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Paper ABCP/2012 NIETZSCHE ENTRE FRANCESES: REFLEXÕES EXTEMPORÂNEAS SOBRE LIBERDADE E PODER JEAN GABRIEL CASTRO DA COSTA - UFSC RESUMO: Procuramos apresentar uma concepção de liberdade e poder distinta da crítica liberal ao poder – e de sua concepção de liberdade – e também da alternativa republicana de liberdade como não-dominação, que vem sendo desenvolvida recentemente. Elementos dessa concepção podem ser encontrados em uma linhagem de pensadores franceses cujas origens remontam a uma recepção singular da obra de Nietzsche feita na primeira metade do século XX. Outros pensadores desta linhagem serão os pós-estruturalistas, com destaque para Foucault e Deleuze. Avaliamos como esta recepção da obra de Nietzsche influiu na maneira destes pensadores entenderem o poder e a liberdade, para então reconstruir aspectos de suas próprias formulações, com destaque para as noções de biopolítica e sociedade do controle. Nas considerações finais, procuramos, a partir desta perspectiva trágica sobre liberdade e poder, fazer um breve questionamento à ideia de liberdade como não- dominação. NIETZSCHE CONTRA A MAIS LONGA UNANIMIDADE “(...) eu, enquanto pupilo de mais antigos, especialmente dos gregos, cheguei, além de mim, como um filho da época atual, a experiências tão intempestivas. De qualquer modo, não há mais nada que precise conceder a mim mesmo em virtude de minha profissão de filólogo clássico: pois não saberia que sentido teria a filologia clássica em nossa época senão o de atuar nela de maneira intempestiva – ou seja, contra o tempo, e com isso no tempo e, esperemos, em favor de um tempo vindouro” (NIETZSCHE, Segunda consideração intempestiva) Nietzsche criticou uma compreensão que tem sido quase unânime no pensamento político ocidental, presente nos mais variados autores: a compreensão da liberdade em relação de exclusão mútua com o poder e a projeção utópica de uma forma de governo que superaria o poder entendido como dominação arbitrária. Nietzsche rompe com a oposição binária entre liberdade e poder e resgata a dimensão positiva do poder. A compreensão negativa do poder, que informa a “mais longa unanimidade”, encontraria seus fundamentos no platonismo e no cristianismo, mas seu auge ocorreria no “movimento democrático moderno”: com ele o ideal unânime conquista mais poder e ameaça tornar-se tirano. Nietzsche, nomeou este “ideal unânime” como “rebanho autônomo” (NIETZSCHE, BM, § 202), uma forma de governo em que não haveria mais dominação, mas sim um “poder livremente aceito pelo rebanho dos bípedes” (PLATÃO, Político, 276e). A crítica de Nietzsche ao ideal unânime tem duas dimensões: 1) crítica “realista” acerca de sua impossibilidade; 2) crítica do valor e custo desse ideal para a vida. Estas críticas tornam-se possíveis para Nietzsche somente após o esgotamento dos fundamentos metafísicos do ideal unânime, esgotamento que ele denomina como “morte de Deus”. Com a morte destes fundamentos, Nietzsche retorna ao mundo anterior a eles, o mundo dos trágicos gregos, e 1

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Paper ABCP/2012

NIETZSCHE ENTRE FRANCESES:

REFLEXÕES EXTEMPORÂNEAS SOBRE LIBERDADE E PODER

JEAN GABRIEL CASTRO DA COSTA - UFSC

RESUMO: Procuramos apresentar uma concepção de liberdade e poder distinta da crítica liberal ao poder – e de sua concepção de liberdade – e também da alternativa republicana de liberdade como não-dominação, que vem sendo desenvolvida recentemente. Elementos dessa concepção podem ser encontrados em uma linhagem de pensadores franceses cujas origens remontam a uma recepção singular da obra de Nietzsche feita na primeira metade do século XX. Outros pensadores desta linhagem serão os pós-estruturalistas, com destaque para Foucault e Deleuze. Avaliamos como esta recepção da obra de Nietzsche influiu na maneira destes pensadores entenderem o poder e a liberdade, para então reconstruir aspectos de suas próprias formulações, com destaque para as noções de biopolítica e sociedade do controle. Nas considerações finais, procuramos, a partir desta perspectiva trágica sobre liberdade e poder, fazer um breve questionamento à ideia de liberdade como não-dominação.

NIETZSCHE CONTRA A MAIS LONGA UNANIMIDADE

“(...) eu, enquanto pupilo de mais antigos, especialmente dos gregos, cheguei, além de mim, como um filho da

época atual, a experiências tão intempestivas. De qualquer modo, não há mais nada que precise conceder a mim

mesmo em virtude de minha profissão de filólogo clássico: pois não saberia que sentido teria a filologia clássica

em nossa época senão o de atuar nela de maneira intempestiva – ou seja, contra o tempo, e com isso no tempo e,

esperemos, em favor de um tempo vindouro” (NIETZSCHE, Segunda consideração intempestiva)

Nietzsche criticou uma compreensão que tem sido quase unânime no pensamento

político ocidental, presente nos mais variados autores: a compreensão da liberdade em relação

de exclusão mútua com o poder e a projeção utópica de uma forma de governo que superaria

o poder entendido como dominação arbitrária. Nietzsche rompe com a oposição binária entre

liberdade e poder e resgata a dimensão positiva do poder. A compreensão negativa do poder,

que informa a “mais longa unanimidade”, encontraria seus fundamentos no platonismo e no

cristianismo, mas seu auge ocorreria no “movimento democrático moderno”: com ele o ideal

unânime conquista mais poder e ameaça tornar-se tirano. Nietzsche, nomeou este “ideal

unânime” como “rebanho autônomo” (NIETZSCHE, BM, § 202), uma forma de governo em

que não haveria mais dominação, mas sim um “poder livremente aceito pelo rebanho dos

bípedes” (PLATÃO, Político, 276e).

A crítica de Nietzsche ao ideal unânime tem duas dimensões: 1) crítica “realista”

acerca de sua impossibilidade; 2) crítica do valor e custo desse ideal para a vida. Estas críticas

tornam-se possíveis para Nietzsche somente após o esgotamento dos fundamentos metafísicos

do ideal unânime, esgotamento que ele denomina como “morte de Deus”. Com a morte destes

fundamentos, Nietzsche retorna ao mundo anterior a eles, o mundo dos trágicos gregos, e

1

encontra aí outra concepção de liberdade e poder que lhe serve como ponto de apoio para a

crítica ao ideal unânime e como base para a criação de um “tempo vindouro”. Não se trata de

um simples retorno, para ele anacrônico e impossível, aos gregos, mas de uma apropriação

dos gregos a partir do presente e em favor do futuro. Por isso, Nietzsche é extemporâneo, é o

intempestivo, que está no tempo, contra ideais unânimes de seu o tempo e em favor de um

“tempo vindouro”, como ele descreve na Segunda Consideração Intempestiva.

A primeira manifestação do ideal unânime aparece na República de Platão.

Orientando-se pela Ideia de bem, e não pelas opiniões sobre o bem, o governo dos filósofos

na República, seria um governo técnico exercido no interesse dos governados, e não um poder

particular de alguns homens sobre outros homens. É a dimensão coercitiva e particularista do

poder que desapareceria em um governo dos filósofos. É para preparar o leitor para a

aceitação do governo técnico dos filósofos que Platão mobiliza o exemplo do poder do

médico sobre seus pacientes, quando Sócrates diz a Trasímaco que “Nenhuma ciência tem em

vista nem impõe o que é vantajoso para o mais forte, mas para o mais fraco” e “Nenhum

médico, portanto, enquanto médico, tem em vista nem impõe o vantajoso para o médico, mas

para o doente”, portanto, “nenhuma outra pessoa, em nenhum posto de comando, na medida

em que é chefe, tem em vista e impõe o útil para si mesmo, mas o útil para o governado e para

aquele a quem ele presta serviço e, voltando os olhos para isso e para o que é útil e

conveniente para aquele, diz tudo o que diz e faz tudo o que faz” (PLATÃO, REPÚBLICA,

342d-e). O sofista Trasímaco zomba da resposta dizendo “Que acreditas, que os pastores ou

os boeiros têm em vista o bem das ovelhas ou dos bois; que os engordam e deles cuidam

olhando para algo que não é o bem de seus senhores ou o seu próprio...”, chama Sócrates de

ingênuo e retoma a tese de que a justiça é a vantagem do mais forte (PLATÃO, REPÚBLICA,

343b)

O médico domina uma ciência e com base nela ordena um tratamento ao paciente, que

o aceitaria de bom grado, sem entender a ordem do médico como dominação, como um poder

coercitivo e arbitrário. Como os médicos, os filósofos governantes, também possuiriam um

conhecimento verdadeiro e suas ordens seriam exercidas no interesse dos governados. O

governo dos filósofos estaria imune a qualquer particularismo, pois suas ordens não seriam

derivadas de opiniões sobre o bem, mas do conhecimento verdadeiro sobre A ideia de bem.

Além disso, os filósofos governantes não teriam nem propriedade privada nem família,

poderosas fontes de interesse particular. Os governados, por sua vez, não estariam sofrendo

coerção alguma, pois ocupariam uma posição na sociedade adequada à natureza da sua alma,

2

e, “a justiça é cada um possuir o que é seu e realizar o que lhe cabe” (PLATÃO,

REPÚBLICA, 434a-b). Trata-se excluir a arbitrariedade do mundo, evitar o governo dos

homens, substituí-lo pelo governo da técnica e da lei, que aparecem como instrumentos

redentores nas mãos dos filósofos1.

Ainda que Aristóteles afaste-se de Platão em pontos fundamentais, o estagirita também

critica o poder enquanto poder de alguns homens sobre outros homens, um poder dos mais

fortes na qualidade de mais fortes (pela riqueza, pelo número...). Como se sabe, o estagirita

afasta-se de Platão quando condena a tentativa de eliminar o particularismo em suas raízes,

pois, para Aristóteles, a unidade proposta por Platão reduziria a polis a uma família ou a um

indivíduo, esquecendo que a polis é por natureza uma pluralidade (ARISTÓTELES,

POLÍTICA, 1261b). Entretanto, isso não significa um retorno à posição trágica sobre justiça,

liberdade e poder, o que pode ser notado, por exemplo, quando Aristóteles considera que

“querer o reinado de um homem é querer o reinado de uma besta selvagem”

(ARISTÓTELES, A Política, 1287a). Como em Platão, em vez do arbitrário governo dos

homens, recomenda-se o governo da lei. Em vez de arbitrárias opiniões sobre justiça, o poder

justo é apresentado por Aristóteles como aquele que está de acordo com a “natureza”. Nesse

sentido, Aristóteles diz que nem sempre há coincidência entre os que são escravos por

natureza e os que o são por lei, e, por vezes, um homem que não é escravo por natureza

permanece escravo “sob compulsão”, mas, “há uma certa comunidade de interesses e amizade

entre o escravo e o senhor quando eles são qualificados pela natureza para as respectivas

posições” (ARISTÓTELES, POLÍTICA, 1255b. Grifos nossos). O poder de acordo com a

natureza não seria arbitrário, não seria dominação, pois quando o escravo por natureza é

escravo de fato ele não permaneceria escravo “sob compulsão” e haveria uma “comunidade

de interesses e amizade” entre o escravo e o senhor.

Portanto, já no início da filosofia política nasce a sua mais longa unanimidade, que

encontraria partidários ao longo de toda a sua história. Para Lebrun, este ideal está presente

nos mais variados pensadores, norteou a dialética, de Sócrates a Hegel, em sua tarefa

“pacificadora”. Hegel nas suas preleções sobre a filosofia da história, escreve:

“É preciso ao menos fazer com que a mera obediência seja o menos possível exigida dos cidadãos, que

1 “O técnico é a imagem inversa do tirano, e é em relação ao modo de dominação que o caracteriza que se dá à palavra krateîn sua nova marca – essa marca que provoca a justa estupefação de Trasímaco. Mas, sem ter desmascarado o truque, que objeção séria ele pode fazer? Sócrates tem toda liberdade para demonstrar que insólita é a dominação que não esteja a serviço do universal. Dessa potência serva Trasímaco pode troçar quanto quiser: contestatário tão inábil quanto Cálicles, não procurou analisá-la como uma ilusão. Não entreviu a possibilidade da questão nietzschiana: que 'potência' é essa, que só pode se desenvolver reclamando-se do interesse alheio, e sob a caução de um ideal que lhe fosse superior?” (LEBRUN, 2010, p. 96)

3

o mínimo de arbitrário seja deixado aos governantes e que o conteúdo daquilo pelo qual é necessário o comando

seja, quanto ao objeto principal, determinado e decidido pelo povo, pela vontade de muitos ou de todos tomados

em particular, mesmo se, não obstante, o Estado deva ter força e vigor como realidade, como unidade

individual”. (HEGEL, Sämtliche Werke, Jubiläumsausgabe, v. XI, pp.76-77. Citado em LEBRUN, 2010, p. 91)

No século XIX a compreensão negativa sobre o poder ganhou força em movimentos

que, a respeito da relação entre liberdade e poder, são apenas “superficialmente adversários”,

tais como o liberalismo e o socialismo, pois partidários importantes das duas correntes

entendiam liberdade e poder em exclusão mútua e apontavam para um horizonte histórico que

assistiria a diminuição progressiva do poder do Estado, ou até mesmo o seu desaparecimento:

“é esse nebuloso ideal que liberalismo e socialismo comungam ainda” (LEBRUN, 2010, p.

97). Se o liberal Herbert Spencer acreditava que “Na forma de sociedade para a qual

progredimos, o governo será reduzido ao mínimo, e a liberdade individual elevada ao grau

mais alto...”, Marx previa a abolição do Estado no comunismo, depois da etapa preparatória

do socialismo, e “Bukharin, brilhante teórico bolchevista e filho dileto de Lênin, pinta um

quadro idílico da sociedade comunista em gestação, garante que todos os homens trabalharão

conformando-se 'espontaneamente' às diretrizes 'dos departamentos de contabilidade e dos

escritórios de estatística', 'assim como os músicos numa orquestra se regem pela batuta do

maestro', e sem que sejam necessários 'ministros, prisões, leis, decretos' (sic). 'Os indivíduos

então não terão mais que dirigir outros: terão apenas que conduzir as locomotivas, as

ferramentas, as máquinas...' (ABC do Comunismo). Fim dos dominadores e dos dominados,

fim do poder de um homem sobre outro homem. Reconhece-se, aqui, a quimera com que se

embriagou o século XIX. O 'sonho dos fracos', como teria dito Nietzsche” (LEBRUN, 1994).

Esta “mais longa unanimidade”, suplantar o poder enquanto poder, pensar o poder em

relação de exclusão mútua com a liberdade, visualizar a superação da dominação em um

governo “livremente aceito pelo rebanho dos bípedes”, também não estaria presente nos

debates contemporâneos acerca da ideia de liberdade? Nos debates entre liberais e neo-

republicanos? Entre os partidários liberais da liberdade negativa, da liberdade como não-

interferência, e entre os partidários republicanos da liberdade como antipoder, como não-

dominação? Deixaremos essa questão para o final deste paper.

Segundo Lebrun, os sofistas não souberam contestar este ideal que se tornaria

unânime, pois não o analisaram como uma ilusão, como teria feito Nietzsche, eles não

chegaram à pergunta nietzschiana: que poder é esse que só pode se desenvolver reclamando-

se do interesse alheio? Seria uma ilusão? Ou, formulando a questão de outra forma: a tentativa

de superar o poder/dominação tem sucesso efetivo ou produz uma nova forma de poder, ainda

4

mais forte que o poder que se assume poder? Há um progresso contra a dominação ou uma

nova dominação acompanhada de um progresso da hipocrisia?2 Há ainda outras questões

nietzchianas contra a mais longa unanimidade, como a questão de avaliar o custo, para a vida,

da tentativa de eliminar a arbitrariedade em suas raízes em nome da ausência de sofrimento, e,

a questão de saber se, quando os fortes são separados daquilo que podem, os fracos se tornam

fortes ou todos se tornam fracos, objeção feita pelo sofista Cálicles à concepção de lei de

Sócrates (PLATÃO, Górgias, 483a-484c).

Lebrun pergunta que potência é essa que só pode se desenvolver reclamando-se do

interesse alheio? E de modo nietzschiano responde: “O que esse ideal sanciona é a igual

impotência, em que agora se encontram, de infringir a regra da justiça: assim, em uma polis

aristotélica, a impotência em que estão os iguais (os homens livres) de reivindicar a igualdade

em todos os pontos, e os desiguais (os ricos) de pretender à superioridade em todos os pontos

(PLATÃO, República, 590d). Travar a pleonexia: tal era a função primordial da homoiótes já

em Platão. (…) Mas outras passagens indicam claramente qual é a função da homoiótes:

imunizar a pólis, de uma vez por todas, contra o perigo da subversão (stásis)” (LEBRUN,

2010, p. 98).

O que quer quem defende a mais longa unanimidade? “Que um dia não haja mais nada

a temer” (NIETZSCHE, BM, § 201, p. 87-89), para tanto, é preciso neutralizar a vontade e o

conflito (neutralizar a vida?), para atender a exigência, movida por um desejo de segurança3 –

e não de liberdade –, de “que um dia não haja mais nada a temer”. Nietzsche sugere que

ainda que esse objetivo seja como um horizonte que sempre se afasta, a tentativa de

implementá-lo promove o crescimento de um poder que procura evitar qualquer possibilidade

de risco e sofrimento, mas com isso seriam eliminadas também as fontes de alegria, quer

dizer, quando o “imperativo do temor de rebanho” com seu fanatismo da autoconservação

chega ao poder sem adversários poderia se promover a segurança, mas às expensas da vida e

da liberdade. Como trágico, Nietzsche não poderia aceitar esta hierarquia de valores que

promove a autoconservação a qualquer custo.

2 Sobre essa hipocrisia, dirá Zaratustra: “E esta hipocrisia foi a pior que encontrei entre eles: que também aqueles que mandam fingem as virtudes daqueles que servem. 'Eu sirvo, tu serves, nós servimos' – assim reza aqui a hipocrisia dos dominantes – e que infelicidade, quando o primeiro senhor é apenas o primeiro servidor!” (NIETZSCHE, Assim Falou Zaratustra, III, Da virtude que apequena, 2, p. 161).3 “No fundo querem uma coisa acima de tudo: que ninguém lhes faça mal. Assim, são obsequiosos com todos e lhes fazem bem. Isso, porém, é covardia – embora se chame 'virtude' (…) Para elas, virtude é o que torna modesto e manso: com ela transformaram o lobo em cão, e o próprio homem, no melhor animal doméstico do homem”. (NIETZSCHE, Assim Falou Zaratustra, III, Da virtude que apequena, § 2, p. 162)

5

Não se trata de negar os motivos para as suspeitas bem fundadas da filosofia política

em relação à vontade e ao conflito. Todos conhecem os desastres causados pelos excessos da

vontade e do conflito indomados. A polêmica reside na forma de responder à questão, na

maneira de buscar a medida. Os filósofos respondiam, à sua maneira, aos problemas políticos

concretos que se apresentavam aos seus olhos. Em meio à crise da polis, sentiam e temiam as

consequências da pleonexia (ambição ilimitada) (PLATÃO, A República, 359c;

ARISTÓTELES, A Política, 1267b), a irrupção da hybris (desmedida) e o risco de stasis

(guerra civil), e movidos por este temor, tenderam a neutralizar a vontade, e a considerar a

harmonia, e não a disputa, como característica fundamental da boa política. Entretanto, para

Nietzsche, antes de Platão havia outro modo de oferecer medida, outro modo de entender

política, liberdade, poder e conflito: o modo oferecido pela cultura trágica dos gregos.

VONTADE DE PODER E LIBERDADE COMO TENSÃO

É a partir dos trágicos gregos e do anúncio da morte de Deus que Nietzsche irá criticar

o ideal unânime e tentará oferecer outra forma de medida que seria mais favorável à vida,

sendo capaz de superar o niilismo e erguer o homem acima da triste condição de “sublime

aborto”4, de animal de rebanho, a que teria sido reduzido. Apresentaremos primeiro, de modo

sumário, aspectos da cultura trágica para em seguida indicar como ela informa a hipótese de

Nietzsche sobre o mundo como vontade de potência.

Havia entre os trágicos antigos uma cosmologia que partia das noções de Caos e

Cosmos5. Era uma cosmologia naturalista, não havia nela a ideia de dois mundos, nem existia

a ideia de Criação do mundo6. Tampouco existia a ideia de um plano de um Deus único e

onipotente para o mundo e para o homem. Nem havia livro revelado. Isto quer dizer que o

Cosmos não tinha um sentido especial para o homem, que a ordem do Cosmos existia, mas

era entendida como precária, composta por uma correlação cambiante de forças7, e Caos

4 “Supondo que se pudesse abarcar, com o olho irônico e distanciado de um deus epicúreo, a comédia singularmente dolorosa do cristianismo europeu, ao mesmo tempo grosseira e sutil, creio que não haveria limites para o espanto e o riso: pois não parece que apenas uma vontade dominou a Europa por dezoito séculos, a de fazer do homem um sublime aborto?” (NIETZSCHE, BM, § 62, p. 60-1)5 “Sim bem primeiro nasceu o Caos, depois também

Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado,e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias, e Eros: o mais belo entre deuses imortaissolta-membros, dos Deuses todos e dos homens todosele doma no peito o espírito e a prudente vontade” (HESÍODO, Teogonia, 1995, p. 111)

6 “Este mundo, o mesmo de todos os seres, nenhum deus, nenhum homem o fez, mas era, é e será um fogo sempre vivo, acendendo-se em medidas e apagando-se em medidas” (HERÁCLITO, fragmento 30)7 “O combate é de todas as coisas pai, de todas rei, e uns ele revelou deuses, outros, homens; de uns fez

6

permaneceria nas profundezas podendo emergir a qualquer momento. Portanto, para os

antigos trágicos, nunca teríamos pleno controle sobre as forças que governam o mundo e nos

governam. Haveria um fluxo incessante e inocente8 do devir, em vez qualquer estágio final ou

finalidade moral no devir. Uma consequência dessa ideia é que o sofrimento é só sofrimento,

e não castigo divino por comportamentos pecadores, como será na tradição judaico-cristã

(NIETZSCHE, A, I, § 78). Muitas vezes, a ideia de ciclo natural designava esse fluxo do

devir, e, os homens, na perspectiva trágica, eram inelutavelmente marcados pela mortalidade.

Essa cosmologia pode ser encontrada em Homero, Hesíodo (Teogonia), nas obras de poetas

trágicos e, entre os filósofos, em Heráclito, o “pensador trágico”(DELEUZE, 2001, p. 38),

“Heráclito, em cuja vizinhança sinto-me mais cálido e bem-disposto do que em qualquer

outro lugar” (NIETZSCHE, EH, NT, 3, p. 61-62). Para Nietzsche, Heráclito entendia o vir a

ser como um jogo, como uma luta entre forças inocente e eterna:

“Neste mundo, um vir-a-ser e perecer, um erigir e destruir, sem qualquer imputação moral e numa inocência

eternamente igual, possuem apenas o jogo do artista e da criança. E assim como jogam a criança e o artista, joga

também o fogo eternamente vivo, erigindo e destruindo, em inocência – e, esse jogo, o Aiôn joga consigo

próprio”. (NIETZSCHE, FTG, p. 66-7)

Havia uma visão trágica sobre os limites do conhecimento humano. Os trágicos

antigos e modernos não acreditam na possibilidade de encontrarmos um mundo verdadeiro,

não acreditam na ideia de uma verdade objetiva, que fosse completamente independente de

qualquer perspectiva, estas ideias desenvolvem-se a partir do platonismo e da tradição

judaico-cristã. Os sofistas, neste sentido, ainda são trágicos9. Entre os trágicos e Platão

Nietzsche prefere os primeiros10 e entende os sofistas como “realistas” e trágicos. Nietzsche

defende ainda que “cada progresso do conhecimento epistemológico e moral restituiu os

sofistas”:

“A cultura grega dos sofistas havia medrado a partir de todos os instintos gregos: pertence à cultura do tempo de

Péricles, de modo tão necessário como Platão não pertence a ela: tem seus precursores em Heráclito e em

escravos, de outros livres” (HERÁCLITO, fragmento 53); “A sabedoria de Chréo (necessidade/destino) diz que Pólemos (guerra) é de todos, que Dike (direito) é Éris (luta/disputa). Que tudo nasce de Éris e de Chréo são filhos” (HERÁCLITO, fragmento 80); “Na luta de contrários existe a mais bela harmonia” (Heráclito, fragmento 8)8 “Tempo é criança brincando, jogando pedrinhas: o reinado da criança” (HERÁCLITO, fragmento 52)9 “O ser, ou Deus. Na época trágica, Protágoras dizia: 'o homem é a medida de todas as coisas'. Platão responde: 'Protágoras está enganado, Deus é a medida de todas as coisas e do homem'. Para os sofistas, o homem é um fazedor de discursos e a todo discurso pode-se opor o discurso contrário. Não existe verdade. Na tragédia, personagens trocam discursos opostos. Mas Platão vai dizer: “Não. Se existem dois discursos, um é verdadeiro, o outro é falso'. De um lado temos o século trágico e problemático, do qual a sofística é um dos aspectos; de outro, uma recusa conjunta da tragédia, da sofística e do mundo da aparência, e a afirmação de que existe uma verdade, que o homem não está no centro, que o que está no centro é o ser, o Bem, Deus” (VERNANT, 1996, p. 356)10 “Platão contra Homero: eis o verdadeiro, o inteiro antagonismo – ali, o mais voluntarioso 'partidário do além', o grande caluniador da vida; aqui o involuntário divinizador da vida, a natureza áurea” (NIETZSCHE, GM, III, §25).

7

Demócrito, nos tipos científicos da filosofia antiga; tem a sua expressão na alta cultura de Tucídides, por

exemplo – e afinal, ela teve razão: cada progresso do conhecimento epistemológico e moral restituiu os sofistas...

(…) Os sofistas não são nada mais do que realistas: formulam todos os valores e práticas usuais para

hierarquização dos valores, – têm a coragem, própria a todos os espíritos fortes, de saber de sua imoralidade...”

(NIETZSCHE, VP, § 428 e 429, p. 239-230)

Cada progresso epistemológico e moral teria dado um passo a mais na destruição de

ideias fundamentais ligadas à metafísica tradicional, tais como a noção de verdade como

correspondência e a ideia de verdades morais universais. Com o eclipse dessas ideias, teriam

ganhado atualidade as antigas posições sofistas, que entendiam que “o homem é medida de

todas as coisas” (Protágoras), que afirmavam a parcialidade inevitável de toda opinião e

explicavam o predomínio de uma perspectiva sobre outras não em razão de sua veracidade,

mas de sua capacidade de vencer uma luta, uma luta pelo poder, por meio da retórica ou da

força. Foucault também acompanhou o autor de Zaratustra na reabilitação dos sofistas:

“Ah, nisso estou radicalmente ao lado dos sofistas. Dei, aliás, minha primeira aula no Collège de France

sobre os sofistas. Acho que os sofistas são muito importantes. Porque temos aí uma prática e uma teoria do

discurso que é essencialmente estratégica; estabelecemos discursos e discutimos, não para chegar à verdade, mas

para vencê-la. É um jogo: quem perderá, quem vencerá? É por causa disso que me parece muito importante a

luta entre Sócrates e os sofistas (…) Então a materialidade do discurso, o caráter factual do discurso, a relação

entre discurso e poder, tudo isso me parece um núcleo de ideias que eram profundamente interessantes, que o

platonismo e o socratismo afastaram totalmente, em proveito de certa concepção do saber” (FOUCAULT, 2005,

p. 139-141)

Havia uma concepção trágica sobre a vida. Para o mortal, o instante teria um valor que

não poderia ter para um imortal. Os trágicos pareciam ter a ideia de que as coisas que morrem

são mais belas. Para os mortais, sem esperança na eternidade, trata-se de agir e pensar neste

mundo, antes que as cortinas se fechem e termine o espetáculo. Se não há tanta certeza quanto

aos resultados das ações, pois não temos pleno controle sobre as circunstâncias e efeitos das

nossas ações, nem sobre as coisas do mundo, trata-se, portanto, de valorizar mais a

performance (atuação), que o resultado, a intensidade, mais que a duração11. Uma bela

atuação pode trazer ao indivíduo o troféu por sua virtude, a conquista da glória, e, com isso, o

11 Maffesoli tem escrito sobre o “retorno do trágico nas sociedades pós-modernas”, esse retorno vem após o esgotamento de dois mil anos de “fundamento”, de uma visão de mundo que projetava as energias no futuro (no além, no comunismo), teríamos agora uma sociedade em que as energias intensivas estão voltadas para o presente. Outros sinais do trágico seriam o tribalismo, o hedonismo e a preferência pela intensidade, em vez da duração: “Por mais paradoxal que possa parecer, a acentuação do presente não é mais que outra maneira de expressar a aceitação da morte. Viver no presente é viver sua morte todos os dias, é afrontá-la, é assumí-la. Os termos intensidade e trágico não dizem outra coisa: só vale o que sabemos que vai acabar. Algumas épocas protestam contra isso e, então, a vontade, a ação, o sentido do projeto e do futuro predominam. Outras concordam, se ajustam, se acomodam à finitude, e concedem sua preferência à contemplação e ao gozo do mundo, ao presenteísmo que lhes serve de vetor. Mas é uma contemplação ou um gozo fugaz, penetrados por sentimentos de finitude. Consomem, com intensidade, tudo o que vivem” (MAFFESOLI, 2003, p. 58)

8

prolongamento do seu nome na história. Atuação requer palco e drama (ação). Drama requer

conflito/disputa. A disputa, para os trágicos antigos, não apenas existe entre os deuses e entre

os homens desde sempre: a disputa intensifica a vida. Os gregos entendiam que todo talento

deve desdobrar-se lutando e criavam espaços para a disputa em todas as áreas da vida social:

competições esportivas (olimpíadas), competições artísticas (campeonatos de tragédias),

disputas nas assembleias políticas. O agonismo grego entendia a disputa, ao mesmo tempo,

como estímulo e medida para os homens na sua contínua superação de si e dos adversários. A

existência de adversários fornecia um limite e o grego não queria a vitória ao final da disputa,

uma tirania definitiva, mas sim a permanente superação de adversários. O jogo como

paradigma da perpétua superação de si. Nesse universo, o homem de ação, ou melhor, o mais

intenso homem de ação, o herói, era alçado à condição de tipo mais elevado de homem. Um

tipo de homem que é capaz de dizer, como Ájax, na peça de Sófocles: “Um homem nobre ou

vive na beleza ou nela morre”. O herói enfrenta o destino e prova sua virtude e, se ele cai, cai

bem: aí está o tema da dignidade da queda, frequente nas peças trágicas. A destruição final do

heróis nas peças trágicas ensina que não vale a pena se preocupar com o inevitável, nem

querer prolongar o mero viver a qualquer custo. Nesse universo de sentido, o escravo é o tipo

homem que coloca a autoconservação em primeiro lugar. O nobre é o tipo homem que não

coloca a sua conservação em primeiro lugar, mas sim a sua glória e a da sua polis, ainda que

para isso tenha que sacrificar a si mesmo12. O nobre aparece como aquele que não se apega ao

mero viver, preferindo a bela morte a uma vida não livre e indigna. Quer dizer, nobre é aquele

tipo homem em que as forças ativas predominam sobre as forças reativas. Aos cidadãos da

Era trágica recomendava-se a vida ativa e a coragem, para que fossem capazes de defender a

liberdade da sua polis. “Liberdade é coragem”, eis uma mensagem central em um dos mais

importantes documentos políticos da Era trágica, a Oração Fúnebre de Péricles, que diz:

“Fazei agora destes homens, portanto, o vosso exemplo, e tendo em vista que a felicidade é liberdade e

a liberdade é coragem, não vos preocupeis exageradamente com os perigos da guerra” (Tucídides. Oração

Fúnebre de Péricles).

Se a liberdade era relacionada com coragem, o medo, por sua vez, era associado ao

despotismo. É como se um apego excessivo à vida promovesse uma vida indigna e menos

livre, e o desapego em relação à vida (sem assumir sua forma excessiva, a temeridade),

promovesse uma vida mais intensa, bela e livre. Mas quem é capaz desse desapego? Os

12 “Quem está impregnado de auto-estima deseja antes viver um breve período no mais alto gozo a passar uma longa existência em indolente repouso; prefere só um ano por um fim nobre, a uma vasta vida por nada; escolhe antes executar uma única ação grande e magnífica, a fazer uma série de pequenas insignificâncias". Grifos nossos (ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos, 1169a).

9

corajosos, os duros, então uma certa dureza de caráter seria necessária para garantir a

liberdade, beleza e intensidade da vida. A dureza de caráter pressupõe um adestramento,

requeria uma moralidade dos costumes que ensinava a agir sobre o medo, a compaixão, a

fraqueza, o ressentimento, quer dizer, havia uma pedagogia trágica que ensinava o cidadão a

agir sobre as suas forças reativas13. As forças reativas, quando dominadas, não deixam de

existir, permanecem oferecendo sua salutar resistência. O medo era visto como importante

para a autoconservação, mas seu excesso, paralisaria a vida ativa, impediria a liberdade.

Tratava-se, portanto, de manter as forças reativas em uma posição subordinada,

possibilitando o autodomínio e a necessária dureza para que os cidadãos fossem capazes de

querer a hierarquia trágica de valores, colocando a liberdade, a intensidade e a beleza um

degrau acima da segurança, duração e utilidade. Além da moralidade dos costumes, também

apareciam como formas de medida necessárias à liberdade o governo da lei e a existência de

adversários. A liberdade trágica, portanto, não era uma liberdade como ausência de medida,

nem uma liberdade interior. A liberdade trágica era voltada para fora, se realizava na ação, no

espaço entre os homens e envolvia tensionamento agonístico. O trágico afirma a vida apesar

de todos os seus sofrimentos, finitude, incertezas e precariedade, ele diz o profundo Sim14. O

trágico afirma a ação, apesar da limitação no conhecimento dos agentes acerca das

circunstâncias da ação e da limitação dos agentes no controle sobre os efeitos de suas ações.

Essa concepção de liberdade assemelha-se aquela que foi definida por Hannah Arendt como

liberdade como performance, e Arendt afirma que o conceito de virtù de Maquiavel seria a

“melhor ilustração” desta concepção de liberdade (ARENDT, 1972, p. 199-200).

Como é conhecido, Platão criticou os aspectos fundamentais da cultura trágica: o devir

inocente da cosmologia trágica é reduzido à condição de “mundo da aparência”, ao qual se

opõe um “mundo verdadeiro”, o mundo das ideias, eterno e perfeito; a visão trágica sobre os

limites do conhecimento humano, sobre a parcialidade inevitável das simples opiniões

humanas, é substituída pela ideia de conhecimento verdadeiro; a concepção trágica e

agonística de vida passa a ser vista com desconfiança e a vida ativa passa a ser considerada

13 Para Aristóteles, a função da peças trágicas era eliminar o excesso de medo e compaixão nos cidadãos: “É a tragédia a representação de uma ação grave, de alguma extensão e completa, em linguagem exornada, cada parte com o seu atavio adequado, com atores agindo, não narrando, a qual, inspirando pena [eleos] e temor [phobos], opera a catarse própria dessas emoções. Chamo linguagem exornada a que tem ritmo, melodia e canto; e atavio adequado, o serem umas partes executadas com simples metrificação e as outras, cantadas”. (ARISTÓTELES, Poética, 2005, p. 24).14 “A tragédia está tão longe de provar algo sobre o pessimismo dos helenos, no sentido de Schopenhauer, que deve ser considerada, isto sim, a decisiva rejeição e instância contrária dele. O dizer Sim à vida, mesmo em seus problemas mais duros e estranhos; a vontade de vida, alegrando-se da própria inesgotabilidade no sacrifício de seus mais elevados tipos – a isso chamei dionisíaco, nisso vislumbrei a ponte para a psicologia do poeta trágico” (NIETZSCHE, CI, O que devo aos antigos, § 5, p. 118).

10

como inferior à vida contemplativa do filósofo; a concepção trágica de política, entendida

como disputa entre cidadãos iguais em status, mas diferentes em opiniões – disputa que usava

as armas da retórica e eventualmente da força –, é substituída pela ideia de um governo

“técnico” dos filósofos15.

O afastamento de Platão em relação à cultura trágica grega, e suas supostas viagens ao

Egito, levaram alguns comentadores, ainda no mundo antigo, a perguntar sobre a inscrição de

Platão em uma “configuração oriental do saber” e a comparar Platão com Moisés16. Como se

sabe, Nietzsche explorará a afinidade entre o platonismo e o judaísmo-cristianismo. Nietzsche

entendia que o início da reversão dos valores trágicos, pode ser encontrado em Platão, que

abre a história do niilismo europeu, mas as suas posições não eram acessíveis à grande massa,

então é somente com o cristianismo, nomeado por ele como “platonismo para o povo”

(NIETZSCHE, BM, Prólogo, p. 8), que a reversão se completa. Não reconstruiremos aqui a

crítica de Nietzsche ao platonismo e ao cristianismo, apenas ressaltamos que não é à

veracidade ou não do cristianismo que as críticas de Nietzsche se dirigem, mas aos seus

efeitos sobre a vida: o cristianismo seria debilitante. Nietzsche preserva a figura pessoal de

Cristo17 e dirige sua crítica ao cristianismo realmente existente, visto, ao mesmo tempo, como

expressão e promotor de enfraquecimento, marcado pelo ressentimento, pela negação do

mundo e da vida.

O platonismo e o cristianismo constituem para Nietzsche etapas do niilismo europeu,

niilismo que nega o mundo e a vida em razão do sofrimento e projeta um mundo verdadeiro a

partir do qual se faz a crítica ao mundo existente e se condena a vida. A história do niilismo se

confunde com a tradição filosófica ocidental que dividia a realidade em diversas oposições

binárias, a partir das quais se promovia um dos lados sobre o outro ou se procurava excluir o

15 “Platão, o pai da filosofia do Ocidente, tentou de várias maneiras contrapor-se à polis e aquilo que ela definia por liberdade. Tentou-o por meio de uma teoria política na qual os critérios da coisa pública não são criados a partir da própria política, mas sim da filosofia, por meio de uma constituição que entrava em pormenores, cujas leis correspondem às ideias acessíveis apenas aos filósofos” (ARENDT, 2007, p. 62)16 “Com efeito, o nome de Platão está associado a essa ‘abertura’ da sabedoria grega para o Oriente. Mas que abertura? Para que Oriente? Como sempre no que diz respeito a Platão, as coisas tornam-se logo inextrincáveis. Terá ele de fato viajado ao Egito? Viajante do Egito ele é, sem dúvida – mas pode-se duvidar se ele de fato foi ao Egito. Em todo caso, é um dos maiores viajantes, no sentido que damos ao termo, da e na sophia grega (...) Menos de um século mais tarde, sob os Antoninos, o filósofo Numênio, originário de Apaméia, poderá inscrever definitivamente Platão na configuração oriental do saber, respondendo à questão: ‘O que é efetivamente Platão senão um Moisés que se aticiza?’” (HARTOG, 2004, p. 20-21).17 “ – Volto atrás, conto agora a história genuína do cristianismo. – Já a palavra cristianismo é um mal-entendido – no fundo, houve apenas um cristão, e ele morreu na cruz. O 'evangelho' morreu na cruz. O que desde então se chamou 'evangelho' já era o oposto daquilo que ele viveu: uma 'má nova', um disangelho” (NIETZSCHE, O Anticristo, 39, p. 45). A crítica de Nietzsche à religião deixa de lado às religiões anteriores, pois elas não seriam contrárias à “vida”: “Na época pré-moral, marcada por estes últimos, o filósofo encontra uma religião do sim à vida que se distingue fundamentalmente da religiosidade baseada na moralidade. Assim, contrapõem-se 'dois tipos'. Dioniso e o Crucificado. Ao escrever que 'o homem religioso típico' é 'uma forma de décadence', com isso, deixa de fora o tipo pagão” (MÜLLER-LAUTER, 2009, p. 244)

11

outro lado: o ser sobre o devir, os universais sobre os particulares, a verdade sobre a

aparência, a identidade sobre a diferença, a razão sobre a paixão, o espírito sobre o corpo.

Tudo construído para fornecer fundamentos fixos capazes de superar ou resolver as condições

negativas e forças de desordem que desafiam a existência humana. Entretanto, a vontade de

verdade que conduzia o niilismo termina por concluir que o “mundo verdadeiro” também

seria uma ilusão, com isso chegamos à “morte de Deus”. As consequências desta morte ainda

não teriam atingido plenamente a moralidade que era derivada daquele fundamento que se

esgotara. Por isso, Nietzsche anuncia a morte de Deus não para os que ainda eram religiosos,

mas para os homens de conhecimento, ateus e agnósticos europeus, que não acreditavam mais

no velho Deus, mas seguiam, sem pensar, a moralidade que era derivada da antiga crença. O

que Nietzsche chama de “morte de Deus” é, portanto, “o maior de todos os acontecimentos

recentes” (NIETZSCHE, GC, § 343), pois com ele são colocados em questão todos os

pressupostos metafísicos que formaram as bases do pensamento ocidental após o fim do

mundo antigo.

Para Nietzsche, o que resta quando este mundo transcendente cai é o mundo “visto de

dentro”, e a suposição de Nietzsche – que ele ironicamente diz que é imposta pelo método,

que não admite diversas espécies de causalidade e tem de reduzi-las a uma só –, é que o

mundo é “vontade de poder”:

“Supondo que nada seja 'dado' como real, exceto nosso mundo de desejos e paixões, e que não

possamos descer ou subir a nenhuma outra 'realidade', exceto à realidade de nossos impulsos – pois pensar é

apenas a relação desses impulsos entre si (…) Supondo, finalmente, que se conseguisse explicar toda a nossa

vida instintiva como a elaboração e ramificação de uma forma básica de vontade – a vontade de poder, como é a

minha tese –; supondo que se pudesse reconduzir todas as funções orgânicas a essa vontade de poder, e nela se

encontrasse também a solução para o problema da geração e nutrição – é um só problema –, então se obteria o

direito de definir toda força atuante, inequivocamente, como vontade de poder. O mundo visto de dentro, o

mundo definido e designado conforme o seu 'caráter inteligível' – seria justamente 'vontade de poder', e nada

mais” (NIETZSCHE, 1886, aforismo 36, pp. 39-40)

A hipótese de Nietzsche é heraclitiana, pois o mundo é visto de modo radicalmente

imanente e como correlação de forças, como um jogo/luta entre forças que é inocente,

dinâmico e eterno:

“como jogo de forças e ondas de força, ao mesmo tempo um e múltiplo, aqui acumulando-se e ao

mesmo tempo ali minguando, um mar de forças tempestuando e ondulando em si próprias” (NIETZSCHE, KSA

11.611, [12] de junho-julho de 1885 (tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho)

Quando uma força age sobre outra força ela é, deste ponto de vista, vontade, e quando

uma vontade age sobre outra vontade temos uma relação de poder. Se há apenas “forças em

12

relação de tensão com outras forças” (DELEUZE, 2001, p. 62), qualquer unidade, como um

corpo é uma unidade, “é esta relação entre forças dominantes e dominadas” (Id.), em que as

forças dominadas não abdicam de seu poder, pois, “Ao obedecer, as forças inferiores não

deixam de ser forças, distintas daquelas que ordenam. Obedecer é uma qualidade da força

enquanto tal, e refere-se ao poder do mesmo modo que ordenar” (DELEUZE, 2001, p. 63).

Deleuze cita Nietzsche:

“'Nenhuma força renuncia ao seu poder próprio. Da mesma maneira que a ordem supõe uma concessão,

admite-se que a força absoluta do adversário não é vencida, assimilada, dissolvida. Obedecer e ordenar

constituem as duas formas de um torneio'”. (NIETZSCHE, VP, II, 91)

Correlação de forças significa que as forças dominantes permanecem em luta com as

forças dominadas, ao modo da tensão, e nenhuma unidade é capaz de deter o movimento, o

fluxo cambiante de relações entre forças18. As forças ativas, por exemplo, não desaparecem

quando a sociedade se encerra no âmbito da paz, elas se voltariam contra o próprio indivíduo,

assumindo a forma da má consciência19. O mesmo raciocínio aqui aplicado ao indivíduo,

aplica-se em Nietzsche, a unidades maiores, como a sociedade. Quer dizer, não há um fora da

correlação de forças, não seria possível, portanto, pensar em uma liberdade fora da

dominação. Não há um fora, mas podem existir diferentes hierarquias de forças. Diferentes

dominações e resistências. O jogo/torneio de forças – fluxo inocente e incessante do devir –

prossegue, contrariando desejos de permanência. Entretanto, sabemos que Nietzsche fala

sobre diferenças de qualidade nas forças, usa termos como fortes/fracos, nobre/escravo,

forças ativas e reativas. Mas se há um único acontecer sem cessar e toda a realidade pode ser

reduzida à vontade de potência, como entender diferenças de qualidade e antagonismo entre

forças qualitativamente diferentes?

Müller-Lauter aponta que os antagonismos efetivos em Nietzsche “não são entendidos

como antagonismos absolutos”. Haveria, por trás dessa maneira de apresentar os

antagonismos, a ilusão metafísica de que “as coisas de supremo valor têm de ter uma outra

18 “Todo acontecer, todo movimento, todo vir-a-ser como um fixar de graus e relações de forças, como uma luta [...]” NIETZSCHE. KSA 12.385, (65) [91] do outono de 1887.19 “Vejo a má consciência como a profunda doença que o homem teve de contrair sob pressão da mais radical das mudanças que viveu – a mudança que sobreveio quando ele se viu definitivamente encerrado no âmbito da sociedade e da paz (…) Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro – isto é o que chamo de interiorização do homem: é assim que no homem cresce o que depois se denomina sua 'alma'. Todo mundo interior, originalmente delgado, como que entre duas membranas, foi se expandindo e estendendo, adquirindo profundidade, largura e altura, na medida em que o homem foi inibido em sua descarga para fora. Aqueles terríveis bastiões com que a organização do Estado se protegia dos velhos instintos de liberdade – os castigos, sobretudo, estão entre esses bastiões – fizeram com que todos aqueles instintos do homem selvagem, livre e errante se voltassem para trás, contra o homem mesmo. A hostilidade, a crueldade, o prazer na perseguição, no assalto, na mudança, na destruição – tudo isso se voltando contra os possuidores de tais instintos: esta é a origem da má consciência” (NIETZSCHE, GM, II, § 16, p. 73)

13

origem, uma origem própria” (MÜLLER-LAUTER, 2009, p. 47), quer dizer, teriam que ter

uma origem pura, e, estas forças de supremo valor estariam em oposição absoluta com outras

forças, que, por sua vez, também possuiriam origens absolutamente puras e distintas. Para

Nietzsche, o termo antagonismo tem que ser pensado “em termos de diferenças de grau do

efetivo” (MÜLLER-LAUTER, 2009, p. 57). A maneira metafísica de entender os

antagonismos como absolutos, criticada por Nietzsche, teria prosperado “por ser mais 'fácil

pensar em antagonismos do que em graus'20, o 'mau hábito' leva-nos 'também a querer

entender e decompor a natureza interior, o mundo espiritual ético, segundo esses

antagonismos'”, assim, continua Müller-Lauter, “nasce, no fim das contas, 'a crença

fundamental dos metafísicos': 'a crença no antagonismo dos valores'21” (MÜLLER-LAUTER,

2009, p. 46). Mas se os antagonismos não são entendidos como absolutos, se “há um

continuum do acontecer sem cessar” (MÜLLER-LAUTER, 2009, p. 48), os antagonismos

efetivos só podem ser pensados como diferenças de graus de força entre unidades de forças

em luta com outras unidades de forças. Segundo Nietzsche:

“Toda unidade é apenas unidade enquanto organização e concerto, não é de outro modo quando uma

coletividade humana é uma unidade, portanto, antagonismo da anarquia atomista; com isso, uma formação de

domínio, que significa Um, mas não é Um” (NIETZSCHE, KSA 12.104, 2 [87] do outono de 1885-outono de

1886. Tradução de Clademir Araldi, citado em MÜLLER-LAUTER, 2009).

Uma “unidade” é uma correlação interna de forças, que, por sua vez, está em relação

de tensão com outras unidades. Unidade aqui serve para o “Eu” ou “sociedade”, ou

“Estado”22. A unidade “eu”, por exemplo, deve ser entendida, para Nietzsche, não como

identidade fixa imune ao devir, mas apenas como organização e concerto de uma

multiplicidade de forças em relação as quais não há um fora incondicionado capaz de

20 MÜLLER-LAUTER cita Nietzsche: KSA 9.482, 11 [115] da primavera outono de 1881.21 MÜLLER-LAUTER cita Nietzsche: KSA 5.16, BM § 222 O termo “unidade” não deve ser entendido como conceito, do mesmo modo que outros termos, Nietzsche os utiliza mais como símbolos para o que escapa à denominação, como ele faz com os termos impulso, força, afeto. Nas palavras de Müller-Lauter: “O conceito não dá conta da verdade do efetivamente existente de dois modos: em primeiro lugar, na medida em que fixa, quando de fato se processa o acontecer sem cessar, em segundo lugar, na medida em que subsume 'casos claramente desiguais' como iguais. O conceito surge, antes de mais nada, 'por meio da igualação do não-igual' (…) É preciso deixar o 'conceitual' atrás de si, a fim de chegar ao que 'efetivamente existe'. Nietzsche emprega palavras como sujeito, eu, indivíduo, pessoa, como símbolos para o que escapa à denominação. E ele os rejeita, tão logo são pensados como conceitos. O mesmo vale para palavras com as quais distingue o modo de ser do verdadeiramente efetivo: impulso, força, afeto” (MÜLLER-LAUTER, 2009, pp. 54-5).

14

coordenar de forma exterior essas forças23. Desse modo, Nietzsche não pode mais acompanhar

a ideia humanista de sujeito e de livre-arbítrio, que teria suas raízes no cristianismo24.

Tampouco poderá pensar a liberdade em relação de exclusão mútua com poder, nem

poderá optar entre liberdade negativa e positiva, pois abandonará também esta oposição

binária e entenderá o momento negativo e positivo da liberdade como diferentes graus de

posições de força no interior de um continuum.

Nietzsche não é um partidário libertário da liberdade negativa. É um equívoco

entender que a crítica do autor de Zaratustra à moral se faz em nome da ausência de moral,

que Nietzsche seria um crítico de qualquer forma de restrição à vontade. Ao criticar a moral

cristã, Nietzsche não defende a ausência de valores, mas pretende transvalorar todos os

valores, substituir os valores debilitantes, reativos, niilistas da moral existente, por novos

valores que formem uma cultura capaz de fortalecer o homem para um processo de superação

de si sem fim. Há um tipo de perfeccionismo agonístico e não teleológico no núcleo do

pensamento ético e político de Nietzsche, como foi notado por Daniel Conway (1997), David

Owen (2002) e Herman Siemens (2002), entre outros.

Para Herman Siemens, a visão da vida como vontade de potência não deve ser

entendida como uma glorificação solipsista do poder, mas significa entender a vida como

perpétua superação de si, que exige resistência e superação da resistência, processo que não

se realizaria, para Nietzsche, por indivíduos isolados, mas em comunidades éticas de um certo

tipo25, o que contraria certas interpretações equivocadas que entendiam Nietzsche como um

partidário de um individualismo radical ao estilo libertário, esquecendo a importância do tema

da cultura em sua obra, bem como suas críticas ao individualismo atomista. Nietzsche critica

a concepção de liberdade como ausência de restrições:

“Toda moral é, em contraposição ao laisser aller, um pouco de tirania contra a 'natureza', e também

contra a 'razão': mas isso ainda não constitui objeção a ela, caso contrário se teria de proibir sempre, a partir de

23 “O homem não é consequência de uma intenção própria, de uma vontade, de uma finalidade. Com ele não é feita uma tentativa de alcançar um 'ideal de homem' ou um 'ideal de felicidade' ou um 'ideal de moralidade' (…) É-se necessariamente, se é um pedaço de fatalidade, se pertence ao todo, se está no todo. Não há nada que pudesse julgar, medir, comparar, condenar nosso ser, pois isso significaria julgar, medir, comparar, condenar o todo... Mas não há nada fora do todo! Que ninguém mais seja responsável, que o modo de ser não possa ser reconduzido a uma causa prima, que o mundo não seja uma unidade nem enquanto mundo sensível, nem enquanto 'espírito': só isso e a grande libertação. – Com isso a inocência do vir-a-ser é restabelecida...” (NIETZSCHE, CI, Os quatro grandes erros, 8, p. 50)24 “Os homens foram pensados como 'livres', para que pudessem ser julgados e punidos – para que pudessem ser culpados. Consequentemente, toda ação precisaria ser considerada como desejada, a origem de toda ação como estando situada na consciência” (NIETZSCHE, CI, Os quatro grandes erros, 7, p. 49). Essa crítica de Nietzsche está por trás da crítica de Foucault e Deleuze ao “sujeito” tal como entendido pelo humanismo.25 “For Nietzsche, too, freedom depends on a specific kind of society or social relations. In all three cases, freedom is radically opposed to the liberal concept of freedom as the right of an asocial individual”. (SIEMENS, 2006, p. 444).

15

alguma moral, toda espécie de tirania e desrazão. O essencial e inestimável em toda moral é o fato de ela ser uma

demorada coerção (…) Mas o fato curioso é que tudo o que há e houve de liberdade, finura, dança, arrojo e

segurança magistral sobre a Terra, seja no próprio pensar, seja no governar, ou no falar e convencer, tanto nas

artes como nos costumes, desenvolveu-se apenas graças à 'tirania de tais leis arbitrárias'; e, com toda a seriedade,

não é pequena a probabilidade de que justamente isso seja 'natureza' e 'natural' – e não aquele laisser aller! (…)

Considere-se toda moral sob esse aspecto: a 'natureza' nela é que ensina a odiar o laisser aller, a liberdade

excessiva, e que implanta a necessidade de horizontes limitados, de tarefas mais imediatas – que ensina o

estreitamento das perspectivas, e em determinado sentido também a estupidez, como condição de vida e

crescimento.” (NIETZSCHE, BM, 188, p. 77-8)

Nietzsche parece concordar com a posição “libertária” quando escreve que toda moral

é “um pouco de tirania contra a “natureza” e contra “razão”. Entretanto, esta primeira

impressão, que parecia indicar a defesa de um “retorno” rousseauniano à “natureza”, logo é

desfeita, pois Nietzsche complementa dizendo que o fato da moral ser um tirania contra a

natureza não “constitui objeção a ela”, e “o inestimável em toda moral é ela ser uma

demorada coerção”. A própria liberdade é apresentada por ele como resultado dessa demorada

coerção. Nietzsche não pensa liberdade em exclusão mútua com coerção, nem entende que a

existência de medida, seja na forma dos costumes, seja na forma de leis, contraponha-se à

“liberdade”. Não apenas é necessária uma “demorada coerção” de costumes e leis para a

realização da liberdade, e das coisas belas e grandes, mas, acrescenta Nietzsche, essas leis e

costumes são “arbitrários”, pois não seria mais possível defender que eles se fundem na razão

pura, na natureza ou em Deus. Não há ponto incondicionado exterior ao mundo capaz de

fornecer qualquer fundamento firme e absoluto. Cada unidade – um indivíduo, um povo –, é

um centro de múltiplas forças em luta e cada centro de forças projeta a sua perspectiva. Não

há critério universal e não arbitrário que paire acima das perspectivas e seja capaz de julgá-las

de modo imparcial e objetivo. Entretanto, a arbitrariedade da perspectiva de uma cultura,

formada por um conjunto de costumes e leis, quaisquer que sejam eles, não se torna uma

objeção, pois fornece medida que permite “organização e concerto” das forças em cada

unidade/centro de forças. Quando não há essa “organização e concerto” haveria desagregação

das forças, que Nietzsche identifica com enfraquecimento26. As leis e costumes “arbitrários”

seria uma “condição de vida e crescimento”. Nesse sentido, a vontade de verdade, na sua

26 “Debilidade da vontade: tal é uma metáfora que pode induzir ao erro. Pois não há nenhuma vontade e, consequentemente, nem vontade forte nem fraca. A multiplicidade e desagregação dos impulsos, a falta de um sistema que os articule tem como resultado 'vontade fraca'; a coordenação dos mesmos sob o predomínio de um único impulso tem como resultado 'vontade forte'; – no primeiro caso há oscilação e falta de peso; no último, precisão e clareza de direção”. (NIETZSCHE, KSA 13.394, 14 [219] da primavera de 1888, VP, § 46, p. 46). Obs. Quando escreve que “não há nenhuma vontade”, Nietzsche quer dizer que não há vontade no sentido racionalista de uma vontade idêntica a si mesma e capaz de “livre-arbítrio”, pois entende vontade como uma multiplicidade de forças em luta e as hegemonias podem mudar.

16

tentativa de encontrar fundamentos firmes, absolutos e verdadeiros para eliminar a

arbitrariedade do mundo demoliu cada vez mais as ficções arbitrárias necessárias à vida,

culminando na conclusão de que o próprio “mundo verdadeiro” seria uma ilusão, produzindo

com isso “horizontes ilimitados”, que podem se revelar uma jaula, pois sem um

“estreitamento de perspectivas”, podemos até vislumbrar um horizonte “infinito”27, mas não

teríamos necessariamente “liberdade”, mas desagregação, enfraquecimento, niilismo passivo,

décadence.

Seria então Nietzsche um simples conservador contrário ao laissez aller que estaria a

defender a pura imposição de medida para manutenção da ordem, seja ela qual for? Para

Nietzsche, liberdade não é a conservação do existente, mas a possibilidade de criação do

novo. Zaratustra diz: “Livre de quê? Que importa isso a Zaratustra! Mas teus olhos me devem

claramente dizer: livre para quê?” (Z, Do caminho do criador, p. 61). “Livre de que”, refere-

se à liberdade negativa, entendida como o espaço em que o indivíduo está protegido da

interferência arbitrária dos outros e do Estado, mas, para Nietzsche, essa visão negativa da

liberdade, e o individualismo que a informa, seria resultado de uma posição débil de força:

“O individualismo é o grau mais modesto da vontade de poder. (…) Quer-se a liberdade enquanto ainda

não se tem o poder. Tendo-o, quer-se supremacia; não se a conquistando (sendo-se ainda fraco demais para ela),

quer-se 'justiça', isto é, poder igual'” (NIETZSCHE, VP, § 784, p. 390)

O conseguir “livrar-se” – do Estado, da comunidade, dos outros – é “o grau mais

modesto da vontade de poder”. Esta maneira de colocar o problema remete à teoria dos

humores de Maquiavel, que Nietzsche conhecia e citava, relacionando com a sua hipótese do

mundo e da vida como vontade de potência. Em O Príncipe, livro tido em alta estima por

Nietzsche, Maquiavel afirma que existem dois humores na cidade:

“Porque em toda cidade se encontram estes dois humores diversos: e nasce, disto, que o povo deseja não

ser comandado nem oprimido pelos grandes e os grandes desejam comandar e oprimir o povo; e desses dois

apetites diversos nasce na cidade um desses três efeitos: ou o principado, ou a liberdade, ou a licença”

(MAQUIAVEL, O Príncipe, IX, p. 105)

O povo tem o desejo de não ser oprimido, os grandes querem oprimir, e isto ocorreria

não porque o povo possuísse algum tipo de bondade natural, mas porque ainda não tem o

poder. Tendo-o, diria Nietzsche, “quer-se a supremacia”, ou, nas palavras do florentino: “Os

27 “No horizonte do infinito – Deixamos a terra firme e embarcamos! Queimamos a ponte – mais ainda, cortamos todo laço com a terra que ficou para trás! Agora tenha cautela, pequeno barco! Junto a você está o oceano, é verdade que ele nem sempre ruge, e às vezes se estende como seda e ouro e devaneio de bondade. Mas virão momentos em que você perceberá que ele é infinito e que não há coisa mais terrível que a infinitude. Oh, pobre pássaro que se sentiu livre e agora se bate nas paredes desta gaiola! Ai de você, se for acometido de saudade da terra, como se lá tivesse havido mais liberdade – e já não existe mais 'terra'!” (NIETZSCHE, GC, § 124, p. 147)

17

grandes desejam comandar”. O primeiro humor move uma concepção de liberdade

“negativa”, não querer ser oprimido (o “conseguir livrar-se”, segundo Nietzsche). “Livrar-se”

é uma forma de negativa de liberdade. O segundo humor impulsiona uma liberdade

“positiva”, o “querer comandar”. O continuum entre as duas liberdades é a pulsão para o

poder, a vontade de poder. O “individualismo” aparece como o grau mais modesto da vontade

de poder, um degrau acima estaria a vontade de justiça, e, por último, na sua forma mais

intensa, a vontade de poder aparece como “amor”:

“Para o 'Maquiavelismo' do poder. A vontade de poder aparece

a) nos oprimidos, nos escravos de toda espécie, como vontade de 'liberdade': o mero conseguir livrar-se parece

ser a meta (moral-religiosa: 'responsabilidade diante de sua própria consciência moral'; 'liberdade religiosa' etc.);

b) em uma espécie mais forte e que cresceu até o poder, como vontade de supremacia; quando ela não obtém

sucesso de início, restringe-se então à vontade de 'justiça', isto é, à vontade da mesma escala de direitos que

possui a espécie dominante;

c) nos mais fortes, mais ricos, mais independentes, mais corajosos como 'amor à humanidade', ao 'povo', ao

evangelho, à verdade, a Deus; como compaixão; 'sacrifício de si' etc.; como dominar, arrebatar consigo, tomar a

seu serviço; como um instintivo unificar-se com uma grande quantidade de poder, para a qual se é capaz de dar

um direcionamento: o herói, o profeta, o César, o salvador, o pastor (– também o amor sexual tem aqui o seu

domicílio: ele quer o domínio, o tomar posse, e aparece como um dedicar-se... (…) 'Liberdade', 'justiça',

'amor'!!!” (NIETZSCHE, VP, § 776, p. 386)

Neste aforismo, mais uma vez, a primeira forma de manifestação da vontade de poder

corresponde ao humor do povo de Maquiavel, ao “não querer ser oprimido”. Também

permanece negativa a segunda forma, quando há um fortalecimento desse mesmo povo ou

existe uma “espécie mais forte”. O tempo inteiro o que temos aqui é uma correlação de

forças. Na terceira forma, a vontade de poder vai além de sua forma burguesa, negativa, e

torna-se positiva. Essa manifestação da vontade de poder é a manifestação que aparece no

homem de virtù, no grande fundador no sentido de Maquiavel, quer dizer, no fundador de

religiões, no patriota, no “profeta armado” que funda um Estado. É a vontade de poder ligada

a um “instintivo unificar-se com uma grande quantidade de poder, para a qual se é capaz de

dar direcionamento”.

Portanto, o continuum entre “Liberdade” (negativa), “Justiça” e “Amor” é a vontade

de poder ascendente, uma espécie de vitalidade expansiva28. A perda de liberdade, portanto,

seria o movimento contrário, descendente, a neutralização da vida, que, segundo Nietzsche,

28 A “vida” em Nietzsche é essa vitalidade expansiva: “'a vida' que, em sua figura verídica, nada mais é do que o predomínio da vontade de potência ascendente sobre a vontade de potência declinante” (MÜLLER-LAUTER, 2009, p. 140)

18

teve entre seus militantes o “socratismo”, as morais antinaturais29, o cristianismo, enfim, todos

aqueles que condenam o mundo, a vontade, a vida, em virtude dos seus sofrimentos, seja por

cansaço ou “temor de rebanho”, quer dizer, por enfraquecimento. Se Nietzsche entende a

liberdade como um desdobramento da vontade de potência ascendente ele não poderia

defender uma concepção puramente negativa de liberdade, nem uma posição conservadora

que defendesse a simples imposição de medida para a manutenção da ordem: quer-se a

liberdade para fazer alguma coisa, para querer dar forma, querer criar. Zaratustra afirma:

“Vede os bons e justos! A quem odeiam mais? Àquele que quebra suas tábuas de valores, ao quebrador, infrator:

– mas esse é o que cria.” (NIETZSCHE, Z, Prólogo, § 9, p. 23)

Em outro momento afirma:

“Coisas novas quer criar o nobre, e uma nova virtude. Coisas velhas quer o bom, e que o velho seja preservado”.

(NIETZSCHE, Z, Da árvore na montanha, p. 44)

A absoluta afirmação da medida paralisaria a vida. A ausência de medida produziria

desagregação das forças, por isso, a vida seria prejudicada tanto por uma posição

conservadora, quanto por uma posição liberal defensora do laissez-aller (NIETZSCHE, BM,

202). Para Herman Siemens, a liberdade em Nietzsche não pode ser simplesmente

identificada com a medida contra o excesso30. A liberdade estaria localizada “no espaço tenso

entre a absoluta medida e a absoluta desmedida”:

“Freedom is not simply identified with measure against excess; it is located in the space between

absolute measure (a definitive fixing-of-oneself: Sich-Fest-Stellen) and absolute unmeasure (das Maasslose).

Nietzsche’s point seems to be that freedom involves a tension or antagonism between measure and excess (Maas

– Übermaas). This formulation is a mature and sharper version of the fourth thesis in 'Homer’s Contest' that

freedom is located in the space between the provocation to hubris and the imposition of measure” (SIEMENS,

2006, p. 447)

No texto A disputa de Homero (1872), Nietzsche afirma que a educação agonística

excitava a ambição dos gregos para serem os melhores entre seus iguais, e, ao mesmo tempo,

canalizava as ambições para o bem comum da polis. Para Nietzsche, os gregos não

suportavam a vitória no final da disputa e até mesmo a instituição do ostracismo deve ser

entendida como um mecanismo criado para preservar a disputa política, pois, sem disputa, a

29 “Toda e qualquer posição naturalista na moral, isto é, toda e qualquer moral saudável, é dominada por um instinto de vida (…) A moral antinatural, ou seja, quase todas as morais que foram até aqui ensinadas, honradas pregadas, remete-se, de modo inverso, exatamente contra os instintos vitais” (NIETZSCHE, CI, Moral como contranatureza, 4, p. 36-7)30 Também é a avaliação de Müller-Lauter: “Na posição absoluta de uma perspectiva se cristaliza a vontade de potência; na posição absoluta do 'tudo é permitido', ela perde toda forma efetiva; em ambos os casos ocorre uma autodanificação da vontade de potência até então dominante; esta terá de submeter-se a uma vontade mais forte” (MÜLLER-LAUTER, 2009, p. 186)

19

saúde da polis se esvairia31. A existência de adversários ofereceria medida, evitando a tirania

encerradora de disputa, e tensionaria a vida permitindo um acúmulo de forças favorável à

superação. Isso quer dizer que a medida não é um fim em si, mas serve como um degrau a ser

superado. Sem degraus haveria abismo. O agonismo grego aparece para Nietzsche como um

meio de fornecer medida à disputa entre as múltiplas vontades de poder, sem ter que

neutralizá-las, quer dizer, sem neutralizar a “vida”, como teria feito a “civilização” judaico-

cristã. Contra a Zivilisation, Nietzsche opõe a Kultur, que ensinaria os cidadãos a agirem sobre

suas forças reativas e criaria espaços para a disputa favoráveis à intensificação da vida.

A vida requer medida e superação da medida. Para Siemens, a compreensão da relação

entre liberdade e lei em Nietzsche depende de sua concepção de vida. A vida é dinâmica,

plural e fluída. A lei, em contraste, é estática, rígida e fixa por natureza. Há uma tensão entre o

dinamismo da vida e a rigidez da lei. Mas, coerente com o seu imanentismo heraclitiano,

Nietzsche não pode entender a lei como oposta à vida, mas, como um recurso da própria vida

em um momento de fixação de força, o mesmo ocorreria com outras ficções regulativas. Seria

a própria physis que produziria o nomos como o seu oposto. Para Nietzsche, a questão não é

optar entre natureza e lei, mas discriminar os diferentes tipos de leis avaliando as formas de

vida que são reprimidas ou promovidas pelas leis (SIEMENS, 2011, p. 207).

Essa maneira de entender a liberdade no espaço de tensão entre a medida e a

desmedida, contraria nossas intuições lógicas. A nossa educação racionalista dificulta a

compreensão do pólemos ao modo da mera tensão. Nosso pensar caminha ansioso demais em

direção à resolução. Mas, para Nietzsche, a lógica assim transformada no “critério do ser

verdadeiro”, transforma-se em metafísica (MÜLLER-LAUTER, 2009, p. 44-45). Se o lógico

formal não vê contradições efetivas, o dialético as vê, mas suas contradições sempre

caminham para a resolução em uma síntese superior. O trágico, por sua vez, enxerga aporias

efetivas, e precisa saber avaliar, em cada contingente jogo de forças, as aporias que

condicionam as escolhas trágicas daqueles que precisam agir, escolhas nas quais não há

ganhos sem perdas, nem a paralisação pacificadora do jogo eterno e inocente do devir. Diante

31 "Para os antigos, entretanto, o objetivo da educação 'agônica' era o bem do todo, da sociedade citadina. Assim, cada ateniense devia desenvolver-se até o ponto em que isto constituísse o máximo de benefício para Atenas, trazendo o mínimo de dano (…) Desde a infância, cada grego percebia em si o desejo ardente de, na competição entre cidades, ser um instrumento para a consagração de sua cidade: isso acendia o seu egoísmo, mas, ao mesmo tempo, o refreava e limitava. Por isso, os indivíduos da antiguidade eram mais livres, porque seus objetivos eram mais próximos e alcançáveis. O homem moderno, ao contrário, tem a infinidade cruzando o seu caminho em toda parte, como o veloz Aquiles na parábola do eleata Zenão: a infinidade o obstrui, ele nunca alcança a tartaruga" (NIETZSCHE, DH, p. 73) Grifos nossos. O ostracismo é interpretado por Nietzsche como um recurso criado para preservar a disputa, a tirania, ao encerrar a disputa encerraria a medida e a saúde da polis: "É este o germe da noção helênica de disputa: ela detesta o domínio de um só e teme seus perigos, ela cobiça, como proteção contra o gênio - um segundo gênio." (NIETZSCHE, DH, p. 72)

20

da objeção dos lógicos sobre a liberdade como espaço de tensão entre a medida e a desmedia

o trágico pergunta: e se a vida e o mundo não se submeterem às projeções da nossa lógica? E

se a vida exigir, ao mesmo tempo, resistência e superação da resistência? E se ela tiver a

indesejada propriedade de crescer justamente na tensão não resolvida? O desafio consistiria,

neste caso, em pensar a forma que deve ter o Estado para que ele seja uma arena para a

disputa favorável à intensificação de vida, mas, para perseguir tal objetivo, talvez seja

necessária uma mudança na nossa sensibilidade, pois significa aceitar algum grau de risco no

limiar entre a medida e a desmedida, contrariando a tendência que tem sido predominante na

filosofia política32.

NIETZSCHE ENTRE FRANCESES

"Indeed, I would go so far as to say that if one wishes to distinguish what – in the English-speaking world – is

called 'poststructuralism' from its structural and existencial predecessors, perhaps the most obvious way to do so

is precisely in terms of the appearence of Nietzsche as an important reference for virtually all those writers who

would be characterized as 'poststructuralist'" (SCHRIFT, 1995, p. 3)

A primeira recepção de Nietzsche entre os franceses ocorreu no meio artístico e

literário, entre os admiradores parisienses de Wagner, que primeiro se entusiasmaram e depois

passaram a denegrir Nietzsche, em razão de sua ruptura com Wagner em 1878. No final do

século XIX, Nietzsche deixa de ser um “mero coadjuvante do culto a Wagner para tornar-se

um objeto de interesse por si mesmo”, especialmente a partir das traduções, feitas por Henri

Albert, em 1894, de algumas da obras de Nietzsche para o francês (MARTON, 2009, p. 22). O

trabalho de Albert contribuiu para a formação da primeira geração de nietzschianos franceses,

de que fez parte André Gide. Entretanto, de acordo com uma carta de Gide, citada por Marton,

a influência de Nietzsche “precedeu entre nós o aparecimento de sua obra” (Id.), referindo-se

ao contato dos franceses com as obras do pensador alemão antes mesmo das traduções para o

francês. De acordo com Marton, na última década do século XIX ocorreu uma exacerbação da

“tensão entre literatos e acadêmicos” no meio intelectual francês, que produziu uma cisão

entre professores universitários consagrados de um lado e literatos marginalizados de outro

32 A concepção trágica de vida informa a ideia da vida como vontade de potência em Nietzsche. É a partir dessa concepção que Nietzsche critica o darwinismo (mais o darwinismo inglês, de Spencer, por exemplo, do que Darwin propriamente) por colocar a autoconservação como determinante da vida, isso seria colocar o filistinismo como determinante da vida... Em vez de autoconservação, Nietzsche afirma que a vida é superação, vontade de poder: “Todo o darwinismo inglês exala o odor de miséria e aperto da arraia-miúda. Mas um investigador da natureza deveria sair de seu reduto humano: e na natureza não predomina a indigência, mas a abundância, o desperdício, chegando mesmo ao absurdo. A luta pela existência é apenas uma exceção, uma temporária restrição da vontade de vida; a luta grande e pequena gira sempre em torno da preponderância, de crescimento e expansão, de poder, conforme a vontade de poder, que é justamente vontade de vida (NIETZSCHE, GC, V, § 349)

21

lado. Em meio a disputas sobre o que é um texto filosófico ou literário, Nietzsche acaba sendo

melhor recebido, neste momento, no meio literário.

Uma nova reviravolta na recepção de Nietzsche ocorre no final dos anos 1910, quando

Nietzsche passa a ser lido e apropriado pelas mais variadas tendências e é apresentado em

diferentes versões: “anarquista, reacionário, autoritário, epicurista, esteta, cético, trágico,

visionário, agnóstico, metafísico e outras mais”, e, sem poder ser apropriado com

exclusividade por nenhum desses públicos, Nietzsche passa a fazer “parte do ar do tempo”,

tornando-se um “bem comum, que não apresenta conteúdo preciso” e passa a desempenhar a

função de “pensador escandaloso, destruidor de ídolos e experimentador de uma moral

audaciosa” (MARTON, 2009, p. 24). Segundo Marton, o clima social e político que antecedeu

a primeira guerra mundial levou a um recrudescimento do antagonismo interpretativo acerca

de Nietzsche, uma situação em que “Não se estuda Nietzsche; simplesmente se é a favor dele

ou contra ele. Isto significa, conforme o campo de batalha, que se é católico ou ateu, patriota

ou anarquista, conservador nostálgico do passado ou radical socialista voltado para o futuro”

(MARTON, 2009, p. 25). Com o crescimento do nacionalismo alemão, a deterioração das

relações entre França e Alemanha e o início da guerra “a imagem que se torna predominante

na França é a de que Nietzsche teria encorajado as atrocidades cometidas pela Alemanha”

(MARTON, 2009, p. 26), sobretudo se considerarmos que existia a interpretação nacionalista

da obra de Nietzsche – rejeitada pelo próprio Nietzsche em vida – e que, mais tarde,

desaguaria na interpretação fascista.

Segundo Marton, outra reviravolta acerca da recepção de Nietzsche na França ocorre

nos anos 20, quando jovens intelectuais como Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Paul

Nizan, Henri Lefebvre e Georges Bataille “se voltam para as suas obras, frustrados com as

correntes kantiana e bergsoniana que dominavam a filosofia francesa” (MARTON, 2009, p.

26). Nietzsche começa a ganhar respeitabilidade cultural no meio acadêmico e os trabalhos de

Charles Andler, publicados na década de 1920, contribuem para essa mudança. Entretanto, o

pensamento do autor de Zaratustra permanecerá em um lugar subordinado ao de Hegel,

Husserl e Heidegger no meio acadêmico filosófico francês, e, continuará sendo mais bem

acolhido na “vanguarda cultural e literária, com Bataille, Klosssowski, Camus, Malraux e

Blanchot, do que em escritos filosóficos” (MARTON, 2009, p. 30).

Na década de 1930, na Alemanha, alguns tomaram Nietzsche como um autor que

deveria ser incluído no panteão nacional-socialista e na França também houve quem se

apropriasse dele como um pensador de direita. Segundo Marton, interpretando de forma

22

equivocada o conceito de vontade de potência, Drieu-la-Rochele, “um dos mais destacados

autores franceses conservadores, publica um texto intitulado 'Nietzsche contra Marx'”, que

advogava a ideia de que o pensamento nietzschiano fornecia elementos “tanto para o fascismo

italiano quanto para o nazismo alemão”. Essa corrente interpretativa que ligava Nietzsche ao

nazi-fascismo logo recebeu a oposição decidida de vários intelectuais franceses que, de 1935

a 1945 se reuniram em torno da revista Acéphale, e procuraram desfazer o equívoco da

interpretação fascista de Nietzsche, entre eles apareciam, novamente, Bataille, Klossowski e

Jean-Wahl (MARTON, 2009, p 31). A resposta contra a interpretação fascista se deu em um

meio de grande interesse pelo pensamento hegeliano, o que ajuda a entender a tendência

nestes autores de promover uma aproximação entre Nietzsche e Hegel, como testemunhariam

o trabalho de Georges Bataille, Sur Nietzsche. Volonté de chance, publicado em 1945 e o de

Henri Lefebvre, Nietzsche, publicado em 1939.

Ao longo da década de 50 o interesse acadêmico pela filosofia de Nietzsche se amplia

e aparece daí em diante de duas formas diferentes, uma delas é constituída por trabalhos de

exegese sobre a obra de Nietzsche, que, ao modo da história da filosofia, procuram oferecer

uma interpretação de sua obra. A outra forma de recepção da obra de Nietzsche é formada por

trabalhos que não procuram encontrar "o verdadeiro Nietzsche", mas que usam Nietzsche

como "caixa de ferramentas" para o desenvolvimento de suas próprias teorias. Esse é o caso

de pós-estruturalistas como Derrida, Foucault e Deleuze que escrevem nos anos 60, quando

“Nietzsche está 'dans l'air du temps'”, e, a hegemonia dos três H's (Hegel, Husserl e

Heidegger) começa a ser questionada e emerge a influência de outro triunvirato, “o de Marx,

Nietzsche e Freud” (MARTON, 2009, p. 34-35).

Talvez seja possível identificar o auge da recepção de Nietzsche entre os franceses na

década de 1960, uma época em que certas tendências que haviam sido muito influentes no

meio intelectual francês começam a apresentar sinais de esgotamento, como o hegelianismo e

o existencialismo e já aparecia uma insatisfação mesmo com o estruturalismo, que ainda era

forte, especialmente nas ciências sociais. Do ponto de vista político, trata-se de uma época de

desgaste do modelo soviético entre intelectuais de esquerda que se viram na necessidade de

tomar uma posição diante da revelação dos crimes de Stálin, da invasão soviética da Hungria

e da repressão à primavera de Praga. A efervescência estudantil, a contra-cultura, enfim, todo

o clima do período que culminou no maio de 1968 levava a marca de um “vitalismo e

espontaneísmo” que beneficiou um renovado interesse por Nietzsche (MARTON, 2009, p.

43). No mundo intelectual, os eventos mais importantes que marcam esse retorno a Nietzsche

23

são: o livro Nietzsche e a Filosofia, publicado em 1962, em que Deleuze “põe em relevo a

noção de valor e a importância do procedimento genealógico” e procura fazer da “filosofia

nietzschiana sua principal aliada no combate ao hegelianismo” (MARTON, 2009, p. 36); o

Colóquio de Royaumont, realizado em 1964, em que Foucault publica o trabalho “Nietzsche,

Freud e Marx”; O Colóquio de Cerisy, realizado em julho de 1972, que congregou pensadores

franceses e alemães para debater o tema “Nietzsche hoje?”, e, entre os que contribuíram

apresentando trabalhos no colóquio estavam: Gilles Deleuze, Jean-François Lyotard, Pierre

Klossowski, Karl Löwith e Eugene Fink.

No colóquio de Cerisy, segundo Marton, “Deleuze, Lyotard e Klossowski exploraram

em outra direção a trilha aberta por Foucault no Colóquio de Royaumont em 1964. Insistem

em atribuir a Nietzsche um lugar privilegiado: na opinião de Lyotard, só ele permite um

discurso de intensidades máximas; segundo Klossowski, ele e Marx se acham em pontos

diametralmente opostos; para Deleuze, ele opera uma decodificação absoluta, enquanto Freud

e Marx apenas recodificações” (MARTON, 2009, p. 43). Esses pensadores recorrem a

Nietzsche para “refletir sobre política, arte, cultura, psiquiatria; tomam-no como referência

para pensar sequestros e justiça popular, ocupação de fábricas e squattings, insurreições e

comunidades antipsiquiátricas, happenings e pop art, a música de Cage e os filmes de

Godard. Não pretendem pensar a atualidade do texto nietzschiano, mas pensar a atualidade

através dele” (MARTON, 2009, p. 44). Os autores que formarão o chamado “pós-

estruturalismo” francês não abordam a obra de Nietzsche ao modo da exegese, mas procuram

usar Nietzsche como “caixa de ferramentas” para pensar problemas do presente33.

Alan Schrift procura contextualizar o surgimento do pós-estruturalismo francês com

essa retomada de Nietzsche no interior de um momento de abalo em dois grandes movimentos

teóricos que haviam sido hegemônicos no contexto francês: o existencialismo e o

estruturalismo. Para Schrift, o que distingue os pós-estruturalistas dos seus predecessores

existencialistas e estruturalistas é justamente o surgimento de Nietzsche como uma importante

referência para todos estes autores (SCHRIFT, 1995, p. 3). Nietzsche fornecia a eles uma

resposta ao slogan estruturalista sobre a "morte do sujeito" sem sucumbir ao voluntarismo

existencialista. Se os estruturalistas responderam ao privilégio que os existencialistas

concediam ao sujeito e à história eliminando os dois, os pós-estruturalistas se apropriam de

33 “Uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o significante... É preciso que sirva, é preciso que funcione. E não para si mesma. Se não há pessoas para utilizá-la, a começar pelo próprio teórico que deixa então de ser teórico, é que ela não vale nada ou que o momento ainda não chegou. Não se refaz uma teoria, fazem-se outras; há outras a serem feitas... a teoria não totaliza; a teoria se multiplica e multiplica” (FOUCAULT, Microfísica do Poder, p. 71)

24

alguns insights estruturalistas sobre o trabalho das forças sistêmicas e linguísticas e retomam a

questão do sujeito em termos de uma noção "constituída-constutiva-constituinte" de agência

situada e operando em uma rede complexa de relações intersubjetivas e socio-históricas

(SCHRIFT, 1995, p. 6).

Diversos temas nietzschianos são desenvolvidos pelos pós-estruturalistas, entre eles,

Schrift destaca: a crítica à Verdade e aos fundamentos metafísicos do pensamento

"oposicional"; a crítica ao sujeito, tal como entendido pela tradição humanista, com suas

suposições de autonomia e transparência da autoconsciência, que substituem por uma

compreensão do sujeito entendido como uma complexa interseção de forças discursivas,

libidinais e sociais; a resistência em relação a reivindicações de universalidade e unidade e a

ênfase na diferença e na fragmentação (SCHRIFT, 1995, p. 7).

Para Schrift, a crítica desconstrutiva de Derrida ao pensamento binário foi precedida

pela crítica de Nietzsche ao pensamento oposicional, crítica que teria demonstrado a limitação

da fundação da moral, filosofia e religião em tais hierarquias oposicionais como bem/mal,

verdade/erro, ser/devir. Ao adotar uma atitude perspectiva e negar a possibilidade de uma

apreensão não mediada e não interpretativa da realidade, Nietzsche deslocou a oposição

verdade/falsidade: a questão para o genealogista não será mais saber qual perspectiva é

"verdadeira" ou "falsa", mas saber em que medida tal perspectiva reforça ou não a vida

(SCHRIFT, 1995, p. 22). A intensificação ou o debilitamento da vida torna-se o seu critério

diferencial para avaliar o valor das perspectivas. Devemos lembrar que quando Nietzsche faz

a crítica à moral não a faz em nome da ausência de moral, mas por avaliar que esta moral

existente seria nociva à vida. Nietzsche move-se "para além do bem e do mal" recorrendo a

genealogia para mostrar que a oposição binária entre bem e mal poderia ser reconduzida a

uma origem comum, a um certo tipo de vontade de poder, a do escravo, a vontade de poder

reativa da moralidade de rebanho. Segundo Schrift, a leitura de Nietzsche como imoralista ou

"niilista" seria limitada, pois entenderia que, ao criticar a moral escrava, Nietzsche estaria

simplesmente invertendo a oposição entre moral escrava e moral dos senhores, defendendo a

superioridade da última. Entretanto, se num primeiro momento da crítica de Nietzsche pode

levar a esta impressão, há ainda um segundo momento, que consiste na "transvaloração de

todos os valores", e, neste momento, já não se trata nem abandonar qualquer moralidade nem

de simplesmente inverter a oposição binária existente, mas da criação e imposição ativa de

novos valores a partir de uma vontade de poder sadia que desloca a oposição binária entre

bem e mal para outro terreno, o da intensificação/aprimoramento da vida. Esta transvaloração,

25

que rejeita a estrutura binária da valoração moral inaugura uma experimentação com valores e

uma multiplicação de perspectivas que Nietzsche nomeia de "interpretação ativa"

(NIETZSCHE, KSA, 12: 9[48]). Derrida, associa essa noção com seu ideia de desconstrução,

que seria capaz de oferecer um estilo produtivo de leitura que não simplesmente protegeria

um texto, mas o abriria para novas possibilidades interpretativas (DERRIDA, 1976, p. 158).

Mas não avançaremos, neste paper, na análise sobre a relação entre Nietzsche e Derrida,

concentraremos nossos esforços em elucidar como Nietzsche informa a visão sobre poder e

liberdade em outros dois autores “pós-estruturalistas”: Foucault e Deleuze.

FOUCAULT

Quando perguntado sobre qual seria o grau de influência de Nietzsche em sua obra

Foucault respondeu: "Com respeito à influência efetiva que Nietzsche teve sobre mim, me

seria muito difícil precisá-la, porque me dou conta do quanto foi profunda. Eu lhes diria

apenas que fui ideologicamente 'historicista' e hegeliano até ler Nietzsche" (Foucault, Dits et

Écrits, I, 613). A citação desta declaração não pretende sugerir de modo algum que Foucault

seria pouco original e refém de algum nietzschianismo ortodoxo (se é que isso pode existir

com um pensador que se recusava a ser sistemático), mas é suficiente para indicar que há uma

ligação forte entre os dois pensadores e que muitos dos temas, olhares e ferramentas de

Foucault carregam a marca de Nietzsche.

Como é conhecido, os grandes focos dos trabalhos de Foucault, são

linguagem/discurso, verdade, poder e sujeito, que correspondem aos três momentos de sua

obra: o momento arqueológico, o genealógico e o ético. Para Schrift, seria um erro

entendermos esses momentos como correções que Foucault estaria fazendo aos seus trabalhos

anteriores. Segundo Schrift, a natureza da interação entre as obras das três fases deve ser

entendida nos termos do desenvolvimento de diferentes dimensões nietzschianas do

pensamento de Foucault (SCHRIFT, 1995, p. 38). O próprio Foucault associou o seu trabalho

com o campo de trabalho filosófico aberto por Nietzsche. Em As palavras e as coisas,

Foucault começa e termina o livro com o anúncio da iminente morte do homem e a associa

com a morte de Deus. Foucault indica que foi Nietzsche quem redescobriu o ponto em que o

homem e Deus pertencem um ao outro e que a morte do segundo é sinônimo do

desaparecimento do primeiro, “foi Nietzsche, em todo o caso, que queimou para nós, e

antes mesmo que tivéssemos nascido, as promessas mescladas da dialética e da

antropologia” (FOUCAULT, 2000, p. 361). Para Foucault, "o homem é uma invenção

26

recente, da qual a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente a data recente. E,

talvez, o fim próximo" (FOUCAULT, 2000, p. 536). O tema da morte de Deus e da morte do

homem é reconhecidamente nietzschiano e informa a crítica de Foucault a um humanismo que

dependia de uma concepção de sujeito cujos pressupostos originavam-se na religião judaico-

cristã e nas filosofias helenísticas, e, posteriormente, foram desenvolvidos na filosofia e nas

ciências humanas. É o que Foucault indica também em Dits et Écrits I, quando, de modo

similar à crítica de Nietzsche ao livre-arbítrio e sua conexão com a culpa cristã, Foucault

associa "consciência" e "liberdade" com "Deus": "o homem desaparece na filosofia, não como

objeto do saber, mas como sujeito de liberdade e de existência. Pois bem, o homem sujeito de

sua própria consciência e de sua própria liberdade, no fundo, é uma espécie de imagem

correlata de Deus" (FOUCAULT, DE I, p. 664).

Para Schrift, o tema das relações entre verdade, poder e conhecimento também foi

desenvolvido por Foucault, a partir de Nietzsche, que pensava a relação entre "vontade",

"vontade de verdade", "vontade de conhecer" e "vontade de poder". Foucault cita Nietzsche

como o primeiro a fazer um certo questionamento à verdade que não mais a restringia ao

domínio da investigação epistêmica nem tomava o valor da verdade como dado, investigando

as relações entre verdade e questões morais e políticas (FOUCAULT, Truth and Power, p.

133). Para Foucault, Nietzsche entendia a verdade como um conjunto de regras discursivas

"ligadas em uma relação circular com sistemas de poder que o produzem e sustentam, e com

efeitos do poder que o induzem e estendem" (Id). Schrift defende que, para Foucault,

Nietzsche teria sido o primeiro a “reconhecer a verdade como algo produzido dentro de um

complexo regime institucional e sócio-político” (SCHRIFT, 1995, p. 38). O método

genealógico é outra grande ligação com Nietzsche, discutido por Foucault em seu famoso

texto Nietzsche, a genealogia e a história, único texto seu dedicado inteiramente a Nietzsche.

Teoria das forças

Há um vínculo de Foucault com Nietzsche que é ainda mais importante para a

discussão sobre poder e liberdade que os vínculos a partir de temas como a morte do homem e

as relações entre verdade, conhecimento e poder, trata-se de um vínculo que atua em um nível

mais profundo, informando os outros vínculos: é a teoria das forças, como notou Deleuze:

“Há três grandes encontros de Foucault com Nietzsche. O primeiro é a concepção da força. O poder,

segundo Foucault, como a potência para Nietzsche, não se reduz à violência, isto é, à relação da força com um

ser ou um objeto; consiste na relação da força com outras forças que ela afeta, ou mesmo que a afetam (incitar,

suscitar, induzir, seduzir etc., são afetos). Em segundo lugar, a relação das forças com a forma: toda forma é um

composto de forças. É o que já aparece nas grandes descrições pictóricas de Foucault. Porém, ainda mais, é todo

27

o tema da morte do homem em Foucault, e seu vínculo com o super-homem de Nietzsche” (DELEUZE, 2010, p.

150)

Foucault parte da hipótese nietzschiana do mundo como vontade de poder, é ela que

informa a sua analítica do poder (SCHRIFT, 1995, p. 42). No quadro interpretativo de

Nietzsche tudo é avaliado como manifestação de uma sadia ou decadente vontade de poder. A

vontade é a força atuando sobre outra força, e não sobre um objeto que seria puramente

passivo. O poder não se reduz à violência, a força dominada permanece como força,

oferecendo resistência. Alterações na correlação de forças, fortalecimento da resistência,

enfraquecimento das forças dominantes podem levar a uma nova configuração de forças, não

ao desaparecimento das forças. Não há um fora incondicionado, exterior às forças, pois não há

dualismo nesta perspectiva compartilhada por trágicos, sofistas, Nietzsche, Foucault e

Deleuze. Nesta perspectiva, o poder não nem é simples nem está em um centro. Como é

conhecido, Foucault descarta as disjunções tradicionais a respeito do poder, que o entendiam

como algo possuído por alguns e imposto sobre outros. Esse é o sentido da sua crítica à

abordagem jurídico-discursiva sobre o Estado, que identifica o poder com um coisa que é

possuída, que está centralizada no poder do Estado e que funcionaria fundamentalmente de

modo repressivo. A partir da visão do mundo como vontade de poder, Foucault enxerga um

continuum de poder-conhecimento que entende o poder como onipresente, como produzindo e

operando em todas as relações. Nesta perspectiva, as relações de poder não seriam exteriores

a outras relações, sejam elas econômicas, emocionais, sexuais ou epistemológicas. O poder

seria imanente a estas relações.

Para Schrift, muitos leitores de Foucault e de Nietzsche fazem uma leitura equivocada

e unilateral sobre a concepção de poder destes autores, que, ora são lidos como libertários

partidários de uma concepção puramente negativa sobre o poder, ora como partidários de um

"realismo" pragmático e desiludido sempre pronto a se conformar com o poder existente

(SCHRIFT, 1995, p. 42). Estes leitores deixaram de observar a ambivalência da posição de

Nietzsche e Foucault sobre o poder, e entendem as críticas deles ao poder, de modo

equivocado, como se estivessem apontando para um horizonte de ausência de poder.

Entretanto, essa leitura perde de vista que Nietzsche e Foucault não apenas não visualizam a

possibilidade desta ausência, mas também entendem o poder em termos de sua produtividade.

Segundo Schrift, a produtividade do poder é o aspecto mais nietzschiano na analítica do poder

de Foucault (Id.). Para Foucault, as relações de poder não se manifestam apenas em leis que

dizem "não", elas também "atravessam e produzem coisas, induzem prazeres, constroem

conhecimento, formam discursos, criam verdades" (Id). Foucault, respondendo a uma

28

pergunta que associava sua crítica ao poder com uma visão “hippie, anarquista”, puramente

negativa sobre o poder, afirmou:

“Não quis absolutamente identificar poder e opressão. Por que? Primeiro porque penso que não há um

poder, mas que dentro de uma sociedade existem relações de poder – extraordinariamente numerosas,

múltiplas, em diferentes níveis, onde umas se apoiam sobre as outras e onde umas contestam as outras (…) Essas

relações são tão múltiplas que não poderiam ser definidas como opressão, resumindo tudo numa frase: 'o poder

oprime'. Não é verdade. O poder não oprime por duas razões: primeiro, porque dá prazer, pelo menos para

algumas pessoas. Temos toda uma economia libidinal do prazer, toda uma erótica do poder, isto vem provar que

o poder não é apenas opressivo. Em segundo lugar, o poder pode criar. Na conferência de ontem tentei mostrar

que coisas como relações de poder, confiscações, etc., produziram algo maravilhoso que é um tipo de saber, tipo

de saber que se transforma na enquete e dá origem a uma série de conhecimentos” (FOUCAULT, 2005, p. 153-

4). Grifos nossos.

Como Nietzsche, Foucault não entende liberdade e poder em exclusão mútua e resgata

a dimensão positiva do poder. Foucault não concorda com o preconceito moderno contra o

poder, que aparece na hipótese repressiva de que o poder seria sempre algo mau, e segundo o

qual quem manda é livre e quem obedece não o é. De acordo com a hipótese de Nietzsche do

mundo como vontade de potência, Foucault considera que as forças não desaparecem, a força

dominada permanece como força, oferece resistência. Ambas as forças, dominante e

dominada, são livres numa relação de poder. Isso significa que sempre é possível a resistência

e a mudança nas relações de poder. A liberdade não se opõe ao poder, ela é condição de

existência do poder:

“O poder não se exerce a não ser sobre 'sujeitos livres' e na medida em que eles são 'livres'. Entendemos

por isso sujeitos individuais ou coletivos que tem diante de si um campo de possibilidade onde se possam dar

muitas condutas, muitas reações e diferentes modos de comportamento. Ali onde as determinações estão

saturadas, não há relações de poder. A escravidão não é uma relação de poder quando o homem está encadeado

(trata-se então de uma relação física de coerção) mas justamente quando ele pode deslocar-se e, no limite,

escapar. Não há, pois, um cara a cara do poder e da liberdade, com uma relação de exclusão entre eles (em todo

lugar onde se exerce o poder, desaparece a liberdade), mas um jogo muito mais complexo. Nesse jogo, a

liberdade aparece como condição de existência do poder” (FOUCAULT, DE4, 237-238)

O poder é uma relação entre pessoas livres, que têm possibilidade de dizer sim ou não

ao mandamento. Tanto se é livre quando se manda, quanto há liberdade em obedecer ou não a

quem manda, desde que o mando não se imponha pela pura violência, como no exemplo

acima do homem encadeado, que Foucault entende como “relação física de coerção”. O poder

não se reduz à violência e nem é incompatível com a liberdade, pois é uma relação entre

homens livres e só há poder quando é possível resistir.

29

Para Edgardo Castro, Foucault, ao elaborar seus instrumentos conceituais para

compreender o poder, teve como interlocutores Hobbes, que pensou o poder em termos de

soberania, e Marx e Freud, que conceberam o poder “em termos de repressão”. Contra eles,

Foucault teria mobilizado a “hipótese Nietzsche”, que entendia o poder como luta,

enfrentamento. Entretanto, para Castro, essa hipótese não seria a posição definitiva de

Foucault a respeito do funcionamento do poder, pois nos seus últimos escritos e cursos no

College de France “Foucault utiliza uma série de conceitos que substituem (ao menos na

função que esse desempenhava em 'Il faut défendre la societé') o conceito de luta: governo,

governamentalidade” (CASTRO, 2009, p. 326). Nesse momento, Foucault passaria a entender

que o “governo” é um modo de poder, “nem guerreiro, nem jurídico”, um poder como

capacidade de “conduzir condutas e dispor de sua probabilidade, induzindo-as, afastando-as,

facilitando-as, dificultando-as, impedindo-as”, e, segundo Castro, essa afirmação de Foucault

“não coincide com a ideia de luta”, com a “hipótese Nietzsche” (Id.). Mas, do ponto de vista

nietzschiano, não poderíamos entender que há apenas diferenças de grau entre a “hipótese

Nietzsche”, do poder como luta, e a maneira de compreender o poder como “governo”, do

último Foucault? Entre a condução e a luta não poderiam existir apenas graus mais ou menos

intensos, mais ou menos convergentes ou divergentes, de uma correlação de forças? Parece-

nos que sim, e essa também era a opinião de Deleuze:

“O poder é precisamente o elemento informal que passa entre as formas do saber, ou por baixo delas.

Por isso ele é dito microfísico. Ele é força, e relação de forças, não forma. E a concepção das relações de força

em Foucault, prolongando Nietzsche, é um dos pontos mais importantes de seu pensamento . É uma outra

dimensão, que não a do saber, ainda que o poder e o saber constituam mistos concretamente inseparáveis”

(DELEUZE, 2010, p. 126) Grifos nossos.

A interpretação de Deleuze faz sentido sobretudo se considerarmos que a noção de

“governo” em Foucault, não exclui a possibilidade de resistência, de “práticas de resistência”.

Mesmo quando descreve a governamentalidade moderna, Foucault pensa o poder e liberdade

em termos “trágicos”, ao modo agonístico e heraclitiano de um jogo de forças eterno e

dinâmico, sem vislumbrar um horizonte de reconciliação final que eliminasse a tensão entre

forças e o próprio poder como relação entre forças:

“Eu quero dizer que as relações de poder suscitam necessariamente, reclamam a cada instante, abrem a

possibilidade de uma resistência; porque há possibilidade de resistência e resistência real, o poder daquele que

domina trata de manter-se com tanto mais força, tanto mais astúcia quando maior a resistência. Deste modo, é

mais a luta perpétua e multiforme o que eu trato de fazer aparecer do que a dominação obscura e estável de um

aparato uniformizante” (FOUCAULT, DE3, 407)

30

Como esta concepção trágica de liberdade e poder aparece nas análises de Foucault

sobre a passagem das sociedades de soberania para as sociedades disciplinares, e destas para

as sociedades de controle? Não pretendemos reconstruir em detalhes esse processo histórico

tal como apresentado por Foucault, mas apenas indicar a presença dessa concepção de

liberdade e poder atuando como pressuposto em sua exposição. Antes de prosseguir tenhamos

em mente a crítica de Nietzsche a “mais longa unanimidade”, que procuramos mostrar antes:

a tentativa de eliminar o poder enquanto poder não tem sucesso e é nociva à vida, quer dizer,

o poder não desaparece, mas surge um novo poder ainda mais extenso que o poder que se

assumia como poder e este promove um avanço na neutralização da vida e da liberdade em

nome do imperativo do temor de rebanho “um dia não ter mais nada a temer na existência”.

Não haveria, portanto, com a chegada do ideal unânime ao poder – desta vez sem adversários,

pois o ideal unânime seria radicalizado no movimento democrático moderno – , um progresso

contra a dominação, mas sim uma nova dominação acompanhada de um progresso da

hipocrisia, e o resultado deste processo seria o “último homem”, o sublime aborto.

Foucault descreve primeiro o poder soberano, no Antigo Regime, um poder que era

visível e se exercia sobre o território, cobrando taxas e obrigações e castigando criminosos e

opositores de modo “exemplar” e público34. Entretanto, o poder soberano apresentava certa

fragilidade, pois dependia demais destas demonstrações públicas de força, não controlava

plenamente a direção dos atos de violência popular e não possuía mecanismos eficazes para

romper eventuais solidariedades entre os condenados e os populares que assistiam as

punições. Em certas ocasiões, o castigo soberano era apoiado pelo povo em seus desejos de

vingança, mas por vezes, a soberania expunha-se ao perigo de dissidências e levantes

(FOUCAULT, 2000a, p. 50-53).

No século XVIII, a justiça soberana começou a ser questionada por reformadores que

pediam que a justiça deveria punir em vez de vingar35. Com isso, pretendiam aumentar a

eficácia dos meios de dissuasão36. Não basta mais castigar, é necessário modificar a conduta

34 “a proximidade do crime e do soberano no crime, a mistura que se fazia entre a 'demonstração' e o castigo, não provinham de uma confusão bárbara: o que então se realizava era o mecanismo da atrocidade e suas ligações necessárias. A atrocidade da expiação organizava a redução ritual da infâmia pelo todo poderoso” (FOUCAULT, 2000a, p. 48.35 “Nessas cerimônias que são objeto de tantas investidas adversas, percebem-se o choque e a desproporção entre a justiça armada e a cólera do povo ameaçado. (...) Nessa mesma violência, ritual e dependente do caso, os reformadores do século XVIII denunciaram, ao contrário, o que excede, de um lado e de outro, o exercício legítimo do poder: a tirania, segundo eles, se opõe à revolta; elas se reclamam reciprocamente. Duplo perigo. É preciso que a justiça penal puna em vez de se vingar” (FOUCAULT, 2000a, , p. 63).36 “Deslocar o objetivo e mudar sua escala. Definir novas táticas para atingir um alvo que agora é mais tênue mas também mais largamente difuso no corpo social. Encontrar novas técnicas às quais ajustar as punições e cujos efeitos adaptar. Colocar novos princípios para regularizar, afinar, universalizar a arte de castigar. Homogeneizar seu exercício. Diminuir seu custo econômico e político aumentando sua eficácia e multiplicando

31

dos criminosos, reformar seus comportamentos, para tanto torna-se necessário criar

mecanismos de poder que atuem no nível das condutas37. É nesse momento, que o uso das

prisões, antes esporádico, se generaliza. A preservação da ordem pública e a necessidade de

modificar condutas, em vez de castigar, requer mais que prisões, é necessário criar um poder

disciplinar que produza novas subjetividades. O poder disciplinar, exercido em instituições de

“confinamento”, monastérios, escolas, exército, fábrica, cumpre esse papel38. Os primeiros

modelos de poder disciplinar foram apropriados pelo Estado a partir do poder pastoral39, que

tem sua origem nas filosofias helenísticas e no judaísmo-cristianismo. O poder pastoral seria

distinto do poder do político entre os gregos:

“O político dos gregos exerce seu poder sobre um território, estabelece leis que devem perdurar após o seu

desaparecimento; sua função é comparável a de um timoneiro da nave, persegue a honra. O pastor do judaísmo-

cristianismo, no entanto, não exerce seu poder sobre um território, mas sobre um rebanho: reúne indivíduos

dispersos, sem pastor, o rebanho se dispersa (…) A questão é, simplesmente, se o político deve ser o médico dos

homens, seu educador, quem os alimenta, etc.” (CASTRO, 2009, p. 328)

Para Foucault, o Estado moderno se apropria das técnicas do poder pastoral, mas,

nesse processo há “uma mudança de objetivo, alguns objetivos terrestres substituirão a visão

transcendente da pastoral cristã”, e haverá um fortalecimento da administração do poder

pastoral que será exercido não apenas pelo Estado, “mas também por empresas privadas, pela

família. Aqui têm importância capital as instituições médicas”, e, prossegue Castro, “Essa

multiplicação dos objetivos do poder pastoral e do fortalecimento das instituições que o

exercem permitiu o desenvolvimento das ciências do homem”, que serão utilizadas por um

poder que não se exercerá apenas sobre o território, mas sobre a vida dos corpos, a disciplina,

seus circuitos. Em resumo, constituir uma nova economia e uma nova tecnologia do poder de punir: tais são sem dúvida as razões de ser essenciais da reforma penal no século XVIII” (FOUCAULT, 2000a, p. 76).37 Nietzsche estabelece uma relação entre “amolecimento” quando castigar se torna “duro demais” e o surgimento de um poder ainda maior capaz de “tornar inofensivo” o infrator. Esta relação também parece atuar como pressuposto do surgimento da biopolítica em Foucault: “Na história da sociedade há um ponto de amolecimento e enlanguescimento doentio, no qual ela mesma, de modo inclusive sério e honesto, toma o partido de quem a prejudica, de seu infrator. Castigar lhe parece de algum modo injusto – certamente a ideia de 'castigo' e 'dever castigar' lhe dói, lhe dá medo. 'não basta torná-lo inofensivo? Para que castigar? Castigar é terrível!' – com essa pergunta a moral de rebanho, a moral do temor, tira a sua última consequência. Supondo que se pudesse eliminar o perigo, o motivo do temor, seria eliminada também essa moral: ela não seria mais necessária, ela não mais se tomaria por necessária! – Quem examinar a consciência do europeu de hoje haverá de extrair, de entre mil dobras e recessos morais, sempre o mesmo imperativo, o imperativo do temor do rebanho: 'queremos que algum dia não haja mais nada a temer!'. Algum dia – em toda a Europa, a via e a vontade que conduzem a ele se chamam agora 'progresso'” (NIETZSCHE, BM, § 201, p. 87-89).38 “A disciplina é o conjunto de técnicas em virtude das quais o sistema de poder tem por objetivo e resultado a singularização dos indivíduos. É o poder da singularização cujo instrumento fundamental é o exame. O exame é a vigilância permanente, classificadora, que permite repartir os indivíduos, julgá-los, avaliá-los, localizá-los e, assim, utilizá-los ao máximo” (FOUCAULT, Dits et Écrits 3, p. 516-7)39 “A tese de Foucault é que as formas de racionalidade do poder, no Estado moderno, são uma apropriação-transformação das práticas do poder pastoral. Mais precisamente, a especificidade do Estado consiste, como já indicamos, em haver integrado em uma forma jurídica nova as técnicas individualizantes do poder pastoral” (CASTRO, 2009, p. 329)

32

e “sobre as populações, a biopolítica” (CASTRO, 2009, p. 331). Se a disciplina representa a

tecnologia moderna de governo dos corpos, a técnica para criar indivíduos dóceis e úteis; a

biopolítica, por sua vez, foi a tecnologia política das populações. Ambas funcionam a partir da

definição do normal, mas à diferença das disciplinas, as técnicas de governo das populações

levam em consideração fenômenos coletivos” (Id, p. 332).

O liberalismo é a condição de inteligibilidade da biopolítica. O liberalismo introduziu

um princípio de limitação interna para a razão de Estado informado por um conhecimento do

“curso natural das coisas” produzido pela economia política. O liberalismo é entendido por

Foucault não como uma ideologia, mas como uma nova racionalidade na arte de governar que

procura “governar menos, para ter eficiência máxima, em função da naturalidade dos

fenômenos com que se tem de lidar. É essa governamentalidade, ligada ao seu esforço de

limitação permanente à questão da verdade, que Foucault chama de 'liberalismo'”

(SENELLART, 2008, p. 442).

O liberalismo, ao procurar governar o menos possível, não significa a simples

aceitação da liberdade, pois, o seguimento da “ordem natural das coisas” pode produzir

choques entre interesses diversos que podem destruir a própria liberdade. O liberalismo terá

que “fabricar a liberdade”, produzi-la levando em conta o custo que essa fabricação levanta e

o princípio de cálculo deste custo será a segurança (FOUCAULT, 2008, p. 88). Se o poder

soberano fornecia proteção “externa”, o liberalismo terá que terá “a cada instante, de arbitrar a

liberdade e a segurança dos indivíduos em torno da noção de perigo” (FOUCAULT, 2008, p.

90). O jogo entre liberdade e segurança estará no âmago desta nova razão governamental que

é o liberalismo40. Como consequência, o liberalismo produzirá uma “formidável extensão dos

procedimentos de controle, de pressão, de coerção que vão constituir como que a

contrapartida e o contrapeso das liberdades” (FOUCAULT, 2008, p. 91). Nesse sentido, o

panóptico de Bentham é a própria fórmula do governo liberal:

40 “Problema de segurança: proteger o interesse coletivo contra os interesses individuais. Inversamente, a mesma coisa: será necessário proteger os interesses individuais contra tudo o que puder se revelar, em relação a eles, como um abuso vindo do interesse coletivo. É necessário também que a liberdade dos processos econômicos não seja um perigo, um perigo para as empresas, um perigo para os trabalhadores. A liberdade dos trabalhadores não pode se tornar um perigo para a empresa e para a produção. Os acidentes individuais, tudo o que pode acontecer na vida de alguém, seja a doença, seja esta coisa que chega de todo modo, que é a velhice, não podem constituir um perigo nem para os indivíduos nem para a sociedade. Em suma, a todos esses imperativos – zelar para que a mecânica dos interesses não provoque perigo nem para os indivíduos nem para a coletividade – devem corresponder estratégias de segurança que são, de certo modo, o inverso e a própria condição do liberalismo. A liberdade e a segurança, o jogo liberdade e segurança – é isso que está no âmago dessa nova razão governamental cujas características gerais eu lhes vinha apontando. Liberdade e segurança – é isso que vai animar internamente, de certo modo, os problemas do que chamarei de economia de poder própria do liberalismo”. (FOUCAULT, 2008, p. 88-89)

33

“o panóptico é a própria fórmula de um governo liberal porque, no fundo, o que deve fazer um

governo? Ele deve, é claro, dar espaço a tudo o que poder ser a mecânica natural tanto dos comportamentos

como da produção. Deve dar espaço a esses mecanismos e não deve ter sobre eles nenhuma outra forma de

intervenção, pelo menos em primeira instância, a não ser a da vigilância. E é unicamente quando o governo,

limitado de início à sua função de vigilância, vir que alguma coisa não acontece como exige a mecânica geral

dos comportamentos, das trocas, da vida econômica, que ele haverá de intervir” (Id.)

Outra consequência do liberalismo será quando, em conjunturas de crise de

governamentalidade liberal, o panopticismo deixa de ser apenas um “contrapeso necessário à

liberdade” para se tornar “seu princípio motor” (FOUCAULT, 2008, p. 92) com o

aparecimento de uma nova arte de governar com mecanismos que têm a função de “produzir,

ampliar as liberdades, introduzir um 'a mais' de liberdade por meio de um 'a mais' de controle

e de intervenção”, como no caso das políticas de Welfare State implantadas por Roosevelt,

“naquele caso, as liberdades democráticas só foram garantidas por um intervencionismo

econômico que é denunciado como uma ameaça para as liberdades” (FOUCAULT, 2008, p.

93).

Com a crise das instituições disciplinares, em meados do século XX, há um avanço

ainda maior do controle, com o surgimento das “sociedades do controle”, mas não entraremos

neste assunto, não vamos prolongar a discussão sobre o liberalismo e a biopolítica, nem

entraremos visão de Foucault sobre o ordoliberalismo e o neoliberalismo. Apenas queremos

ressaltar que sua análise é feita a partir da concepção trágica de liberdade e poder que ele

incorporou por meio de sua leitura de Nietzsche: não há um fora das correlações de força, não

há uma situação sem poder, a tentativa de eliminar o poder acaba por criar mecanismos mais

extensos de poder. A liberdade, portanto, não deve ser entendida em relação de exclusão

mútua com o poder. Se é assim, qual pode ser o sentido da crítica de Foucault à

governamentalidade contemporânea? Ele não fornece uma resposta clara, pois não quer

parecer normativo. Pesamos que há indicações suficientes para defender que Foucault não é

um libertarian contrário ao poder do Estado em geral, mas, como trágico, Foucault quer

avaliar que tipo de vida se promove com tal hierarquia de forças, quer medir os custos das

alternativas, o peso que queremos dar à liberdade e à segurança, quer saber se tal poder

existente diminui o homem à condição de rebanho, de sublime aborto, ou se ele permite o

surgimento de individualidades capazes de exercer um “governo de si”, dar estilo às suas

vidas em uma perpétua superação de si, qual Übermensch nietzschiano, o que recoloca a

questão do sujeito e da agência de um modo completamente diferente da tradição humanista

34

vinculada ao racionalismo metafísico, e, ainda, Foucault quer saber quais resistências devem

ser promovidas. Haveria, segundo Deleuze, um vitalismo escondido em Foucault:

“E, se o homem foi uma maneira de aprisionar a vida, não será necessário que, sob uma outra forma, a vida se

libere no próprio homem? A este respeito, você se pergunta se eu não puxo Foucault em direção a um vitalismo

que mal aparece em sua obra. Pelo menos em dois pontos essenciais creio que há de fato um vitalismo de

Foucault, independente de qualquer 'otimismo'. Por um lado, as relações de força se exercem sobre uma linha de

vida e de morte que não cessa de se dobrar e de se desdobrar, traçando o próprio limite do pensamento. E, se

Bichat parece a Foucault um grande autor, talvez seja porque Bichat escreveu o primeiro grande livro moderno

sobre a morte, pluralizando as mortes parciais, fazendo da morte uma força coextensiva à vida: 'vitalismo sob

fundo de mortalismo', diz Foucault. Por outro lado, quando Foucault chega ao tema final da 'subjetivação', esta

consiste essencialmente na invenção de novas possibilidades de vida, como diz Nietzsche, na constituição de

verdadeiros estilos de vida: dessa vez, um vitalismo sob fundo estético” (DELEUZE, 2010, p. 119)

DELEUZE

Nietzsche está presente na obra de Deleuze desde seus primeiros trabalhos de história

da filosofia – mais ou menos exegéticos, momento em que escreve o livro, Nietzsche e a

Filosofia, publicado em 1962 –, até suas últimas obras, em que Deleuze usa Nietzsche para os

seus próprios propósitos teóricos.

O livro Nietzsche e a Filosofia causou um considerável impacto no contexto

intelectual francês, oferecendo a primeira grande alternativa à interpretação de Heidegger

sobre Nietzsche. Deleuze também apresenta Nietzsche como uma alternativa ao hegelianismo,

ainda tão influente na França dos anos 60, e procura desfazer a leitura, em sua visão

equivocada, de Nietzsche como um dialético neo-hegeliano. Contra a dialética, Deleuze

mobiliza o trágico que encontra em Nietzsche41. Não vê acordo possível entre a dialética

hegeliana e a genealogia nietzschiana42. Deleuze procura mostrar que em Hegel a

reconciliação das oposições implicaria na supressão das diferenças, e em Nietzsche haveria

justamente uma afirmação pluralista das diferenças. De um lado, monismo metafísico, de

outro, pluralismo radical. Se Hegel trabalha com o "não" dialético, a negação da negação, o

trágico Nietzsche abre espaço para o "sim" dionisíaco:

"O 'sim' de Nietzsche opõe-se ao 'não' dialético; a afirmação à negação dialética; a diferença, à

contradição dialética; o gozo, o prazer, ao trabalho dialético; a leveza, a dança, à gravidade dialética; a bela

irresponsabilidade, às responsabilidades dialéticas. O sentimento empírico da diferença, melhor, a hierarquia, eis

41 "Mas justamente, ao que é que Nietzsche chama 'trágico'? Opõe a visão trágica do mundo a duas outras visões: dialética e cristã" (DELEUZE, 2001, p. 19). "A dialética em geral não é uma visão trágica do mundo, mas ao contrário, da morte da tragédia, a substituição da visão trágica por uma concepção teórica (com Sócrates), ou melhor ainda por uma concepção cristã (com Hegel)" (DELEUZE, 2001, p. 30).42 "É por isso que devemos tomar a sério o caráter resolutamente anti-dialético da filosofia de Nietzsche (...) O anti-hegelianismo atravessa a aobra de Nietzsche, como o fio da agressividade" (DELEUZE, 2001, p. 16).

35

o motor essencial do conceito mais eficaz e mais profundo do que qualquer pensamento da contradição"

(DELEUZE, 2001, p. 17)

O "não" dialético indica reatividade, e não atividade. No vocabulário de Nietzsche isso

significa associar a dialética com a moral escrava, e o sim dionisíaco com a moral dos

senhores que "nasce de uma triunfal afirmação de si própria" (NIETZSCHE, BM, § 260). O

"não" movia o niilismo em sua acusação contra a vida, contra este mundo, com base nesta

acusação projetava-se um mundo "verdadeiro" em nome do qual se buscaria suprimir o

sofrimento em suas raízes, mas com isso também suprimiriam as fontes de alegria, o

particularismo/pluralismo, o conflito, a agressividade, quer dizer, a fraqueza diante do

sofrimento e das contingências, a décadence, moveria o niilismo que, por sua vez, suprimiria

a própria "vida", transformando o homem em um "sublime aborto". O trágico opõe-se ao não

dialético e cristão, ele diz o profundo sim:

"Dionísio afirma tudo aquilo que aparece, 'mesmo o mais amargo sofrimento', e aparece em tudo aquilo

que é afirmado. A afirmação múltipla ou pluralista, eis a essência do trágico. (...) em todas as teorias do trágico,

Nietzsche pode denunciar um desconhecimento essencial, o da tragédia como fenômeno estético. Trágico

designa a forma estética da alegria, não uma forma medicinal, nem uma solução moral da dor, do medo ou da

piedade. O que é trágico é a alegria. Mas isso quer dizer que a tragédia é imediatamente alegre, que só apela para

o medo e a piedade do espectador obtuso, auditor patológico e moralizante que conta com ela para assegurar o

bom funcionamento das suas sublimações morais ou das suas purgações medicinais" (DELEUZE, 2001, p. 28-

29).

O trágico é alegre porque não está disposto a eliminar o sofrimento a qualquer custo,

ao custo da alegria e da vida, por exemplo. O trágico tem dureza suficiente para tolerar algum

grau de risco, de arbitrariedade, de sofrimento, como parte necessária da vida. A tentativa de

eliminação desta dimensão da vida, a tentativa de eliminar a arbitrariedade em suas raízes43,

levaria a um fechamento de possibilidades de criação, de potência, de alegria, de agência. Do

ponto de vista trágico, um mundo sem arbitrariedade, um mundo completamente previsível e

administrado, seria certamente um mundo mais seguro, mas sem liberdade, sem intensidade,

sem vida. O trágico tem uma relação estética com a vida, uma leveza que está em oposição ao

peso da visão moral sobre a vida. Zaratustra é o inimigo do "espírito de gravidade", ele tem

"os pés leves"44. Essa leveza exige dureza, requer coragem45. O homem trágico é produto de

43 Este pressuposto não estaria presente na ideia de liberdade como a "ausência de possibilidade de interferência arbitrária" presente em teorias contemporâneas da liberdade? Penso na liberdade como não-dominação de Pettit.44 “Zaratustra o dançarino, Zaratustra o leve, que acena com as asas, prestes para o vôo, a todas as aves, pronto e disposto” (NIETZSCHE, Z, IV, “Do homem superior”, §18)45 “Mas, quem for dos meus, deverá ser homem de ossos fortes e, também, de pés leves” (NIETZSCHE, Z, IV, “A ceia”). Depois de uma árdua subida carregando o seu “arqui-inimigo”, o “espírito de gravidade”, que aparece na figura de um anão nas suas costas, Zaratustra diz: “Mas existe algo, em mim, que chamo de coragem: até agora, sempre matou em mim todo desânimo. Por fim, essa coragem me mandou parar e falar: 'Anão! Ou tu, ou eu! - É que a coragem é o melhor matador – coragem que ataca: pois em todo ataque há fanfarra (…) Mas

36

um cultura, um adestramento que o ensina a agir sobre suas forças reativas, o medo, o

ressentimento, a vingança, tornado-o capaz de ser livre e criador. Vimos antes que a liberdade,

na Oração Fúnebre de Péricles requeria coragem. Esta associação presente neste documento

da Era trágica está presente em todo o nietzschianismo. A liberdade requeria a capacidade de

manter as forças reativas em uma posição subordinada46, possibilitando o autodomínio e a

necessária dureza para que os cidadãos fossem capazes de querer a hierarquia trágica de

valores, colocando a liberdade, a intensidade e a beleza um degrau acima da segurança,

duração e utilidade.

Um ponto central da interpretação de Deleuze sobre Nietzsche reside na diferença

qualitativa entre as forças ativas e reativas. Mas essa distinção apresenta uma dificuldade:

como entender as diferenças de qualidade se Nietzsche enxerga o mundo como vontade de

poder, como quantas de força em relação de tensão com outros quantas de forças formando

um continuum do acontecer sem cessar? Se os antagonismos não são entendidos como

absolutos, mas como diferenças de graus de força, como entender a distinção entre força

reativa e força ativa e a preferência de Nietzsche pela última? Se Nietzsche é um crítico do

pensamento binário como ele utiliza os pares moral escrava x moral dos senhores, reativo x

ativo, aprimoramento da vida x negação da vida, Dionísio x Crucificado?

Em outras palavras, como Nietzsche e Deleuze fazem uso de conceitos dualistas de

uma maneira não oposicional? Para Schrift, os dualismos são utilizados de modo estratégico e

provisório para transformar outros dualismos, e estes dualismos estratégicos marcam

diferenças, mais que oposições47. Haveria diferença na qualidade das forças que seriam

derivadas de diferenças de quantidade48. Força ativa é vontade de potência ascendente, é

coragem é o melhor matador, coragem que ataca: ela mata até mesmo a morte, pois diz: 'Isso era vida? Muito bem! Mais uma vez!” (ZA, Da visão e enigma, § 1, p. 149-150). A dureza e coragem permitem dizer "Sim à vida, mesmo em seus problemas mais duros e estranhos" (NIETZSCHE, CI, O que devo aos antigos, 5, p. 118).46 “Cultura significa adestramento e seleção. Nietzsche chama ao movimento da cultura 'moralidade dos costumes' (…) Mas neste adestramento violento o olhar do genealogista distingue dois elementos: 1o Aquilo que se obedece, num povo, uma raça ou uma classe, é sempre histórico, arbitrário, grotesco, estúpido e limitado; isso representa frequentemente as piores forças reativas; 2o Mas no fato de se obedecer a qualquer coisa, pouco importa a quê, aparece um princípio que ultrapassa os povos, as raças e as classes. Obedecer à lei, porque é a lei: a forma da lei significa que uma certa atividade, uma certa força ativa se exerce sobre o homem e se dá como tarefa adestrá-lo (…) Adestrar o homem significa formá-lo de tal maneira que ele possa agir sobre as suas forças reativas” (DELEUZE, 2001, p. 199-200). “É esse precisamente o objetivo seletivo da cultura: formar um homem capaz de prometer, portanto, de dispôr do futuro, um homem livre e poderoso. Só esse homem é ativo; age as suas reações, nele tudo é ativo ou agido” (DELEUZE, 2001, p. 201). Deleuze cita (NIETZSCHE, GM, II, 1).47 “While Nietzsche leaves unthematized the problem of utilizing dualistic concepts in non-opposotional ways, Deleuze and Guattari confront this issue directly in the introduction do A Thousand Plateaus, where they admit to using dualisms in order to challenge other dualisms (…) And, at the same time, one must take care as well to remember both that these dualisms mark differences rather than oppositions and that tjeir use is always strategic and provisional” (SCHRIFT, 1995, p. 66)48 “Se uma força não é separável da sua quantidade, também não é separável das outras forças com as quais está em relação. A própria quantidade não é, portanto, separável da diferença de quantidade. A diferença de quantidade é a essência da força, a relação da força com a outra força (…) A qualidade distingue-se da

37

“tender para o poder”49, é criar coisas novas e o homem ativo é irreverente. Força reativa é

vontade de potência descendente, medo, cansaço, ressentimento, vingança e o homem reativo

é calculista e décadent. Mas essa preferência pelo ativo não é arbitrária? Como os sofistas,

Nietzsche e Deleuze sabem da arbitrariedade de toda preferência50, e a arbitrariedade de uma

preferência, de uma concepção de justiça, não seria motivo para não tomar uma posição. Não

querer tomar posição em razão da descoberta de que o “mundo verdadeiro” não existe é

próprio do niilismo passivo, que Nietzsche rejeita51. Qual artistas, os homens ativos criam,

impõe forma, independente da “veracidade” ou não daquilo que é criado.

Preferir as forças ativas significa eliminar as forças reativas? Não na perspectiva de

Nietzsche (trágica, sofista, heraclitiana), pois as forças, mesmo dominadas, não desaparecem,

e elas também são necessárias para a vida. Entretanto, as forças reativas precisariam ser

“agidas pelas forças ativas” para o bem da vida. É o problema da hierarquia entre as forças

que se impõe aqui. É o critério “vida” que é escolhido pelo genealogista para avaliar as

diferentes hierarquias de forças, costumes, leis, instituições. A genealogia parte de uma

tomada de posição a partir do critério vida. Que tipo de vida é promovida em tal hierarquia de

forças? É tarefa do genealogista identificar quais são as forças que se apropriam de um

processo, que é dinâmico e marcado por contingências, trata-se de criar uma nova ciência,

uma ciência ativa:

“Só uma ciência ativa é capaz de interpretar as atividades reais, assim como as relações reais entre as

forças. Apresenta-se, portanto, sob três formas. Uma sintomatologia, na medida em que interpreta os fenômenos,

quantidade, mas apenas porque é o que há de inegualizável na quantidade, de impossível de anular na diferença de quantidade. A diferença de quantidade é, portanto, num sentido o elemento irredutível da quantidade, num outro sentido o elemento irredutível à própria quantidade. A qualidade não é outra coisa senão diferença de quantidade, e corresponde-lhe a cada força em relação” (DELEUZE, 2001, p. 67-68).49 “O que é ativo? Tender para o poder” (NIETZSCHE, VP, II, 226).50 “Os sofistas não são nada mais do que realistas: formulam todos os valores e práticas usuais para hierarquização dos valores, – têm a coragem, própria a todos os espíritos fortes, de saber de sua imoralidade...” (NIETZSCHE, VP, § 428 e 429, p. 239-230)51 “Não-mais-querer e não-mais-estimar e não-mais-criar! Ah, fique sempre longe de mim esse grande cansaço!” (NIETZSCHE, Z, Nas ilhas bem-aventuradas, p. 83)

38

tratando-os como sintomas, cujo sentido é necessário ser procurado nas forças que os produzem. Um tipologia,

na medida em que interpreta as próprias forças do ponto de vista de sua qualidade, ativa ou reativa. Uma

genealogia, na medida em que avalia a origem das forças do ponto de vista da sua nobreza ou baixeza, na

medida em que encontra a sua ascendência na vontade de poder e na qualidade desta vontade” (DELEUZE,

2001, p. 114).

Avaliar a origem das forças envolve responder a pergunta Quem? Quem quer inverter

a hierarquia trágica de valores? Quem quer a segurança a qualquer custo? Quem é

exageradamente compassivo e a partir desse estado acusa a vida e procura neutralizá-la?52

Certamente, não os fortes53, mas os fracos. Os fortes não devem ser entendidos como “os

ricos”, ou “os nobres” como classe. Trata-se de um tipo de homem, não de uma classe social54.

De qualquer forma, o genealogista quer responder a pergunta quem porque ele está

interessado em interpretar55 quais forças se apropriam de um processo e que tipo de vida é

promovida ali:

“Somos conduzidos à essência apenas pela questão: Quem? Porque a essência é apenas o sentido e o valor

da coisa; a essência é determinada pelas forças com afinidade com a coisa e pela vontade com afinidade com

52 “O que é a piedade? É essa tolerância para com os estados de vida vizinhos do zero. A piedade é o amor da vida, mas da vida fraca, doente, reativa. Militante, anuncia a vitória final dos pobres, dos sofredores, dos impotentes, dos pequenos. Divina, dá-lhes esta vitória. Quem é que sente piedade? Precisamente aquele que apenas tolera a vida reativa, aquele que tem necessidade dessa vida e desse triunfo, aquele que instala os seus templos sobre o solo pantanoso de uma tal vida. Aquele que odeia tudo o que na vida é ativo, aquele que serve da vida para negar e depreciar a vida, para opor a si mesma. A piedade, no simbolismo de Nietzsche designa sempre este complexo da vontade de nada e das forças reativas, esta afinidade de uma com as outras, esta tolerância de umas para com as outras. 'A piedade constitui a prática do niilismo... A piedade convence do nada! Não se diz o nada, põe-se no seu lugar o além, ou Deus, ou a vida verdadeira; ou ainda o nirvana, a salvação, a beatitude. Esta inocente retórica, que entra no domínio da idiossincrasia religiosa e moral parecerá muito menos inocente a partir do momento em que se compreender qual é a tendência que se reveste aqui com um manto de falas sublimes: a inimizade à vida'”. (DELEUZE, 2001, p. 225). Deleuze cita (NIETZSCHE, AC, 7).53 “Nietzsche chama fraco ou escravo, não ao menos forte, mas aquele que, qualquer que seja a sua força, está separado daquilo que pode” (DELEUZE, 2001, p. 93)54 “Plebe em cima, plebe embaixo! O que é 'pobre' e 'rico' hoje em dia? Desaprendi a diferença – e então fugi, para longe, cada vez mais longe, até que cheguei a estas vacas'. (NIETZSCHE, Z, O mendigo voluntário, p. 256); “Em verdade, antes viver entre eremitas e pastores de cabras do que com vossa dourada, falsa e arrebicada plebe – ainda que se chame 'boa sociedade', – ainda que se chame 'nobreza'. Mas ali é tudo falso e podre, a começar pelo sangue, graças a velhas doenças ruins e curandeiros ainda piores. O melhor, e o que prefiro, continua a ser um sadio camponês, tosco, astucioso, teimoso, tenaz: esse é, hoje, o tipo mais nobre. O camponês é hoje o melhor; e o tipo do camponês deveria dominar! Mas este é o reino da plebe – já não me deixo enganar. Mas plebe significa: mixórdia”. (NIETZSCHE, Z, Conversa com os reis, § 1, p. 232); “Não a uma nobreza, em verdade, que pudésseis comprar como os merceeiros e com ouro de merceeiros: pois muito pouco valor tem aquilo que tem preço” (NIETZSCHE, Z, De velhas e novas tábuas, § 12, p. 194); “Coisas novas quer criar o nobre, e uma nova virtude. Coisas velhas quer o bom, e que o velho seja preservado”. (NIETZSCHE, Z, Da árvore na montanha, p. 44)55 “Interpretar, é determinar a força que dá sentido à coisa. Avaliar, é determinar a vontade de poder que dá à coisa um valor (…) esta força é ativa ou reativa, e de que tipo? O valor de um valor consiste na qualidade da vontade de poder que se exprime na coisa correspondente: a vontade de poder é aqui afirmativa ou negativa, e de que tipo?” (DELEUZE, 2001, p. 84)

39

essas forças (…) a essência é sempre o sentido e o valor. E assim a questão: Quem? Ressoa por todas as coisas e

sobre todas as coisas: quais forças, qual vontade? É a questão trágica” (DELEUZE, 2001, p. 117).

O profundo sim, necessário para a liberdade e a vida, requer o domínio das forças

ativas sobre as forças reativas. Mas a história tem sido, para Nietzsche e Deleuze, a história

vitória das forças reativas, a história do niilismo. Como os fracos e as forças reativas puderam

vencer os fortes e as forças ativas? Teriam os fracos se tornado “fortes”? Para Deleuze,

Nietzsche nunca apresenta as forças reativas como fortes, se elas prevalecem não é porque se

tornaram mais fortes que as forças ativas, mas porque separam as forças ativas daquilo que

elas podem:

“Nietzsche responde: as forças reativas, mesmo quando unidas, não compõem uma força maior do que a

ativa seria. Procedem de um modo completamente diferente: decompõem; separam a força ativa daquilo que ela

pode; subtraem da força ativa uma parte ou quase todo o seu poder; e por isso não se tornam ativas, mas pelo

contrário fazem com que a força ativa se reúna a elas, tornando-se ela própria reativa num novo sentido (…)

“Mas é preciso desde já constatar que Nietzsche, com cuidado, não apresenta nunca o triunfo das forças reativas

como a composição de uma força superior à força ativa, mas como uma subtração ou uma divisão” (DELEUZE,

2001, p. 87).

Deleuze reconhece a dificuldade de avaliar a qualidade das forças em cada situação,

mas a dificuldade não exclui a necessidade da avaliação56. Segundo Deleuze, quando

Nietzsche apresenta o triunfo das forças reativas por meio da separação, ele retoma uma velha

discussão entre Cálicles e Sócrates, e desenvolve a posição do sofista:

“Este problema faz despertar uma velha polêmica, uma discussão célebre entre Cálicles e Sócrates. Até

que ponto Nietzsche nos aparece próximo de Cálicles, e Cálicles imediatamente completado por Nietzsche.

Cálicles esforça-se por distinguir entre a natureza e a lei. Chama lei a tudo aquilo que separa uma força daquilo

que ela pode; a lei, neste sentido, exprime o triunfo dos fracos sobre os fortes. Nietzsche acrescenta: triunfo da

reação sobre a ação (…) Sócrates responde a Cálicles: não há meio de distinguir a natureza e a lei; porque os

fracos imperam, é porque, todos reunidos, formam uma força mais forte do que a do forte; a lei triunfa do ponto

56 “É neste sentido, antes do mais, que a interpretação é uma arte tão difícil: devemos julgar se as forças que imperam são inferiores ou superiores, reativas ou ativas; se elas se apoderam enquanto dominadas ou dominantes”. Meste domínio não existem fatos, apenas interpretações” (DELEUZE, 2001, p. 89)

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de vista da própria natureza. Cálicles não se queixa de não ter sido compreendido, recomeça: o escravo não deixa

de ser um escravo por triunfar; quando os fracos triunfam, não é porque formam uma força maior, mas porque

separam a força daquilo que pode” (DELEUZE, 2001, p. 89-90)

Nesse processo de separação das forças ativas daquilo que elas podem não são os

fracos que se tornam fortes, mas o fortes é que se tornam fracos, “o escravo não deixa de ser

escravo por triunfar” e as forças ativas separadas daquilo que podem tornam-se reativas de

outra forma, como má consciência, sentido interno da dor, passividade. Inaugura-se com isso

um devir-reativo57. Esse devir-reativo confunde-se com a própria história da civilização.

Deixando de lado o papel do platonismo e do cristianismo na promoção deste devir-reativo, a

filosofia política também deu sua contribuição neste processo, o que seria visível na presença

da “mais longa unanimidade” com sua correspondente tentativa de neutralizar a vontade e o

conflito, promovendo a separação das forças ativas em relação ao que elas podem, em nome

da segurança, ou da ausência de possibilidade de interferência arbitrária, ainda que por vezes

a segurança apareça com o nome de “liberdade”. Se a “civilização” domesticou o homem,

esta acusação não implica, para Nietzsche e Deleuze, na idealização de um homem não

domesticado, mas indica a busca pela promoção de outro gênero de adestramento (Kultur)

capaz de tornar os homens fortes, capazes dizer sim à vida, à liberdade, à criação. Se outro

devir que não o reativo for possível, ele exigirá “uma outra sensibilidade: o super-homem”

(DELEUZE, 2001, p. 99)58.

Há uma série de conexões entre Nietzsche e o trabalho de Deleuze que não

exploraremos neste paper59. Queremos apenas fazer um último comentário sobre como essa

perspectiva trágica sobre liberdade e poder, que chegou a Deleuze através de sua leitura de

Nietzsche, informa sua crítica às sociedades do controle.

Para Deleuze, as sociedades disciplinares, que surgiram nos séculos XVIII e XIX e

tiveram se apogeu no início do século XX, substituindo as “sociedades de soberania”, tal

57 “Quando a força reativa separa a força ativa daquilo que ela pode, esta por sua vez torna-se reativa. As forças ativas devêm reativas. E a palavra devir deve ser tomada no sentido mais forte: o devir das forças aparece como um devir-reativo. Não existirão outros devires? Resulta daí que não sentimos, não experimentamos, não conhecemos outro devir que não o devir-reativo. Não constatamos apenas a existência de forças reativas, por todo o lado constatamos o seu triunfo (…) Existirá um outro devir? Tudo nos convida a 'pensar' isso. Mas seria necessária uma outra sensibilidade, como frequentemente Nietzsche diz, uma outra maneira de sentir” (DELEUZE, 2001, p. 98).58 "We can only speak of becoming-Übermensch of human beings, of the process of accumulating strenght and exerting mastery outside the limits of external authoritarian impositions. Nietzsche called this process of becoming-Übermensch 'life-enhancement', and he indicated by this a process of self-overcoming and increasing of will to power rather than an ideal form of subjectivity" (SCHRIFT, 1995, p. 73)59 “To speak very generally, then, we can say that as Deleuze appropriates Nietzsche, will to power is transformed into a desiring-machine: Nietzsche's biologism becomes Deleuzes's machinism; Nietzsche's 'everything is will to power' becomes Deleuze's 'everithing is desire'; Nietzsche affirmation of healthy will to power becomes Deleuze's affirmation of desiring-production” (SCHRIFT, 1995, p. 70)

41

como descritas por Foucault, entraram em crise a partir do pós-segunda guerra mundial,

especialmente a partir dos anos 60, quando entram em crise os grandes meios de

confinamento que organizavam as sociedades disciplinares e produziam indivíduos: “primeiro

a família, depois a escola ('você não está mais na sua família'), depois a caserna ('você não

está mais na escola'), depois a fábrica, de vez em quando o hospital, eventualmente a prisão,

que é o meio de confinamento por excelência” (DELEUZE, 2010a). Crise não significa

desaparecimento, mas que estas instituições não conseguem mais cumprir bem o que faziam

antes e “ministros competentes não param de anunciar reformas supostamente necessárias.

Reformar a escola, reformar a indústria, o hospital, o exército, a prisão” (Id) O que estaria

substituindo essas sociedades disciplinares seria a “sociedade de controle”. Deleuze afirma

que “Não se deve perguntar qual é o regime mais duro, ou o mais tolerável, pois é em cada

um deles que se enfrentam as liberações e as sujeições” (Id). Nas sociedades disciplinares

havia uma determinado poder com determinada produção de sujeitos e de resistências. A

fábrica reunia os trabalhadores e surgiam os sindicatos. Há que se identificar também quais

são os poderes, sujeitos e resistências nas sociedades do controle.

As disciplinas operavam “na duração de um regime fechado”, em confinamento. O

controle opera “ao ar livre”. Os confinamentos eram “moldes”. Os controles são uma

“modulação”. A diferença entre molde e modulação apareceria na diferença entre “fábrica” e

“empresa”. Deleuze parece ter em mente a passagem do capitalismo fordista para um

capitalismo mais flexível das sociedades pós-industriais60. A “empresa” seria mais flexível que

a “fábrica” e essa diferença apareceria também na questão dos salários, “Sem dúvida a fábrica

já conhecia o sistema de prêmios mas a empresa se esforça mais profundamente em impor

uma modulação para cada salário, num estado de perpétua metaestabilidade, que passa por

60 “Já não é um capitalismo dirigido para a produção, mas para o produto, isto é, para a venda ou para o mercado. Por isso ele é essencialmente dispersivo, e a fábrica cedeu lugar à empresa. A família, a escola, o exército, a fábrica não são mais espaços analógicos distintos que convergem para um proprietário, Estado ou potência privada, mas são agora figuras cifradas, deformáveis e transformáveis, de uma mesma empresa que só tem gerentes. Até a arte abandonou os espaços fechados para entrar nos circuitos abertos do banco. As conquistas de mercado se fazem por tomada de controle e não mais por formação de disciplina, por fixação de cotações mais do que por redução de custos, por transformação do produto mais do que por especialização da produção. A corrupção ganha aí uma nova potência. O serviço de vendas tornou-se o centro ou a “alma” da empresa. Informam-nos que as empresas têm uma alma, o que é efetivamente a notícia mais terrificante do mundo. O marketing é agora o instrumento de controle social, e forma a raça impudente dos nossos senhores. O controle é de curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado, ao passo que a disciplina era de longa duração, infinita e descontínua. O homem não é mais o homem confinado, mas o homem endividado” (DELEUZE, 2010a).

42

desafios, concursos e colóquios extremamente cômicos” (Id). A educação também seria

diferente na passagem das sociedades de disciplina para as de controle: “com efeito, assim

como a empresa substitui a fábrica, a formação permanente tende a substituir a escola, e o

controle contínuo substitui o exame. Este é o meio mais garantido de entregar a escola à

empresa” (Id).

Surgem novos mecanismos de controle para um novo regime de dominação:

“O que conta é que estamos no início de alguma coisa. No regime das prisões: a busca de penas “substitutivas”,

ao menos para a pequena delinqüência, e a utilização de coleiras eletrônicas que obrigam o condenado a ficar em

casa em certas horas. No regime das escolas: as formas de controle contínuo, avaliação contínua, e a ação da

formação permanente sobre a escola, o abandono correspondente de qualquer pesquisa na Universidade, a

introdução da “empresa” em todos os níveis de escolaridade. No regime dos hospitais: a nova medicina “sem

médico nem doente”, que resgata doentes potenciais e sujeitos a risco, o que de modo algum demonstra um

progresso em direção à individuação, como se diz, mas substitui o corpo individual ou numérico pela cifra de

uma matéria “dividual” a ser controlada. No regime da empresa: as novas maneiras de tratar o dinheiro, os

produtos e os homens, que já não passam pela antiga forma-fábrica. São exemplos frágeis, mas que permitiriam

compreender melhor o que se entende por crise das instituições, isto é, a implantação progressiva e dispersa de

um novo regime de dominação” (Id).

Deleuze termina o texto comentando que uma das questões mais importantes é saber

se os sindicatos e os jovens conseguirão adaptar-se ou se surgirão novas formas de resistência

a esse novo poder, que é mais extenso, dispersivo e menos visível que os poderes anteriores.

O perigo maior parece ser não o poder em si, mas um poder que não enfrenta resistência, que

reduz a liberdade de modo imperceptível para o “rebanho de bípedes”, um poder que

amesquinha a “vida”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A concepção trágica sobre liberdade e poder que chega aos franceses em grande medida por

meio de Nieztsche produziu uma perspectiva extemporânea, que está no tempo, mas contra o

tempo, na medida em que está em oposição com a “mais longa unanimidade” acerca da

relação entre liberdade e poder. Essa perspectiva permitiu aos franceses pós-estruturalistas,

especialmente Foucault e Deleuze, perceberem uma forma de poder que se torna mais extensa

e ao mesmo tempo mais invisível, e que, em vez de buscar uma medida entre liberdade e

segurança favorável à intensificação da vida, promove mais a segurança às custas da liberdade

em nome de um “mero viver” que reduz o homem a um animal de rebanho dócil, diminuindo

com isso a potência dos indivíduos.

43

Antes dos pós-estruturalistas e de Nietzsche, Tocqueville havia chegado em conclusão

semelhante, preocupado com o surgimento de um poder imenso e tutelar que em nome da

igualdade (segurança dos de baixo) sacrificaria a liberdade e a individualidade, um poder que

não operaria essencialmente por meio da repressão, mas do controle, que envolveria o

indivíduo, mais do que o dominaria abertamente. Este seria um novo tipo de despotismo, o

despotismo brando. Sem assumir uma posição contrária ao avanço da igualdade (democracia),

Tocqueville queria saber como conciliar este desenvolvimento histórico inelutável com a

liberdade e entendia que seriam necessários poderes intermediários entre os indivíduos e o

Estado, participação política, e, não menos importante, que certas virtudes típicas da

aristocracia também seriam necessárias aos cidadãos para bom funcionamento de uma

democracia, como a auto-estima, a coragem, a independência de espírito. Características que

indicam uma dureza de caráter necessária à liberdade61. Na ausência destas instituições e

virtudes não haveria resistência ao despotismo brando, um poder que em vez de “preparar os

homens para a idade viril”, os fixa “irrevogavelmente na infância”, que “provê a sua

segurança, prevê e assegura suas necessidades, facilita seus prazeres, conduz seus principais

negócios, dirige sua indústria, regula suas sucessões, divide suas heranças; que falta tira-lhes

inteiramente senão o incômodo de pensar e o tormento de viver? (…) não esmaga as

vontades, mas as debilita, curva e dirige62; raramente força a agir, mas se opõe sem cessar à

ação; nunca destrói, impede de nascer; nunca tiraniza, mas constrange, comprime, enerva,

extingue e embota, e enfim reduz cada nação a não ser mais que um rebanho de animais

tímidos e diligentes, dos quais o governo é o pastor. Sempre acreditei que essa espécie de

servidão, regulada, doce e pacífica, que acabo de retratar, poderia conjugar-se mais

facilmente do que se imagina com algumas das formas exteriores de liberdade, e que não lhe

61 As forças ativas devem dominar as reativas? Dureza e liberdade em Tocqueville: "Os homens do século XVIII pouco conheciam esta paixão do bem-estar que é a mãe da servidão, uma paixão mole e contudo tenaz e inalterável que se mistura e até se entremeia com virtudes privadas, com o amor à família, a regularidade dos hábitos, o respeito às crenças religiosas e até com a prática morna e assídua do culto estabelecido que permite a honestidade e defende o heroísmo e excede em criar homens metódicos e cidadãos medrosos." (Tocqueville, A. Antigo Regime e a Revolução. Ed. UNB, p. 128); “Para ser livre, é preciso ser capaz de conceber um empreendimento difícil e nele perseverar, ter o hábito de agir por si mesmo; para viver livre, é preciso se habituar a uma existência plena de agitação, movimento e perigo; estar constantemente atento e a cada instante dirigir um olhar inquieto ao redor de si: a liberdade tem este preço” (TOCQUEVILLE. Voyages. In: Oeuvres Complètes. Paris, Gallimard, 1961, p. 91).62 “Castigar lhe parece de algum modo injusto – certamente a ideia de 'castigo' e 'dever castigar' lhe dói, lhe dá medo. 'não basta torná-lo inofensivo? Para que castigar? Castigar é terrível!' – com essa pergunta a moral de rebanho, a moral do temor, tira a sua última consequência (…) Quem examinar a consciência do europeu de hoje haverá de extrair, de entre mil dobras e recessos morais, sempre o mesmo imperativo, o imperativo do temor do rebanho: 'queremos que algum dia não haja mais nada a temer!'. Algum dia – em toda a Europa, a via e a vontade que conduzem a ele se chamam agora 'progresso'” (NIETZSCHE, BM, 201, p. 87-89).

44

seria impossível estabelecer-se à própria sombra da soberania do povo” (TOCQUEVILLE,

2000, pp. 387-393).

Tocqueville diz que esse novo despotismo seria compatível com “formas exteriores de

liberdade”, referindo-se com isso, provavelmente, à liberdade negativa, à liberdade como

ausência de interferência. Recentemente, assistimos a uma retomada do “republicanismo” que

apresenta uma concepção de liberdade que seria alternativa à liberdade como “não-

interferência” típica do liberalismo. Philip Pettit é um dos principais expoentes dessa

concepção, que ele prefere denominar como “liberdade como anti-poder” ou “liberdade como

não-dominação”. Não pretendemos nesta breve conclusão discutir essa concepção, mas

apenas lançar uma questão para debate, a partir da concepção trágica de liberdade que

procuramos apresentar em Nietzsche e nos pós-estruturalistas franceses. Pettit parece

concordar com Tocqueville quando diz que a liberdade como não-inerferência tem um defeito

grave, pois ela seria compatível com qualquer forma de governo que não interferisse, seria,

portanto, compatível com um bom tirano ou com um “despotismo brando”, em contrapartida,

sua concepção de liberdade como não-dominação seria superior, pois requer um tipo de

governo republicano que, mais do que não interferir, seja capaz de garantir a “ausência da

possibilidade de interferência arbitrária”, inclusive nas relações de dominium privado:

“A liberdade como antipoder, por outro lado, requer um tipo específico de lei e de regime político em que aos poderosos são negadas as possibilidades de interferência arbitrária; e se esse for um ideal a ser gozado universalmente, ele requer que se dê atenção a padrões de dominação associados a contextos tais como o do casamento e do local de trabalho” (PETTIT, 2010, p. 47)

Pettit insiste que o ideal de liberdade como antipoder é mais antigo, entretanto, reconhece que

seus antigos partidários, incluindo Harrington, não se importavam muito com relações de

dominação com “serviçais e mulheres”, mas esta visão teria se tornado impossível depois que

“No fim do século XVIII, contudo, a ideia de que todos os seres humanos eram iguais foi se

tornando, rapidamente, um lugar comum, e a assunção crescente de igualdade teria feito o

ideal de liberdade como antipoder parecer ainda mais radical” (PETTIT, 2010, p. 45). Ora, a

mudança introduzida pela ideia iluminista de igualdade não é nada sutil, será que ainda

razoável dizer que trata-se da mesma liberdade como antipoder, que apenas se apresenta agora

de modo “ainda mais radical”? Ou a introdução crescente da igualdade colabora para um

incremento na dimensão da promoção de “segurança” às custas da liberdade, na medida em

que o Estado, em nome da “ausência de possibilidade de interferência arbitrária”, passa a

45

interferir em cada vez mais esferas da vida que antes eram deixadas à iniciativa dos cidadãos?

Até que ponto o Estado deve interferir para garantir a “ausência de possibilidade de

interferência arbitrária” em cada vez mais esferas da vida? É possível eliminar a

arbitrariedade do mundo sem com isso eliminar a liberdade e a agência?63 Por que chamar

“ausência de possibilidade de interferência arbitrária” de liberdade e não de segurança? Pettit

cita um crítico desta concepção de liberdade como antipoder, William Paley, e indica que

Paley entendia que está concepção situava a liberdade na segurança, mas, segundo Pettit,

Paley não teria explicado bem essa afirmação:

'Essa ideia situa a liberdade na segurança, fazendo-a consistir não meramente de uma isenção real do

constrangimento de leis inúteis e nocivas, e de atos de dominação, mas da condição de se estar livre do perigo de

que tais coisas possam ser impostas ou exercidas no futuro'. Contudo, argumentou que o ideal em questão é

extremamente exigente – e, de seu ponto de vista, de maneira excessiva: 'Tais definições de liberdade devem ser

rejeitadas; ao tornarem aquilo que é inacessível na experiência algo essencial à liberdade civil, inflamam

expectativas que jamais poderão ser satisfeitas, e perturbam o contentamento do público com queixas que

nenhuma sabedoria ou benevolência governamental poderá destituir'. Paley não deixa claro de que maneira o

ideal da liberdade como segurança, liberdade como antipoder, revela-se excessivamente exigente” (PETTIT,

2010, 46).

Se Paley não deixa claro porque esse ideal de liberdade como antipoder é na verdade um

ideal de segurança, parece-nos que a perspectiva trágica sobre liberdade e poder nos fornece

algumas pistas e uma suspeita de que não temos aí nenhuma garantia de que o crescimento

deste antipoder não possa resultar também em um “despotismo brando”, multiplicando mais e

mais mecanismos de controle para evitar a possibilidade de arbitrariedade, eliminando a com

isso a agência, a liberdade e a intensidade da vida. Não se trata de negar a importância da

segurança para as nossas vidas, mas definir sua posição, escolher qual hierarquia de valores

queremos promover e qual queremos combater, para promover este ou aquele tipo de vida,

sabendo que no contingente mundo da ação humana eventualmente temos que nos defrontar

com escolhas trágicas entre bem e bem. A extemporânea perspectiva trágica sobre liberdade e

poder, que não possui a ansiedade da resolução final, pode ao menos nos trazer o benefício da

dúvida frente a um ideal que chega ao poder e parece não ter adversários, e um poder sem

adversários é uma tirania.

63 O próprio Pettit admite que o antipoder é um poder e que “É provável que haja um teto para além do qual seja difícil expandir a redução da subjugação sem que se criem novos problemas. – por exemplo, sem que se dê à polícia poderes tais que representem uma ameaça de subjugação maior do que aquelas que ela deveria inibir” (PETTIT, 2010, p.34)

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