientaram até agora a existência humana. A ideia de outro mundo, superior ao do devir, lugar

onde imperam eternamente o Bem, a Verdade e a Justiça, é uma ilusória projecção dos nossos

desejos mais inconfessáveis. O mundo além da morte, da mudança, da dor e do engano é um simples

nada, um ideal vazio, uma mentira confeccionada pela inversão das características do mundo real,

que consideramos indigno de ser vivido por si mesmo. A mesquinha origem dos valores supremos

não deve conduzir-nos ao pessimismo, ao niilismo passivo, que consiste em julgar que o mundo

perdeu o seu sentido, se desvalorizou radicalmente. Ao olhar desencantado que vê o sentido da

realidade desvanecer-se deve sobrepor-se uma atitude que compreende a negação daquilo que nega a

vida (Deus, a Verdade, o Ideal) como condição da afirmação desta (1)

A vontade de poder afirmativa deve, para evitar que a culpabilidade e a desvalorização do mundo, da

Terra, subsistam mesmo depois de desaparecido o Deus que as justificava, constituir como seu

imperativo o advento do super-homem. O super-homem é aquilo que o homem pode e deve ser.

«Eu ensino-vos o super-homem. O homem é algo que deve ultrapassar-se.»

[Nietzsche, Assim Falava Zaratustra, «Prólogo», § 3.°]

("É característica essencial de Nietzsche criticar as «verdades» da metafísica tradicional, não por

serem falsas ou ilusórias, mas por serem erros nocivos, que não estão ao serviço da vida ascendente

O Super-Homem é aquele que recusa Deus, não acredita no além mas simplesmente na terra. As

esperanças supra terrestres são a forma de sobrevivência de seres fracos e rancorosos.

«O Super-Homem é o sentido da Terra. Outrora o ultraje de Deus era o maior dos ultrajes, mas Deus

morreu e com ele os que o ultrajavam. Ultrajar a Terra é agora o que há de mais temível. Como

conceder mais atenção às entranhas do insondável do que ao sentido da Terra?»

[Nietzsche, op. cit., «Prólogo», § 3. °]

Definiremos melhor a figura do Super-Homem ao sabermos em que consiste o «sim» supremo, a

vontade suprema de afirmação da vida.

2. O ETERNO RETORNO

Desprezados os «valores superiores» que funcionavam como desvalorização da vida terrestre,

corremos o risco de não encontrar valor para esta vida. A doutrina do eterno retorno surge como

resposta às questões «Que valor dar à Terra?», «Como dar ao tão longamente desprezado mundo do

devir a consistência e o sentido pleno até agora reservado ao mundo supra-sensível?»

O sim à Terra é a adesão ao tempo, ao devir, «eternização» do tempo. Esta eternidade não é

concebida como negação do finito. A metafísica racionalista, dualista porque essencialmente niilista,

baseava-se na transcendência de Deus, o Ser supremo, para elevar o eterno acima do tempo terrestre,

considerado demasiado inconsistente. Ao carácter transitório e desgastante do tempo terrestre, o

metafísico dualista opunha a permanência, melhor dizendo, a imutabilidade do Eterno. A

desaparição de Deus, a morte do Eterno transcendente implica que poderá acender-se no mundo do

devir, na Terra, a chama da eternidade. Devolver à terra todo o seu valor, um valor absoluto, eis a

função desta inversão. Afirmação total da vida e do devir, o pensamento do eterno retorno é a forma

de ultrapassar o niilismo, o desencanto perante a ausência do Sentido a que a morte de Deus parecia

condenar o homem. É o pensamento que deve suceder à «hora do grande desprezo», e imprimir na

vida humana a imagem da eternidade impedindo a elevação do olhar para uma incerta outra vida.

Vejamos, em termos gerais, em que consiste a doutrina do eterno retorno da vida.

Este mundo é todo o ser e tem em si o selo da eternidade. O sentido da Terra não é transcendente.

Esta dupla ideia resume no essencial a doutrina do eterno retorno. Nietzsche recusa procurar o

sentido do mundo num Ser supremo transcendente porque tal sentido se revelou um contra-senso.

Com efeito, ele retirava à Terra o seu valor, denegria-a. Descoberta a fraude do Ideal, a imoralidade

do «mundo superior», aquele que não se deixa iludir por esperanças supraterrestres coloca o sentido

da terra na terra. Ora, não há maior afirmação possível da vida e do mundo do que a concepção do

mundo como algo em que tudo o que acontece infinitamente volta a acontecer. A metafísica dualista

considerava este mundo como incompleto, imperfeito e insatisfatório, indigno de ser vivido por si

mesmo. Para tal metafísica, e isso é o que a análise genealógica descobre, o tempo que tudo desgasta

e corrompe, retirando a cada coisa a possibilidade de completar-se, é a causa da imperfeição deste

mundo. Este é assim diminuído perante o carácter completo e perfeito do mundo do Ser, de Deus,

Reino da eternidade.

Afirmar que uma infinidade de vezes tudo retorna é colocar o mundo do devir à margem do desgaste

e da imperfeição provocados pela temporalidade evanescente. Com efeito, se cada momento que

constitui o devir se repete uma infinidade de vezes, podemos dizer que ele dura uma eternidade. A

eternidade de que fala a «revelação» do Eterno Retorno não é a temporalidade do Deus imutável mas

sim o carácter infinito do próprio tempo. Não é uma eternidade que transcende o tempo; designa,

pelo contrário, o próprio ser do tempo. Nietzsche considera a «revelação» do Eterno Retorno (tudo

volta e retorna eternamente) como o ponto supremo da contemplação, porque ela anula a cisão (o

dualismo) entre o Ser e o devir, entre o permanente e o efémero, implantando no devir o carácter do

ser.

A doutrina do Eterno Retorno concebe o Ser como devir, no seu eterno retornar. Ela é superação da

metafísica dualista ou, por outras palavras, a «inversão do platonismo».

Segundo Nietzsche, a crença fundamental da metafísica platónica é a crença na antinomia, na cisão

radical, dos valores.

O pensamento do Eterno Retorno rejeita o dualismo Ser-Devir (permanente-efémero) ao anular a

cisão tempo-eternidade, fazendo do tempo uma duração infinita; a distinção «mundo aparente-

mundo verdadeiro» é rejeitada porque aquele que afirma o eterno retorno do que existe e está em

devir diz corajosamente «sim» a um mundo em que não existem verdades «em si», absolutas, isentas

de perspectivismo, a um mundo em que o bem e o mal estão unidos.

Esta concepção do tempo como duração infinita dá ao mundo sensível, ao mundo do devir, a

realidade plena, a densidade ontológica que o pensamento dualista atribuía ao «mundo inteligível».

Em suma, dá ao devir, a «esta vida», a forma da eternidade. Deste modo, a plena realização da vida

sensível e terrestre não é adiada para uma outra vida. A vida eterna já está em nós, aqui e não no

«além», num paraíso imaginário. Não faz assim sentido a ideia de «imortalidade da alma».

1.1. O «eterno retorno» enquanto tema essencialmente moral

«Mesmo admitindo que a repetição cíclica não é senão algo de verosímil ou uma possibilidade, o seu

simples pensamento, o pensamento da sua possibilidade pode comover-nos e transformar-nos, tanto

quanto certos sentimentos ou esperanças.»

[Nietzsche, A Vontade de Poder, vol. IV, p. 241.]

O pensamento do eterno retorno é, para Nietzsche, o mais formidável teste e desafio à força e à

capacidade de afirmar a vida tal como ela é, ou seja, trágica, sem consolações transcendentes, dura.

Quer na obra Assim Falava Zaratustra, quer na Gaia Ciência, salvaguardadas certas diferenças, este

«supremo ensinamento», este «pensamento abissal» é um desafio à capacidade de encarar alegre e

corajosamente que o mundo e a vida não possuem um carácter diferente daquele que apresentam.

Não importa que a «revelação» da repetição cíclica seja uma simples hipótese não provada.

A verdade da ideia do eterno retorno é bem menos importante do que o seu efeito sobre o homem

que a ela adere. E não se trata simplesmente de encontrar homens capazes de suportar tão

desconcertante revelação. Exige-se principalmente o aparecimento de homens capazes de abraçar

essa mensagem suprema, louvando a visão do eterno retorno com um fervor inédito e insuperável.

Em que consiste a transfiguração do homem que faz dessa «visão» o guia da sua acção?

Quem afirma o eterno retorno de todas as coisas quer esta vida (a única) na sua totalidade, quer a

divinização de toda a existência, mesmo nos seus aspectos mais dolorosos. Afirmar o mundo

sensível, o seu eterno retornar, ou seja, querer tudo o que constitui a existência, e eternamente, para

sempre, é a maior prova de fidelidade à terra. O homem que assim dá a esta vida o peso da

eternidade é o homem liberto do ressentimento e do desencanto perante o desvanecimento dos

valores ditos superiores. Não há razão para o ressentimento porque há a aceitação corajosa do real,

mesmo nos seus piores aspectos. Este mundo não é melhor nem pior do que outro porque é único.

Para aquele que tem a coragem de o enfrentar, ele vale por si, para além do bem e do mal. Não há

razão para o desencanto porque a via que, entre a teologia moralista e a abdicação niilista, coloca o

sentido da terra na terra é aquela que afirma com exuberância que nada se perde e tudo regressa ou

retorna necessariamente. Aquele que afirma a vida eternamente, atribuindo à existência humana e ao

mundo a plenitude que outrora imoralmente se concentrava no Deus dos fracos e dos invejosos,

liberta-se da vontade de vingança, justificando e aprovando, para além do bem e do mal, todo o ser.

O «ensinamento» do eterno retorno é essencialmente moral porque é um pensamento cuja função é

transformar a atitude do homem a respeito da vida e de si mesmo: ter a coragem de dizer sim à vida

e ter a coragem de ser o que se é, eis o imperativo que a afirmação do eterno retornar da existência

cumpre. Morto o Deus inimigo da vida, dar a esta a forma da eternidade, dizer que a eternidade não

está para além desta vida é a manifestação suprema de veneração. A filosofia do eterno retorno é a

doutrina da adoração incondicional da vida através de todos os seus enigmas e sofrimentos e «eleva

o homem à sua mais alta responsabilidade trágica». A aprovação da alegria é também a aprovação da

dor. A efémera vida humana adquire uma terrível gravidade. O homem que incorpora o pensamento

dos pensamentos em qualquer dos seus actos deve perguntar a si mesmo. «Quero--o de tal modo que

quererei realizá-lo um infinito número de vezes?». Dizer sim é assumir um pesado fardo, é

manifestar a vitalidade de um Super-Homem.

Na resposta que cada homem dá à mais pesada das questões revela-se a distância entre a vontade de

poder forte e a vontade de poder fraca.

Antes de prosseguir a exposição do pensamento de Nietzsche, um texto de Milan Kundera

evidenciará o carácter original e perturbante de uma moral guiada pela ideia de eterno retorno. Esta

daria a cada acto um peso que o tornaria irremissível, uma pesada responsabilidade. O «sim» à vida,

à terra, encontra na ideia de eterno retorno o seu suporte.

«O eterno retorno é uma ideia misteriosa de Nietzsche que, com ela, conseguiu dificultar a vida a

não poucos filósofos: pensar que, um dia, tudo o que se viveu se há-de repetir ainda uma e outra vez,

até ao infinito! Que significado terá este mito insensato? O mito do eterno retorno diz-nos, pela

negativa, que esta vida, que há-de desaparecer de uma vez por todas para nunca mais voltar, é

semelhante a uma sombra, é desprovida de peso, que, de hoje em diante e para todo o sempre, se

encontra morta e que, por muito atroz, por muito bela, por muito esplêndida que seja, essa beleza,

esse horror, esse esplendor não têm qualquer sentido. Não vale mais do que uma guerra qualquer do

século xix entre dois reinos africanos, embora nela tenham perecido trezentos mil negros entre

suplícios indescritíveis.

Mas algo se alterará nessa guerra do século xiv entre dois reinos africanos se, no eterno retorno, se

vier a repetir um número incalculável de vezes? Sem dúvida que sim: passará a erguer-se como um

bloco perdurável cuja estupidez não terá remissão.

Se a Revolução Francesa se repetisse eternamente, a historiografia francesa orgulhar-se-ia com

certeza menos do seu Robespierre. Mas, como se refere a algo que nunca mais voltará, esses anos

sangrentos reduzem-se hoje apenas a palavras, teorias, discussões, mais leves do que penas, algo que

já não aterroriza ninguém. Há uma enorme diferença entre um Robespierre que apareceu uma única

vez na História e um Robespierre que eternamente voltasse para cortar a cabeça aos Franceses.

Digamos, portanto, que a ideia do eterno retorno designa uma perspectiva em que as coisas não nos

aparecem como é costume, porque nos aparecem sem a circunstância atenuante da sua fugacidade.

Essa circunstância atenuante impede-nos, com efeito, de pronunciar um veredicto. Poderá condenar-

se o que é efémero? As nuvens alaranjadas do poente iluminam tudo com o encanto da nostalgia;

mesmo a guilhotina.

Não há muito, eu próprio me defrontei com o facto: parece incrível, mas, ao folhear um livro sobre

Hitler, comovi-me com algumas das suas fotografias; faziam-me lembrar a minha infância passada

durante a guerra; diversas pessoas da minha família morreram nos campos de concentração dos

nazis; mas o que eram essas mortes comparadas com uma fotografia de Hitler que me fazia lembrar

um tempo perdido da minha vida, um tempo que nunca mais há-de voltar? Esta minha

«reconciliação» com Hitler deixa entrever a profunda perversão inerente a um mundo fundado

essencialmente sobre a inexistência de retorno, porque nesse mundo tudo se encontra previamente

perdoado e tudo é, portanto, cinicamente permitido. Se cada segundo da nossa vida tiver de se repetir

um número infinito de vezes, ficamos pregados à eternidade, como Jesus Cristo à cruz. Que ideia

atroz! No mundo do eterno retorno, todos os gestos têm o peso de uma insustentável

responsabilidade. Era o que fazia Nietzsche dizer que a ideia do eterno retorno é o fardo mais pesado

(das schwerste Gewicht). Se o eterno retorno é o fardo mais pesado, então, sobre tal pano de fundo,

as nossas vidas podem recortar-se em toda a sua esplêndida leveza. Mas, na verdade, será o peso

atroz e a leveza bela?

O fardo mais pesado esmaga-nos, verga-nos, comprime-nos contra o solo. Mas, na poesia amorosa

de todos os séculos, a mulher sempre desejou receber o fardo do corpo masculino. Portanto, o fardo

mais pesado é também, ao mesmo tempo, a imagem do momento mais intenso de realização de uma

vida. Quanto mais pesado for o fardo, mais próxima da terra se encontra a nossa vida e mais real e

verdadeira é.

Em contrapartida, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar,

fá-lo voar, afastar-se da terra, do ser terrestre, torna-o semi-real e os seus movimentos tão livres

quanto insignificantes. Que escolher, então? O peso ou a leveza?»

[Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser, trad. Joana Varela, Lisboa, Publicações Dom

Quixote, pp. 5 e 6.]

3. A VONTADE DE PODER AFIRMATIVA E A SUA ENCARNAÇÃO SUPREMA: O

SUPER-HOMEM

Nietzsche considera que a vontade de poder é a essência de toda a realidade. No ser humano, a

vontade de poder manifesta-se como uma interpretação que pretende dar um sentido e um valor ao

mundo. Portanto, ela manifesta-se sob a forma de juízos de valor que são sintomas de uma vontade

forte ou de uma vontade débil.

No homem da moral tradicional, a vontade de poder é falsamente afirmativa, pois os seus valores são

negativos, traduzem um esgotamento, uma falta de vontade de viver e um instinto de vingança

contra toda e qualquer relação saudável com a vida.

O sim à vida, à afirmação da realidade tal como ela é, e não como deveria ser, tem como sujeito a

vontade de poder afirmativa. O carácter criador da vontade de poder positiva implica que ao dizer-se

sim, também se diz não, porque o sim não é sinónimo de resignação ou adaptação. A vontade de

poder propriamente dita é criadora, transfigura a vida através da sua capacidade artística. Nesse

sentido, ela é o contrário da vontade de poder negativa, que era caracterizada pela renúncia e pela

impotência criadora, pela sua incapacidade em mergulhar no sensível e dele fazer surgir novas

formas.

Nesta ordem de ideias, a vontade de poder saudável concebe a vida como metamorfose ou

transfiguração, como dinamismo em que a criação está intimamente ligada à destruição. Se a

vontade de poder forte e criadora é a expressão fiel da vida enquanto jogo em que a criação e a

destruição dão as mãos, então a arte é a sua adequada manifestação.

A arte é a manifestação de uma vontade de poder que rejeita que haja uma realidade em si mesma,

que considera o mundo do devir como a única e verdadeira realidade. A metafísica tradicional

opunha o mundo do devir ao mundo do Ser, o mundo da transformação ao mundo da imutabilidade.

A crença no outro mundo, dito estável e perfeito, era um convite à contemplação, a negação da arte

que é poder de transfiguração do mundo.

A arte é a criação que encontra no sensível a sua matéria, que ultrapassa as oposições entre o

aparente e o real e que, sendo ao mesmo tempo afirmação de novas formas e negação de outras, está

em completa sintonia com a vida. A destruição que é necessária a qualquer actividade criadora é

uma forma de dizer sim à Terra, pois ao fazer surgir novas formas, constantemente a rejuvenesce.

O mundo criado pela arte é uma aparência ou uma ilusão que, contudo, não nega a realidade, não a

desvaloriza, não a submete a juízos morais, mas unicamente transfigura a matéria sensível,

colocando o mundo para lá do bem e do mal.

Esta interpretação da vontade de poder forte como essencialmente artística evita uma concepção

superficial e perigosa que a identificaria com a procura de poder económico, militar ou político. Ao

definir o homem como vontade de poder, Nietzsche nega que o poder seja algo que a vontade

estabelece como seu objectivo. A vontade de poder não procura adquirir valores estabelecidos

porque se define como criatividade, como doação de novas formas ao mundo sensível. Nela o verbo

dar sobrepõe-se ao verbo adquirir.

Por outro lado, a vontade de poder afirmativa caracteriza-se pela constante superação de si mesma,

como perpétua metamorfose, como actividade eternamente criadora, isto é, como uma espécie de

devir que não tem fim.

A vontade de poder artística é a expressão suprema da concepção dionisíaca do mundo e da vida.

Nesta concepção, o mundo é visto como enigmática realidade que se cria sempre a si mesma e se

destrói eternamente a si mesma. A vontade de poder é um eterno movimento circular, uma adesão

criativa ao «eterno retorno», a afirmação do mundo do devir como acontecimento eternamente

renascente, que tem em si a sua origem e o seu fim.

O homem que não conhece nem o desgosto nem o cansaço deste mundo; que eternamente gira em

torno de si mesmo; que também nunca encontra na sua criatividade a saciedade ou a satisfação

definitiva; que não descansa em nenhuma das suas realizações, afirmando através da transfiguração

sem fim a realidade plena deste mundo, nunca caluniando as constantes metamorfoses e

transfigurações da realidade; que não se deixa seduzir e intoxicar pela vontade de imutabilidade

característica do fraco, tem o nome de «super-homem».

Perante um mundo devastado e empobrecido pelo niilismo, o «super-homem» aprova a totalidade do

real e faz da actividade criadora o novo sentido da existência terrena, liberta do Criador que impedia

o desenvolvimento da vontade de viver e criar.

O Super-Homem é o homem que diz sim ao devir sem fim, porque eternamente retorna sobre si,

arrancando-se à fixidez, à ilusória perfacção (perfeição) ou acabamento.

Sem ilusões consoladoras, o Super-homem, aquele que negou Deus para se afirmar a si como

encarnação da vida plena, afirma a inocência do devir de tudo o que existe, diferenciando-se assim

do fraco, cuja vontade de poder, enraizada no ressentimento, nega e calunia as constantes

metamorfoses e transfigurações que a realidade manifesta, para desgosto da sua vontade de

imutabilidade, de identidade e de repouso.

Força transbordante e isenta de ódio, vontade que não simplesmente quer viver, mas viver

plenamente e cada vez mais, o Super-Homem é a encarnação da essência da própria vida: terrível,

enigmática e ao mesmo tempo rica em promessas terrestres. Não a rejeita em nome de um ideal

vazio e alienante. A dor de dar à luz novas formas ou configurações é a sua sacralização da vida.

Individualista, orgulhoso da sua impetuosidade criadora, cultivando a distância em relação ao

rebanho dos caluniadores da vida, facilmente será considerada por estes como um «demónio».

Mas, segundo Nietzsche, é ele o mais alto apelo que se pode dirigir ao homem que ainda é sub-

homem. Poucos responderão a esse apelo. Não obstante, o Super-homem é o sentido da Terra e da

vida porque todo o sentido tem de ser elevado e magnificente como a vida!