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1 Ano 16, n. 31, jun. 2014 i nforme econômico econômico 3 Globalização e crise: o jogo de ganha-ganha do capital financeiro Samuel Costa Filho 8 Água doce: escassez e controle Maria Elizabeth Duarte Silvestre 15 O papel das instituições e a evolução econômica José Lourenço Candido 19 Sustentabilidade: os indicadores e a problemática urbana Juliana Portela do Rego Monteiro, Maria do Socorro Lira Monteiro e Antonio Cardoso Façanha 24 Gestão Ambiental como fator de inovação em arranjos produtivos locais Romina Paradiso, Maria do Socorro Lira Monteiro e Reginaldo de Lima Pinto 31 Atores sociais: o caso da saúde pública brasileira Williams Silva de Paiva e Antônia Jesuíta de Lima 38 As diversas faces da família contemporânea: conceitos e novas configurações Fabrina da Silva Meireles e Solange Maria Teixeira 45 Reflexões econômicas: dinheiro, economia e sociedade Francisco Prancacio Araújo de Carvalho, João Batista Lopes e Janaína Martins Vasconcelos 50 O nascimento da ciência moderna Gerson Albuquerque de Araújo Neto 53 O integracionismo sul-americano: considerações críticas à luz da teoria da dependência Antonia Valtéria Melo Alvarenga e João Batista Vale Júnior 62Pesquisa e inovação: expansão da soja no Piauí Maykon Daniel Gonçalves Silva, Maria Jessyca Barros Soares, Maria Madalena de Sousa do N. Neta e Edivane Lima 69 Pequenos municípios e agronegócio: dinâmicas e impactos em Sebastião Leal (PI) Valéria Silva 79 Imprensa e sindicalismo: as representações dos empregados do comércio de Teresina através dos jornais (1943-1983) Eliane Aparecida Silva e Solimar Oliveira Lima 87 O Piauí na rota do comércio internacional: a presença dos comerciantes ingleses no Piauí oitocentista Junia Motta Antonaccio Napoleão do Rego 93 As singulares “Recordações da Campanha do Paraguay” de José Luiz Rodrigues da Silva Mário Maestri 103 Gramsci, Clausewitz, guerra e política Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos ISSN 1517-6258 Publicação do Curso de Ciências Econômicas/UFPI Ano 16, n. 31 jun. 2014 i nforme SUMÁRIO

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1 Ano 16, n. 31, jun. 2014informe econômico

econômico3 Globalização e crise: o jogo de ganha-ganha do capital financeiroSamuel Costa Filho

8 Água doce: escassez e controleMaria Elizabeth Duarte Silvestre

15 O papel das instituições e a evolução econômicaJosé Lourenço Candido

19 Sustentabilidade: os indicadores e a problemática urbanaJuliana Portela do Rego Monteiro, Maria do Socorro Lira Monteiro e Antonio Cardoso Façanha

24 Gestão Ambiental como fator de inovação em arranjos produtivos locaisRomina Paradiso, Maria do Socorro Lira Monteiro e Reginaldo de Lima Pinto

31 Atores sociais: o caso da saúde pública brasileiraWilliams Silva de Paiva e Antônia Jesuíta de Lima

38 As diversas faces da família contemporânea: conceitos e novas configuraçõesFabrina da Silva Meireles e Solange Maria Teixeira

45 Reflexões econômicas: dinheiro, economia e sociedadeFrancisco Prancacio Araújo de Carvalho, João Batista Lopes e Janaína Martins Vasconcelos

50 O nascimento da ciência modernaGerson Albuquerque de Araújo Neto

53 O integracionismo sul-americano: considerações críticas à luz da teoria dadependênciaAntonia Valtéria Melo Alvarenga e João Batista Vale Júnior

62Pesquisa e inovação: expansão da soja no PiauíMaykon Daniel Gonçalves Silva, Maria Jessyca Barros Soares, Maria Madalena de Sousa do N. Neta eEdivane Lima

69Pequenos municípios e agronegócio: dinâmicas e impactos em Sebastião Leal (PI)Valéria Silva

79 Imprensa e sindicalismo: as representações dos empregados do comércio deTeresina através dos jornais (1943-1983)Eliane Aparecida Silva e Solimar Oliveira Lima

87 O Piauí na rota do comércio internacional: a presença dos comerciantes ingleses noPiauí oitocentistaJunia Motta Antonaccio Napoleão do Rego

93 As singulares “Recordações da Campanha do Paraguay” de José Luiz Rodrigues daSilvaMário Maestri

103 Gramsci, Clausewitz, guerra e políticaRodrigo Duarte Fernandes dos Passos

ISSN 1517-6258

Publicação do Curso de Ciências Econômicas/UFPI Ano 16, n. 31 jun. 2014

informeSUMÁRIO

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2informe econômicoAno 16, n. 31, jun. 2014

EDITORIALEste número do Informe Econômico é especial. Trata-se de nosso primeiro ensaio para o formato

Revista que será aprimorado, sem pressa. Estamos conseguindo um feito que para nós é muitoimportante: não estamos mais adulando pessoas para escrever para nossa publicação. Ascolaborações chegam espontaneamente, com regularidade e qualidade. Ultrapassamos os 15 anoscertos de que, neste tempo, temos estimulado a vida acadêmica na Universidade Federal do Piauí(UFPI) e contribuído efetivamente para a maturidade intelectual na Instituição. Este processo conta,desde o início, com valiosas colaborações de pesquisadores de diferentes campos do conhecimentode outras instituições nacionais e estrangeiras. A interdisciplinaridade é certamente nossa principalmarca. O Informe nasceu Econômico, mas cresceu dialogando com as outras ciências porque omundo é um só.

O Informe n. 31 soma-se a um dos mais fecundos esforços realizados na cultura piauiense: oSalão do Livro do Piauí (Salipi). Em sua 12ª edição, este ano o Salipi acontece nas dependências daUFPI e resolvemos homenagear a iniciativa na nossa capa. Também por este motivo, este número éespecial. Ao reconhecer a importância da realização do Salipi na UFPI, reafirmamos o nossocompromisso com a sociedade; a nosso ver, do modo que melhor sabemos fazer: colocando arealidade no salão à vista de quem quiser enxergar. Os artigos deste número ajudam a fortalecer asleituras dos problemas contemporâneos. Apostamos no conhecimento, crítico e ético, para enfrentaro conservadorismo. E essa luta não se faz nem se ganha sozinho. O Salipi revelou-se umaestratégica oportunidade para ampliarmos a divulgação do Informe e a formação de ideias.

Enquanto formos editores do Informe Econômico, ele permanecerá sem segredos. O quequeremos e como fazemos vem sendo dito desde o Ano 1. Que haja copas e olimpíadas, mastambém cultura, hospitais, escolas, segurança, empregos... em condições dignas. Que o país sejacuidado para além dos espaços dos estádios; que o racismo seja banido dentro e fora dascompetições esportivas; que o povo brasileiro seja cuidado e valorizado para além das exibiçõesinternacionais. Trabalhamos com ciência para compromissos com a nação que desejamos a partirda que vivemos. Ainda que essa ciência não seja a predominante na academia, ela existe, porquenosso trabalho se mantém firme, aqui e onde existam nossos colaboradores. O duro trabalho e asmãos calejadas retratadas em nossa capa são para reafirmar o dito. Informe isso a quem interessar.

ExpedienteINFORME ECONÔMICOAno 16 - n. 31 - jun. 2014Reitor UFPI: Prof. Dr. José Arimatéia Dantas LopesVice-Reitora: Prof. Dra. Nadir do Nascimento NogueiraDiretor CCHL: Prof. Dr. Nelson Juliano Cardoso MatosChefe DECON: Prof. Esp. Luiz Carlos Rodrigues Cruz PuscasCoord.CursoEconomia: Prof. Dra. Edivane de Sousa LimaRevisão: Zilneide O. Ferreira e João Paulo Santos MourãoProjeto gráfico: Profa. Ms. Neulza Bangoim(CEUT)Jornalista responsável: Prof. Dr. Laerte Magalhães(UFPI)Endereço para correspondência: Campus IningaTeresina-PI - CEP: 64.049-550Fone: (86)3215-5788/5789/5790-Fax: (86)3215-5697Tiragem: 2.000 exemplaresImpressão: Gráfica-UFPIParceria: Conselho Regional de Economia 22ª Região-PISite DECON: http://www.ufpi.br/economia.

Editor-chefe: Prof. Dr. Solimar Oliveira LimaEditor-assistente: Economista Esp. Enoisa VerasConselho Editorial: Prof. Dr. Aécio Alves de Oliveira(UFC)Prof. Dr. Alvaro Sánchez Bravo (Facultad de Derecho.Universidad de Sevilla. España)Prof. Dr. Alvaro Bianchi(Unicamp)Profa. Dra. Anna Maria D’Ottavi(Università degli Studi RomaTER-Itália)Prof. Dr. André Turmel(Université Laval-Canadá)Prof. Dr. Antônio Carlos de Andrade (UFPI)Prof. Dr. José Machado Pais (Universidade de Lisboa-Portugal)Prof. Dr. Leandro de Oliveira Galastri(Unicamp)Prof. Esp. Luis Carlos Rodrigues Cruz Puscas(UFPI)Prof. Dr. Manoel Domingos Neto(UFC)Profª Drª Maria do Socorro Lira Monteiro(UFPI)Profa. Dra. Maria Elizabeth Duarte Silvestre (UFPI)Prof. Dr. Marcos Del Roio(Unesp)Prof. Dr. Marcos Cordeiro Pires(Unesp)Prof. Dr. Mário José Maestri Filho(UPF)Prof. Dr. Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos(Unesp)Prof. doutorando Samuel Costa Filho(UFPI)Prof. Dr. Sérgio Soares Braga (UFPR)Prof. Dr. Solimar Oliveira Lima(UFPI)Prof. Dr. Vitor de Athayde Couto(UFBA)Prof. Dr. Wilson Cano(Unicamp)Econ. Ms. Zilneide O. Ferreira

Econ. Enoisa VerasEditora-Assistente

Prof. Dr. Solimar Oliveira LimaEditor-Chefe

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3 Ano 16, n. 31, jun. 2014informe econômico

GLOBALIZAÇÃO E CRISE: o jogo deganha-ganha do capital financeiroSamuel Costa Filho*

Resumo: este artigo trata da questão do domínio do capital financeiro e de seus elevados ganhos, mesmoapós a crise do capital iniciada em 2007-2008. Inicialmente, apresenta o processo de constituição do modelode dominância rentista em que o capital financeiro obteve elevada rentabilidade; em seguida, mostra quemesmo na crise esse capital foi beneficiado e lucrou bastante e ninguém foi penalizado; a seguir, apresentaos beneficiários do sistema bancário ganhando com a crise e impondo elevados custos sociais; finalizamostrando que nada mudou no jogo de ganha-ganha do capital financeiro. Urge um novo modelo.Palavras-chave: Crise global. Capital financeiro. Ataque ultraliberal.

Abstract: This article deals with the question of dominance of finance capital and its high gains, even after thecrisis of capital that began in 2007-2008. Initially, presents the process of constitution of the rentier model ofdominance in the financial capital that achieved high profitability; in the sequence, shows that even in thecrisis, this capital has benefited and profited greatly and no one was penalized; in the following, presentsbeneficiaries of the banking system and gaining with the crisis by imposing high social costs; and endsshowing that nothing has changed in the game of wins-wins of the financial capital. Urge a new model.Keywords: Global crisis. Financial capital. Ultraliberal attack.

1 Introdução

Nas últimas três décadas do século XX, osistema financeiro internacional criou um consensoque domina o mundo até hoje. A dinâmica docapital financeiro possibilitou, e possibilita naatualidade, uma rentabilidade extraordinária parao capital financeiro, que foi conseguida tanto noperíodo de construção e desenvolvimento domodelo de dominação financeiro-rentista comotambém durante a recente megacrise, quando essesistema obteve todo o apoio do Estado com apolítica de resgate dos bancos “grandes demaispara quebrar”, a partir de 2007-2008; e se mantématé hoje, pois o capital financeiro conquistou poderpara continuar impondo e comandando as regrasdo jogo econômico e político, mesmo diante dagrave e prolongada crise do capitalismo global quejá dura mais de seis anos. O jogo do ganha-ganhado capital financeiro mantém o predomínio do setorfinanceiro em nível global; e a inérciapolítico-intelectual e a adesão da esquerdaeuropeia ao ultraliberalismo colaboraram para amanutenção da hegemonia do sistema financeirona lógica de curto prazo, e continuam impedindomodificações e não se articulando com aconstrução de um novo modelo.

Nessa linha, o artigo pretende mostrar que osistema financeiro está prolongando o jogo doganha-ganha iniciado com a formação e

desenvolvimento dessa fase do capital financeiro.Para tanto, a seção seguinte apresenta a formaçãoda dinâmica rentista; a seguir, revela que, mesmodiante da crise, esse sistema continuou ganhando,nenhum “figurão” foi penalizado, nem o sistemasofreu alterações e regulação ou punição.Em continuação, apresenta como os bancos, aotransferir as dívidas para os Estados, jogaramnessas entidades a culpa pela catástrofe de recriaro capitalismo ultraliberal. Finalizando, o trabalhoconclui que se vive tempos de dominânciaconservadora e de regressão social, com osistema financeiro prolongando a sua política deganhos exorbitantes.

2 O primeiro tempo do jogo: a gestação e odesenvolvimento do processo definanceirização da economia

Os economistas ortodoxos apresentam osistema financeiro como um mercado por demaisimportante, devido a ser intermediário e gestor dodinheiro. Neste mercado, as diversas instituiçõese, hoje, o predomínio dos grandes conglomeradosfinanceiros mundiais se encarregam da intermedia-ção do e gerenciamento do dinheiro da economiano curto prazo (mercado monetário) e nos merca-dos de crédito (financiamento do consumo e capitalde giro), de câmbio (conversão de valores emmoeda estrangeira e moeda nacional) e de capitais

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(financiamento dos investimentos, através deações, debêntures ou comercial papers)(CAVALCANTE; MISMI; RUDGE, 2005).

O sistema financeiro passou a sofrer umdeterminado tipo de regulação pelo Estado depoisda crise do capitalismo em 1929 e que se iniciouno coração do sistema, ou seja, nos EstadosUnidos da América (EUA), espalhando-se para asdiversas partes do mundo capitalista. O conjuntode instituições e os instrumentos financeiros quepossibilitam a transferência de recursos dosofertantes finais para as pessoas e empresas quenecessitam de recurso e crédito nos diversosmercados foram segmentados e regulados.O Estado criou as condições para que o sistemafinanceiro voltasse a oferecer títulos e valoresmobiliários e, inclusive, liquidez via mercadossecundários. Esse processo de segmentaçãodividiu as instituições em áreas especializadassegundo a captação e a aplicação dessesrecursos.

Esse sistema funcionou bem até os anos 1970,possibilitando e estimulando o capitalismo afuncionar dentro das regras do keynesianismo e daintervenção do Estado em defesa do capital.Todavia, na crise dos anos 1970, teve início umprocesso de transformação do sistema financeirointernacional que priorizou as regras deliberalização e desregulamentação do sistemafinanceiro. A política de mercado livre respaldou onovo consenso social que se gestou sob opredomínio do setor bancário em favor daespeculação em torno da variação dos ativosfinanceiros. Iniciou-se o processo deconglomeração bancaria no âmbito doméstico daeconomia, que foi seguido pela transformação dosconglomerados em bancos múltiplos e universaisque forçaram e viabilizaram o esgotamento dopadrão de especialização implementado após acrise dos anos 1930 (BELLUZZO, 2004).

No processo de eliminação do padrão anterior,os bancos contaram com a ajuda dos profissionaisde mercado e dos economistas ortodoxos, quetrataram da superficialidade econômica, criaram epassaram a difundir a ideia de crise comodecorrente das elevadas dívidas públicas, dafalência do Estado do bem-estar europeu e dasdemais políticas e atitudes populistas dos Estadosdesenvolvimentistas, dos Estadosintervencionistas, além de uma históricaineficiência dos Estados e de oposição entreEstado e mercados, considerando-os entidades

concorrentes e opostas. As arrogâncias desseseconomistas matemáticos lhes possibilitaram easseguraram a apresentação de uma teoria queexpõe, como critério de verdade e com coerêncialógica, uma visão de funcionamento da economiaque não se encontra em conformidade com arealidade de funcionamento do capital e da atualdinâmica rentista do capitalismo. Entretanto, oprestígio e o poder desses economistasaumentaram enormemente, dado que o saber quemonopolizavam era o que interessava serdisseminado nas universidades, por intermédio dosprincipais meios de comunicação e para formaçãodo consenso dominado pelo mercado financeiropara convencer a sociedade.

Os economistas ortodoxos construíram umateoria demonstrando que os mercados financeiroseram autorregulados e que não havia necessidadede gerir o capitalismo em nível nacional e aeconomia mundial, respaldando os desejos dedesregulamentação dos financistas e dosmercados financeiros, possibilitando a gestão deum novo quadro monetário-financeiro definanceirização da economia capitalista. Ao daruma aparência cientifica assentada na roupagemmatemática, atualizavam as justificativas dodiscurso do laissez faire, e esses economistasapareceriam como os novos profetas do capital(BRESSER-PEREIRA, 2012).

Entre os anos de 1970 e 1980, o sistemafinanceiro bancário primeiro implantou organismosde análise econômica que passaram a difundirnotícias sobre o mercado, tendo o respaldo dosanalistas econômicos da mídia conservadora, queelaboravam comentários e ideias de defesa dosinteresses do sistema financeiro. Ao mesmotempo, este sistema financeiro passou a financiaros profissionais da ortodoxia do pensamentoeconômico nas universidades e em think tanksconservadores e liberais para desenvolveremargumentos e teorias, travestidas de ciência, emdefesa da desregulamentação, da liberalização, daconcentração dos grandes conglomeradosfinanceiros, da expansão de diversos tipos deativos que foram vendidos na praça (os chamadosderivativos), como se se tratassem de artigosaltamente rentáveis e seguros. Respaldando todaessa estratégia, o sistema remunerava agências derating, como Standard & Poor’s, Moody’s e FitchRatings, que foram endeusadas como organismosneutros e tecnicamente capazes de realizar asanálises e os estudos de viabilidade de riscos dos

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mais diversos ativos, das diferentes empresas e depaíses que estivessem dispostos a seguir o deverde casa do Consenso de Washington, e assimindicar os que, segundo a lógica deste cassinoglobal, eram os mais adequados para aplicação,por possibilitarem, ao mesmo tempo, rentabilidadee segurança, como exigiam os aplicadores(BELLUZZO, 2004).

O sistema financeiro, respaldado pelaspesquisas desse grupo, conseguiu disseminar umdiscurso que louva a dominância e o triunfo docapital financeiro, com ajuda da mídiaconservadora, usando conceitos de economiacapitalista apregoados pelos economistasmatemáticos, engenheiros e outros profissionaisque são intelectuais orgânicos e apologistas docapital através de diferentes escolas ortodoxas eliberais de Economia - todos respaldando a defesada eficiência e da competitividade decorrente daelevada ineficiência dos mercados financeiro. Noauge do neoliberalismo, os anos 1980 e 1990 e atémeados de 2000, as agências de risco passaram afigurar como uma espécie de mensageiros divinos,estando sempre acima da constituição dos países,das leis, da ordem e das questões da democracia.O neoliberalismo, como ideologia, uniu os rentistase o pessoal da tecnoburocracia, constituída porjovens gananciosos que foram estimulados a aderiraos encantos da área financeira - uma tropa dechoque formada por Phd’s e Mba’s formados nosEUA, que passou a criar diversos mecanismos deinovações financeiras, permitindo ao setor rentistadominar a dinâmica do capitalismo, obtendorendimentos elevados.

O capital rentista e a economia capitalista, soba lógica de um modelo parasitário rentista e fictício,possibilitaram ao sistema financeiro ganhoselevados por mais de três décadas, quandoeliminaram todo o sistema de regulação sobre osetor financeiro, predominando o consenso do“There is no alternative”, a ideologia do capitalrentista e do ultraliberalismo, com arrogância ecom discursos de fim da história, vantagens de umnovo mundo globalizado e vitória do capitalismo.Ocorreu que a história se encarregou dedesmascarar toda a farsa. Esse capital fictíciolevou o capitalismo a uma crise avassaladorajustamente nos países desenvolvidos, os quaisdifundiam as ideias para os ingênuos e incautosque vivem na periferia. Os EUA, principaisideólogos do capital rentista e do ultraliberalismo,vinham impondo, por meio do Banco Mundial,

Organização Mundial de Comércio e FundoMonetário Internacional (FMI), uma agenda para ospaíses que se prontificassem a receberempréstimos e ajuda do capital financeirointernacional. Uma receita que Chang (2004)classificou de “chutando a escada”, por impedir odesenvolvimento econômico dos países queadotassem essas medidas.

O sistema financeiro internacional ganhou muitodinheiro ao vender ativos tóxicos, lixo, capitalfictício; papel que nada valia. Adveio a crise, quenão apresenta perspectiva de acabar, em meio àqual os antigos liberais e os financistas recorreramà procura da intervenção salvadora do Estado eimploraram e receberam o socorro do Estadoburguês.

3 O intervalo do jogo: a crise e a política desocialização dos prejuízos

A solução implementada na crise do mundo docapital - como sempre, realizada pelo capital - foi aaplicação de medidas de políticas econômicas deausteridade que objetivam socializar os prejuízosem favor dos saques dos piratas do mercadofinanceiro, transferindo para a população o ônus dafalência, e sanar o sistema financeiro internacional,que não desmontou a jogatina financeira e fictícia.O Estado não objetivou outra solução; transferiu aconta para a sociedade. Os financistas nãosomente solicitaram e conseguiram o apoio doEstado, mas, o que é mais incrível, capitanearamtodo o processo objetivando salvar o capitalfinanceiro e garantir sua sobrevivência.

Em meio à grave crise, os Estados jáimplementaram programas de resgate do sistemafinanceiro com gastos trilhonários, promovendosempre, por outro lado, uma política recessiva e deredução dos gastos públicos, dos direitos sociais,das políticas publicas, dos direitos dos funcionáriospúblicos e até dos aposentados, que servia aosbem de vida, aos saqueadores do mercadofinanceiro. Na Grécia e na Itália, chegou-se aocúmulo de atacar a democracia, com asubstituição de dois primeiros-ministros eleitos porserviçais da banca (Goldman Sachs), quepassaram a administrar a crise em favor da banca(Mario Draghi - Goldman Sachs, na Italia - e LucasPapademos - vice-presidente do Banco CentralEuropeu, na Grecia). As justificativas dos ideólogosdo mercado financeiro e dos economistasortodoxos passaram a isentar a economia demercado, o capital financeiro e as estripulias dos

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piratas do mercado financeiro global pela desordemde crise global, e disseminaram uma compreensãoinsuficiente e errônea culpando a dívida pública doEstado burguês.

Os bancos foram salvos, mas não aseconomias nacionais. A política econômica daselites europeias e do Partido Republicano dos EUAtem usado a crise para manter a continuidade doprocesso que redistribuiu a riqueza em favor dosmais ricos, agora à custa do corte nos gastossociais. A política conservadora em curso visasimplesmente cortar gastos públicos, e o processode degradação social no mundo desenvolvido jáestá avançado (ASSIS, 2013). A teoria econômicaque respaldava a realidade mundo, do mercado,criou uma fraude que teima em não querermudança. Para manter tal situação, o Estadosalvou e absorveu grande parte da dívida dosistema financeiro, que não foi penalizado e muitomenos deixou que surgisse um novo sistema deregulação bancária, ganhando novamente muitodinheiro. Desse modo, agora é esse sistemafinanceiro que é salvo pelo Estado; Estado que seendividou para cumprir as ordens do capital e dosistema bancário e é que está sendo colocado naberlinda ao ser acusado de único culpado pelacrise do capitalismo. O setor público vê-se,novamente, diante da imposição de políticas deausteridade, cobrando e recebendo elevado volumede recursos dos contribuintes, repassadosfacilmente para o sistema financeiro. Para atenderao capital, os Estados dos países desenvolvidos,na linha da política de privatização dos lucros esocialização dos prejuízos, típica do capital, estãoprocurando destruir os avanços sociais esignificativos da cidadania e os direitos dostrabalhadores, o Estado do bem-estar social,Estado providência ou Estado social (SANTOS,2013).

4 O segundo tempo do jogo: a manutenção dodomínio e da defesa do capital financeiroaprofundando as desigualdades próprias docapitalismo

Todas as justificativas dos ideólogos domercado financeiro imputaram a crise docapitalismo, novamente, à crise do Estado e não àdinâmica do capital fictício. Nesse contexto,passado o período inicial da crise e o mercadosentindo-se mais seguro, o capital financeirointernacional continuou tentando puxar a mesmacorda e mantendo o modelo que causou a queda

do Lehman Brothers (JUSTUS, 2013). Nada mudouno modelo de ganha-ganha do capital financeiro;apenas a conta foi transferida mais direta edescaradamente para a sociedade. Resumindo, ahistória do capital novamente confirma e demonstraque há uma cooperação do Estado democrático ouditatorial em favor do capital e do livre-mercado. OEstado é um forte aliado dos mercados; suaatuação prima e segue a regra de viabilizar asatividades do sistema capitalista e do mercado.Conflitos entre eles, quando existem, são exceção.O Estado do bem-estar social foi um excelenteinvestimento para o capital em uma épocaespecífica da história; momento em que o Estadoserviu para elevar a rentabilidade do capital aocuidar de reduzir o custo da força de trabalho parao bem do capital e manter um pacto social quepreservava os interesses do capital.

Hoje, com o domínio e predominância do capitalfinanceiro, o sistema objetiva estimular o consumovia crédito, estimulando os consumidores a viveremendividados, os quais permanecem viciados nocrédito, arcando com o custo de financiamentoselevados, pagando juros. O Estado e o fundopúblico são excelentes para que esse capitalencontre rentabilidade, segurança e liquidez(BAUMAN, 2010). Esse processo segundo GeorgeMonbiot, articulista do The Guardian, mantém alógica do modelo do ganha-ganha do capitalfinanceiro e a crise demonstra que o pensamentoneoliberal é uma fraude de alto a baixo. Asdemandas dos ultrarricos foram vestidas comadornos de uma teoria econômica sofisticada.(MONBIOT apud BELLUZZO 2013, p. 23).

As consequências do jogo estão a aparecer: fimda classe média, aumento da distância entre ricose pobres; o desemprego na Espanha já atinge 26%da população ativa; e seu efeito sobre a populaçãomais jovem (de 16 a 24 anos) apresenta uma taxade desemprego que em 2012 era 55%. Dessemodo, ocorre um aumento da desigualdade derenda que se torna brutal tanto na Europa comonos EUA. Nestes, em 1978, um norte-americanotípico ganhava por volta de 48 mil dólares ao ano,enquanto um profissional de elite recebia cerca de393 mil dólares anuais. Em 2010, a remuneraçãodo trabalhador médio recuou para 33 mil dólares eeste cidadão não percebeu a queda do padrão donível de vida devido ao fácil e farto acesso aosistema de crédito que encobria essa enormedeterioração de nível de vida. Por outro lado, osprofissionais da elite elevaram seu poder e

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remuneração (para quase o triplo), recebendo maisou menos 1,1 milhão de dólares. E, o que é pior, adesigualdade chegou a tal nível que apenas os 400megamilionários dos EUA possuem mais riquezaque 150 milhões de norte-americanos quecompõem a base da pirâmide (BARKER;CASTILHO, 2013). O 1% mais rico dosamericanos, na última geração, é beneficiado pelasleis fiscais, utilizando parte dos lucros parafinanciar políticos aliados e comprar os meios decomunicação para controlar a percepção dosamericanos.

A Europa enfrenta um processo de regressãosocial, insegurança, desemprego, recessão,deterioração dos serviços sociais e das condiçõesde vida e miséria, avançando na destruição doEstado providência ou do bem-estar social emnome da preservação do euro. Os governos dosEUA e da Europa pouco ou nada aprenderam coma crise financeira, pois, no início da crise, os cincograndes bancos detinham 43% dos ativos daeconomia norte-americana, e o governo nada fezpara impedir que, em 2012, chegasse a 55%, oque torna o perigo de nova crise bastante provável(RICUPERO, 2013). Não é surpresa a continuaçãodo jogo de ganha-ganha do capital financeiro. Afalta de alternativas, a adesão da esquerdaeuropeia ao discurso neoliberal, aceitando aregressão social, insegurança e desemprego,impostos pela Troika - FMI, Banco Central Europeue Comissão Europeia -, construíram apenas umarranjo paliativo, evitando um debate a respeito daspenas e impedindo o surgimento de uma propostaalternativa que leve e contemple uma mudança deregras desse jogo de absoluto controle das elitesfinanceiras.

5 Conclusão

Nada foi feito para penalizar os bancos nempara eliminar os incentivos que levaram aoscomportamentos de assumir riscos excessivos eescândalos. Nenhum banqueiro importante foipreso e julgado. Os Estados e a política foramdominados pelo sistema financeiro internacional. Aprimazia continua com a dominância docapitalismo rentista: desigualdade crescente,desemprego maciço, desperdício assombroso, adeterioração social é crescente e a desigualdadede riqueza e renda alarmante. O jogo não terminou;os financistas continuam preocupados apenas comganhar mais dinheiro para eles e para os rentistas.Continua o jogo de ganha-ganha do capital

financeiro e não importam as consequências.Urge o desenvolvimento de um novo paradigma

que, primeiro, esteja respaldado no ser humano,que resgate a questão da sustentabilidadeambiental, que evite o desperdício dos recursosnaturais e de comida, que impeça a política e oprocesso de obsolescência planejada dos bensduráveis consumidos, e que ocorra uma mais justae melhor distribuição da riqueza e dos frutos doprogresso em benefício da humanidade e não deuma pequena minoria

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* Professor do Departamento de CiênciasEconômicas da Universidade Federal do Piauí edoutorando em Políticas Públicas pela UniversidadeFederal do Maranhão.

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ÁGUA DOCE: escassez e controleMaria Elisabeth Duarte Silvestre*

Resumo: Este artigo trata da chamada crise hídrica. Aborda especificamente o discurso hegemônico daescassez, cuja assimilação é o primeiro passo para a instituição de novas formas de controle desseelemento da natureza insubstituível e essencial à vida e à produção. Procura-se mostrar que o acesso àágua, tal como aos demais elementos da natureza, é parte das relações sociais de poder. Portanto,diferentemente do que faz crer o discurso hegemônico, trata-se de uma crise social e, como tal, não atinge atodos igualmente.Palavras-chave: água doce, escassez, controle, agências multilaterais.

Abstract: This paper addresses the so-called fresh water crisis. It specifically addresses the hegemonicdiscourse of scarcity. That is because its assimilation is the first step to the assembly of new ways ofcontrolling this irreplaceable, essential to life and production element of nature. I intend to show that theaccess to fresh water, like the access to the others elements of nature, is a part of the social relations ofpower. Therefore, unlike the hegemonic discourse makes believe, it is a matter of a social crisis, and as suchit does not affect everyone equally.Keywords: fresh water, scarcity, control; multilateral agencies.

1 Introdução

Dentre as múltiplas facetas da crise ambiental,questão ambiental ou problemática ambiental,expressões aqui utilizadas como sinônimos,malgrado as especificidades que veiculam, aescassez da água doce1 apresenta-se como umadas mais dramáticas. Na academia, nas váriasinstâncias de poder do Estado, na mídia, emcírculos empresariais e em variadas organizaçõesda sociedade civil, o tema ganhou especialrelevância a partir da década de 1990. Afinal,a água é parte constitutiva dos seres vivos, meio devida e de reprodução de espécies animais evegetais, essencial ao consumo e à produção,insubstituível e quantitativamente limitada.Segundo o discurso hegemônico, essa crise tendea se agravar. Para aplacar a sede e garantir aenergia e o alimento de uma população empermanente crescimento, soluções clássicas,como barragens, aquedutos e interligação debacias hidrográficas, embora necessárias, já nãobastariam. Para os formuladores da geoestratégiamundial da água, é preciso agir sobre a demanda,instituindo novas formas de apropriação, uso egerenciamento desse recurso.

Na difusão desse discurso estão entidades dafamília da Organização das Nações Unidas (ONU),destacadamente o Banco Internacional para aReconstrução e o Desenvolvimento (BIRD), maisconhecido como Banco Mundial2, poderosasOrganizações Não Governamentais (ONGs),associações profissionais estreitamente vinculadas

aos recursos hídricos e multinacionais da água.Seguindo os rumos do ambientalismoinstitucionalizado após a Rio-92, as respostasà crise tendem a ampliar e aprofundar as relaçõesmercantis, reforçando, em última instância,mecanismos que se encontram nas raízes daprópria crise.

Dada a centralidade da água na vida, aviabilização destas propostas demanda um intensotrabalho político e ideológico. Desse trabalho fazparte, antes de tudo, demonstrar a existência dacrise e os perigos que ela representa.Daí o propósito deste artigo: procurar entender odiscurso da escassez e mostrar que a chamadacrise hídrica não atinge a todos da mesma maneiraou com a mesma intensidade.

2 Escassez: o discurso da tragédia

Na ausência da água não há vida. Portanto, atendência à escassez pode, efetivamente, ser oanúncio de uma tragédia justificando o destaqueque a partir os anos 1990 passou a receber.Curioso é o tardio reconhecimento dessa realidade.Afinal, há longo tempo se conhece seu papel navida e na saúde e no alvorecer do século XXI, cercade um bilhão de pessoas não tinham acesso àágua potável, 2,6 bilhões viviam em áreas semesgotamento sanitário e doenças vinculadas aestas condições matavam anualmente 1,8 milhõesde crianças com idade inferior a cinco anos (PNUD,2006, p. v).

Números parecem conferir confiabilidade às

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análises, e os estudos que têm a questão da águadoce por objeto costumam apresentar umaprofusão de estatísticas. Mais ou menospessimistas, sistematicamente os dados colhidose as simulações realizadas apontam parao agravamento dos fatores que caracterizam acrise: crescente poluição, contaminação eassoreamento dos corpos hídricos; perda debiodiversidade; ampliação das diferenças entreoferta e procura de água nos vários continentes edas distâncias entre as fontes de abastecimento eo consumo, elevação dos custos de tratamento edistribuição da água etc.

O terceiro relatório da série Global EnvironmentOutlook (GEO-3) inicia o capítulo sobre água doceregistrando sua pequena proporção – 2,5% – nototal da água da Terra. Em seguida, anuncia que asprincipais fontes para uso humano correspondem asomente 200.000 km³, ou seja, menos de 1% dototal da água doce existente no Planeta. Antes deprosseguir fornecendo dados que sinalizam para oagravamento da crise nas próximas décadas, odocumento assinala que grande parte da águadisponível está longe das populações humanas(PNUMA, 2002, p. 150).

Importa lembrar que estas informações sereferem aos recursos em estoque e que a água,independentemente de seu estado físico ouquímico, circula e integra o funcionamento doPlaneta. Por meio movimento, simplificadamentedenominado ciclo hidrológico, que segundoShiklomanov (1999) pode levar algumas horas (nosseres vivos) ou milhares de anos (nas geleiras e emreservatórios subterrâneos profundos), a água éreciclada qualitativa e quantitativamente. Daí seucaráter de recurso renovável.

O citado hidrólogo, coordenador do inventáriomundial da água realizado para a ONU, estima quedo total da água doce em circulação anualmente,44.800 Km³ correspondem à diferença entreprecipitação e evaporação nos continentes. Essaágua é absorvida pelo solo, alimenta plantas eanimais, penetra no subsolo, forma reservatóriossuperficiais e subterrâneos. Em sua opinião essaé a água passível de uso anual sem comprometeras reservas – ou seja, renovável. Embora haja águana umidade do solo, nas plantas e no corpo dosanimais, os cálculos de disponibilidade hídricapotencial, em regra, levam em conta apenas odeflúvio/descarga dos rios e nas águassubterrâneas que participam do ciclo hidrológicoanual. Essa prática confere maior dramaticidade

ao cenário atual e futuro, uma vez que excluigrandes reservas subterrâneas situadas em regiõesde clima seco, algumas delas densamentepovoadas e berço de grandes civilizações. Alémdisso, desconhece que o comércio, seja ele deaço, grãos, frutas ou computadores é tambémcomércio de água.

Os levantamentos, conceitos e percepções deShiklomanov são reproduzidos, reelaborados eamplamente difundidos como verdades absolutaspelos formuladores da geoestratégia mundial daágua, quais sejam: Organismos diversos vinculadosà ONU; agências de financiamento e assistênciatécnica; organizações profissionais como aInternational Water Resources Association (IWRA),que tem entre seus filiados no Brasil a poderosaAssociação Brasileira de Recursos Hídricos(ABRH); o Conselho Mundial da Água (CMA);ONGs de alcance mundial e multinacionais dosetor hídrico.

Com trabalhos extremamente bem feitosdisponíveis na rede mundial de computadores – queem regra omitem as oportunas ressalvas feitas porShiklomanov acerca da precariedade dasinformações na área de recursos hídricos, inclusiveaquelas nas quais se baseou –, a influência de taisagentes não se restringe a políticos e técnicos degovernos. A grande imprensa, o senso comum e aacademia bebem nas mesmas fontes e tendem areproduzir os discursos do poder. Mais que isso, naqualidade de “[...] formas discursivas e ideológicasque correspondem a uma relação entre a ordem dosaber, da verdade e do poder” tais discursos comfrequência nascem nas grandes universidades dospaíses desenvolvidos (DÁVALOS, 2008, s. p.).

É comum ouvir-se que a água é mal distribuída.De fato, as chuvas não caem uniformemente todosos dias do ano e tampouco a cada ano. As águassubterrâneas estão um pouco por toda parte, masem quantidades, profundidades e qualidadesdistintas. Ocorre que a água precede a existênciahumana, e como elemento da natureza suaapropriação e uso, conforme Porto-Gonçalves(2006), concretiza-se por meio da cultura e dapolítica, ou seja, variam no tempo e no espaço.Exemplos de tais diferenças, a resistência daspopulações originárias e dos ribeirinhos àconstrução de Belo Monte, dos indígenasbolivianos contra a estrada que deverá cortar oTerritório Indígena do Parque Nacional IsiboroSécure (TIPINIS)3 e a luta de indianos afetados pelorepresamento dos sagrados Ganges e Narmada

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não se resumem a simples conflitos entre usuários,como faz crer o reducionista discurso hegemônico.

Alusões a uma suposta distribuição inadequadada água, como registra Caubet (2006),naturalizam soluções como a interligação debacias, o comércio de água etc. Ocorre que, sendoa natureza a base material da produção, o acessoa seus recursos revelam, reproduzem e reforçamrelações sociais e de poder. Nessa medida,naturalizar tais deslocamentos é naturalizar asrelações que subjazem às formas hegemônicas decontrole da natureza e, consequentemente, derepartição da riqueza. No capitalismo, significa aapropriação privada da natureza e suatransformação em mercadoria. Na linguagem daeconomia hegemônica, trata-se, simplesmente, damobilidade dos fatores de produção, prática quepermitiria elevar a racionalidade no uso dosrecursos escassos, repercutindo positivamentesobre o bem estar individual e coletivo.

Seguindo esses princípios, autoridades da áreahídrica do Amazonas defendiam, no ano 2000,a adaptação das normas locais para viabilizar aexportação da água, que já então denominavamcommodity (BECKER, s.d.). A racionalidademercantil e uma suposta inadequada distribuiçãoda água fizeram do Lesoto exportador de água paraseu vizinho mais rico, a África do Sul. A iniciativacontou com o patrocínio do Banco Mundial que aapresenta como exemplo bem sucedido de suasinovações na área hídrica (Banco Mundial, 1998).Entretanto, a julgar pelos dados presentes no AtlasMundial da Água (DIOP; REKACEWICZ, 2003), oLesoto já então vivia em situação de vulnerabilidadehídrica e em 2025, seu stress hídrico será maisgrave do que o existente na África do Sul nos anos1990.

Um indicador dos mais usuais para demonstrarescassez ou abundância é a relação entre omontante de água reciclável e o total de habitantes.China e Canadá possuem volumes aproximados deágua, mas, a disponibilidade per capita canadenseé uma das maiores do mundo e na populosa Chinaa média de apenas 2.295m³/ano é agravada por suaconcentração no sul do país (VILLIERS, 2002). OGEO-4, utilizando o Índice de Falkenmark ou Índicede Stress Hídrico4, que estabelece1.700 m³/água/hab./ano como o mínimo necessárioao consumo doméstico e à produção, assim abreseu capítulo sobre água doce:

[...] A disponibilidade de água doce per capitamundial está diminuindo [...]. Se as tendênciasatuais continuam, 1 milhão e 800 mil pessoas

viverão em países ou regiões com escassezabsoluta de água doce em 2025 e dois terços dahumanidade poderão ser afetadas pelo stresshídrico. A diminuição da quantidade e daqualidade das águas superficiais e subterrâneasestá afetando os sistemas aquáticos e osserviços que proporcionam (PNUMA, 2007, p. 4,tradução nossa).Efetivamente, inúmeros sinais apontam para a

diminuição da água em certas regiões da Terra,para o aumento das áreas submetidas a processosde empobrecimento do solo e desertificação, paraa ocorrência de eventos hidrológicos críticos maisfrequentes e extremos, para a crescente poluiçãoe contaminação dos recursos hídricos etc.Considerando a água um dado e o aumento naturalda população, é previsível que cenários baseadosna expansão do modelo de desenvolvimentoindustrialista-fossilista, movido pela busca daacumulação do valor – como em regra ocorre –apontem para um futuro assustador, em especialnas regiões ditas atrasadas, de clima seco edensamente povoadas.

Sem dúvida o volume, a qualidade e adistribuição espacial e temporal da água, assimcomo o número daqueles que dela se servem, sãoparâmetros importantes. Afinal, a simples aexistência humana pressupõe um mínimo de água.Entretanto, o fato de os norte-americanosconsumirem nove vezes mais do que os africanose da Califórnia, possuidora de apenas 1,6% dabacia do rio Colorado, responder por ¼ da extraçãode suas águas, evidencia o caráter social doconsumo e, em decorrência, da escassez. Nomesmo sentido, aponta a constatação de que nosúltimos cem anos a população quadruplicou e oconsumo de água cresceu sete vezes.

Segundo o Relatório do DesenvolvimentoHumano de 2006 (PNUD, 2006), “[...] à medidaque o mundo vai se enriquecendo, também vai setornando mais sedento [...]”. De fato, aquilo quehoje é conhecido por enriquecimento oudesenvolvimento, ou seja, o processo deacumulação da riqueza abstrata característicodas sociedades fundadas no industrialismo, noindividualismo e na concorrência tem comocontrapartida transformações cada vez maisintensas e rápidas da natureza. A valorização dovalor, objetivo maior das sociedades nas quaissurge a crise hídrica, não se faz sem áreasdesmatadas, prédios, campos cultivados,indústrias, estradas, barragens, rios poluídos etc.Produzir é transformar a natureza pelo trabalho; édemandar água. Aumentos de produtividade– exigência da competição – se traduzem em

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exigências crescentes de água em tempos maiscurtos apesar das inovações nos processosprodutivos. Assim, a crise surge como resultadoda racionalidade própria a de um modo de produzir,viver e pensar no qual, desenvolver-se, é tambémtornar-se “sedento”. No mesmo diapasão seguemas teorizações acerca da crise e os caminhospropostos para superá-la.

Nessa perspectiva, indicadores que equalizamdiferenças e nada dizem sobre as relações sociaise de poder que permeiam a apropriação, o uso e atransformação da natureza, bem como projeçõesreferenciadas na universalização dodesenvolvimento hoje hegemônico, embora úteis,devem ser utilizados com cautela.Em geral, tendem a responsabilizar a natalidadee/ou as condições geofísicas do Planeta pelaescassez e reforçar os elementos que estão naraiz da própria crise.

3. Escassez e abundância: as duas faces dacrise

A oferta potencial per capita de água na Américado Norte é de 17.458,02 m³/ano e seu consumototaliza 1.798 m³/hab./ano. Na América do Sul,para uma oferta potencial de 30.374,34 m³/hab./ano, calcula-se um consumo de 335 m³/hab./ano.Maiores consumidores de água do mundo, osnorte-americanos gastam em média o triplo do quegastam os europeus e sete vezes mais do que seutiliza no Brasil, cujo deflúvio anual per capita de34.784,33 m³ é aproximadamente o dobro do norte-americano. Frente às médias continentais, oconsumo brasileiro de 246 m³/hab./ano superaapenas o africano, calculado em 202 m³/hab./ano(FREITAS; SANTOS, 1999).

Mais importante do que conhecer o consumo deum país ou região, é relacionar seu consumo à suaoferta, ou seja, é verificar aqueles que utilizam maisintensamente seus recursos. Esse dado poderáindicar em que direção se move os interessessubjacentes à formulação da geoestratégia mundialda água. Em ordem decrescente, a Ásia é ocontinente que mais explora suas reservas,extraindo 1 m³/hab./ano para cada 6,79 m³disponíveis. A América Central e pela América doNorte vêm em seguida, com respectivamente 1m³/hab./ano para cada 8,82 m³ de água existente e1m³/hab./ano para cada 9,71 m³. A África é ocontinente com o menor consumo mundial de águapor pessoa e sua taxa de utilização é de 1 m³/hab./ano para cada 25,41m³ disponível.

O consumo domiciliar, tal como qualquer outro,reflete diferenças sociais e culturais. Há indicaçõesde que o gasto médio diário de um norte-americanoé de 425 litros; o de um francês, 150 litros, e de ummalgaxe da zona rural, somente 10 litros. Em umbanho de banheira utilizam-se até 200 litros deágua, vinte vezes mais do que todo o consumo deum morador da zona rural de Madagascar!(FREITAS; SANTOS, 1999). Segundo Diop eRekacewicz,( 2003) a agricultura responde por 50-85% da derivação mundial de água. Entretanto, aágua que chega às plantas não vai às casasdaqueles que vivem no campo uma vez que apenas30% da população rural, majoritariamente nospaíses desenvolvidos, têm acesso à água em seuslares (DIOP; REKACEWICZ, 2003; UNICEF,2006a).

Barlow e Clarke (2002) relatam que, na décadade 1990, após vários meses de estiagem, oscampos de golfe de Jakarta continuavam verdes,embora a água tenha faltado nos lares pobres. Em1998, Chipre passou por uma grave seca e a águadestinada aos agricultores foi reduzida à metade.Porém, os milhares de turistas que visitam a ilhanada perceberam. Os resorts e as ricasresidências que proliferam no litoral do Nordestebrasileiro, com seus gramados, piscinas e camposde golfe, não condizem com o imaginário nacionalacerca da penúria hídrica da região. De fato, aindaque saúde e acesso à água e sanitarizaçãocaminhem juntos, a apropriação da água, tal comoocorre com os demais elementos da natureza, émais um fator de distinção social.

Embora em países e regiões ditosdesenvolvidos o acesso à água potável seja umdireito mais comumente respeitado, um PIBelevado não se traduz necessariamente em águapara a população. A China, cuja economia, pormais de uma década, cresce a taxas superioresà média mundial, possuía em 2004 a mesmacobertura de água potável da Índia (70%) e taxainferior à Indonésia e Bangladesh (72%),México (82%), Brasil e Paquistão (83%),Turquia (96%), Iran (92%) e Egito (94%).No mesmo ano, o acesso à água potável no Brasilera proporcionalmente inferior ao existente empaíses como o México, a Espanha e o Egito, cujaoferta potencial é sabidamente inferior à brasileira.Na África do Sul, aos 600 mil fazendeiros brancoscabem 60% de toda a água utilizada. Ali, a minoriabranca responde por 50% do consumo residencial,enquanto 15 milhões de negros não possuem

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acesso direto à água (BARLOW; CLARKE, 2003).Estes dados informam a quem serve a águaimportada do Lesoto e o significado oculto daracionalidade promovida pelos formuladores dageoestratégia mundial da água.

Após a Guerra dos Seis Dias (1967), ospalestinos passaram a depender de permissão dasautoridades militares israelenses para perfurarempoços na Cisjordânia, e um decreto tornou possívelnegar, revogar ou emendar uma licença semqualquer explicação ao licenciado. Em 1982 essecontrole passou para a empresa israelense deabastecimento, e a água fornecida aos palestinosintegrou-se à rede geral de Israel. Nesse caso,sequer se tenta escamotear as relações de poderque subjazem à apropriação da água e ao uso daviolência como instrumento de controle do territórioe de suas riquezas. É o que evidencia, também,permitir-se aos israelenses poços de até oitocentosmetros de profundidade, enquanto os poçospalestinos não podem ultrapassar os cento equarenta metros (SHIVA, 2006).Ou ainda a constatação de que, aproximadamentetrinta anos após a guerra, apenas 10,0% da águacaptada nos territórios ocupados cabem aosvencidos; que a maior parte das instalaçõeshidráulicas de Israel ali se encontra; e que mais de60,0% da água utilizada pelos israelenses sãocaptadas além das fronteiras estabelecidas antesde 1967 (DIOP; REKACEWICZ, 2003).

A poluição dos mananciais de superfície, oafastamento entre as fontes de suprimento e oslocais de consumo e a elevação dos custos detratamento e distribuição da água, associados àdisseminação da água subterrânea por todas asregiões da Terra, sua maior potabilidade e oavanço da tecnologia de perfuração de poços,têm levado à ampliação do uso das águassubterrâneas. Em regiões da Índia, China, ÁsiaOcidental, da antiga União Soviética, no Oeste dosEstados Unidos e na Península Arábica, aexploração das águas subterrâneas a um ritmosuperior à recarga vem provocando o rebaixamentodo lençol freático. Em áreas próximas ao litoral,essa sobre-exploração já resulta em intrusão deágua marinha nas reservas subterrâneas, que umavez iniciado é de difícil reversão e com frequênciatorna o solo salino e imprestável para o cultivo(UNESCO/WWAP, 2006).

Segundo Diop e Rekacewicz (2003), entre50-85% da água retirada dos mananciais destinam-se a fins agrícolas embora apenas 15% das terras

cultivadas sejam irrigadas. É razoável supor queessa demanda provém da agricultura moderna,integrada à indústria e ao comércio em largaescala, que requer grandes investimentos e faz usoda irrigação. A irrigação permite diminuir asincertezas próprias do setor, elevar a regularidadena oferta de insumos, aumentar a produção e aprodutividade cumprindo requisitos essenciais àtransformação industrial e à competição capitalista.O clima, as técnicas de produção e de regadio e asespecificidades dos cultivos são determinantes namaior ou menor demanda exercida pelo setor. Emclima tropical seco, como no Nordeste brasileiro oconsumo é mais elevado. Entretanto, embora aregião abrigue 28% da população, possua menosde 3% das reservas hídricas do país, o menorpotencial de terras irrigáveis e a maior utilizaçãopercentual destas terras, nos últimos anos, éexatamente no Nordeste que mais tem crescido aárea irrigada no país. Impossível não notar odistanciamento entre essa estratégia dedesenvolvimento e os discursos do desenvolvimentosustentável, do combate à escassez e da garantiado direito à água (SILVESTRE, 2002).

A atividade industrial deriva entre 20-25% daágua mundial. Contudo, alguns de seus ramosmais modernos, como a indústria decomputadores, além de grandes derivações,necessitam de água limpa. Ademais, o uso nãoconsuntivo exercido pelo setor como veículo dediluição, deposição e transporte de resíduos oucomo fonte de energia é intenso. Daí possuir oVale do Silício mais depósitos de resíduos tóxicosdo que qualquer outra área dos Estados Unidose a indicação de que 30% da água de Phoenixestariam contaminadas – 50% dos danosdecorreriam de indústrias de alta tecnologia(BARLOW; CLARKE, 2003).

Os vínculos entre indústria e crise hídrica vãoalém de seu próprio uso ou das relações diretasque possui com a moderna agricultura.Sua influência está presente na urbanização, naelevação do consumo de toda espécie, naexigência de esgotamento sanitário, nacontaminação e poluição dos corpos hídricos porprodutos químicos etc. Ou seja, de um lado asociedade industrial demanda quantidadescrescentes de água e de outro contamina e poluias reservas. Utilizando fontes diversas, Tundisi(2003) conclui que 120 mil km³ de água sofremalgum tipo de contaminação por matéria orgânicaou por compostos químicos e que 80,0% dos rios

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chineses não já não constituem meio de vida parapeixes. Barlow e Clarke (2003) informam que naPolônia, ¾ das águas dos rios não podem serutilizadas industrialmente por estarem contamina-das com produtos químicos, esgotos e despejoagrícola e que 75% dos lagos e rios da Rússiapossuem água imprópria para consumo. Quase¼ da população nos Estados Unidos bebem águacontaminada com chumbo, matéria fecal e outroselementos patogênicos. Nesse país, doençasoriundas da contaminação das águas subterrâneasteriam aumentado cerca de 30% entre 1995 e1998. Na província canadense de Ontário, maciçoscortes no orçamento do Ministério do Ambientelevaram à destruição da estrutura de proteção àságuas e à privatização dos serviços de testes dequalidade da água utilizada. Após estas ocorrên-cias, no ano 2000, um estudo federal constatouque 1/3 dos poços rurais estavam contaminadoscom a bactéria E. Coli (BARLOW, CLARKE, 2003).

Para atender à demanda crescente, regularizara oferta e produzir energia as barragens e oscanais de transferência entre bacias hidrográficasmultiplicaram-se e ganharam proporçõesgigantescas. Calcula-se que no decorrer do séculoXX as represas inundaram uma área deaproximadamente um milhão de quilômetrosquadrados e que dois trilhões de dólares foramgastos em mais de quarenta e cinco mil grandesbarragens, especialmente entre os anos de 1970e 1975. O ritmo destas construções – tal como aexpansão das áreas irrigadas – vem diminuindo nosEstados Unidos e na Europa, mas, aumentandoem outras partes do mundo. Índia e China, paísesapontados como modelos bem sucedidos deindustrialização e crescimento nos últimos anostêm lugar de destaque no boom destas obras.É a expansão do capital, muitas vezes destruindoformas distintas de apropriação da natureza, econsequentemente, da água, que está em curso.

Além de modificarem substantivamente aqualidade da água e os recursos das bacias emque se situam, as grandes obras hidráulicasdeslocam milhões de pessoas em todo o mundo.Melhor dizendo, privam milhões de pessoas eseus territórios e recursos. Não por outra razão oMovimento dos Atingidos por Barragens estáorganizado mundialmente. Apenas na Índia, berçodesse movimento, de dezesseis a trinta e oitomilhões de pessoas já foram ou estão sendodeslocadas por estas obras; na China a barragem

de Três Gargantas deverá desalojar dez milhõesde pessoas (SHIVA, 2006).

Embora seja inegável que em algumas regiõesa água é fisicamente mais limitada do que emoutras, os dados mostram que escassez eabundancia são duas faces de uma mesmamoeda e resultam de um mesmo processo: aacumulação de capital.

Conclusão

A apropriação e a transformação da natureza,embora inerentes à existência humana, ocorremem sociedades determinadas, e como talassumem formas particulares, configurando-seno quadro das relações sociais. Assim sendo,obedecem a racionalidades específicas, que seencontram inseridas no quadro das necessidadesde reprodução do sistema. Nessa perspectiva, acrise hídrica é uma crise social e expressacontradições próprias a uma sociedade particular,com saberes, técnicas e objetivos específicos;com modos próprios de regular o acesso ànatureza, de produzir e repartir riquezas; de gerarafluência e miséria; de distribuir ônus e bônus dapermanente transformação da natureza. Revelatambém que, embora toda a água do Planetaesteja integrada e a crise se apresente como umaameaça global, suas consequências não são asmesmas para os diferentes países, regiões, grupossociais e comunidades.

A escassez ou abundância, ou seja, o acesso aesse elemento da natureza, tal como ocorre comos demais recursos que a natureza oferece, é partedas relações sociais e de poder.Consequentemente, a escassez existente oupotencial não atinge a todos igualmente. Por outrolado, o modelo de desenvolvimento hegemônico aomesmo tempo em que exige quantidadescrescentes de água e as polui, viabiliza seutransporte por longas distâncias e tornamacessíveis novas fontes e mananciais hídricosabrindo perspectivas de grandes negócios. Porém,em se tratando da água, cuja apropriação em parteconsiderável do Planeta é gratuita, é necessárioantes de tudo um trabalho de convencimento daescassez. A essa tarefa, nos últimos vinte anos,muitos esforços tem sido dedicados

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* Professora do Departamento de CiênciasEconômicas da Universidade Federal do Piauí.Doutora em Geografia pela Universidade FederalFluminense.

Notas:1Tecnicamente, água doce é aquela cujo teor de sólidos totaisé inferior a 1000 mg/l. Por tratar exclusivamente desse tipo deágua, neste artigo os vocábulos água e água doce serãoutilizados indistintamente.2Embora corriqueiramente chamado de Banco Mundial, o BIRDé apenas a mais antiga e influente das organizações quecompõem o Grupo Banco Mundial. As demais são: AssociaçãoInternacional de Desenvolvimento, Instituto do Banco Mundial,Corporação Financeira Internacional, Centro Internacional paraConciliação de Divergências em Investimentos e AgênciaMultilateral de Garantias de Investimentos (PEREIRA, 2009).3 A biodiversidade da região, que é também área de recargade inúmeros rios amazônicos, é uma das maiores do mundo.A obra encurtará o caminho para a Ásia, de modo a diminuiros custos do trânsito de mercadorias entre os doiscontinentes. A brasileira OAS é a construtora responsável eBrasil financia 80% da obra via Banco Nacional deDesenvolvimento Econômico e Social (BNDES).4 Para Malin Falkenmark, entre 1.700 e 1.000 m³/água/hab./anohaveria stress hídrico; entre 1000 e 500 m³/água/hab./ano,escassez crônica; abaixo de 500 m³/hab./ano, penúria absoluta.Acima dos 1.700 m³/água/hab./ano existiria um leque depossibilidades entre o alerta e a abundância (WALDMAN, 2005,p. 218).

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15 Ano 16, n. 31, jun. 2014informe econômico

O PAPEL DAS INSTITUIÇÕES E AEVOLUÇÃO ECONÔMICAJosé Lourenço Candido*

1 Introdução

Uma das grandes críticas que osinstitucionalistas fazem ao mainstream economicsé a incapacidade que a teoria neoclássica tem deexplicar mudanças no ambiente econômico e suasimplicações para o desenvolvimento econômico(HODGSON, 2006). Esta rigidez teórica decorre,principalmente, do reducionismo que foi imposto àteoria, a qual simplifica a economia a um nível talque não permite a inclusão de entidades como asinstituições como elemento importante nacompreensão do processo da vida.

Assim, neste breve ensaio, pretendemosapresentar as ideias básicas da abordageminstitucionalista em contraposição ao reducionismoneoclássico e suas implicações para a evoluçãoeconômica.

Inicialmente, tratamos da discussão sobre opapel das preferências na construção dasInstituições e vice-versa; em seguida, na seção 3,mostramos o entendimento dos institucionalistasacerca da impossibilidade de a ciência econômicatradicional evoluir e explicar o mundo real de acordocom suas transformações; e, por fim, chegamos àsconclusões na seção 4.

2 A Endogeneidade de Preferências e asInstituições

A ciência econômica do ramo tradicionalbaseada na escola neoclássica considera que aspreferências dos indivíduos são endógenas -

Resumo: a ciência econômica tem-se mostrado incapaz de explicar e prever grande parte dos fenômenoseconômicos, principalmente, a longo prazo. A abordagem institucionalista da economia se desenvolveu comouma alternativa à análise econômica e contra o reducionismo e o liberalismo da análise neoclássica domeanstream, destacando a importância das instituições na vida das pessoas e, consequentemente, naevolução da economia. Neste ensaio, o objetivo é apresentar as ideias básicas da abordagem institucionalistae sua importância para o entendimento da evolução econômica.Palavras-chave: Liberalismo. Institucionalismo. Evolução econômica.

Abstract: The Economic Science has been unable to explain and predict a large part of economic phenomena,especially in the long term. The institutionalist approach to economics developed as an alternative economicanalysis and against reductionism and liberalism mainstream neoclassical analysis, highlighting theimportance of institutions in people’s lives and consequently on the economy. Our aim in this essay is topresent the basic ideas of Institutionalist approach and its importance to the economic evolution.Keywords: Liberalism. Institutionalism. Economic Evolution.

intrínsecas ao sujeito -, de modo que todo ocomportamento do indivíduo é desenvolvidosegundo sua própria percepção e desejos seminfluências determinantes das relações einterações sociais.

Essa é a visão do mainstream da CiênciaEconômica, que conforma as transaçõeseconômicas como algo inerente ao homem, ouseja, que vem de sua própria natureza a inclinaçãoa trocas, a maximizar seu bem-estar e a minimizarsua dor. Esta noção de comportamento natural é abase filosófica de sustentação dos mercados e,consequentemente, do liberalismo econômico.

A famosa “mão invisível” de Adam Smith (1983)utiliza esse recurso para justificar o livre-mercadocomo forma natural das relações econômicas, demodo que, uma vez que fosse oferecido àhumanidade a possibilidade de exercitarplenamente seu espírito egoísta, cada um estariadando o máximo de si, repercutindo sobre asociedade a maximização do o seu bem-estar.

Para que cada um pudesse se empenhar aomáximo, a condição sine qua non é a garantia dalivre iniciativa, ou seja, de um mercado onde astrocas de bens e serviços poderiam ser realizadas,como no contexto neoclássico, quando ainda haviaum grande número de pequenos negociantes e umgrande número de consumidores. Smith (1983)entendeu que havia um mercado altamentecompetitivo onde a mão invisível poderia atuar e,dessa forma, todas as trocas vantajosas seriam

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realizadas e, portanto, o alcance da maximizaçãodo bem-estar social.

A escola neoclássica pressupõe e reduz a vidadas pessoas a decisões exclusivamenteeconômicas e o homem se torna um ser dotado deextrema racionalidade capaz de responderprontamente e exclusivamente à governança domercado.

No entanto, as preferências individuais, que têmfontes endógenas e exógenas, parecem ter maiorcomponente exógena na determinação docomportamento individual nas diversas atividadesda vida; ou seja, o ser humano define suaspreferências a partir de um conjunto de hábitossociais, suas preferências são fortementeinfluenciadas ou determinadas por comportamen-tos incrustados na sociedade formadoshistoricamente por interações cumulativas.

Portanto, os indivíduos estão sujeitos àsinstituições. As instituições são regras definidasnas mais diversas esferas da vida humana, formaisou informais, mas que representam os valores doconjunto social que o indivíduo defende e assume.

Apesar de parecer simples, a definição deinstituição ainda é objeto de controvérsias dentroda própria abordagem institucionalista. SegundoHodgson (2006, p. 2-3),

The original institutional economists, in thetradition of Thorstein Veblen and John R.Commons, understood institutions as a specialtype of social structure with the potential to changeagents, including changes to their purposes orpreferences. However, some institutionalists suchas John Fagg Foster (1981,908) have misleadinglydefined institutions as “prescribed patterns ofcorrelated behavior.” Defining institutions asbehavior would mislead us into presuming thatinstitutions no longer existed if their associatedbehaviors were interrupted.Não é nosso objetivo discutir a definição e a

origem das instituições (endógena ou exógena),mas compreender que, de fato, as instituições têmimpactos sobre as preferências individuais,moldando-as e, de alguma forma, limitando-as; demodo que, inclusive, a racionalidade éimpulsionada pelas instituições e que o desejo peloganho individual, em grande parte, é umaimposição social.

Um empresário que desejasse apenas ter seusganhos suficientes para sua reprodução seriaengolido pelo mercado, de modo que se faznecessário seguir essa lógica mercadológica deacumulação ampliada. O caso do empresáriocitado por Commons (1931) também representauma situação em que a força da instituição superaa preferência individual.

The business man who refuses or is unable tomake use of the modern customs of the creditsystem, by refusing to accept or issue checks onsolvent banks, although they are merely privatearrangements and not legal tender, simply cannotcontinue in business by carrying on transactions.These instruments are customary tender, insteadof legal tender, backed by the powerful sanctions ofprofit, loss and competition, which compelconformity (COMMONS, 1931, p. 650).As instituições estão acima das organizações,

as quais podem ser entendidas como instituiçõesformais, pois, por exemplo, embora um empresáriopossa não aderir ao sistema de pagamentos oucrédito, ao fazê-lo, coloca-se à margem dastransações comerciais, as quais têm por norma arealização com intermediação do sistema bancário,que fatalmente o excluirá da realização de ganhos;de modo que se trata de uma imposição socialindependentemente das preferências doempresário, não importando o juízo de valor dasvantagens ou desvantagens relevantes da opçãopelo sistema de pagamentos ou de créditos(COMMONS, 1931).

Certamente, um comerciante em um lugarejoafastado dos grandes centros urbanos poderia nãofazer uso de um sistema bancário e adotar o seupróprio sistema de controle de vendas, como aindaacontece em algumas localidades no Brasil, pois,nesses casos, a instituição da “caderneta” ou“caderninho” ainda é predominante sobre o sistemabancário. Nesse sistema, o comerciante anota ovalor da compra e o consumidor se comprometemoralmente, ao final de cada mês, ressarci-lo.

The individual motivations and preferences cannotbe understood without reference to the institutionalcontext which partly shapes and defines them.Economic behavour is thus acquired. If men aregenerous in one place and egoistic in another it isnot the supposed human nature that differs but thesocial organization (RODRIGUES, 2004, p. 192)O liberalismo é a base intelectual para o

funcionamento do mercado autorregulado, mas,contraditoriamente, os mercados precisam daconstrução de instituições para o seu funcionamen-to, como o dinheiro, o trabalho como mercadoria ea terra, considerados como mercadorias fictícias,ou seja, essencialmente não são mercadorias, masse faz necessário o ativismo estatal para assimcaracterizá-las e dar sustentação às transaçõeseconômicas.

O surgimento do mercado de trabalho caracte-riza esse ativismo estatal, pois não era uma norma,ou regra social, as pessoas venderem sua capaci-dade laborativa como única forma de sobrevivência,idilicamente chamados de trabalhadores livres.

Além disso, foi, e é necessária a participação

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do estado na criação de forças repressivas quegarantissem o pleno funcionamento do mercado detrabalho, como a criação e o desenvolvimento deum arcabouço jurídico que garante um conjunto dedireitos aos empregadores, inclusive o depropriedade (RODRIGUES, 2004).

À medida que essa relação capitalista seinstitucionaliza, uma série de contra movimentostambém se desenvolvem como tentativa de defesados direitos dos trabalhadores e, ao mesmo tempo,o estado também faz crescer seu aparato derepressão contra tais forças como forma de mantertais instituições no formato adequado aosinteresses dos empregadores, os quais são osmais diversificados, levando em consideração otempo e o espaço.

Portanto, o ideário do liberalismo econômico éfortemente rejeitado pela abordageminstitucionalista, uma vez que o próprio mercadonecessita da intervenção estatal para manter acoerção aos indivíduos em favor do plenofuncionamento do mercado; ou seja, a economianão é inseparável do direito, da moral e da política,os quais estão incrustados na vida econômica.

3 A abordagem institucional e a ciênciaeconômica não evolucionária

Pela abordagem institucional, a economia nãofunciona em uma esfera autônoma, livre dainfluência dos conflitos e hábitos sociais; e simrecebe forte influência dessas regras sociais.

As instituições contam, portanto. Esta expressão,cara a todos os institucionalistas, pretendesignificar que o modo como um país ou umaregião se estrutura e posiciona num contexto maisamplo – o seu desempenho competitivo – não éapenas o resultado dos recursos ou da tecnologiade que dispõe ou da sua dimensão (REIS, 2009,p. 8).O reducionismo neoclássico tem outras

implicações sobre a própria ciência econômica,pois a não absorção de outros elementos institucio-nais nos modelos de descrição da economia quese proclama de economia pura relega-a a umacapacidade descritiva de fenômenos passados,tornando os modelos limitados e pouco explicativosdas realidades nos seus diversos aspectos detempo e espaço (REIS, 2009).

A teoria econômica reduz o significado docrescimento econômico à uma função de produçãoque combina apenas dois fatores de produção -capital e trabalho - relegando a simples resíduosuma série de elementos como tecnologia,organização e capacidades, as quais tornam ascombinações de trabalho e capital mais qualitativas

e que dão mais substância à explicação daevolução econômica. Essa exclusão dá à ciênciaeconômica um caráter determinista e, portanto,pouco útil para explicar a evolução econômica(REIS, 2009).

A abordagem institucionalista fornece uma visãomais complexa acerca do entendimento daeconomia, pois considera as instituições comofundamentos para a evolução econômica guiandoas ações humanas.

Na linha mais recente do novo institucionalismo,R. Coase (1937) vê a empresa como umainstituição que evolui de acordo com idiossincra-sias empresariais, mas surge justamente devidoaos custos de transação significativos. Na visãotradicionalista, os custos de transação envolvidosnos mercados de qualquer natureza eram zero ouinsignificantes e a empresa era confundida com opróprio empresário maximizador de lucros; noentanto, a realidade mostrou a importância doscustos de transação relacionados a diversoscomportamentos humanos não previstos pelosmodelos econômicos e o comportamentoempresarial idiossincrático.

Segundo T. Veblen (1898), a economia não éuma ciência evolucionária. Isto porque nãoconsegue abordar os processos cumulativos dasociedade que formam as instituições; portanto,não descreve as leis de causalidade que geramesses processos, o que a tornaria uma ciênciaevolucionária.

A ciência não evolucionária não se capacita aperceber nem a explicar mudanças como ofordismo e, posteriormente, o toyotismo e todo umparadigma econômico vinculado a cada um deles.O fordismo é reconhecidamente um ponto detensão que rompe com as ideias anteriores, poisconsiderava a produção em massa e bons saláriospagos aos seus trabalhadores como formas dealavancar a economia.

Na verdade, é uma mudança organizacional querompe com a forma de ver a produção capitalistaem processo anterior desenvolvendo uma novainstituição, uma nova forma de ver a empresa quese espalhou pela economia.

As faces e facetas do capitalismo são tãodiversos quanto os contextos temporal e espacialem que o mesmo pode surgir. Segundo Bresser-Pereira (2012), a formação e evolução da economiaocorrem historicamente de forma cumulativa, ouseja, a partir das experiências coletivas dosindivíduos que se somam às novas experiências

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que geram mudanças e um novo paradigmainstitucional.

A evolução da economia também é localizada.Certamente, a posição geográfica gera a identidadede um povo, de uma cultura e de uma nação quepode, ao se somarem, levar os agentes a trabalharde forma cooperativa, determinando uma estratégiaespecífica para aquele contexto socioeconômico.

Conforme Bresser-Pereira (2006), a estratégianacional de desenvolvimento é uma instituiçãoporque envolve os indivíduos em torno de umobjetivo comum determinado pelo próprio coletivo,que, segundo North (2005), limita-os, mas,simultaneamente, promove o coletivo a um novopatamar de organização. Assim, as instituiçõestêm um papel claro: o papel de moldar a evoluçãosocial, pois promovem as interações dos indivíduosatravés do conhecimento.

As instituições ajudam os indivíduos a tomaremdecisões na presença de custos de transaçãosignificativos, externalidades e informaçãoassimétrica, na medida em que apontam para umagovernação baseada em “acordos” sociais, regrasou normas tácitas, não necessariamenteeconômicas, mas também éticas, políticas ouculturais.

4 Conclusão

Conforme vimos em Rodrigues (2004), combase em Polanyi, a ideia ortodoxa de que astransações econômicas são preferências inerentesao homem não se sustentam devido à necessidadede instituições para colocar em funcionamento amáquina do mercado. Como a formação e odesenvolvimento das instituições se devem aocontexto espacial, temporal e cultural, odesenvolvimento do capitalismo assumiu diversasaparências e em nenhuma delas se observou aface do sistema de produção apresentado no rigorda teoria neoclássica; portanto, a governação demercado não é única, não é pura.

A crítica que se faz à teoria tradicional atacaessa noção de ciência natural. A ciência naturalprescinde de que sua menor partícula tenhacomportamento previsível para qualquermodificação no ambiente, pois, como nas células(da biologia) ou no átomo (da física), é possívelentender e prever a dinâmica de ajustamento apartir de diversos incentivos externos.

Diferente dessas ciências, a economia trabalhacom o ser humano, um elemento complexo afeito adiversos comportamentos, muitos, inclusive,

irracionais, e, por isso, praticamente imprevisível.Portanto, a base analítica da economia não

encontra os mesmos pré-requisitos das ciênciasditas naturais ou exatas e que, enfim, não podeprescindir de uma compreensão sociológica,histórica e filosófica como fundamentação àabordagem econômica. Ou seja, a governação deveser definida a partir do estudo das instituiçõessociais que permeiam um determinado gruposocial; é fundamental para atuar de forma a nãoelevar os conflitos sociais incrustados naquelegrupo. Destarte, o entendimento da evolução daeconomia deve passar também pelo entendimentoda evolução das instituições, dos elementos de queformam e condicionam as relações interativassociais para o cotidiano

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* Professor do Departamento de Economia daUniversidade Federal de Campina Grande,doutorando em Governação, Conhecimento eInovação na Universidade de Coimbra-Portugal.

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19 Ano 16, n. 31, jun. 2014informe econômico

SUSTENTABILIDADE: os indicadores ea problemática urbanaJuliana Portela do Rego Monteiro*, Maria do Socorro Lira Monteiro** e AntonioCardoso Façanha ***

Resumo: a modificação do espaço urbano acentuada pelo processo de urbanização intensificou ocrescimento das cidades e, com isso, modificações sociais econômicas e ambientais nas paisagensurbanas. Este artigo pretende refletir sobre esta dinâmica e como os indicadores podem auxiliar naidentificação de impacto, na análise das diversas situações para a posterior ação dos agentes (sociedadecivil e Estado) com vistas ao alcance de uma situação mais próxima possível da sustentabilidade.Palavras chave: espaço urbano, urbanização, sustentabilidade, indicadores

Abstract: the modification of urban space marked by the urbanization process has accelerated the growth ofcities, and with it, economic social and environmental changes in urban landscapes. This article aims toreflect on these dynamics and how the indicators can help identify impact analysis of different situations forthe subsequent action of the agents (State and civil society) in order to reach a possible situation closer tosustainability.Keywords: urban space, urbanization, sustainability indicators

1 Introdução

Em 2011, uma entre duas pessoas no mundoresidia em cidades e estima-se que em 35 anosduas a cada três o farão (UNITED NATIONSPOPULATION FUND, 2011). O adensamentourbano impacta sobremaneira a paisagem urbana,com claras consequências socioeconômicas eambientais. Logo, o conceito de sustentabilidadetem sido operacionalizado na minimização dosinfortúnios urbanos. Destarte, sem a expectativa deesgotamento do vasto referencial que trata dotema, o presente artigo objetiva revisar o conceitode sustentabilidade aplicado aos estudos urbanos.

Para tanto, inicia-se com um panorama doconceito de sustentabilidade e dos indicadorescomo principal ferramenta da suaoperacionalização. Posteriormente, o debate seaprofunda com estudos sobre a busca dasustentabilidade urbana, com um breve relatosobre a urbanização brasileira, e a busca de umamudança de paradigma para as cidades.

2 Sustentabilidade: uma tentativa deconceituação

O termo sustentabilidade muitas vezes épropagado como um lugar comum, especialmentepelas dificuldades na sua conceituação,delimitação e possibilidades de uso. Assim,Acselrad (2001, p. 28) questiona as dificuldadesconceituais e a prática inerentes àsustentabilidade:

[...] como definir algo que não existe? E que, aoexistir, será, sem dúvida, uma construção social?E que, enquanto tal, poderá também compreenderdiferentes conteúdos e práticas a reinvindicar seunome? Isto nos esclarece porque distintasrepresentações vem sendo associados à noçãode sustentabilidade: são discursos em disputapela expressão que se pretende a mais legítima.Pois a sustentabilidade é uma noção a que sepode recorrer para tornar objetivas diferentesrepresentações e ideias [...].Trata-se, pois, de uma terminologia abstrata,

multidimensionada, na qual se encerram questõesda natureza e da sociedade, influenciada pordebates ideológicos, políticos e econômicos.

Carvalho e Barcellos (2009) destacam que asustentabilidade pressupõe manutenção ao longodo tempo. Logo, uma atividade sustentável é aquelaque consegue, mesmo com os desequilíbrios quevenha a sofrer, voltar à sua situação original ou aalgo próximo. Os ecossistemas têm altacapacidade de regeneração (resiliência), o que fazcom que, mesmo com possíveis alterações,possam em um determinado período de tempo serecompor e preservar-se.

Entretanto, a capacidade de resiliência danatureza vem sendo minimizada, especialmenteapós a primeira Revolução Industrial, quando aretirada de recursos passou a ser feita, de modogeral, de forma mais rápida que a sua capacidadeinterna de retorno à situação de equilíbrio. Nasúltimas décadas do século XX e durante os anos jádecorridos do século XXI, o incremento

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populacional mundial, especialmente urbano, e acriação de um modelo de consumo voltado para ouso acelerado dos recursos naturais aprofundaramos desequilíbrios ambientais, comprometendo acapacidade de resiliência da natureza.

Sobre esta questão, Furtado (1974, p. 79) relataque

[...] com efeito, a crescente hegemonia dasgrandes empresas na orientação do processo deacumulação traduz-se, no centro, por umatendência à homogeneização dos padrões deconsumo e, nas economias periféricas, por umdistanciamento das formas de vida de umaminoria privilegiada com respeito à massa dapopulação.O autor supracitado chama ainda a atenção que

a elevação no consumo e a consequente pressãosobre os recursos naturais advêm do tipo dedesenvolvimento praticado desde a RevoluçãoIndustrial pelos países do centro (desenvolvidos, deindustrialização antiga) que é, por si só,concentrador de renda, excludente epotencialmente devastador dos recursos naturais.

Destarte, como afirma Foladori (1999, p. 29),Tanto las medidas económicas, como lasecológicas no contemplan las desigualdadessociales. Las medidas socio-políticas se acercanmás. Pero todas las medidas de sustentabilidadtienen una omisión en común: no relacionan losdaños ambientales con las relaciones sociales yno valoran adecuadamente las desigualdadessociales en el marco teórico de la sustentabilidad.Esta es una consecuencia implícita de transladaracríticamente el marco teórico de la ecología, queconsidera la unidad no contradictoria del genérohumano al igual que cualquier otra especie, a laeconomía.Os estudos da sustentabilidade devem, pois,

conciliar as questões da natureza com as questõesde desigualdade socioeconômicas, intrínsecas aosprocessos de urbanização dos países periféricos,que levaram, em grande medida, aos impactosambientais urbanos mais relevantes.

3 Indicadores: uma tentativa deoperacionalização conceitual

Não obstante o reconhecimento dos avanços nodebate teórico sobre o termo sustentabilidade,persiste grande dificuldade quanto à sua aplicação,o que demanda o estabelecimento de mecanismospara a sua operacionalização, como a construçãode indicadores que possibilitem o acompanha-mento da sustentabilidade dos diversos sistemas(locais, nacionais, regionais e/ou globais), nasmais diversas dimensões (ambiental, econômica,social, institucional, dentre outras).

Bossel (1996) adverte que os indicadores estãopresentes na maior parte das ações do dia a dia eque representam uma ligação entre a humanidade

e o mundo na tomada de decisões diárias; suaimportância está também no fato de oferecerem umquadro do meio ambiente, embasando decisõesinteligentes quanto ao cuidado e à proteção deste.

Para Guimarães e Feichas (2009) osindicadores nascem da necessidade de romper opadrão de desenvolvimento no qual a meta erasomente o retorno econômico para incorporaroutras dimensões à avaliação da realidade,levando-se em conta que o desenvolvimento é umprocesso que acontece nas escalas temporais eespaciais e que está sujeito à ação dos diversosagentes sociais que compõe os territórios. Logo,

[...] indicadores [...] são um conjunto de sinais quefacilitam a avaliação do progresso de umadeterminada região na busca pelodesenvolvimento sustentável, sendo ferramentascruciais no processo de identificação deproblemas, reconhecimento dos mesmos,formulação de politicas, sua implementação eavaliação (GUIMARÃES et al., 2009, p. 309-310).Um indicador, a partir da sua origem latina

indicare, significa descobrir, apontar, estimar.Assim, a construção de um indicador pode ser degrande importância para a aplicação de políticastanto na esfera pública como na privada(JANNUZZI, 2001).

Indicadores são, pois, “ferramentas constituídaspor uma ou mais variáveis que, associadas atravésde diversas formas, revelam significados maisamplos sobre o fenômeno a que se referem.”(IBGE, 2010, [p. 10-11]).

Neste sentido, são utilizados de forma ampla eem áreas diversas, com o intuito de dimensionar asmais diversas situações, para posterior análise eidentificação de alternativas de melhoria.Entretanto, para que sejam eficazes, como afirmaJannuzzi (2001), faz-se necessário que contenham:a) relevância social, ou seja, importância para asociedade para qual vai servir de instrumento emum determinado período histórico;b) validade de constructo - capacidade que deve terde tornar um conceito abstrato em um instrumentoque possa ser operacionalizado;c) confiabilidade - ser estruturado sobreinformações (base de dados) confiáveis e quepoderá servir de parâmetro ao longo dos anos.

O autor supracitado destaca ainda anecessidade de os indicadores serem reprodutíveis,comunicáveis, passíveis de atualização periódica,serem elaborados com custos factíveis, bem comoterem a capacidade de se desagregargeograficamente (facilitando, com isso, acomparação entre os diversos locais).

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Carvalho e Barcelos (2009, p. 164) definemindicador de sustentabilidade como “uma medidaem geral quantitativa dotada de significadosubstantivo, usada para substituir, quantificar ouoperacionalizar um conceito teórico (para pesquisaacadêmica) ou programática (para formulação depolíticas).”

Devem servir, pois, como guia para o alcancedo difícil objetivo de mensurar o desenvolvimentosustentável e, portanto, torná-lo um conceito maisfactível. Destarte, deve-se proceder ao levantamen-to de variáveis diversas para posterior definição deindicadores do desenvolvimento sustentável. Estesservem como um arcabouço, um marco paraestudo e definição dos rumos do desenvolvimento(IBGE, 2010).

Os indicadores são, portanto, uma tentativa deconcretude do conceito de sustentabilidade;entretanto, como afirma Acselrad (1999, p. 87),faz-se sempre importante observar que,

Colocar o debate sobre sustentabilidade fora dosmarcos do determinismo ecológico implica,portanto, afastar representações indiferenciadorasdo espaço e do meio ambiente, requer que sequestione a idéia de que o espaço e os recursosambientais possam ter um único modosustentável de uso, inscrito na própria natureza doterritório. A perspectiva não determinística,portanto, pressupõe que se diferenciesocialmente a temporalidade dos elementos dabase material do desenvolvimento. Ou seja, quese reconheça que há várias maneiras de ascoisas durarem, sejam elas ecossistemas,recursos naturais ou cidades.Observa-se que há ainda um grande desafio

diante da realidade das sociedades urbanas e dassuas interações com a natureza, a paisagem e oespaço. Portanto, devem-se conhecer os proces-sos históricos que determinaram a conformaçãourbana atual para, posteriormente, definir a possibi-lidade de utilização dos indicadores de sustenta-bilidade como ferramenta de diagnóstico e ação.

3 A sustentabilidade urbana

3.1 A urbanização brasileira e suasconsequências

Mudanças vinculadas à economia capitalista,como industrialização, reorganização eredistribuição dos meios de produção e da força detrabalho, o surgimento de novas tecnologias, foramdecisivas, especialmente a partir de fins do séculoXIX e início do século XX, para que o urbano sesobrevalorizasse em relação ao rural, provocandoalterações no modo de vida das populações e nascondições socioeconômicas e ambientais das maisdiversas regiões.

Com isso, Castells (1983, p. 47, grifo do autor)considera que a urbanização é o

[...] processo pelo qual uma proporçãosignificativamente importante da população deuma sociedade concentra-se sobre um certoespaço, onde se constituem aglomeradosfuncional e socialmente interdependentes doponto de vista interno, e numa relação dearticulação hierarquizada (rede urbana).Logo, estabelece-se que o fenômeno

urbanização encontra-se fundamentalmenteatrelado ao modo de produção capitalista, à buscapelo crescimento/desenvolvimento econômico,estabelecendo, nesse fundamento, uma matriztécnico-ideológica.

Nesse contexto, a divisão do trabalho tevepapel fundamental na disseminação da urbanizaçãona medida em que determinou, através daredistribuição e reestruturação dos processosprodutivos, as cidades atrativas que abrangiamoportunidades de trabalho (especialmente nasindústrias e nos serviços), aprofundando ainda maisa oposição entre as realidades rural e urbana.

Sendo assim, o crescimento das cidadesmédias e o fenômeno da metropolização ocorreramno período pós-industrialização, quando muitascidades começaram a se tornar polos dedesenvolvimento e atração para as cidadespróximas e, com o passar do tempo, também decidades interioranas mais distantes.

No Brasil, assim como nos demais paíseslatino-americanos, como expõe Cano (1989, p. 65),as contradições inerentes ao setor agrícola, ondeconviviam o atraso e a modernização, foramdeterminantes para o êxodo rural e consequenterápida urbanização, haja vista que a débil indústrialocal não absorveu a contento os trabalhadoresprovenientes do campo, como aconteceu nospaíses desenvolvidos, nos quais “a urbanização [...]foi um processo que percorreu um longo caminhohistórico, e muito menos abrupto, do que overificado no mundo subdesenvolvido.”

O processo de urbanização brasileiro foigestado na segunda metade do século XIX, quandoa economia cafeeira ganhou impulso e recolocou oBrasil no mercado internacional de commodities,voltando a participar de forma mais ativa na divisãointernacional do trabalho. Promoveu-se, com isso,dinamização comercial e um relativo incrementonas relações entre os diversos setores daeconomia em torno da nova e importante atividade.Como assevera Furtado (2005, p. 118), “a economiacafeeira formou-se em condições distintas. Desdeo começo, sua vanguarda esteve formada por

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homens com experiência comercial. Em toda etapada gestação os interesses da produção e docomércio estiveram entrelaçados.”

Observa-se, portanto, que, desde os primórdios,a urbanização brasileira segue a lógica da divisãode trabalho, fazendo-se de forma excludente, já quea economia cafeeira se dinamizou com auxílio deincentivos do Estado, especialmente em SãoPaulo, deixando à margem as demais regiões.

Para Santos (2009, p. 77), a partir da SegundaGrande Guerra, nos anos 1940, ocorreu oacirramento da urbanização no Brasil. O aumentoda taxa de natalidade e a queda na taxa demortalidade contribuíram para o incremento popula-cional. Tal cenário desencadeou o crescimento dascidades médias e o surgimento da metropolização,quando muitas cidades começaram a se tornarpolos de desenvolvimento e atração para ascidades próximas e, com o passar do tempo,também de cidades interioranas mais distantes,como já mencionado.

Cano (1989) afirma que, após a crise econômicade 1929 a 1933, o Brasil enfrentou duas décadasde estagnação demográfica, retomando o seudinamismo com o impulso dado pelo setorindustrial na década de 1950 e se acirrando com aindustrialização pesada em 1960. Neste momentohistórico, ocorreu também uma intensificação damodernização agrícola em alguns estadosbrasileiros, notadamente, São Paulo, Rio de janeiroe Belo Horizonte, que, com incentivos estataismais pujantes, tornaram-se receptores dostrabalhadores que não se inseriam mais comfacilidade na dinâmica econômica rural.

Nesta perspectiva, Santos (2009, p. 77) afirmaque, no Brasil, a partir da revolução demográficados anos 1950, ocorreram três tipos deurbanização:

Primeiro uma urbanização aglomerada, com oaumento do número - e da população respectiva -dos núcleos com mais de 20 mil habitantes e, emseguida, uma urbanização concentrada, com amultiplicação de cidades de tamanho intermédio,para alcançarmos, depois, o estágio dametropolização, com o aumento considerável donúmero de cidades milionárias e de grandescidades médias (em torno de meio milhão dehabitantes).Entretanto, esse processo não se deu de forma

ordenada. A conformação urbana se fez seguindouma lógica concentradora, de tal forma que a maiorparte da população que se agregou às cidadesmédias, bem como aos centros metropolitanos,foram marginalizados. Sobre esse contexto Cano(1989, p. 73) explana que

A ausência de um planejamento eficaz, a criseeconômica que se manifesta entre 1962 e 1967 ea postura autoritária do Estado, relegando asegundo plano as questões atinentes aosproblemas sociais permitiram que essaurbanização se desse de forma desorganizada,gerando aquilo que se convencionou chamar de“problema urbano”, ou seja, uma carência, adeficiência de infra-estrutura e de atendimento àsdemandas sociais urbanas. O fenômeno não serestringiu a São Paulo, atingindo os principaiscentros urbanos do país. À medida queavançássemos na década de 1970, mudaria aadjetivação: do “problema urbano” passaríamos,rapidamente, para o “caos urbano”.A ONU-Habitat (2012) destaca que, do ponto de

vista demográfico, já não mais se reconhece umaexplosão urbana, haja vista que o êxodo rural, fatordeterminante para o crescimento rápido dascidades, praticamente cessou, já que desde o ano2000 o aumento da população urbana encontrava-se abaixo dos 2%, significando um crescimentodemográfico natural. Todavia, apesar dessaconjuntura demográfica, enfatiza-se que a AméricaLatina é a região mais urbanizada no mundo porcontar com aproximadamente 80% da populaçãoresidindo nas cidades.

Esse contexto remete a uma instável situaçãosocioeconômica e ambiental materializada nosimpactos urbanos. Portanto, estudos sobre asustentabilidade urbana são significativos nosentido de identificar os problemas e proporsoluções de longo prazo.

3.2 O urbano e a sustentabilidade

Para Martine (2007, p. 181), ainda há por parteda literatura um negligenciamento quanto à relaçãoentre espaço, meio ambiente e população. Nessaperpectiva, uma análise da interação entre estestrês elementos fundamentais se faz premente,especialmente quando se trata do mundo urbano,já que “o locus, tanto do crescimento demográficoquanto do econômico, está nas localidadesurbanas.”

Acselrad (1999) afirma que a sustentabilidadeurbana se guia pelas seguintes visões:a) “’racionalidade eco-energética’ [como em Pillet eOdum] ou ‘metabolismo urbano’.” Nestaperspectiva, a cidade é vista como um espaço queconsome e gera rejeitos. Logo, a insustentabilidadeurbana é uma “expressão social da irreversibilidade”(ACSELRAD, 1999, p. 82)b) a cidade vista comoum sistema termodinâmico aberto - expressãosocial da irreversibilidade termodinâmica: “[...]caberia ao planejamento urbano minimizar adegradação energética e desacelerar a trajetória dairreversibilidade.” (ACSELRAD, 1999, p. 82).

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Martine (2007) afirma que os problemasambientais urbanos não têm origem naconcentração urbana pura e simples, mas,especificamente, nos padrões de produção econsumo do nosso sistema econômico atual.

Para tanto, a capacidade de carga é uma dasformas mais difundidas para a mensuração da(in)sustentabilidade urbana. Parte da noção de queos recursos que alimentam o sistema ambientalsão finitos; logo, um uso inadequado provocaria nofuturo uma redução acentuada dos própriosrecursos. Considera-se a dificuldade em mesuraresta capacidade de carga já que na natureza asrelações complexas não são medidas porestatísticas. Ademais, também é difícil calcular obônus de descobertas tecnológicas pela rapidezcom que acontecem (AROW et al., 1995).

Martine (2007, p. 183) critica a metodologia dacapacidade de carga afirmando que

[....] tentar descobrir a capacidade de carga daTerra não é particularmente útil. Da mesma forma,calcular quanto dos nossos recursos estamosusando a mais do que deveríamos é importantepara esforços de conscientização, mas nãomostra como usar o espaço de forma maissustentável.Para Guerra e Cunha (2012, p. 23),O ambiente ou o meio ambiente é social ehistoricamente construído. Sua construção se fazno processo de interação contínua entre umasociedade em movimento e um espaço físicoparticular que se modifica permanentemente. Oambiente é passivo e ativo. É ao mesmo temposuporte geofísico, condicionado e condicionantede movimento, transformador da vida social. Aoser modificado, torna-se condição para novasmudanças, modificando, assim a sociedade.Portanto, há uma complexidade na relação

ambiente/espaço que não pode ser explicada porum único indicador. As cidades estão em constantemutação e, por este motivo, a resolução dosimpactos gerados no seu interior demandam umavisão interdisciplinar.

Martine (2007) destaca ainda a importância daspoliticas públicas na orientação da expansãourbana, investindo em infraestruturas que permitama conservação dos recursos, a preservação dosespaços abertos e que promovam equidade no usodos espaços urbanos.

Sendo assim, o importante e frágil metabolismodas cidades brasileiras deve contar com aparticipação política e de toda a sociedade naconstrução de uma sociedade urbana sustentável.

4 Conclusão

As aglomerações urbanas são hoje umarealidade sem retrocesso. Apesar da diminuição do

êxodo rural, as cidades são o reflexo de anos decrescimento desordenado que geraram impactosna natureza e na conformação da paisagemurbana.

A sustentabilidade dos centros urbanosdepende, portanto, de uma boa adequação doconceito de sustentabilidade - com a utilização dosindicadores para que se chegue o mais próximopossível de uma mensuração - e dos agentes que acompõem: Estado, empresas esociedade civil.

Dessa forma, não se pode pensar nos centrosurbanos como mero locus de produção,acumulação e consumo, mas como um ambienteque possui o seu metabolismo próprio. Cabe aosagentes urbanos a manutenção desse metabolismovisando à sustentabilidade urbana

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24informe econômicoAno 16, n. 31, jun. 2014

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* Profa. do Departº de Economia-DECON,Doutoranda em Desenvolvimento e Meio Ambientepela Rede PRODEMA.** Profa. do DECON, Coordenadora do Doutorado emDesenvolvimento e Meio Ambiente (PRODEMA/UFPI).*** Prof. do Departº de Geografia e História/UFPI e doMestrado em Geografia/UFPI.

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GESTÃO AMBIENTAL como fator deinovação em arranjos produtivos locaisRomina Paradiso*, Maria do Socorro Lira Monteiro** e Reginaldo de Lima Pinto ***

Resumo: este artigo é um trabalho conceitual e pretende relacionar a gestão ambiental à abordagem dearranjos produtivos locais (APLs), dado que, segundo esta metodologia de análise setorial, a inovação seconstitui fator fundamental para a competitividade das empresas. Nesse cenário, a gestão ambiental se tornaum instrumento inovativo que, ao passo que controla os danos ambientais, leva as empresas a outro patamarde competição, no qual o “verde é competitivo”.Palavras chave: APL. Gestão ambiental. Inovação.

Abstract: this article is a conceptual work and aims to relate the environmental management approach toLocal Productive Arrangements (APLs), since according to this methodology sectoral analysis, innovation isas key factor for competitiveness. In this scenario, the environmental management becomes an innovativeinstrument that while controlling environmental damage takes companies to the next level of competition, inwhich the “Green is competitive”.Keywords: APL. Environmental management. Innovation.

1 Introdução

A preocupação com o meio ambiente parte dapercepção do esgotamento da capacidade de cargado planeta. Entre os séculos XIV e XVII, oenfrentamento da finitude dos recursos erapreocupante, mas porque havia o medo de seesgotarem as fontes de riqueza para exploração. Amaterialização do comportamento no sentido daconservação ambiental se inicia de fato em 1972com a Conferência de Estocolmo, que propõe ofornecimento de diretrizes para proteção econservação do meio ambiente por meio dacooperação internacional.

A gestão ambiental aparece como uma respostaempresarial para essa nova realidade deesgotamento dos recursos naturais. Essa respostaé forçada a partir de exigências legais e do

mercado, mas, de fato, torna-se preocupaçãopresente na pauta empresarial.

Buscou-se, desta forma, neste artigo,demonstrar que o conceito de gestão ambientalnão pode ser avaliado como um custoorganizacional, mas como uma oportunidade parauma inserção mais competitiva em um mercadocada vez mais exigente.

Nesse sentido, a abordagem de ArranjosProdutivos Locais é percebida como fundamentalpara a adoção pelas empresas da gestão ambientalcomo instrumento inovativo na busca docrescimento econômico aliado à sustentabilidade,econômica, social e ambiental.

2 Gestão ambiental

De acordo com Salim (1986), o processo de

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25 Ano 16, n. 31, jun. 2014informe econômico

ocupação dos cerrados se deu com a implemen-tação de políticas públicas federais e programasdesenvolvidos tanto pelo Estado como pelainiciativa privada, a partir de 1970, alicerçados naRevolução Verde. Destaca-se que a atuação doEstado ocorreu de forma extremamenteorganizada: planejando, organizando, financiando,subsidiando, apoiando, enfim, oferecendo todo umconjunto de vantagens para o capital que sedirecionasse para a região.

“No entanto, em decorrência dasespecificidades institucionais, econômicas,políticas e naturais, o processo de ocupação docerrado desenvolveu-se, de forma diferenciada, nasdistintas regiões, estados e municípios do País.”(OLIVEIRA; PINTO; MONTEIRO, 2013, p. 2).Salienta-se que a ocupação do cerrado piauiense,através da produção em larga escala de grãos,sobretudo a soja, iniciou nos anos de 1990, nãoobstante se identificar a histórica e relevanteagricultura familiar no município.

Nesse sentido, Porter e Linde (1995a) defendemque os custos de adequação às legislaçõesambientais podem ser minimizados, senãoeliminados, através de inovações que tragam outrosbenefícios competitivos.

Dessa forma, evidencia-se que a gestãoambiental consiste em uma alternativa capaz deprovocar externalidades positivas para o meioambiente e para a empresa por meio da utilizaçãodo conceito de oportunidade, por proporcionarreconhecimento do mercado, vantagenscompetitivas e inovação dos processos produtivos,tornando-os menos poluentes e menos custosos.

Para Pereira (1999), a adoção da gestãoambiental eficaz pelas organizações requer aincorporação de distintos instrumentos pelo poderpúblico, como (a) o regulatório, expresso pelasnormas sobre emissões, proibição ou restrição deatividades e controle de uso de recursos naturais;(b) o econômico, manifestado pelas taxas sobreefluentes, taxas sobre produtos e subsídios; (c) aeducação e informação da sociedade; e (d) anegociação direta e acordos voluntários.

Já consoante Seiffert (2007), a gestão ambientaldeve ser entendida como um processo adaptativo econtínuo, no qual as organizações definem seusobjetivos constantemente, sempre baseados emmetas relacionadas à proteção do meio ambiente,à saúde dos empregados, dos clientes e dacomunidade, selecionando meios para o alcancedessas metas através da constante avaliação da

interação entre a organização e o meio ambiente.Nesse sentido, Jabbour e Santos (2006)

evidenciam que a gestão ambiental abrange asatividades de planejamento e organização davariável ambiental pela empresa com o intuito dealcançar metas ecológicas específicas. Porém,para tanto, faz-se necessário o envolvimento detodas as áreas de gestão organizacional.

Dessa forma, pode-se depreender que a gestãoambiental alcançou tamanha importância para asorganizações que pensar em qualquer forma degestão que não contemple o aspecto ambientaltornou-se impraticável.

Para Sanches (2000), esse cenário, aliado aocrescimento da competitividade industrial, obrigaaos empreendedores a adotarem comportamentosquanto às questões ambientais, as quais podemresultar em acréscimos de custo financeiro, devidoa regulações ambientais ou a imagem públicanegativa.

3 Arranjo produtivo local

Lastres e Cassiolato (2003) conceituam APLcomo aglomerações de agentes econômicos,políticos e sociais que podem apresentar vínculosde interdependência e que podem integrar diversasinstituições voltadas para a formação e capacitaçãode recursos humanos, como escolas técnicas euniversidades, pesquisa, desenvolvimento eengenharia, política e promoção de financiamentos,e, com foco em um conjunto específico deatividades econômicas, transforma aglomeradosem APLs.

Conforme Paradizo (2005), para identificar comprecisão um APL, é necessário que se tenha certograu de coesão e organização dentre os seguintesagentes:a) devem incluir fornecedores de insumosespecíficos, componentes, máquinas e serviçoscom o fim de criar infraestrutura produtivaespecializada;b) sinergias: como canais de distribuição econsumidores, envolvendo fabricantes de produtoscomplementares e empresas de setores industriaisafins, os quais podem possuir característicassemelhantes, tecnologias ou insumos comuns;c) instituições que forneçam treinamentosespecializados aos recursos humanos,informações em tempo hábil para o setor como umtodo, fontes de pesquisa e suporte técnico;d) entidades ligadas ao setor empresarial: agentesque estejam envolvidos com a coordenação das

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ações e com políticas de apoio à inovação,1

melhoria da competitividade e desenvolvimentotecnológico.

Ademais, vincula-se que os APLs apresentamcomo especificidade importante a existência de umcapital social, definido como o grau de cooperaçãoe confiança entre as empresas e instituiçõesintegrantes do APL, com vistas a fomentar aespecialização e a subcontratação, quepossibilitam ganho de vantagens ansiandomelhorias para a qualidade da produção.

De acordo com o glossário da Rede dePesquisa em Sistemas e Arranjos Produtivos eInovativos Locais (RedeSist)2 (LASTRES;CASSIOLATO, 2003, p. 9),

Capital social refere-se a um conjunto deinstituições formais e informais, incluindo hábitose normas sociais, que afetam os níveis deconfiança, interação e aprendizado em umsistema social. A emergência do tema do capitalsocial vincula-se ao reconhecimento daimportância de se considerarem a estrutura e asrelações sociais como fundamentais para secompreender e intervir sobre a dinâmicaeconômica.

Expõe ainda que “Um elevado nível de capitalsocial propicia relações de cooperação quefavorecem o aprendizado interativo, bem como aconstrução e transmissão do conhecimento tácito.Facilita, portanto, ações coletivas geradoras desistemas produtivos articulados.” (LASTRES;CASSIOLATO, 2003, p. 9).

Entende-se também que os benefícios doassociativismo ultrapassam os ganhos com aespecialização, principalmente quando se trata dasmicro, pequenas e médias empresas (MPMEs). Namedida em que a cooperação propõe-se a viabilizara realização de certos investimentos em capitalfixo; contribui para a difusão de inovações; aumentao poder de barganha com fornecedores; reduzcustos relacionados à estocagem, comercializaçãoe distribuição de mercadorias; permite oatendimento de grandes encomendas; e aumenta ainfluência política das empresas.

Nessa perspectiva, na concepção de Paradizo(2005, p. 88), “a cooperação é importante nosentido em que aumenta o nível de capital social,favorecendo o aprendizado inovativo. Ou seja, omaior compartilhamento do conhecimento dentrodo arranjo possibilita um melhor desempenhoinovativo.”

Igualmente, registra-se que estudos empíricosem diferentes regiões do País, realizados porVargas e Cassiolato (2002), evidenciaram que aaglomeração de empresas fortalece “suas chances

de sobrevivência e crescimento, constituindo-se emrelevantes fontes de vantagens competitivasduradouras” (ALBAGLI; BRITTO, 2002, p. 3). Sendoassim, compreende-se que

A participação dinâmica em arranjos produtivostem auxiliado empresas, especialmente as demicro, pequeno e médio portes (MPME), aultrapassarem as conhecidas barreiras aocrescimento, a produzirem eficientemente e acomercializarem seus produtos em mercadosnacionais e até internacionais (ALBAGLI; BRITTO,2002, p. 3).Em consonância com Becattini (1999), o APL

pode ser descrito como um amplo complexoprodutivo, geograficamente definido, caracterizadopor um grande número de firmas envolvidas nosdiversos estágios produtivos e, de várias maneiras,na fabricação de um produto, onde a coordenaçãodas diferentes fases e o controle da regularidade deseu funcionamento são submetidos ao jogo domercado e a um sistema de sanções sociaisaplicado pela comunidade.

Já Cassiolato e Lastres (2003, p. 27) encerramuma definição mais rigorosa do APL, ao explicitá-locomo

Aglomerações territoriais de agentes econômicos,políticos e sociais, com foco em um conjuntoespecífico de atividades econômicas e queapresentam vínculos mesmo que incipientes.Geralmente, envolvem a participação e a interaçãode empresas – que podem ser desde produtoresde bens e serviços finais até fornecedoras deinsumos e equipamentos, prestadoras deconsultoria e serviços, comercializadoras,clientes, entre outros – e suas variadas formas derepresentação e associação. Incluem, também,diversas outras instituições públicas e privadasvoltadas para: formação e capacitação derecursos humanos, como escolas técnicas euniversidades; pesquisa, desenvolvimento eengenharia; política, promoção e financiamento.Destarte, o crescimento centra-se em um

conjunto de relações criadas por atoreseconômicos locais, apoiados por sistemasinstitucionais voltados aos interesses e àsnecessidades das atividades desenvolvidas naregião, por meio da articulação entre as empresase entre estas e o ambiente, através de estruturasde apoio e de variáveis de natureza política,histórica e sociológica que interagem com aquestão territorial. Assentando nesse cenário,realça-se que o aglomerado de empresas passa aassumir importância para o entendimento dosucesso competitivo.

Logo, os APLs se apresentam como caminhospara o desenvolvimento baseado em atividades quelevam à expansão da renda, do emprego e dainovação; ou seja, em espaços econômicosrenovados, onde as pequenas empresas podem sedesenvolver usufruindo as vantagens da

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27 Ano 16, n. 31, jun. 2014informe econômico

localização, a partir da utilização dos princípios deorganização industrial como alavanca para odesenvolvimento local, pela ajuda local às MPMEs,trabalhando paralelamente estratégias deaprendizagem coletiva direcionada à inovação e aocrescimento descentralizado, enraizado emcapacidades locais.

Nesse sentido, Paradizo (2005, p. 38) explicitaque, em determinadas situações, a abordagem deAPL deve ser escolhida para o estudo em virtude,principalmente, de

Representar uma unidade de análise que vai alémdo tradicional visão baseada na organizaçãoindividual (empresa), setor ou cadeia produtiva,permitindo estabelecer uma ponte entre o territórioe as atividades econômicas e por focalizar gruposde agentes e atividades conexas que caracterizamqualquer sistema produtivo e inovativo.Segundo o Termo de Referência para Política

Nacional de Apoio ao Desenvolvimento de APLs(MDIC, 2004, p. 7), cooperação é a “interação entreos atores do arranjo, para a realização de açõesque buscam um objetivo comum, relacionado aodesenvolvimento sustentável do arranjo.”

Destaca-se que a cooperação pode acontecerentre as unidades produtivas, entre estas e outrasinstituições presentes no arranjo, comoassociações de classe, associações comerciais,redes de empresas, instituições de ensino epesquisa, organizações não governamentais(ONGs), entre outras, e cooperação entreinstituições que atuam localmente.

Lastres e Cassiolato (2003, p. 7), explicitamque,

O significado genérico de cooperação é o detrabalhar em comum, envolvendo relações deconfiança mútua e coordenação, em níveisdiferenciados entre os agentes. Assim, emarranjos produtivos locais, identificam-sediferentes tipos de cooperação, incluindo acooperação produtiva visando à obtenção deeconomias de escala e de escopo, bem como amelhoria dos índices de qualidade eprodutividade; e a cooperação inovativa, queresulta na diminuição de riscos, custos, tempo e,principalmente no aprendizado interativo,dinamizando o potencial inovativo do arranjoprodutivo local.Consoante Lastres e Cassiolato (2003),

classificam-se as interações de acordo com aregularidade de sua ocorrência. As interações quepossuem frequência indefinida ou esporádica sãochamadas de irregulares (ou seja, quando ainteração não possui um padrão definido derepetição), enquanto as interações onde se defineum padrão de recorrência, periodicidadecronológica ou de interface do processo deprodutivo caracterizam-se como regulares.

Para Paradizo (2005), as irregulares distinguem-

se em dois tipos: (a) contato bilateral - referente àsinterações entre dois agentes que acontecem semum padrão definido de repetição, podendo ser oprimeiro passo da constituição de uma futuracooperação. Esse contexto revela que importante éque os dois agentes devem possuir o reconheci-mento mútuo sem, no entanto, terem certeza sobreo benefício decorrente de interações, por exemplo,as firmas A e B estabelecem um canal de diálogoentre si, porém, sem discutir se, como e quantoeste será utilizado; e o (b) contato multilateral - queacontece em feiras, cursos, eventos do setor, noqual, diferentemente do primeiro, a interação ocorreentre um conjunto de agentes que possuem alguminteresse profissional em comum, por exemplo,firmas que atuem no mesmo setor na mesmaregião, as quais podem ser a raiz de futurascooperações.

Já dentre as interações regulares, encontram-setambém dois tipos:a) cooperação formal, que advêm quando ainteração entre os agentes é regular e, ainda,quando há um propósito definido e um resultadoesperado. Assim, os agentes cientes da busca dobenefício mútuo, caracterizam um método e umobjetivo a ser alcançado - por exemplo, duas firmasacordam o desenvolvimento conjunto de um novoproduto, bem como a participação de cada partenesta atividade, o que expressa a perspectiva dealcançar um desenvolvimento do novo produto. Estaforma de cooperação pode suceder no intercâmbiode diferentes estágios do processo de produção,desde que estejam determinados os propósitos dainteração.b) cooperação Informal - quando o objetivo e opropósito da interação não estão claramenteestabelecidos, manifestando que os agentesinteragem com frequência e têm clareza dobenefício recíproco da cooperação, mas esta severifica por diversos fins sem, no entanto, constitur-se em um projeto específico. É o caso de duasempresas que estabelecem intercâmbiosrecorrentes para múltiplos fins inerentes aoprocesso produtivo, como consultas e trocas deinformações, mas a cooperação não segue ummétodo nem possui um resultado específicoesperado.

Salienta-se que em qualquer um dos tipos deinteração que exista o aprendizado interativo éfundamental no processo de aumento dacompetitividade das micro e pequenas empresas(MPEs), apesar de estas, costumeiramente,

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28informe econômicoAno 16, n. 31, jun. 2014

trabalharem em ambiente de baixo conteúdotecnológico, onde o processo inovativo se dá juntoao setor de produção. Isto é, para estas empresas,a estratégia de inovação se dá a partir daobservação das tendências do mercado nacional oude concorrentes, pois, normalmente, as MPEs nãopossuem um departamento formal de pesquisa edesenvolvimento, dado seu porte em termos deemprego e faturamento, por ser uma atividadeinformal, ocasional e com poucos recursos à suadisposição.

Nessa perspectiva, Maital (1996, p. 212)evidencia que as empresas que conseguemconstruir uma rede de cooperação com os agentesque compartilham dos mesmos interessesaumentam sua competitividade, ou seja, “osexecutivos que mais cooperam, concorrem melhor.”

Assim, Maital (1996) explicita três motivos quetornam a competitividade através da parceriaimportante:a) cooperação em nível mundial: para seremcompetitivas no mercado global, as empresasnecessitam de aliados, fazendo surgir as jointventures, que se caracterizam por firmas que sealiam para ampliar suas atividades;b) conhecimento e informação como insumosimprescindíveis no processo produtivo: emambiente cooperativo, o conhecimento écompartilhado, utilizado em sua plenitude, aocontrário de ambiente puramente competitivo, ondeconhecimento se encontra em partes isoladas, queperdem eficiência por não serem compartilhados;c) produtos oriundos de tecnologias: o mercadoconsumidor torna-se cada vez mais exigente,dificultando que uma empresa isoladamentedomine todas as tecnologias necessárias paradeixar seu produto mais atraente no mercado.Assim, a maior parte das empresas precisa deajuda externa para se tornar mais competitiva.

Alicerçado nesse panorama, entende-se que acooperação converge-se em instrumento crítico nabusca da maior eficiência, aumentando as escalasde produção, reunindo esforços e recursos que, deforma isolada, provavelmente, as MPEs, emespecial, não teriam condições de mobilizar.

4 Inovação

De forma mais geral, entende-se inovação,conforme Lemos (2001), como a introdução dequalquer tipo de mudança ou melhoria realizada emum produto ou tipo de organização da produçãodentro de uma empresa, que refere-se, ainda, a

alterações de tal ordem que geram um novoproduto, processo ou forma de organização daprodução, considerada como radicais.3 Muitos sãoos exemplos de inovações, muitas delasincrementais,4 que podem gerar crescimento daeficiência técnica, aumento da produtividade,redução de custos, aumento de qualidade emudanças que possibilitem a ampliação dasaplicações de um produto ou processo.Substituição de materiais mantendo as mesmascaracterísticas no produto pode significar inovaçõesdesta ordem.

Schumpeter (1982) atribuiu às inovações aresponsabilidade pela dinâmica econômica. Asempresas produzem inovações gerando umdiferencial que afeta toda a estrutura industrial e demercado, a fim de obter maior lucratividade. Atipologia proposta pelo próprio Schumpeter, aindaem 1911, considerava como inovação: (a) aintrodução de um novo bem ou de uma novaqualidade de bem; (b) a introdução de novo métodode produção, incluindo a manipulação comercial damercadoria; (c) a abertura de um novo mercado; (d)a conquista de uma nova fonte de matéria-prima; e(e) o estabelecimento de uma nova organizaçãoeconômica.

Neste sentido, a crescente conscientizaçãoecológica faz com que as empresas desenvolvaminovações que passam a ser chamadas inovaçõesambientais ou ecoinovações. A produção deecoinovações requer um acúmulo deconhecimentos sobre mercado, tecnologiasdisponíveis e pesquisas científicas que permita odesenvolvimento de soluções ambientais querepresentem vantagens competitivas.

De acordo com Lemos (2001), tem sidocrescente a ênfase no processo de inovação naliteratura e na formulação de políticas queincrementam a competitividade das empresas eque levam ao crescimento econômico e amudanças tecnológicas e organizacionais. Emconsonância com Lustosa (2011) as maioresempresas consideraram que as questõesambientais influenciam na sua competitividade eque o meio ambiente é um fator de motivação paraa inovação; as empresas mais inovadoras são maismotivadas a adotar inovações ambientais; a maioriadas empresas de setores de alto potencial poluidortende a considerar mais a influência das questõesambientais e sua competitividade do que aquelasde menor potencial poluidor. Ademais, questãoambiental ganhou espaço nas preocupaçõessociais das empresas, a partir da década de 1990.

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29 Ano 16, n. 31, jun. 2014informe econômico

Ao perceberem crescente interesse e preocupaçãoda sociedade com o meio ambiente, as empresasbuscaram inserir-se no contexto dos agentesparticipantes das mudanças em resposta aosanseios da sociedade, vistos a diminuição dacapacidade financeira do Estado e o descréditodeste como ator de transformação capaz desolucionar problemas sociais relevantes.

Numa perspectiva que direciona o crescimentoà sustentabilidade, Hall (1994) expõe-se que amudança tecnológica na direção de tecnologiasmais limpas passa pelo processo de inovaçãoonde, evidenciando o processo de inovaçãocorresponde a todas as atividades que gerammudanças tecnológicas e a interação dinâmicaentre elas, e não precisam ser invenções primárias.Ao inovar, a empresa está buscando solução paraum determinado problema, que é resolvido dentrode um paradigma tecnológico, isto é, dentro dedeterminados padrões de soluções amplamenteaceitos baseados nos princípios das ciênciasnaturais. Assim, uma vez estabelecido o paradigmatecnológico, as inovações tornam-se seletivas nacapacidade de solucionar problemas, ao mesmotempo em que encobrem outras soluções queestariam fora do paradigma tecnológico –caracterizando uma “cegueira” do paradigmatecnológico predominante. As tecnologias sãoeleitas no processo seletivo, que de acordo com ascaracterísticas predominantes do ambienteseletivo, escolhem determinadas tecnologias e nãooutras.

Nesse sentido, Ferreira e Faria (2005), expõemque o componente ambiental passa a ser um fatordeterminante no desenvolvimento eaperfeiçoamento de novas tecnologias. A busca daqualidade ambiental pode representar um incentivoao desenvolvimento de inovações, que podemresultar em uma maior eficiência do processoprodutivo, com redução de custos e agregação devalor ao produto, tornando-se ferramenta decompetitividade para as empresas.

No trabalho “Toward a new conception of theenvironment-competitiveness relationship”, Porter eLinde (1995b) discutem explicitamente o papel daregulamentação ambiental na geração de inovaçãoe duplo dividendo. Os autores defendem anecessidade de uma legislação ambiental rigorosa,mas ao mesmo tempo flexível, que permita asempresas encontrarem soluções inteligentes, isto éque agreguem ganhos ambientais e econômicosefetivos, tanto a montante como a jusante do

processo produtivo, a exemplo da redução doscustos associados com o uso eficiente da matériaprima e energia. A legislação deve então favorecer oaumento da produtividade dos recursos naturais eestimular as empresas a considerar a sua relaçãocom o meio ambiente como uma fonte dinâmica deinspiração e, conseqüentemente de inovação.Assume-se que as empresas têm a capacidade deaprender a cumprir a legislação ambiental da formamais eficiente possível do ponto de vistaeconômico. Trata-se da denominada curva ouprocesso de aprendizado.

Assim, em consonância com Lustosa (2011),uma vez que o padrão tecnológico vigente é um dosresponsáveis pela degradação ambiental, aintrodução e difusão de novas tecnologiasambientais podem aumentar a produtividade dosrecursos naturais utilizados como insumos eminimizar a poluição. Essas novas tecnologiasreduzem custos - devido ao aumento deprodutividade ou pela conformidade -, podemaumentar o valor do produto e dão um diferencialem relação aos concorrentes, uma vez que padrõesambientais mais rígidos estão sendo demandadospela sociedade e adotados pelos organismosreguladores. Estes resultados reforçam acompetitividade das firmas.

5 Conclusão

A gestão ambiental consiste em uma alternativacapaz de provocar externalidades positivas para omeio ambiente e para a empresa, por meio daincorporação do conceito de oportunidade, porproporcionar reconhecimento do mercado,vantagens competitivas e inovação dos processosprodutivos, tornando-os menos poluentes e menoscustosos. Ou seja, deve estar consoante adefinição de desenvolvimento sustentável concebidapelo relatório “Nosso futuro comum” (CMMAD,1991), ao buscar garantir o atendimento dasnecessidades da geração atual sem comprometero atendimento das gerações futuras. Essacompreensão exprime o desenvolvimentosustentável como um processo de mudança, noqual a exploração dos recursos naturais, o destinodos investimentos, a inovação tecnológica e asmetas organizacionais devem estar de acordo comas necessidades atuais e das futuras gerações.

Destaca-se, outrossim, que tal panorama éreflexo da concepção de Sachs (2009), de que ouso produtivo não necessariamente prejudica omeio ambiente ou destrói a diversidade, pois se

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30informe econômicoAno 16, n. 31, jun. 2014

Notas:(1) Consoante Cassiolato e Szapiro (2002, p. 10), “inovação éo processo pelo qual as empresas dominam e implementam odesenvolvimento e a produção de bens e serviços, sejamnovos para elas, independentemente do fato de serem novospara seus concorrentes domésticos ou internacionais.”(2) RedeSist é “Uma rede de pesquisa interdisciplinar,formalizada desde 1997, sediada no Instituto de Economia daUniversidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e que contacom a participação de várias universidades e institutos depesquisa no Brasil, além de manter parcerias com outrasinstituições da América Latina, Europa e Ásia.” (REDESIST,2013, n.p.).(3) Consoante Freeman (1988), inovações radicais consistemna introdução de um produto ou processo inteiramente novoe representam uma ruptura estrutural com o padrãotecnológico anterior; podem originar novas indústrias,setores de mercados e também significam redução decustos e aumento de qualidade em produtos já existentes; eenvolvem inovações de produtos, de processos e de nívelorganizacional. Inovações incrementais, por seu turno,referem-se àquelas melhorias realizadas continuamente emprodutos e processos sem alteração na estrutura industrial.(4) Para Fontanini e Carvalho (apud OLIVEIRA; PINTO;MONTEIRO, 2013, p. 3), as inovações incrementais noprocesso assumem um papel importante na empresa, porsuas “características inerentes, mercados e estratégias deatuação, sendo as mais recentes voltadas à automação deequipamentos, melhoria da qualidade e do desempenho dosprocessos, e gestão ambiental.”

pode desempenhar atividades econômicas semgerar externalidades negativas ambientais.

Ademais, esse cenário estimulou o surgimentodo movimento de ecoinovações ou inovaçõesambientais, o qual requer maior conhecimento domercado, tecnologias disponíveis e pesquisascientíficas para a solução de problemasempresariais e ambientais.

Por conseguinte, infere-se que o aprendizadopode não ocorrer de maneira codificável e formal.Depreende-se, então, que a inovação requerdiversas formas de interação entre agenteseconômicos e destes com instituições. Esta é amaneira pela qual o conjunto de capacitações deuma firma pode ser compartilhado e aperfeiçoado,sendo a abordagem de APL fundamental para oalcance de uma gestão ambiental inovativa

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31 Ano 16, n. 31, jun. 2014informe econômico

SALIM, C. A. As políticas econômica e tecnológica para o desenvolvimento agrário das áreas de cerrados no Brasil: avaliação eperspectivas. Caderno de Difusão Tecnológica, Brasília, v. 3, n. 2, maio/ago. 1986.

ATORES SOCIAIS: o caso da saúdepública brasileiraWilliams Silva de Paiva*e Antônia Jesuíta de Lima**

Resumo: o presente artigo objetiva analisar o fenômeno de ressignificação da utilidade dos atores sociais noBrasil e sua relação com o subfinanciamento da saúde pública após a Constituição Federal de 1988. Parte-se do entendimento de que os recursos destinados à saúde pública pelo governo brasileiro,comparativamente, estão aquém da garantia constitucional de uma saúde universal e irrestrita.Paralelamente, ocorre uma alteração na identidade dos atores sociais que influenciam a conformaçãoinstitucional das políticas públicas brasileiras, incluindo a política de saúde.Palavras-chave: Sociedade Civil. Movimento pela reforma sanitária. Política de saúde. OrganizaçõesSociais.

Abstract: this article aims to analyze the event of reframing on the utility of social actors in Brazil and itsrelation with the underfunding in the public health after the implementation of the Federal Constitution of 1988.This starts with the understanding that the resources allocated to public health care by the Braziliangovernment, in comparison, have been far from the minimum constitutional guarantee for an unrestricted anduniversal health care. In parallel, it has been occurring a change in the identity of social actors, whichinfluences the institutional resignation of the Brazilian public policies, including the policy on health care.Keywords: Civil society. Movement for a health care system reform. Health care policies. Socialorganizations.

1 Introdução

A modernidade - que, para Giddens (1991, p.11), “refere-se a estilos, costume de vida ouorganização social que emergiram na Europa apartir do século XVII e que ulteriormente setornaram mais ou menos mundiais, em suainfluência” - gerou a divisão funcional da vidacoletiva em três setores; o primeiro deles é oEstado, seguido do mercado e mais tardiamente dacriação da categoria sociedade civil; este último,intitulado terceiro setor, por ser uma criação maisrecente, ganha ressignificação conforme o contextode sua análise.

Habermas (2003), na busca de conceituarsociedade civil, sustenta que a acepção atual dotermo sociedade civil afasta-se da categoriasociedade burguesa defendida por Hegel, bemcomo se distancia da sociedade civil que incluía aeconomia da época de Marx. Segundo a teoria daação comunicativa de Habermas (2003, p. 99), a

sociedade civil “é formada por associações livres,não estatais e não econômicas, as quais ancoramas estruturas de comunicação da esfera públicanos componentes sociais do mundo da vida.”

A interação entre esses três setores não éestática. A depender do projeto político quefundamente as decisões coletivas, surgemretrações e expansões sobre a preponderância doEstado, do mercado e da sociedade civil comoponto de referência que geram neles interferênciasentre si. Na América Latina, segundo Dagnino,Oliveira e Panfichi (2006), há, em constantecompetição, três projetos políticos que sedigladiam: o projeto autoritário, o projetodemocratizante-participativo e o projeto neoliberal.Assim, o protagonismo de cada um dos trêssetores funcionais da vida coletiva se alteraconforme a preponderância do projeto político nasociedade analisada.

* Profa. do Departamento de Economia-DECON, Doutoranda em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela RedePRODEMA.** Profa. do DECON, Coordenadora do Doutorado em Desenvolvimento e Meio Ambiente (PRODEMA/UFPI).*** Aluno do Curso de Ciências Econômicas da UFPI e bolsista de Iniciação Científica - PIBIC/CNPq.

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32informe econômicoAno 16, n. 31, jun. 2014

Não bastasse essa complexidade que denotauma dinâmica interação entre eles, nacompreensão do primeiro, segundo e terceiro setor,a sua funcionalidade e utilização variam conforme ocontexto de sua análise. A expressão sociedadecivil, por exemplo, conforme o contexto e o tempode sua utilização, é interpretada pelos diferentesprojetos políticos com funcionalidades distintas. Opresente artigo visa analisar a funcionalidade doconceito “sociedade civil” na política de saúdebrasileira, sua criação institucional e o seufinanciamento, em cotejo com o contexto históricoda utilização do dito conceito, desde o regimemilitar até os dias atuais, com base em estudiososdo tema como Simionatto (2010), Dagnino, Oliveirae Panfichi (2006) e Burity (2005).

2 A sociedade civil, sua significação, e omovimento democratizante na burocraciaautoritária brasileira do regime militar

Desde 1964 até 1985, no período intituladoregime militar, o Brasil esteve sob o jugo de gover-nos burocráticos autoritários (O’DONNEL, 1986).Mas não só o Brasil, na América Latina, submeteu-se a um projeto político autoritário, outros países,como a Argentina, Chile, Uruguai e Peru, tambémestiveram, durante as décadas de 1970 e 1980, sobo comando de um projeto político autoritário. Nessecontexto de autoritarismo, a categoria sociedadecivil, que simbolizava o campo não estatal e,portanto, o espaço que não consubstanciava osgovernos ditatoriais, ganhou fundamental importân-cia nos discursos da agenda democratizante.

Ademais, pela mesma razão, mas em umcontexto distinto, nos países do Leste Europeusubmetidos aos governos do socialismo real,durante as décadas de 1960 a 1980, de igualforma, a expressão sociedade civil ganhou forçacomo categoria de libertação (democratização) emcontraposição ao autoritarismo estatal.Dita categoria, no Leste Europeu e na AméricaLatina, incorporou-se à militância da esquerdademocratizante-participativa e passou a representara face do bem/não estatal contraposta à face domal/estatal (SIMIONATTO, 2010).

Além dos projetos políticos democratizante-participativo e autoritário, outro projeto, o neoliberal,tem tido marcante influência não só sobre aAmérica Latina, incluindo o Brasil, mas também, e,sobretudo, sobre os países do capitalismo central(DAGNINO; OLIVEIRA; PANFICHI, 2006). Nestes,especialmente durante a década de 1980, a

orientação seguida era de contingenciamento dosdireitos sociais. O Estado-Providência, comomodelo de Estado adotado no mundo desenvolvidodesde o final da Segunda Guerra Mundial,apresentou sinais de esgotamento no início dadécada de 1970, dando causa à crise do Estado deBem Estar Social (ROSANVALLON, 1981). A partirde então, os países do capitalismo central, porinfluência do projeto neoliberal, passaram aempreender ajustes estruturais, com programas deausteridade, de natureza deflacionista, focados nagarantia do mercado livre.

Todavia, no início dos anos de 1980, ainda sob aégide da burocracia autoritária, ocorreram, noBrasil, na contramão dos acontecimentosinternacionais, vários movimentos da sociedadecivil pelo reconhecimento de direitos de cidadania,como expressões do projeto democratizante.Assim, apropriando-se da acepção da expressãosociedade civil como polo da virtude contraposto aomal/estatal, a militância de esquerda no Brasil,pautada nos ideais democratizantes, passou autilizar, durante as décadas de 1970 e 1980, acategoria sociedade civil como uma realidadehomogênea, destituída de contradições ecorporificadora do bem.

Essa visão de uma sociedade civil homogênea,por outras motivações, também é defendida peladoutrina neoliberal. Para o projeto político neolibe-ral, a sociedade civil, ou seja, o não estatal é, porexcelência, o campo produtivo capaz de corrigir aineficiência do setor público. Portanto, desde adécada de 1970, por motivos distintos, os projetosdemocratizante e neoliberal veem a sociedade civilcomo uma categoria homogênea, que representa onão estatal e, por isso, o bem, não obstante, até adécada de 1990, com funcionalidades distintas.Para a esquerda democratizante-participativa,como contraposição ao Estado autoritário; para osneoliberais, por seu turno, como correção daineficiência do Estado.

Em 1985, a burocracia autoritária instalada nogoverno brasileiro, desde 1964, ruiu. O projetopolítico democratizante afirmou-se, institucional-mente, como um “curto-circuito histórico” refletidona instalação normativa imediata de um Estado deDireito, do regime democrático e de amplaspolíticas sociais. Por outro lado, e ao mesmotempo, a economia interna atingia índicesabsolutamente desfavoráveis à concretude destaúltima aspiração (promoção de direitos sociais),persistia no Brasil uma inflação descontrolada e

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imperava a necessidade de investimentosestrangeiros, notadamente do capital privado.

3 A política de saúde brasileira na constituiçãofederal de 1988, sua criação normativa e ainfluência do movimento sanitarista compostode atores da sociedade civil

Entre os movimentos da sociedade civil queatuaram na abertura política brasileira de 1985,destaca-se o movimento pela reforma sanitária,pautado em uma teoria social da medicina, queencabeçou, juntamente com outros setores dasociedade, uma campanha por uma saúde públicacomo amplo direito social de cidadania (MELO,1993). Segundo Escorel (2008), o movimentosanitário trata-se de um movimento de profissionaisda saúde e de pessoas ligadas ao setor pautadosno referencial médico-social na abordagem dosproblemas da saúde, por meio de práticas políticas,ideológicas e teóricas, visando à melhoria dascondições de saúde e de atenção à saúde dapopulação brasileira na consecução do direito decidadania.

A pretensão do movimento sanitarista,composto de entidades da sociedade civil, de umasaúde como direito social de cidadania foinormatizado na Constituição Federal de 1988 (CF/88). A saúde passou a ser direito de todos e deverdo Estado consagrado no texto constitucional. Odireito à saúde, previsto na CF/88 é, ainda, integrale universal, de inspiração beveridgiana. Em 1988,passou a ser norma constitucional a instituição doSistema Único de Saúde (DRAIBE, 1990).

A expressão reforma sanitária foi usada pelaprimeira vez no Brasil em razão da reformasanitária italiana e ganhou relevância nos debatesprévios à 8ª Conferência Nacional de Saúde,ocorrida em março de 1986, usada para se referirao conjunto de ideias relativas às mudanças etransformações necessárias na política sanitáriabrasileira, nas quais o resultado final era entendidocomo a melhoria das condições de vida dapopulação. O movimento pela reforma sanitária,fruto do projeto democratizante-participativo, surgiucomo contraposição ao autoritarismo do regimemilitar, momento histórico em que o inimigo comum- o autoritarismo - mantinha os atores da sociedadecivil como entidades homogêneas (COHN, 1989).

A despeito das conquistas no campo da saúdena construção normativa de um sistema único euniversal na CF/88, ainda na década de 1990, aexpansão da lógica econômica globalizada (projeto

neoliberal), em marcha em todo o mundo, passou a(re)alinhar ao cenário internacional de restrição aosdireitos sociais a posição inicialmente prevista naCF/88 de prioridade do direito e da política desaúde pública (SOARES, 2000). Somada aocenário internacional de prioridade do sistemafinanceiro, a realidade econômica interna,simbolizada na inflação, que chegou a 217,9%, em1985, e na dependência do capital estrangeiro,implicou a pouca realização prática da previsãosanitária beveridgiana constitucional de 1988(BEHRING; BOSCHETTI, 2007).

4 a transição de identidade dos atores dasociedade civil após a década de 1990 e areforma do Estado: uma reflexão sobre o setorsaúde

Durante as décadas de 1970 e 1980, acategoria sociedade civil, vista como polo davirtude, foi utilizada pela esquerda para confrontar onão estatal (identificado com a sociedade civil) como estatal autoritário. Por outro lado, a partir dadécada de 1990, a sociedade civil, agora em umcontexto de abertura política, é tida não mais comocontraposição ao Estado, mas como espaço decooperação, em um cenário em que fazer passou aser de iniciativa da sociedade, que não pode maisesperar pelo Estado. Quem não faz é um críticoestéril, um imobilista, um atrasado.

Ao longo dos anos de 1990 e início dos anos de2000, ocorreram mudanças no Brasil que mostramum descompasso entre as agendas de reformasinstitucionais e reestruturação da economia, de umlado, objeto de prioridade, e a agenda das reformassociais colocada em segundo plano. Essasmudanças criaram retrações nas expectativas dedemocratização que deslegitimaram a política,inclusive a sanitária, e a democracia, fazendo surgirnovas tendências: parcerias, redes, consórcios,câmaras de negociação etc.

Devido à prioridade da agenda de reformaestatal e da economia no cenário atual, taistendências se inserem no circuito das políticassociais como contrapartida à retração do Estado edos recursos destinados ao custeio das políticassociais. Esses desdobramentos impactaram aidentidade dos atores sociais e as formas pelasquais se articulam as organizações da sociedadecivil entre si, bem como com os governos e, ainda,com as empresas privadas, com ênfase para oativismo da sociedade civil na abertura de espaçospara atitudes e formatos organizativos e participa-

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tivos, especialmente no período pós-1995 (reformado Estado), a partir de quando o Estado brasileirovem passando por reformas tendentes à instalaçãode um Estado Gerencial.

As transformações por que passam, desde osanos de 1990, a política e o Estado brasileiros têmimpulso e reforço do associativismo e da mobiliza-ção da sociedade civil experimentadas durante eapós a transição para a democracia, o que forneceum contraponto ao protagonismo do neoliberalismocomo definidor das mudanças ocorridas e dosproblemas enfrentados ao fazer referência à fortedemanda por ampliação da democracia a partir dasociedade civil organizada, que reforça a formaçãodiscursiva do estado-menor-sociedade-maior(BURITY, 2005).

Como se vê, portanto, no Brasil, os atores dasociedade civil, a exemplo dos que compuseram omovimento pela reforma sanitária, tiveram, naabertura política, um papel de contraposição aoEstado, propondo reformas e combatendo o statusquo ante em postura agonística; contudo, emtempos de normalidade liberal-democrática, asociedade civil, incluindo os seus atores do setorsaúde, buscam cooperação, formação de redes,fazendo e assumindo papéis que implicam adiminuição da proteção social dada pelo Estado.

Nesse contexto, compreendendo-se a socieda-de civil como uma categoria homogênea, semcontradições e representante do “bem”, ganhouforça a já referida formulação do Estado Gerencial.O terceiro setor, legitimado pela agenda democrati-zante pós-1988 e pela agenda neoliberal, desde adécada de 1970, ganha espaço na construção doordenamento jurídico brasileiro e na políticanacional, incluindo a política pública de saúde.

Paralelamente à construção de uma sociedadecivil parceira do Estado, o desfinanciamento daspolíticas públicas, normativamente configuradas nocontexto democrático da CF/88, reforça adeslegitimação da política brasileira, afirmando umEstado que se retrai frente à marcha globalneoliberal e à transformação, também em marcha,da identidade dos atores sociais. Esse cenário ésobremodo perceptível na atual conjuntura dapolítica de saúde brasileira. Há um subfinancia-mento da saúde pública no Brasil que reforça ainstalação de alternativas de gestão da políticasanitária pelo terceiro setor.

5 O subfinanciamento da saúde pública noBrasil e as alternativas de gestão pelasociedade civil (terceiro setor) como resposta àcrise do Estado

A saúde pública brasileira, com previsãonormativa de um modelo coletivista, no momentoatual, em sintonia com o cenário internacionalglobalizado, padece de relativa escassez derecursos para o seu financiamento. Não se discuteque, estando a saúde pública prevista na CF/88como um direito prestacional universal e integral,sempre haverá escassez de recursos para o seucusteio. As demandas por ações multidimensionaisno tratamento da saúde sempre serão ilimitadas;por outro lado, as finanças públicas serão semprefinitas. Essa escassez inevitável, no entanto, éuma escassez absoluta (não comparativa). Aanálise do financiamento da saúde pública deve,portanto, ser focada tendo por base um parâmetrode comparação, para que se evidencie umaescassez relativa de recursos para o seu custeio.Assim, para a constatação do subfinanciamentoatual da saúde pública no Brasil, impõe-se umolhar pautado em padrões comparativos.

Carvalho (2010, p. 48), corroborando essa tese,afirma que

[...] os recursos hoje destinados à saúde sãoinsuficientes para a tarefa de se executar umsistema universal de saúde. A comprovação dessaverdade será apresentada comparando-se ogasto per capita com Saúde Pública no Brasil aode outros países do mundo, em moeda pareadasegundo o poder de compra.

O subfinanciamento da saúde pública gera umacrise entre a facticidade e o direito, que consubs-tancia um paradoxo normativo: as disposiçõesconstitucionais definem um padrão próximo aoeuropeu ocidental, no entanto, na prática, nomomento atual, a composição observada aproxima-se da configuração liberal norte-americana (BUSS;LABRA, 1995). Nesse sentido:

Nosso sistema de saúde, constitucionalmentedefinido como de acesso universal e integral,exibe estrutura do gasto que em nada seassemelha à dos sistemas nacionais de saúdede cunho welfariano, mas se aproxima do padrãoestadunidense, tido como sistema típico domodelo liberal de sistemas de saúde (UGÁ;PORTO, 2008, p. 483).O subfinanciamento da saúde pública está

evidenciado nos dados estatais relativos aos gas-tos públicos com saúde. Os gastos federais comsaúde pública, apesar do crescimento nominal, emcomparação com o produto interno bruto (PIB)nacional, conforme dados constantes do Datasus(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2013), tiveram

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diminuição do ano 2000 até o ano de 2010. Nesses10 anos, a receita da União efetivamente gastacom saúde passou de 1,73% para 1,64% do PIBnacional; por outro lado, as despesas efetuadaspelos estados e municípios, se comparadas ao PIBbrasileiro no mesmo período, aumentaram. Poresta razão, a despesa pública total com saúde, noBrasil, passou de 2,95% em 2000 para 3,67% doPIB em 2010. Este percentual, apesar do sistemauniversal e irrestrito da política sanitária brasileira,está ainda muito aquém do percentual médio dogasto público com saúde no mundo que, segundo aOrganização Mundial da Saúde (2013), é de 5,5%do PIB.

Como demonstração da escassez relativa derecursos para custeio da saúde pública no Brasil,vê-se da leitura da lei n. 12.595, de 19 de janeiro de2012 (Lei Orçamentária Anual de 2012), que, paracustear a promessa constitucional de saúdeuniversal e integral, apenas aproximadamente3,98% (R$ 91,7 bilhões) do Fundo Público federalforam previstos em 2012 para despesas com apolítica de saúde brasileira. Por outro lado, ogoverno fixou a previsão orçamentária no mesmoano para o pagamento de juros, amortização dadívida pública e formação de superávit primário nopercentual de 47,19% do orçamento federal. Destepercentual, que representa 1,087 trilhões de reais,R$ 653,3 bilhões, conforme a Nota Técnica n.º 08/2011 da Comissão Mista do Orçamento do Con-gresso Nacional, constitui apenas uma previsão dedespesas; ou seja, é a garantia para o pagamentoda dívida pública interna, que não necessariamenteocorrerá nesse valor, já que nem todos os credoresresgatam suas dívidas no ano da vigência da LeiOrçamentária (de 2012). A despeito disto, o paga-mento unicamente de juros reais, não computandoa amortização da dívida, nem a formação desuperávit primário, chega a 4,4% do orçamentofederal, ou seja, o pagamento apenas dos juros dadívida pública terá investimentos superiores aos dasaúde pública (SIAFI, 2013).

Outra linha possível de demonstração dainsuficiência financeira para custeio da saúdepública é a comparação das receitas orçamentáriasdo sistema único de saúde (SUS) com o fatura-mento dos seguros privados de saúde. Conformedados da Agência Nacional de Saúde Suplementar(ANS) (2013), havia, em setembro de 2012,48.660.705 beneficiários de planos privados deseguro de saúde, o que representa 25,1% dapopulação brasileira. Ademais, a constatação de

que o percentual de beneficiários tem crescido nosúltimos anos confirma o interesse de os brasileiroscontratarem planos privados de seguro de saúde:de dezembro de 2003 a setembro de 2012, confor-me dados da ANS (2013), o número de beneficiá-rios de planos de saúde privados aumentou34,08%, ou seja, passou de 17,9% para 25,1% dapopulação brasileira em menos de 10 anos. Alémdisso, as operadoras de planos de saúde faturaramem 2011, segundo a ANS (2013), R$ 82,4 bilhões,valor que supera o orçamento público federaldestinado à saúde no mesmo ano, que foi fixadoinicialmente como previsão de despesa na lei n.12.381, de 9 de fevereiro de 2011 (Lei OrçamentáriaAnual de 2011) em R$ 71,36 bilhões.

Considerando que em dezembro de 2010, comdados da ANS (2013), as operadoras de planos desaúde faturaram R$ 72,9 bilhões e que 46.005.582brasileiros eram beneficiários de planos privados deseguros de saúde, chega-se a um orçamento percapita com saúde privada suplementar, excluída asaúde privada por desembolso direto, pelosbrasileiros de, pelo menos, R$ 1.584,59 em 2010.Por outro lado, partindo de dados do Datasus(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2013), o orçamento percapita para a saúde pública no Brasil (de todos osentes federativos), em 2010, foi de R$ 725,91, oque dá uma diferença de R$ 858,68 do gasto anualde um brasileiro com plano de saúde para umbrasileiro com o SUS.

O subfinanciamento da saúde pública decorreda adoção, pelo governo brasileiro, do projetopolítico neoliberal, que está em marcha em nívelglobal. Esse desfinanciamento propicia terreno fértilpara a ressignificação das identidades dos atoresda sociedade civil, já que eles, antes contrapostosao Estado, passam a ser executores/parceiros daimplementação da política de saúde. A ineficiênciados serviços públicos de saúde, em grande partecausada pela falta de recursos financeiros, implicao imaginário social de que, estando a políticasanitária a cargo de entidades do terceiro setor,haverá maior eficiência na implementação dapolítica pública de saúde.

6 A gestão da política sanitária pelo terceirosetor, como alternativa/consequência do seudesfinanciamento: as organizações sociais(OS)

Desde a década de 1990, divergindo da previsãooriginária na CF/88, o Estado brasileiro tempassado por reformas tendentes à instalação de

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um Estado Gerencial, sob a alegação de respostaà crise do Estado, de sua ineficiência e de suaincapacidade de resistir à tendência internacionalde prioridade da economia em detrimento dofinanciamento das políticas públicas. No bojodessas reformas, em 1998 foi promulgada aemenda constitucional (EC) n. 19, que, entre outrascoisas, incorporou à CF/88 o princípio da eficiênciana administração pública.

Essas alterações legislativas seguem atransição, ocorrida a partir da década de 1990, dasidentidades dos entes da sociedade civil organiza-da. Há uma inclusão de novos atores na formulaçãoe implementação das políticas públicas, ouvindo-os, institucionalizando sua participação e legitiman-do parcialmente suas demandas. Na década de1980, a sociedade civil, tendo um inimigo comum- o autoritarismo - agiu em oposição e confrontocom a sociedade política, passando, na décadaseguinte, a uma bandeira de participação, deatuação conjunta, a uma postura de negociação ecolaboração com o Estado (BURITY, 2005).

Há em curso, desde meados da década de1990, uma redefinição do papel e estrutura doEstado em sintonia com a transformação dasidentidades dos atores sociais, notadamente narelação entre sociedade política e sociedade civil.Nesse sentido, com a reconquista da democracianos anos de 1980, implantou-se uma disputahegemônica em relação às tarefas prioritárias dereconstrução do Estado. De um lado, a agenda daremoção da cultura e procedimentos autoritários eampliação da presença da sociedade nos espaçosde deliberação e decisão do Estado; de outro, aagenda da reestruturação do Estado e suasfunções decorrente de um diagnóstico sobre a criseno modelo de intervenção estatal na economia.

O atual modo como se cristalizam a formação eas identidades dos atores sociais se dá por meiode uma articulação particular das duas agendas.Assim, tem-se a influência da agenda da reestrutu-ração do Estado e da economia (abertura de mer-cados, reestruturação produtiva, enfrentamento dainflação e da crise fiscal, privatizações, estabiliza-ção da moeda), mas também a influência daagenda que reclama espaços no processo deformação das políticas públicas, com demandasparticipativas e de ampliação da democracia quepenetram na retórica do governo (conselhos, fóruns,instrumentos jurídicos etc.).

As duas agendas (democratizante-participativae neoliberal) contribuem para a descentralização, a

agenda das reformas sociais com o intuito dereverter a forte tendência brasileira à centralizaçãono poder central e ao fato de o poder local estarmais próximo das condições cotidianas da vida dapopulação, associando à ideia de que no planolocal se possibilita maior controle social (formaçãode conselhos, fóruns etc.); já a agenda da reformaestrutural, incorporada pelo governo federal noperíodo pós-1995, contribui para a descentraliza-ção, especialmente por meio do financiamentodireto de organizações sociais.

Em suma, à medida que avança o processo dedemocratização, pari passu com a crise econômicacrônica instaurada ainda na década de 1980 (novosdiscursos sobre a abertura da economia, flexibiliza-ção das leis trabalhistas, reforma do Estado, globa-lização), emerge um crescente número de deman-das e atores sociais em busca de atendimento ereconhecimento. Isso trouxe, para o cenário, doisfeitos importantes: o alargamento da esfera pública(ou o surgimento de esferas públicas, no plural) euma simultânea relativização do Estado enquantodefinição exclusiva do público e engajamento comele como responsável diante da sociedade.

Seguindo esta orientação, após a EC n. 19,ainda em 1998, foi editada a lei federal n. 9.637,pela qual entidades da sociedade civil organizada,intituladas organizações sociais (OS), após firma-rem contrato de gestão (fixando metas) com opoder público federal, puderam passar a gerirpolíticas sociais. Estas entidades são pessoasjurídicas não estatais às quais a administraçãodelega a gestão de políticas públicas sociais.

Vários estados da federação, adotando o mode-lo federal, passaram a regulamentar, em âmbitoestadual, a delegação da gestão de políticassociais às OS. Nesse cenário, ganha destaque adelegação da gestão de unidades de saúde paraorganizações sociais, em vários estados do Brasil,em especial no estado de São Paulo, mastambém, no Rio de Janeiro, Espírito Santo, SantaCatarina, Bahia, entre outros (ABRUCIO; SANO,2008).

7 Conclusão

A identidade dos atores da sociedade civilpassa por uma transição no decorrer da históriarecente do Brasil, com a consequenteressignificação de categorias e legitimação socialde funcionalidades diversas do terceiro setor emrelação à sociedade política (de combativos atoresa entidades parceiras). Constata-se, nessa seara

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(funcionalidade dos atores da sociedade civil), aocorrência de uma confluência nos discursos dosprojetos políticos democrático-participativo eneoliberal, que propaga e toma por base o conceitode sociedade civil como polo da virtude, como umsetor homogêneo, sem contradições, obscurecen-do diferenças internas, o que sub-repticiamentefavorece o avanço das concepções neoliberais deretração do Estado, de construção da solução“estado-menor-sociedade-maior”.

Nesse mesmo cenário, surgem outrasmanifestações dos projetos políticos em andamen-to na construção da vida coletiva brasileira; umadestas manifestações, igualmente arrimada naperspectiva neoliberal, é o atual subfinanciamentoda política pública de saúde, o que vai ao encontroda referida retração do Estado, legitimando aindamais as parcerias, redes, cooperações entre asociedade civil e a sociedade política comoalternativas para a propagada crise do Estado.

A visão de uma sociedade civil homogênea evirtuosa que, antes de 1988, serviu de base para oenfrentamento ao projeto autoritário instalado nogoverno, a exemplo do movimento pela reformasanitária que culminou na promulgação do textonormativo para o setor saúde na CF/88; nostempos atuais de normalidade liberal-democráticafundamenta uma “perversa confluência” entre osprojetos democrático-participativo e neoliberal(DAGNINO; OLIVEIRA; PANFICHI, 2006) queimpulsiona o imaginário social à aceitação dasociedade civil como “face do bem”, com melhorescondições de gerir políticas públicas mediantecooperação, a exemplo das OS administradoras deunidades de saúde, ou seja, se o sistema públicodo setor saúde é tido como ineficiente, em umcenário de desfinanciamento da política de saúde,facilmente são instituídas pelos governos medianteatos legislativos infraconstitucionais, alternativas nocampo privado gerencial para a gestão da saúdepública, notadamente por atores sociais parceirosdo Estado

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* Bacharel em Direito e mestrando em PolíticasPúblicas na Universidade Federal do Piauí (UFPI).** Doutora em Ciências Sociais pela PontifíciaUniversidade Católica de São Paulo (1999) eprofessora do Programa de Pós-Graduação emPolíticas Públicas da UFPI.

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AS DIVERSAS FACES DA FAMÍLIACONTEMPORÃNEA: conceitos e novasconfiguraçõesFabrina da Silva Meireles* e Solange Maria Teixeira**

Resumo: as transformações ocorridas na família, ao longo da história, demonstram sua suscetibilidade àsinfluências de fatores culturais, econômicos, políticos e sociais, os quais não apenas incidem em diferentescontextos, mas também geram compreensões diferenciadas de conceitos, arranjos e papéis familiares.Assim, pretende-se analisar a plasticidade da formação e configuração da família contemporânea marcadapor um constante processo de transformação.Palavras-chave: Família. Contemporaneidade. Novos arranjos familiares.

Abstract: the changes occurring in the family, throughout history, demonstrate their susceptibility to theinfluences of cultural, economic, political and social factors, which not only address different contexts, butalso generate different understandings of concepts, arrangements and family roles. Thus, we intend to analyzethe plasticity of the formation and configuration of contemporary family marked by a constant process oftransformation.Keywords: Family. Contemporary. New Family Arrangements.

1 Introdução

Este artigo se propõe a refletir sobre astransformações ocorridas na família no processo deconstrução da chamada família contemporânea,marcada pela plasticidade de formação econfiguração. Assim, torna-se apropriado referir-seao termo no plural - famílias -, pois melhorrepresenta a diversidade de modelos que ainstituição tem adotado na contemporaneidade, apartir da influência de fatores internos (relaçõespróprias entre seus membros: divórcios,recasamentos, uniões estáveis) e externos(econômicos, sociopolíticos e culturais).

O grupo familiar se forja pela convivência, sob omesmo espaço, de indivíduos ligados por laçosconsanguíneos ou não, de forma que o modelo deorganização, a função dos papéis individuais e asrelações de afeto lhe determinam a configuração.

Ao se discutir o tema família, não se devepensar apenas no modelo nuclear tradicional, masnuma variedade de novos modelos e relaçõesengendradas a partir de transformações vivenciadaspela sociedade. Embora, na atualidade, sejaevidente a multiplicidade de arranjos familiares,permanece imutável a importância da instituição naformação e cuidado de seus membros. Kaloustiane Ferrari (1994), por exemplo, defendem-na comoespaço de garantia da proteção integral e dasobrevivência, independentemente do arranjo emque se baseie.

Zamberlam (2001) aponta a dificuldade de seconceituar família e seus papéis, haja vista oelevado número de subsistemas e a pluralidade dearranjos presentes na contemporaneidade. Nessarealidade, emergem e ganham visibilidadediferentes formas de família e distintas maneiras dese relacionar dentro dela, o que acarreta umaredefinição de papéis e uma redistribuição deresponsabilidades a seus componentes.

Este artigo apresenta algumas contribuiçõesteóricas em torno dos diversos conceitos, assimcomo discute a formação dos diferentes arranjos dafamília contemporânea, a fim de balizar asreflexões acerca da dinamicidade de seu processode constituição. Para tanto, considera-se que afamília contemporânea se revela em constantetransformação e com diferentes faces que refletemos contextos sócio-histórico, cultural, econômico epolítico de uma dada sociedade.

2 Família ou famílias? Algumas aproximaçõesconceituais

A família, como unidade dinâmica, tempassado, ao longo da história, por constantesmodificações, o que impossibilita olhá-la sob umúnico viés. Conforme assinala Mioto (1997), aofalarmos de “famílias”, devemo-nos ater à suaespecificidade, posto que diferem significativamenteentre si nos diversos momentos da históriahumana, possuindo uma dinâmica própria,

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construída na relação entre os membros. A reflexãosobre a temática família tem um pressupostobásico que é a sua inserção no processo dereprodução do cotidiano da vida social.

Nos últimos anos, observam-se, nos planossocioeconômico e cultural, várias mudançasocorridas sob a égide do processo de globalizaçãoda economia capitalista que interferem na dinâmicae na estrutura familiar, provocando alterações nopadrão tradicional de organização. Assim, naperspectiva de se contemplar a diversidade derelações de pessoas que convivem na sociedade,tornou-se mais apropriado falar em “famílias”.

As famílias devem ser reconhecidas como umespaço altamente complexo, que se constrói ereconstrói, histórica e cotidianamente, por meiodas relações e negociações que se estabelecementre seus membros e entre seus membros eoutras esferas da sociedade (Estado, trabalho emercado). Reconhece-se que, além de suacapacidade de produção de subjetividades, afamília também é uma unidade de cuidado e deredistribuição interna de recursos, com papelimportante na estruturação da sociedade em seusaspectos sociais, políticos e econômicos e,portanto, não apenas uma construção privada, mastambém pública (MIOTO, 2010).

Com efeito, a compreensão dos conceitos defamília, devido à sua diversidade de formas earranjos, faz-se imprescindível para guiar asdiscussões que gravitam em torno da temática nosplanos ideológico, político, social e cultural. Nessaperspectiva, apresentam-se os pensamentos deautores importantes que se dedicaram a estudar atemática “família” com o fito de balizar as análisessobre esta questão.

Segundo Mioto (1997), a diversidade atual dearranjos familiares na sociedade brasileira leva adefinir a família como um núcleo de pessoas queconvivem em determinado lugar, durante um lapsode tempo mais ou menos longo, e se achamunidas (ou não) por laços consanguíneos, tendo,como tarefa primordial, o cuidado e a proteção deseus membros, e que se encontra dialeticamentearticulada com a estrutura social na qual se insere.

Para Draibe (apud CARVALHO, 2005), a famíliaé uma instituição social que, independentementedas variantes de desenhos e formatações daatualidade, constitui um canal de iniciação eaprendizado dos fatos e das relações sociais euma unidade de renda e consumo. As famílias,como agregações sociais, ao longo dos tempos,

assumem ou renunciam a funções de proteção esocialização dos seus membros como resposta àsnecessidades da sociedade a que pertencem.Nessa perspectiva, essas funções se regem pordois objetivos, sendo um de nível interno, como aproteção psicossocial dos membros, e o outro denível externo, como a acomodação a uma cultura esua transmissão.

Kaloustian e Ferrari (1994) elegeram a famíliacomo espaço imprescindível para a garantia daassistência e da proteção integral de seusmembros, independentemente da configuraçãofamiliar ou da forma como vem se estruturando. É afamília que oferece os suportes afetivos e,sobretudo, materiais necessários aodesenvolvimento e bem-estar dos seuscomponentes. Ela desempenha um papelprimordial na educação formal e informal, sendo noseu espaço que valores éticos e morais sãointroduzidos e incorporados e onde se fortalecemos laços de solidariedade.

Para Sarti (1996), a família não é apenas o eloafetivo mais forte dos pobres, o núcleo da suasobrevivência material e espiritual, o instrumentopelo qual viabilizam seu modo de vida, mas opróprio substrato de sua identidade social; suaimportância não é funcional e seu valor não émeramente instrumental, mas se refere à suaidentidade de ser social e constitui o parâmetrosimbólico que estrutura sua explicação do mundo.

De acordo com Petrini (2003), a família, noprocesso de evolução histórica, permanece comomatriz civilizatória e condição para a humanizaçãoe a socialização das pessoas, pois a educaçãoqualificada da criança que nela ocorre é que vaigarantir o suporte necessário à sua criatividade e aum comportamento produtivo quando adulto. Afamília sempre foi e continuará a ser a influênciamais poderosa no desenvolvimento dapersonalidade e do caráter de seus membros.

Na esteira das diversas conceituações dacategoria família, é possível refletir também acercada multiplicidade de seus arranjoscontemporâneos. Assim, convém destacar que afamília vem sofrendo modificações através dahistória que podem variar de uma cultura paraoutra, considerando o modelo societário, político eeconômico de cada sociedade.

3 Os diferentes arranjos da famíliacontemporânea

As conceituações da categoria família, aqui

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apresentadas, revelam que a diversidade daconstituição familiar não reflete apenas a esferaconcreta (diferentes configurações), mas tambémestá presente no campo teórico (diversosconceitos). Essa compreensão remete a umaacepção plural de família, considerando a variedadede conceitos e arranjos familiares possíveis.

As transformações ocorridas principalmentedesde meados do século XX no que diz respeito àconfiguração e ao funcionamento familiarprovocaram alterações na estrutura e na dinâmicade suas relações. Assim, as famílias sofreram (esofrem) influências dessas mudanças, tanto numadimensão geral como específica, a partir daformação, pertencimento social e história de cadasociedade.

As mudanças havidas nos planos político,social, econômico e cultural, notadamente noséculo XX, ao tempo em que interferiram nasformas de organização familiar, também refletiramessas novas configurações. Desse modo, areflexão sobre família não deve recair apenas sobreo seu modelo hegemônico, mas tambémconsiderar que esse formato vem se modificando econstruindo novas configurações a partir detransformações vivenciadas e de necessidadesimpostas pela sociedade, num processo constantede retroalimentação.

Em decorrência disso, a família contemporâneaé dinâmica, caracterizada por redefinições depapéis, hierarquia e sociabilidade, permitindodiferentes configurações centradas na valorizaçãoda solidariedade, fraternidade, ajuda mútua, laçosde afeto e amor (FONSECA, 2002; RIZZINI, 2002),em detrimento da exigência da consanguinidade.Essas várias configurações familiares refletem omodo como se dispõem e se inter-relacionam osmembros de uma família, mantendo vínculos queexcedem a relação consanguínea, mas queenvolvem laços afetivos e simbólicos. Assim, acompreensão atual de família não está maisatrelada necessariamente à concepção degrupamento nuclear (composto de mãe, pai efilhos), porém, tem-se ampliado sua noção àmedida que se procura incluir os diferentes arranjose relações entre os seus membros.

É possível observar, na mesma sociedade, acoexistência de diferentes arranjos, incluindomodelos tradicionais (pai/provedor, mãe/cuidadora efilhos), e configurações mais contemporâneas(casais dividindo ou alternando os cuidados dosfilhos e da organização familiar, mulheres e homens

assumindo sozinhos o sustento financeiro dogrupo, pais e mães independentes/monoparentalidade, famílias reconstituídas/recasadas, casais sem filhos, casaishomossexuais, casais com filhos adotivos ou comfilhos “de criação”, entre outros. A famíliacaracteriza-se, assim, por sua pluralidade deinterpretações e de modos de organização e seconstrói num processo de interação constanteentre seus membros e os contextos sócio-histórico, cultural e político engendrados no cursoda história. Independentemente da diversidadeconceitual e de configuração, todas as concepçõesapresentadas convergem no sentido de reconhecera importância da instituição familiar como célulamater da sociedade.

Silva (2012) diz que os atuais arranjos incitamnovas responsabilidades para cada indivíduo quecompõe a família, as quais deverão ser atribuídassegundo as particularidades e necessidades dogrupo familiar e não sustentadas em funçõespredeterminadas ou práticas tradicionalmentedelegadas às figuras masculinas e femininas. Éque os papéis familiares se transformam com otempo e seguem o curso de um processo que écaudatário da modificação constante da sociedade.

Com efeito, na contemporaneidade, embora afamília seja reconhecida como espaço privilegiadode proteção e cuidado de seus membros ebaseada não apenas em laços consanguíneos e deparentesco, mas também nas relações de afeto ecuidado, é preciso considerá-la como um campo detensões e violências. A exemplo de suamultiplicidade de arranjos, a família reúnecontradições próprias de qualquer relação social.Tal compreensão remete ao pensamento de Mioto(2000) a qual argumenta que, não obstante oreconhecimento protetivo da família, é precisoconsiderar também que “o terreno sobre o qual afamília se movimenta não é o da estabilidade, maso do conflito, o da contradição” (MIOTO, 2000, p.219). Assim, a autora adverte que a família, emboraseja prioritariamente espaço de cuidado, pode, emsuas relações, abrigar o conflito e a instabilidade,sejam estes influenciados ou não por condiçõesestruturais (social, econômica, cultural).Corroborando a posição de Mioto (2000), Pereira(2006) ressalta que a família deve sercompreendida como uma instituição social aomesmo tempo forte e fraca.

Forte porque ela é de fato um lócus privilegiado desolidariedade, no qual os indivíduos podemencontrar refúgio contra o desamparo e a

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insegurança da existência. [...] Mas ela também éfrágil, pelo fato de não estar livre de despotismo,violências, confinamentos, desencontros erupturas (PEREIRA, 2006, p. 36). Em meio a esse cenário, a família brasileira

contemporânea vem se (re)desenhando, à guisadas profundas e inúmeras mudanças culturais,políticas, sociais, econômicas e jurídicas ocorridasno Brasil desde o final do século XIX. Sobre essasmudanças e sem a pretensão de exaurir umaquestão vasta e densa como esta, destacam-sealgumas ocorridas no campo jurídico,especificamente os dispositivos constitucionais, osquais norteiam, ao tempo em que refletem, aconduta social, politica e cultural de umasociedade. Assim, na positivação do direito defamília, em síntese, destaca-se que a Constituiçãopromulgada em 1934 conferiu uma grandeimportância jurídica à família, dedicando-lhe umcapítulo exclusivo, que classificou a união atravésdo casamento como processo de constituição dafamília legítima. Nesse documento, estabeleceram-se as regras de indissolubilidade do casamento,inauguradas com o Código Civil brasileiro de 1916(BRASIL, 1916). Assim, a chamada família legítimapassou, então, a gozar de alguma proteção estatal(BRASIL, 1934).

Convém destacar que as Cartas Magnassubsequentes (BRASIL, 1937, 1946, 1967) e aEmenda Constitucional n. 1, de 1969, mantiveram anoção de que a constituição da família só ocorreriapelo casamento civil indissolúvel. Não obstante alegislação apresentar as premissas da famílialegítima, outras formas de união conjugal nuncadeixaram de ocorrer, mas se configuraram comofamílias informais, não sendo reconhecidaslegalmente e, por consequência, desprovidas daproteção do Estado.

Com a promulgação da Constituição Federal de1988, redefiniu-se, dentre outros aspectos, o direitoentre os cônjuges, pelo estabelecimento daigualdade, perante a lei, entre o homem e a mulher.Esse texto constitucional privilegia a afetividadeentre o casal na fundação do núcleo familiar,deixando o casamento civil de ser a única formapossível da formação familiar. A Carta Magna traztambém o reconhecimento da legalidade da uniãoestável, cuja característica principal está no fato deos cônjuges não necessariamente terem sesubmetido ao casamento civil. Nesses termos,refletindo o contexto sócio-histórico, cultural epolítico atual, A Constituição de 1988 reconhecejuridicamente a pluralidade das organizações

familiares, como uma marca indelével da famíliacontemporânea (BRASIL, 1988).

O Código Civil de 2002 reforça a pluralidade dasconstituições dos grupos familiares e a maiorigualdade de direitos entre seus membros, além dereafirmar o reconhecimento legal da família formadacom base na união estável. O novo código promoveainda um equilíbrio jurídico entre os diversoscomponentes da família, os quais passaram a terdireitos similares no interior do grupo,independentemente das diferenças sexuais ouetárias (BRASIL, 2002).

As mudanças ocorridas no cerne da famíliacontemporânea também são abordadas por autorascomo Coelho (2002), Kehl (2003) e Rosa (2003), asquais concordam que essas transformações estãoligadas, sobretudo, às alterações do papel femininona sociedade decorrentes, principalmente, demudanças engendradas no mercado de trabalho.Além disso, as modificações na relação de poderentre os gêneros masculino e feminino foram umimportante passo na história da constituição dafamília contemporânea, já que colocaram em xequeas bases da secular família patriarcal. ConformeKehl (2003, p. 164),

[...] a família “hierárquica”, organizada em torno dopoder patriarcal, começou a ceder lugar a ummodelo de família onde o poder é distribuído deforma mais igualitária: entre o homem e a mulher,mas também, aos poucos, entre pai e filhos. Se opátrio poder foi abalado, é de se supor que algumdeslocamento tenha ocorrido do lado dasmulheres – a começar pelo ingresso no mercadode trabalho, com a consequente emancipaçãofinanceira daquelas que durante tantas décadasforam tão dependentes do “chefe da família”.Outro aspecto restrito ao universo feminino que

impactou profundamente a organização familiarcontemporânea refere-se ao surgimento edisseminação do uso da pílula anticoncepcional.Esta conferiu à mulher maior autonomia sobre seucorpo e sexualidade e deu mais poder decisório aoseu papel familiar e social, possibilitando-lhe maioringresso e permanência no mercado de trabalho.Tal comportamento também interferiu no perfildemográfico e influenciou novas configuraçõesfamiliares.

É mister ponderar que as mudanças pelas quaisa instituição familiar passou ao longo do tempo,além dos aspectos já apresentados (relacionados aquestões sociais, culturais, de gênero, dentreoutras), também estão associadas ao contextoeconômico e político presente em dada sociedadee dado momento histórico. Assim, astransformações que se processaram no cerne da

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família refletem alterações estruturais docapitalismo, da reestruturação produtiva e dareforma do Estado, posto que, presentes nocotidiano familiar, interferem diretamente nas suascondições objetivas de sobrevivência e reprodução.

Nesse sentido, compreende-se que asorganizações familiares refletem também asmotivações morais e financeiras dos indivíduos, quevisam ao atendimento das demandas de cadamembro. Assim, a sobrevivência material do grupodepende da manutenção de cada indivíduo, o que,por sua vez, se dá prioritariamente pelo mercado detrabalho, ficando sujeito às relações de trabalho,consumo e inserção social que permeiam asociedade capitalista. Dessa forma, os movimentosde reestruturação do mundo do trabalho e adiversificação interna que isso implica, sobretudocom a introdução da automação e com a crescenteparticipação da mulher no mercado, contribuempara a definição de novos estilos de vida e arranjosfamiliares.

Na esteira desse entendimento, destaca-se arepercussão do papel do Estado nas organizaçõesfamiliares, posto que interfere nas relações que seengendram no âmbito familiar, entre seus membrose entre estes e a sociedade, sobretudo através deleis, políticas e ações interventivas. Estas,principalmente sob o signo da proteção social,muitas vezes primam pelo excesso deresponsabilização da instituição familiar noscuidados com seus membros, o que incidediretamente nos papéis e arranjos familiares.

No lastro das considerações acerca das novasconfigurações da família contemporânea, sublinha-se que a ruptura do modelo tradicional por novosarranjos tem levado alguns pesquisadores do temaa um entendimento equivocado sobre a questão,suscitando o discurso de crise da instituiçãofamiliar. Assim, o que alguns estudiosos definemcomo crise da família, na verdade refere-se àsmudanças ocorridas nos modos de vida, valores, enas condições de reprodução da população(GOLDANI, 1993). Acerca disso, Goldani (1993, p.70-71) manifesta-se da seguinte forma:

No contexto das crescentes dificuldades dereprodução geral da sociedade brasileira, asespeculações sobre a precariedade einstabilidade da instituição familiar ganham forçae são reforçadas pela incapacidade do Estado emprestar os serviços sociais básicos às famíliascarentes e seus dependentes. Legalmente, oEstado brasileiro deve oferecer suporte aosmenores, aos idosos através de programassociais, o que ajudaria a aliviar as pressõeseconômica e pessoal destas famílias. Entretanto,o que se observa atualmente é um crescente

retrocesso dos serviços públicos. O Estado tratade minimizar ao máximo sua contribuição e clamapor mais ajuda da comunidade e da família paracom seus dependentes.Segundo a autora supracitada, outro fator que

contribui para o entendimento equivocado sobre acrise da família refere-se às mudançasdemográficas e seus efeitos sobre a estruturaetária e a longevidade da população, as quais serelacionam com a queda das taxas de fecundidadee com o aumento generalizado da expectativa devida. Tais argumentos, embora utilizados parasinalizar uma crise da família, revelam,paradoxalmente, uma nova forma de organizaçãofamiliar e de relacionamento entre seus membros,o que lhes possibilita um maior convívio (dada alongevidade) e uma maior participação noscuidados com o grupo familiar como unidadedoméstica (redefinição de papéis familiares).

Além desses aspectos, Goldani (1993)apresenta sumariamente três principaisargumentos dos defensores da ideia do declínio dafamília, ao tempo em que os contrapõe. A autoradestaca, como primeiro argumento, o fato de que “afamília passa por uma desinstitucionalizaçãointerna” (GOLDANI, 1993, p. 89). Como reflexo deuma maior autonomia e independência dosindivíduos em face aos demais membros, osgrupos familiares estão cada vez mais dispersos epouco integrados.

Goldani (1993) reconhece que, na atualidade, asfamílias são levadas a criar estratégias deenfrentamento das dificuldades econômicas e porisso os seus membros se obrigam a se inserir nomercado de trabalho (homens, mulheres, jovens eaté crianças) para contribuir com a manutenção dogrupo. Isso colabora com a ruptura do modelotradicional e hierarquizado no qual à mulhercaberiam as atividades domésticas e ao homem, oprovento familiar. Atualmente, a função de provedoré compartilhada com os demais membros dogrupo. Situação que, segundo a autora, não denotauma falência da instituição familiar, mas remete auma redefinição de papéis e posição familiar, assimcomo a uma ressignificação da autoridade parental,democratizando o modelo de família.

O segundo argumento utilizado para sustentar acrise da família defende que “o declínio dofamilismo como valor cultural é evidente e teriacomo origem o crescente individualismo eigualitarismo, características apontadas comomarcas dos processos de modernidade pelo qual[sic] atravessa o país” (GOLDANI, 1993, p. 90).

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Essa assertiva está relacionada à diminuição dotamanho das famílias (inexistência delas com trêsou mais gerações) e a instabilidade das uniões quefragmenta os laços de parentesco (redução deparentes residindo com famílias conjugais).

Na contramão desse entendimento, Goldani(1993) sublinha que, em decorrência das estruturasfamiliares estarem associadas aos diferentesestágios de vida dos indivíduos que as compõem,não é possível fazer generalizações sobre os tiposde famílias (nuclear, ampliada etc.). Para isso,lança mão de informações de estudos históricos(SAMARA apud GOLDANI 1993) que apontam que,em diferentes momentos, houve, no Brasil, umpredomínio da família conjugal ou nuclear, emdetrimento de outros arranjos, demonstrando nãoser possível a cristalização de qualquer modelo nodecurso do processo histórico. Isso revela o caráterdinâmico e não excludente das diferentesconfigurações familiares numa dada sociedade eem certo momento histórico.

O terceiro argumento de apoio à tese dafalência da família refere-se a evidências de que a“família está enfraquecida e debilitada para cumprircom muitas de suas tradicionais funções sociais,inclusive com a reprodução de seus membros e asua própria como grupo.” (GOLDANI, 1993, p. 93).Segundo a autora, essa assertiva se sustenta nodescenso das taxas de fecundidade, no surgimentoda gravidez sem casamento, na “produçãoindependente”, dentre outros fatores atinentes àreprodução biológica da família. A despeito disso,Goldani (1993) assinala que essa reprodução dafamília não perpassa apenas a filiação (procriação),mas também diz respeito à sobrevivência materialdos membros e a novas formas de uniões entre ossexos, o que envolve o aumento da expectativa devida, a mudança dos papéis sexuais e familiares dehomens e mulheres e outras uniões familiares(homoafetivas, monoparentais etc.).

Goldani (1993, p. 100) assim sintetiza o seuposicionamento contrário à ideia de crise dainstituição familiar:

As indicações são de que não haveriadesagregação, nem tão pouco [sic] substituiçãoda família por outras instituições. Haveria, istosim, mudanças no sentido de um modelo maisinformal ou mais democrático de relações nasfamílias, onde a interdependência das trajetóriasindividuais substitui o conceito de dependência eos arranjos domésticos familiares brasileirostomam novas formas, tamanhos e significados.A par desse entendimento, Zamberlam (2001, p.

83) afirma que “a família, como forma de oshomens se organizarem para sua sobrevivência,

tem passado por mudanças que correspondem àsmudanças da sociedade.” Porém, para ele, taismodificações não representam um enfraquecimentoda instituição familiar, mas o surgimento de novosarranjos familiares. De acordo com Szymanski(2002), apesar da existência de novos arranjos, afamília nuclear, como ainda é a mais idealizadasocialmente, leva ao equívoco de que as famíliasque se encontram longe ou fora desse padrãotradicional devem ser consideradas como famíliasdesestruturadas,1 sendo atribuídas a elasresponsabilidades exclusivas por todos oscuidados ofertados a seus componentes.Fracassando, é delas a culpa por problemasdiversos (emocionais, comportamentais, escolares,de conduta legal) de seus membros.

4 Conclusão

Nos séculos XX e XXI, ocorreram inúmerastransformações, que produziram reflexos nasrelações familiares e intensificaram novos evariados arranjos, o que revela que a estruturafamiliar não está isenta de influências econômicas,sociais, culturais e políticas que, de fato, interferemna sua organização e funcionamento.

Isso posto, infere-se não ser possível, nacontemporaneidade, identificar um modelo ideal eúnico de família a ser seguido - haja vista asdiferentes formas que ela vem assumindo - nemestabelecer papéis a serem exercidos nasdiferentes configurações familiares. Nesse sentido,os atuais arranjos familiares apontam novasresponsabilidades para o indivíduo que compõe afamília, que será definida segundo asespecificidades de cada grupo familiar e nãobaseadas em papéis predeterminados ou práticastradicionalmente delegadas, especialmente quantoà questão de gênero. Assim, os papéis semodificarão com o tempo e se definirão dentro deum processo constante de transformações dasociedade.

As mudanças ocorridas na instituição familiarinterditam a ideia de modelo único e sinalizam,como característica marcante da família, naatualidade, a diversidade de suas organizações, asquais refletem contingências sociaiscontemporâneas caudatárias de fatoressocioculturais, econômicos e políticos. Tal contextotem ensejado que alguns autores defendam a tesede uma crise da instituição familiar; porém, o quese observa, na verdade, não é uma crise dainstituição familiar, mas sim mudanças nos modos

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de vida, nos valores e nas condições de reproduçãoda população, as quais incidem diretamente nasconfigurações da família hodierna.

Nessa perspectiva, destaca-se que, apesar detodas as mudanças já ocorridas na famíliacontemporânea, ela continua em permanentemutação, sofrendo e exercendo transformaçõessociais, sendo possível concluir que a suaconstituição é um processo marcado pordinamicidade e plasticidade constantes. Assim, afamília contemporânea pode ser adjetivada comoheterogênea, plural e mutante, posto que não éuma instituição pronta e acabada, mas emconstante modificações, as quais seretroalimentam e interagem, no curso da história,com as transformações gerais da sociedade

Nota:(1) Segundo Mioto (2000, p. 223), famílias desestruturadaspodem ser entendidas como uma “categoria, ou melhor, umrótulo, que serve para designar aquelas famílias que falhamnas suas funções institucionais. Ou seja, implica umprocesso de julgamento que geralmente é realizado a partirde um modelo de família (mais ou menos flexível, dependendodo avaliador) e que pode estar relacionado a determinadosaspectos da vida familiar ou a um conjunto deles. Com oaumento do consenso em relação à diversidade de arranjosfamiliares, o rótulo geralmente é atribuído àquelas famíliasque contrariam as expectativas sociais quanto aos papéis efunções familiares.”

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* Mestranda em Políticas Públicas pelaUniversidade Federal do Piauí (UFPI), especialistaem Administração de Recursos Humanos eassistente social do Tribunal de Justiça doMaranhão.** Pós-doutora em Serviço Social pela PUC/SP,professora do Departamento de Serviço Social(UFPI) e coordenadora do Mestrado em PolíticasPúblicas (UFPI).

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REFLEXÕES ECONÔMICAS: dinheiro,economia e sociedadeFrancisco Prancacio Araújo de Carvalho*, João Batista Lopes** eJanaína Martins Vasconcelos***

A literatura econômica esclarece que as basesda Economia enquanto ciência surgiram doentendimento da economia como um sistemanatural e orgânico (cf. HEILBRONER, 1996; BRUE,2005). Quesnay (1983) explicava a circulação deriqueza através do organismo social, semelhante àcirculação do sangue em um organismo vivo.

O termo economia originou-se do gregooikonomos, significando organização,administração da casa. Ele permite compreendercomo a vida econômica está organizada e quais osmecanismos capazes de promover a otimização deuso de recursos produtivos escassos paramaximizar a satisfação das necessidades daspessoas, tanto em âmbito coletivo como individual.

Atualmente, a Economia é entendida como umaciência social, pois estuda as atividadeseconômicas (produção, distribuição e consumo debens e serviços) com base no comportamentoracional do homem, buscando responder a quatroquestões básicas: o que, quanto, como e paraquem produzir.

Produção, distribuição e consumo sãoexpressões integradas e, ao mesmo tempo,conflituosas no conhecimento econômico daorganização social. A produção gera bens eserviços com um processo paralelo de criação derenda distribuída aos proprietários de fatores deprodução, que realizarão o consumo final. O modode produção tende a criar mecanismos paraconcentração da renda em nome da reprodução docapital e da eficiência econômica. Por outro lado,há conflitos distributivos que geram impactos noconsumo e na qualidade de vida.

Para John Stuart Mill, em seu livro “Principles ofpolitical economy”, o verdadeiro campo da leieconômica era a produção e não a distribuição.Produção e distribuição seriam dois processosdistintos. A distribuição é executada pelasociedade, depende de suas leis e costumes. Jápara Marx, há inter-relações entre o modo deprodução e a distribuição de renda, portanto, nãose poderiam separar; as diferentes sociedadesorganizam seus pagamentos como partes dos

modos de produção; e a sociedade não teriadomínio sobre o processo de distribuição(HEILBRONER, 1996).

No entendimento de Mill (apud HEILBRONER,1996, p. 124),

[...], não existe uma distribuição “correta” - pelomenos, nenhuma que a economia tenhadeclarado conhecer. Não existe apelo para “leis”que justifiquem como a sociedade partilha seusfrutos: há apenas homens dividindo sua riquezacomo acham melhor.Nesse sentido, estudar Economia significa

entender as relações sociais do comportamentoeconômico. A vida humana é, portanto, a condutorade um modo de produção; e suas relações criamum ambiente agregado de implicaçõeseconômicas, sociais e naturais. Qual seria, então,o melhor comportamento agregado para o conjuntoda sociedade? Será possível conduzir osindivíduos? O distanciamento entre a produção e adistribuição cria impactos negativos sobre oconhecimento econômico? Este gera os problemasde ordem econômica, social e natural? Entender aeconomia como boa ou má exige um emaranhadode avaliações complexas e interdisciplinares quenão podem necessariamente ser eximidas dejuízos de valor.

Muitas vezes, a ciência econômica é entendidacomo promotora do bem-estar individual emdetrimento do coletivo; e, de alguma maneira, comoinstrumento de ajuda na ampliação dasdisparidades sociais. Em parte, a sociedade, porexemplo, qualifica o dinheiro como algo que pareceexógeno à vida e aos sistemas econômicos esociais, como alguma coisa que tem uma dinâmicaprópria e independente. Assim, o dinheiro seria denatureza má? Seria símbolo de associação aomau? Não se pode servir a Deus e ao dinheiro?Existe uma relação direta entre o dinheiro e o mau?O dinheiro serve para prática do bem? Ou, ainda,dinheiro cria felicidade? A busca pelo dinheiroexclui o espaço para a felicidade? Alguns fatosevidenciam o contraste de pessoas muito pobres efelizes e a angústia dos ricos infelizes? Existe, defato, uma associação entre dinheiro e felicidade?Essas são questões complexas que exigem um

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estudo profundo que escapa ao escopo dessareflexão.

O termo dinheiro, é atribuído ao latim moneta,moeda; uma associação ao templo Juno Moneta,local onde se cunhavam moedas em Roma(HUGON,1974).

A moeda surgiu naturalmente para atender àsnecessidades de trocas de mercadorias; é uminstrumento aceito de forma generalizada pelasociedade e desenvolveu funções importantes aolongo da evolução econômica e social.

A literatura econômica explana que,inicialmente, não havia moeda, existia o escambo,troca direta de mercadorias; prática que foi setornando inoperante com a evolução do modo devida econômico, com a ampliação do volume demercadorias e do próprio processo de trocas.Surgiram, assim, na Antiguidade, as primeirasmoedas, chamadas de moeda-mercadoria, emque algumas mercadorias passaram a ser aceitascomo dinheiro, tinham aceitação geral pelaspessoas e certo grau de raridade (cf. LOPES;ROSSETTI, 2002). O boi é um exemplo de moeda-mercadoria que foi utilizada na Grécia. Suponhaque você tivesse arroz e desejasse adquirir 2 kgde carne, assim, você deveria encontrar alguémque quisesse arroz e tivesse carne, coincidindoos desejos. Porém, a divisibilidade da carneseria um problema, pois matar um boi para tirar 2kg dependia do encontro de outras pessoas quedesejassem carne, que é um produto perecível,e que tivesse algo desejado pelo dono do boi pararealizar a troca.

A moeda deve refletir o valor das mercadorias;então, quantos quilos de arroz valeriam 2 kg decarne? Imagine agora você levar o boi para outracidade para trocar por arroz, ou o arroz para trocarpor carne. E o custo de viagem/transporte? E aperda de peso, seu trabalho e cansaço do boi?Então, a moeda deve ter portabilidade.

Imagine também o sal como moeda. Ocorrendouma chuva, o “dinheiro” acabaria; por isso, adurabilidade também é uma característicaimportante para o dinheiro. Esses relatos mostramfatores que dificultavam as relações de troca; e amoeda seria um meio para facilitá-las.

A manutenção do valor do dinheiro por umperíodo de tempo é outra questão relevante, poispermitia acumular a riqueza material em moeda,que tem alto grau de liquidez.

A moeda já foi representada por boi, sal e outrasmercadorias, mas foi o uso de metais preciosos -

ouro e prata, principalmente - que equacionou bema qualidade do dinheiro, pois estes metais tinhamaceitação geral, eram fácil de fracionar, refletiam ovalor de todas as mercadorias, além de seremduráveis, terem baixo custo de transporte erefletirem o valor de todos os outros bens eserviços (cf. LOPES; ROSSETTI, 2002).

No entanto, a acumulação de moeda criou umambiente de insegurança para as pessoas, quepassaram a depositar seu dinheiro nos primitivosbancos, os quais emitiam certificados dedepósitos. Surgiu, assim, a moeda-papel, quetinha lastro integral, ou seja, os papéis emitidospelas casas bancárias tinham lastros de 100% emmetais preciosos depositados. Com o tempo, esselastro foi sendo perdido, pois as pessoas nemsempre procuravam todo o dinheiro depositado nosbancos e estes passaram a emprestar umexcedente de certificados de depósitos, surgindo ochamado papel-moeda. Dessa maneira, asemissões de papel pelos bancos perderam o lastrode 100% em depósitos bancários; foi criada achamada moeda fiduciária, ou seja, que dependeda confiança (LOPES; ROSSETTI, 2002).

Em função da desconfiança dos depositantescom a perda de lastro monetário, houve a quebrado sistema bancário; e o Estado, por lei,determinou o curso forçado do papel-moeda, tendoseu monopólio e controle sobre sua emissão.O Estado emite a moeda de aceitação geral quenão tem mais lastro. Atualmente, existem a moedaescritural, o depósito à vista, a moeda e a quasemoeda - títulos e poupança.

Ao longo de todo o processo evolutivo damoeda, suas funções se definiram como (a)instrumento de troca - intercâmbio dasmercadorias -, (b) reserva de valor -manutenção do valor por determinado período detempo - e (c) unidade de conta - referência devalor de troca de todas as mercadorias.

A produção cria um processo paralelo de rendaque remunera os fatores de produção e possibilitao consumo, mantendo continuamente o fluxocircular da renda. Assim, não faz sentido elevar arenda das pessoas sem que ocorra produção, semum lastro produtivo, pois isso pode apenas provocarinflação, caso a economia esteja em plenoemprego. Na economia clássica, esse processo éexplicado pela equação quantitativa da moeda.

O aumento de moeda em circulação geraprocura por bens e serviços; na falta destes, podeocorrer inflação. A emissão de moeda maior que o

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necessário para a troca de determinada quantidadede mercadorias e para que a moeda cumpra suasdemais funções pode criar um processoinflacionário.

No mercantilismo ficou evidente que o acúmulodos metais preciosos poderiam tornar as naçõescada vez mais ricas, entretanto, as relaçõeseconômicas entre as nações evidenciaram que nãobasta acumular moeda, é necessário produzir bense serviços.

Contudo, em uma economia com capacidadeociosa, a moeda pode elevar a produção e a rendasem necessariamente elevar a inflação.Keynes(1996) apresentou o motivo de demanda pormoeda para especulação e, nesse sentido, amoeda pode alterar variáveis reais. A expansão dogasto público em um cenário de crise, porexemplo, pode colaborar para elevar a produção, oemprego e a renda em uma economia comcapacidade ociosa e de curto prazo.

A moeda é um instrumento para realização dastransações e, na verdade, serve para as pessoastransacionarem a quantidade de bens e serviçosque a sociedade dispõe para atender às suasnecessidades. Para isso, o dinheiro é uminstrumento necessário para a realização dastrocas, para as pessoas conseguirem comprar evender alimentos, eletrodomésticos, serviços eoutros bens para manutenção da vida. Ademais,o dinheiro pode também ampliar o emprego e arenda.

Imaginar um cenário social sem o dinheiro exigereflexão do amplo grau de dificuldades complexasimpostas para a sociedade. No sistema derelações que esta construiu, pode se aproximar doimpossível a produção, a distribuição e o consumosem o uso da moeda, pois esta é um instrumentofundamental para a vida em sociedade e para ofuncionamento da economia.

Quando se fala em dinheiro, a conotação domau está ligada à dinâmica humana que envolveo sistema de produção capitalista. Este sistema éum meio, um instrumento de conexões entre serese uso do meio material, recursos produtivos, capazde gerar a produção necessária e supérflua paraatender aos desejos da sociedade. O problemada imagem negativa do dinheiro está ligada àspessoas, à natureza humana, acumulação e àconcentração do capital e ao modo de organizaçãoeconômica e social.

Max Weber (2004), em seu livro “A éticaprotestante e o espírito do capitalismo”, explica que

o capitalismo dependeu de uma ética para sedesenvolver. Essa mesma ética (ou falta de outras)conduziu o capitalismo para o ambiente atual?

O capitalismo ganhou identidade e formatou-seem um instrumento dinâmico de criação edistribuição desigual, que tem vida própria e querecruta os indivíduos em torno da vida material,esgotada e degradadora das relações sociais,naturais e humanas. O capitalismo desenvolveu-sesem a qualidade do humano, do bondoso,humanitário, tornando-se coisa; e os indivíduostornaram-se matéria em volta da própria matéria.É o domínio do ter diante do ser?

E nas ideias de Marx (1988)? O capitalismo nãose sustentaria pela concentração e acumulação docapital? Ocorreria a sua superprodução e falta dedemanda? A especulação criaria um descompassocom a economia real? Para continuidade doprocesso de reprodução do capital, a acumulaçãoe a concentração são determinantes para aconstrução da eficiência e competitividade, ou ocontrário? Há concentração da massa cada vezmaior de riquezas à disposição do capital e oaumento da miséria das massas trabalhadoras?Será que Tugan-Baranovski estaria certo em afirmarque o capitalismo poderia desenvolver-se a perderde vista se fossem cumpridos os requisitos daproporcionalidade da reprodução do capital?Quão social é o capital individual?

As verdades são temporalmente relativas eas respostas aos problemas são sazonalmenteabsolutas. Das organizações mais simples às maiscomplexas, os indivíduos devem se submeter auma ordem social para sobreviverem. No ambientefamiliar, por exemplo, existe um conjunto de regrasque permitem uma família coexistir. Em ambientesmais complexos não é diferente. Uma sociedadese organiza em um conjunto de subsistemas delógica econômica, cultural, política e social.Conhecer a estrutura dessa lógica e revertê-la épapel do indivíduo que se deixou levar em conjuntopara um sistema unilateralmente individualizado.O simples é saber que pensar o social emdetrimento do individual pode transformar nossomodo de produção capitalista em algo melhor paratodos, inclusive para o próprio indivíduo. Uma maiordistribuição de renda, não meramenteassistencialista, poderia também ampliar o ganhodo capital? Uma vida melhor para todos estagnariao modo de produção capitalista?

Em fins do século XVIII, Adam Smith (1983), umdos precursores da ciência econômica, em seu

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livro “A Riqueza das Nações”, defendia que a buscado interesse individual resulta em benefíciossociais, pois motiva a divisão social do trabalho e aacumulação de capital, causas do crescimento dobem-estar coletivo. Smith afirmou que não é dabenevolência do açougueiro, por exemplo, queesperamos nosso jantar, mas considerando o seupróprio interesse. Para ele, o trabalho de todos énecessário para manter a humanidade; e oshomens são motivados ao trabalho pelo interessepróprio e pelo amor à família. Nesse sentido,deve-se assegurar o fruto do trabalho ao homem,justificando, a motivação maior, as afeições maisíntimas que dedicamos aos nossos amigos eparentes, pois o amor genérico à espécie égeralmente muito mais fraco. Para Smith, ointeresse individual seria capaz, no agregado, decriar um equilíbrio benéfico para o conjunto dasociedade. Uma mão invisível, guiada pelomecanismo de preços, transformaria o aglomeradode bem-estar individual em um bem estar social.

Enquanto existia um certo equilíbrio de forçasnas relações econômicas, esperava-se maiorbenefício agregado das ações humanas individuais,entretanto, a consolidação do modo de produçãocapitalista, que cria uma estrutura não distributivapor natureza, foi permitindo aglomeraçõesprodutivas que criaram desequilíbrios cada vezmais fortes na apropriação da renda.

Assim, nesse sistema, o Estado também foi seconsolidando como agente de esperança;importante para ajudar a suavizar distorções ereduzir externalidades. O poder público, entretanto,ajuda direta ou indiretamente na ampliação da nãodistribuição da renda criada, apesar de exercertambém o processo de agente distribuidor. Deve-seexemplificar economias como a do Brasil, que seencontra entre as maiores do mundo, mas comindicadores sociais de países muito pobres, pois éum país em que parte importante de sua renda écanalizada para pagamentos de juros eamortização do capital.

O interesse individual aplicado na atividadeprodutiva pode gerar benefícios sociais; porém,esse mesmo interesse desregulado e movido pelaacumulação e concentração de indivíduos criasérios problemas para a sociedade. Neste caso,o mau é um adjetivo ligado a esses indivíduos quepodem dar essa conotação ao destino dasociedade, dos sistemas de produção, do meioambiente e da vida e não exatamente é umacaracterística da economia, pois esta resulta do

comportamento dos indivíduos. Os indivíduosconstroem o sistema, mas ao mesmo tempo esseconstrói indivíduos.

A Economia enquanto ciência social tem navida humana o elemento-chave de sua dinâmica eapenas ela permite a existência da economia e dodinheiro. A interação entre os indivíduos buscandoa realização de seus desejos e necessidadesdeterminam o modelo econômico prevalecente.Este tem a capacidade de retroagir e readaptar aspessoas, que também são agentes, em processocontínuo, reconstruindo ininterruptamente a formaeconômica de agir.

A economia é uma ciência dinâmica e oseconomistas pensam também a melhor forma de,com o mínimo possível, ampliar a qualidade devida e criar uma sociedade mais justa e igualitária.Infelizmente, decisões técnicas socialmente justasinexistem ou são desconsideradas em prol deinteresses unilaterais e individuais. Seriamplenamente os interesses de nações e indivíduosantagônicos, rivais, egoístas e concorrentes?

É fundamental o controle do interesse humanopara construção de um equilíbrio social eeconômico mais homogêneo e equitativo. Quaisvalores sustentam a sociedade? Democracia eliberdade são relatividades. Do que adianta terliberdade sem condições de usufruí-la edemocracia sem ter voz para participar?

Esse mesmo capitalismo é o instrumentoeconômico que temos para manter a sociedade e avida. O homem, ao longo de sua história, estruturouo pensamento dito racional para a construção dosmeios sociais que possibilitassem, a princípio,sobrevivência? Ao longo da trajetória, eleaprofundou as virtudes da egoísta naturezahumana? Para Maquiavel (1972), os homens sãoingratos, volúveis, simuladores e ávidos por lucro.O conflito e o caos são desdobramentos dessaspaixões e o único meio de dominar as paixõeshumanas é o poder.

Diante da impossibilidade de sobrevivência dohomem e da própria raça, surgiu a ideia docontratualismo (cf. HOBBES, 2006; ROUSSEAU,2007) que compreende as doutrinas que veem aorigem da sociedade e o fundamento do podercomo resultado de um contrato entre as massas dapopulação.

Para Hobbes (2006), existiria um estado denatureza, em que o homem era lobo do homem,não estava organizado politicamente, não haviadireitos ou leis, reinariam as paixões humanas,

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seria a guerra de todos contra todos e prevaleceriaa lei do mais forte. Para sair dessa situação, eranecessário o estabelecimento de um pacto, acelebração de um contrato entre os indivíduos, queconcordariam em renunciar ao seu direito a tudopara entregá-lo a um poder soberano, o Estado,que seria encarregado de promover a paz. Existecerto grau de declínio teórico nessa discussão.A paz existe? Que tipo de paz é esta? Qual oambiente social resultante? O Estado tem sidocapaz de exercer plenamente suas funções?

Com a organização social, o homem vemconstruindo e é construído pela sociedade a pontoshistóricos irreversíveis. É ilusão imaginar oretrocesso desse processo. Crescimentospopulacionais maiores, aumento da tecnologia,desenvolvimento das habilidades de comunicação,de sistemas políticos, sociais e econômicos, comintensificação da divisão do trabalho, levantaram omaior conhecimento e exploração do meioambiente. Por um lado, elevou-se o crescimentoeconômico, mas, por outro, não se teve respostascom melhorias das condições de vida de formageneralizada, nem se garantiu a preservação domeio natural. Quebrou-se o ciclo natural entrehomem e meio; um padrão de consumo acimados suportes dos ecossistemas que existe nospaíses desenvolvidos e as condições dos paísespobres podem indicar a impossibilidade da vidasustentável em suas dimensões política,econômica, cultural, social e ambiental.Estamos vivendo uma crise?

O modo de produção capitalista depende dedemanda dos bens e serviços criados nosprocessos produtivos. O consumo efetivo dos bensfinais e intermediários é importante para, além desatisfazer necessidades, realizar a remuneraçãodos fatores de produção, pagando o trabalhadorcom salário, remu nerar o capital com o juro, osaluguéis e os lucros e fornecer tributos e outrasreceitas para o governo. Essa é uma condiçãonecessária para que o processo de produção serealize continuamente. Sem consumo, as famíliasnão receberão renda a posteriori e toda a cadeia deprodução estagnar-se-ia; haveria desemprego defatores e a atividade econômica comprimir-se-ia.Não existindo venda, as empresas não pagariamaos fornecedores e funcionários e isso quebraria ociclo de pagamentos.

Em economia, descobriram-se os meios deampliar continuamente o emprego e a renda a partirdos investimentos que elevam a capacidade ou a

eficiência produtiva. Mas não há uma lógicamecânica e imediata; é necessário conhecimentodos sistemas econômicos e capacidade deinterferir de maneira tal que os resultados sejam osmelhores do ponto de vista econômico e social.

Reitera-se então: não seria um exercícioimportante imaginar que um capitalismo com maiorgrau de distribuição poderia elevar inclusive osganhos do capital? Quais os benefícios sociaisdestes ganhos?

O capitalismo é apenas o reflexo de quemsomos ao buscarmos os meios de coexistência.Isso não significa dizer que todos estamoscondenados e que somos todos maus e/ou bons;por isso é que a solução dos problemas temidentidade. As pessoas, com suas ações eatitudes, devem melhorar esse instrumento,moldando-o em algo melhor. Devemos acreditar emsoluções inteligentes que não neguem aprevalência do social em detrimento do individual.É uma equação complexa. É utopia?

De fato, precisamos conhecer, pensar e agir.Urge um planejamento econômico global integradonão segmentado e unilateral que respeite asparticularidades das nações e dos indivíduos;ações e atitudes mais justas e igualitárias;socialização dos interesses individuais através deações firmes e abrangentes dos agentes públicos,não expropriando a capacidade do sistemaeconômico manter as relações necessárias parasua perpetuação; a extinção da corrupção;educação de qualidade etc. Estas seriam algumasquestões importantes a serem consideradas paraamenizar os problemas?

Precisamos reconduzir a trajetória docapitalismo, da economia e da sociedade antesque o tempo seja suficiente apenas para conduçãoda barbárie. Nesse sentido, é preciso ir para alémdo pensar, é necessário ação no sentido deconduzir coletivamente os indivíduos para umcaminho melhor, mais social, justo, equilibrado eigualitário. Isso só será possível peloredirecionamento da educação, da economia, danatureza, da cultura, da política e da sociedade.Nas organizações de indivíduos mais primitivasexistia uma lógica coerente de uma vida emcomunidade. Isso foi perdido para uma construçãoindividualista. É necessário entender o coletivoacima do individual. Temos que viver em sociedadee não em um conjunto aglomerado de indivíduossobre um ambiente natural incerto e um meiosocial degradado

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ReferênciasBRUE, S. L. História do pensamento econômico. SãoPaulo: Pioneira Thomson, 2005.HEILBRONER, R. L. A história do pensamentoeconômico. São Paulo: Nova Cultural, 1996.HOBBES, T. Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2006.HUGON, P. História das doutrinas econômicas. SãoPaulo: Atlas, 1974.KEYNES, J. M. A teoria geral do emprego do juro e damoeda. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (OsEconomistas).LOPES, J. C.; ROSSETTI, J. P. Economia monetária. 8.ed. São Paulo: Atlas, 2002.MAQUIAVEL, N. O príncipe. 2. ed. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1972.MARX, K. O capital. São Paulo: Nova Cultural, 1988.(Os Economistas).QUESNAY, F. Quadro econômico dos fisiocratas. SãoPaulo: Abril Cultural, 1983. (Os Economistas).ROUSSEAU, J. J. Do contrato social. São Paulo:Martin Claret, 2007.

* Professor do Departamento de CiênciasEconômicas (Decon) da Universidade Federal doPiauí (UFPI), mestre e doutorando emDesenvolvimento e Meio Ambiente (UFPI).**Professor da Universidade Federal, doutor emCiências (Energia Nuclear na Agricultura) pelaUniversidade de São Paulo (1998).*** Professora do Decon/UFPI e mestra emDesenvolvimento e Meio Ambiente (UFPI).

SMITH, A. A riqueza das nações. São Paulo: AbrilCultural, 1983.WEBER, M. A ética protestante e o espírito docapitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

O NASCIMENTO DA CIÊNCIAMODERNAGerson Albuquerque de Araújo Neto

O mundo contemporâneo é fortemente marcadopela ciência. No entanto, a ciência como seconhece hoje formou-se na modernidade. A ciênciaque se fazia na época antiga, por exemplo, naGrécia Antiga e em Roma, e a ciência que se faziana época medieval não tinham as característicasexigidas para uma forma de conhecimento serchamada hoje de ciência. Este texto tem o objetivode discutir dois dos principais pensadores e suasideias formadoras do empreendimento que hojeconhecemos como ciência.

O primeiro pensador a colaborar na ideia do quese chama ciência moderna foi o padre polonês, quedepois se tornou bispo, chamado NicolauCopérnico (1473-1543). Além dos estudoseclesiásticos, Copérnico se formou em medicina eestudou astronomia. Fazendo observaçõesastronômicas, ele percebeu incoerência entre aposição de alguns astros no firmamento e o queera previsto na teoria ptolomaica-aristotélica. Numaatitude revolucionária, Copérnico (1984) propôs ummodelo astronômico retirando a Terra do centro eimóvel e colocando o sol no centro. Com estemodelo, as observações e previsões ficaramajustadas.

É questionável se Copérnico pensava que esseseu ajuste correspondia à realidade ou se eraapenas um artifício matemático. A grande maioriadefende a primeira posição.

No prefácio da sua principal obra, “Asrevoluções das orbes celestes”, Copérnico (1984,p. 1) escreveu: “Nem tampouco é necessário queestas hipóteses sejam verdadeiras nem até sequerverosímeis, mas bastará apenas que conduzam umcálculo conforme às observações.”

Alguns historiadores e comentadores deCopérnico chegam a suspeitar que estas palavrasnão teriam sido escritas por ele, mas por seuassessor, Andreas Osiander, com receio de queseu mestre pudesse sofrer alguma punição emconsequência das ideias heliocêntricas. Sendo deautoria ou não de Copérnico, este texto revela umadas principais questões da filosofia da ciência, queé o realismo.

Outro ponto interessante na teoria heliocêntricade Copérnico é que enquanto o sistemaptolomaico-aristotélico estruturava o modelo dasesferas e corpos celestes com 48 movimentos, omodelo copernicano reduzia esta quantidade demovimentos. O seu modelo era, portanto, mais

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simples. Isto se coaduna com uma ideia quemarcar a ciência moderna: a natureza é simples.Esta é uma ideia que vai ser questionada pelosteóricos da complexidade no final do século XX.

As ideias copernicanas do heliocentrismoprovocaram mudanças no pensamento humano. Aprimeira foi que a Terra deixou de ser o centro douniverso e, por consequência, o homem deixou dehabitar o centro do mundo, com tudo girando aoseu redor. A segunda foi que a ciência podia afirmarproposições diferentes que até o momento a igrejadefendia. O grande filósofo até aquele momento,Aristóteles, poderia estar equivocado. A ciênciapoderia afirmar algo que contrariasse a intuição,pois esta levava a pensar em uma Terra imóvel e osol girando ao redor das nossas cabeças, pelomenos durante o dia.

Outro grande pensador que contribuiu para oaparecimento e solidificação da ciência moderna foiGalileu Galilei (1564-1642). Inicialmente Galileuestudou medicina, mas acabou desistindo e seformando em matemática. Ele demonstrouinteresse por astronomia e uma posição favorávelao heliocentrismo de Copérnico. Durante a vida,Galileu desenvolveu uma correspondência muitoativa; escreveu para diversas pessoas. Estacorrespondência de Galileu é rica em reflexõessobre a ciência (GALILEI, 1994).

A invenção da luneta na época de Galileu e oemprego desta por ele foi determinante para aderrocada do sistema geocêntrico. A luneta foiinventada pelos holandeses, embora algunshistoriadores defendam que os inventores foram osingleses, que, por questões militares,permaneceram com esta invenção em segredo(REALI; ANTISERI, 1990).

De qualquer forma, Galileu soube que alguémestava com um equipamento que aproximava eampliava a visão dos objetos distantes. Ele, então,mandou comprar o equipamento; desmontou-o efez outro com uma capacidade maior. Galileu foi oprimeiro homem a apontar a luneta para observaros objetos astronômicos (REALI; ANTISERI, 1990).

Com este seu trabalho, Galileu acumulou umaquantidade razoável de novidades sobre os corposcelestes. Inicialmente, estas novidades foramapresentadas na obra intitulada “Siderius Nuncius”,que pode ser traduzida como “Mensageiro dosCéus” (GALILEI, 1987).

A cosmologia aristotélica-ptolomaica estruturavao mundo em oito esferas, com a Terra no centro eimóvel. As esferas giravam ao redor da Terra. Na

primeira esfera, estava a lua. Esta separava omundo em dois: o mundo sublunar e o mundosupralunar. No mundo supralunar não haviamovimento qualitativo, ou seja, não havia mudançaqualitativa nos seres. Com relação ao movimentoquantitativo, no mundo supralunar, só havia omovimento circular uniforme; enquanto abaixo dalua o movimento quantitativo era retilíneo(COPÉRNICO, 1984).

Como só haveria movimento qualitativo abaixoda lua, os objetos celestes seriam esferasperfeitas. Assim, seriam a lua, o sol e os planetas.Porém, quando Galileu apontou a luneta para a lua,ele viu que esta não era uma esfera perfeita. Asobservações mostravam montanhas e craterassobre a superfície lunar. Isto estaria em desacordocom a cosmologia aristotélica-ptolomaica(GALILEI, 1987).

Também quando a luneta foi apontada para osol, Galileu observou que na superfície deste haviamanchas. Ele apontou a luneta para Júpiter e viuaquilo que os homens somente com os olhos nãoveem, que são quatro luas ou satélites orbitando aoredor daquele planeta. Com isso, Galilei (1987)inferiu que existia outro planeta além da Terra quepossui lua.

Galileu observou, ainda, estrelas que com osolhos, sem lunetas, não eram vistas. Isto mostravaque estas estavam mais distantes. Portanto, asestrelas não estavam fixas em uma esfera a umadistância uniforme da Terra. Acabou-se o limite douniverso nas esferas das estrelas propostas nateoria aristotélica-ptolomaica. Ele observou,também com ajuda da luneta, que algumasestrelas que ao olho humano eram vistas comoponto formavam duas estrelas; eram, na realidade,um sistema binário, ou até três estrelas, formandoum sistema terciário (GALILEI, 1987).

Com todas estas observações, terminava,então, a distinção entre a Terra e a lua, ou mundosublunar e mundo supralunar.

Galilei (1987) também descobriu as fases deVênus e estas não podiam ser explicadas pelosistema geocêntrico.

Na discussão com a igreja católica, Galileu semanteve um adepto do catolicismo, mas mantendosuas ideias científicas. Ele foi duas vezes a julga-mento. A primeira vez, em 1616, não sofreu conde-nação; mas, quando foi julgado a segunda vez, em1632, foi acusado de descumprir um juramento feitopor ocasião do primeiro julgamento de não ensinaro sistema heliocêntrico (VIDEIRA, 2009).

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Apesar de um temperamento difícil, Galileu serelacionava com alguns membros importantes daigreja; entre eles, o cardeal Berllamino. Este semostrava receptível a aceitar o heliocentrismodesde que Galileu apresentasse uma prova paraisto. Quando seu amigo cardeal Mafeo Barberine foieleito papa Urbano VIII, Galileu viajou até Roma econversou bastante com o papa sobre suas ideias;pediu à Sua Santidade a permissão para publicarum livro com suas ideias. O papa permitiu, desdeque Galileu não defendesse o heliocentrismo(REALI; ANTISERI, 1990).

Galileu então publicou o livro “Diálogo sobre osdois sistemas máximo do mundo.” O livro, escritoem forma de diálogo, apresenta três personagens:Sagredo, Simplício e Salviati, sendo que um dospersonagens, Salviati, assumia a defesa doheliocentrismo, Simplício defendia o aristotelismo eo terceiro personagem, Sagredo, queria entenderqual dos dois sistemas era melhor. No livro, lê-seclaramente que o heliocentrismo leva vantagemsobre o geocentrismo (GALILEI, 2011).

Os adversários de Galileu convenceram ao papade que o personagem Simplicio, que eraridicularizado no texto, representava o papa.Sentindo-se traído por Galileu, o papa Urbano VIIIautorizou a Inquisição a abrir um novo processocontra Galileu. Neste processo, Galileu foi acusadode descumprir o que prometera no primeiroprocesso: de não fazer nenhuma defesa pública dosistema heliocêntrico. Galileu se defendeu dizendonão se lembrar deste juramento e argumentara queno seu livro não tinha intenção de defender que omelhor sistema era o heliocêntrico. De posse dosdocumentos do primeiro julgamento onde havia acitação no texto do juramento de Galileu de nãoensinar ou defender o heliocentrismo e com baseno fato de que claramente se percebia na leitura dolivro de Galileu que ele assumia a posição heliocên-trica, os juízes não aceitaram os argumentos deGalileu e o condenaram (REALI; ANTISERI, 1990).

Pierre Redondi (1991), no livro “Galileu herético”,levantou a tese de que Galileu não foi condenadopor questões ligadas ao heliocentrismo e sim poradotar um atomismo que ia de encontro à ideia detransubstanciação do pão e do vinho na eucaristia.Para Galileu, a bíblia não seria um livro de ciênciase sim um livro de ensinamentos religiosos. Éfamosa sua frase escrita na carta à senhoraCristina de Lorena: A bíblia não é um livro que dizcomo é o Céu, mas que diz como se vai para oCéu (GALILEI, 1994).

Galileu afirmou também que se a questão daposição do sol fosse tão importante na questão dafé teria mais referências sobre o sol na bíblia;defendeu uma autonomia da ciência com relação àfé; e defendeu que não se deve fazer uma leituraliteral da bíblia (REALI; ANTISERI, 1990).

Como mostra o sucesso da luneta, aexperiência é fundamental na produção doconhecimento científico. Qualquer hipótese semuma explicação racional ou experimental deve serabandonada. É curioso que Galileu se equivocou aorecusar a explicação das marés pela atração dalua. Para ele, estas ocorreriam porque a Terraestava se movimentando.

Como se viu neste texto, tanto NicolauCopérnico como Galileu Galileu elaboraram ideiasque estão na base do que conhecemos comociência moderna. Eles não foram os únicos. ReneéDescartes, Francis Bacon, Isaac Newton.Johannes Kepler e outros também colaboraram naformação da ciência moderna

ReferênciasCOPÉRNICO, N. As revoluções das orbes celestes. Lisboa:Calouste Gulbenkian, 1984.GALILEI, G. Sidereus nuncius: o mensageiro das estrelas.Rio de Janeiro: Museu de Astronomia e Ciências Afins/Salamandra, 1987.GALILEI, G. Carta a Cristina de Lorena y otros textos sobreciência. Madrid: Alianza, 1994.GALILEI, G. Diálogo sobre os dois máximos sistemas domundo ptolomaico e copernicanismo. São Paulo: Editora 34,2011.REALI, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: do humanismo aKant. São Paulo: Paulus, 1990. v. 2.REDONDI, P. O Galileu herético. São Paulo: Companhia dasLetras, 1991.VIDEIRA, A. A. P. As descobertas astronômicas de GalileuGalilei. Rio de Janeiro: Vieira e Lent, 2009.

* Professor do Departamento de Filosofia da UFPI edos Mestrado em Ética e Epistemologia/UFPI e emMeio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável/UFPI.Doutor em Comunicação e Semiótica/PUC-SP.

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O INTEGRACIONISMO SUL-AMERICANO: considerações críticas à luzda teoria da dependenciaPor Antonia Valtéria Melo Alvarenga* e João Batista Vale Júnior*

Resumo: o presente artigo procura estabelecer uma articulação entre pressupostos da Teoria da Dependênciae o debate acerca da proposta e esforços de integração entre os Estados da América do Sul. Considerou-se,para efeito de discussão, a relevância da mencionada teoria para a compreensão acerca das possibilidades elimites sócio-históricos e políticos - imanentes à região - para a constituição de um bloco regional capaz deequacionar suas tensões e problemas internos para, com isso, apresentar-se como candidato confiável ealtivo à participação na ordem sócio-econômica globalizada.Palavras-chave: Integralismo. América do Sul. Dependência.

Abstract: this article seeks to establish a link between assumptions of Dependency Theory and the debateabout the proposal and integration efforts between the states of South America. Itwas considered, for purposesof discussion, the relevance of that theory to the understanding of the possibilities boundaries and socio-historical and political - immanent to the region - for the establishment of a regional bloc capable of solvingtheir internal tensions and problems with this, present itself as confident and flashy candidate for participationin the global socio-economic order.Keywords: Integralism. South America. Dependency.

1 Introdução

O século XX foi um período de turbulênciaseconômicas e institucionais para a América do Sul.Somaram-se às históricas contradições sociaisinternas, o fracasso de modelos dedesenvolvimento econômicos e de utopias políticas,bem como o aprofundamento de uma espécie deestigma que, enraizado tanto nas relaçõesassimétricas com os grandes centros capitalistascomo em um mau gerenciamento daspotencialidades regionais, tem contribuídoinsistentemente para o subaproveitamento, quandonão, mesmo para o desperdício de recursosnaturais e humanos indispensáveis aodesenvolvimento material e a uma maior integraçãocultural e política da região.

No geral, um balanço sobre mais de doisséculos de história revela um saldo históriconegativo, cujo lastro visível tem sido a incapacidadede se agregar valor expressivo à região, a ponto detorná-la realmente capaz de firmar uma presençaexpressiva no cenário internacional. Objetivamente,o fracasso na eliminação de formas primárias dedesigualdade social, na adoção de modelosestáveis e contínuos de geração de riqueza,emprego e renda com crescimento produtivo, assimcomo de remoção do entulho político docaudilhismo populista, associados a erráticas

formas de se explicar as causas dosubdesenvolvimento, tem condenado a América doSul a uma experiência na qual dependênciaeconômica, instabilidade política e sofrimentosocial articulam-se.

O objetivo deste artigo é percorrer, de maneirasucinta, esse terreno adotando uma perspectiva deabordagem teórica inspirada na Teoria daDependência de Fernando Henrique Cardoso eEnzo Falleto (2004). Discute-se acontemporaneidade dos pressupostos contidos nopensamento destes dois conceituados cientistassociais, demonstrando a sua utilidade para umadiscussão acadêmica sobre o lugar e aspossibilidades da perspectiva integracionista napromoção de modelos de desenvolvimentoeconômico compatíveis com as necessidades epotencialidades sul-americanas.

Ao mesmo tempo, procura-se repensar certasperspectivas de aplicação da citada teoria, demaneira a rever erros e lapsos de julgamento sobreo que vem a ser de fato a condição de economiadependente em um contexto internacional cada vezmais influenciado pelo processo de globalização.Foi concedida ênfase especial à discussão emtorno da necessidade tanto de umaproblematização mais cuidadosa acerca doslimites históricos resultantes da própria realidade

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interna da região como do destaque à necessidadede um novo pacto entre os Estados sul-americanos, livre de preconceitos, desconfianças earrivismos políticos.

2 Teoria da dependência: contribuição para acompreensão das singularidades sócio-históricas da América do Sul

Dois séculos de reflexões acadêmicas têmprocurado entender e explicar o que torna aAmérica do Sul uma região com característicashistóricas específicas, diferentes das demais áreasgeograficamente coextensivas ao seu território. Aomesmo tempo, busca-se também avaliar diferençasintraterritoriais e de que maneira as mesmaspossibilitam explicar sensíveis variações quantoaos modos de composição histórica dasinstituições e relações políticas e de inserção nadinâmica da globalização capitalista.

Nos marcos desses estudos, merece destaquea abordagem realizada por Cardoso e Faletto(2004). A despeito de propor um problema geralpara o debate em torno da questão das condiçõesde desenvolvimento do capitalismo na América doSul, os autores não se furtam a considerar, nasentrelinhas de sua análise, o subcontinente umaunidade conceitual sem correspondente histórico.Assim, para ambos,

Há que se distinguir a situação dos países“subdesenvolvidos” com respeito aos “semdesenvolvimento”, e em seguida diferenciar osdiversos modos de subdesenvolvimento segundoas relações particulares que esses paísesmantêm com os centros econômica epoliticamente hegemônicos (CARDOSO;FALETTO, 2004, p. 506).A condição de subdesenvolvimento, em diferen-

tes nuances, representa a característica principaldos Estados sul-americanos. Tendo sido palco deum processo de formação histórica emolduradopela lógica da colonização mercantilista, asdiferenças regionais demonstram uma coexistênciaentre sociedades modernas e sociedades tradicio-nais, cujas variações ocorrem em função do maiorou menor grau, bem como do modo, de inserção nocontexto da globalização econômica. Em comumaos dois tipos de realidades: a dependência emrelação aos centros hegemônicos do capitalismo.Como característica distintiva, por sua vez,observa-se as possibilidades de desenvolvimentonos termos prescritos pela situação específica dedependência que marca cada Estado em particular(CARDOSO; FALETTO, 2004).

A noção de certo dualismo estrutural,originalmente aplicada por Lambert (apud

BIELSCHOWSKY, 2000) para caracterizar asclivagens regionais que marcam um país dedimensões continentais, como é o caso do Brasil,bem se aplica ao contexto sócio-econômico geralda América do Sul. Torna-se possível, assim,apontar a existência de duas realidades distintas:uma marcada por certo potencial dedesenvolvimento de relações econômicascapitalistas e instituições políticas liberais (associedades modernas), e outra ainda afetada peloranço de formas pré-capitalistas de organização,calcada em hierarquias sociais decorrentes deprivilégios consequente do status ou da riqueza (associedades tradicionais).

Essa realidade, heterogênea em sua natureza,parece não ter sido negligenciada por Cardoso eFaletto (2004) ao elaborarem a sua interpretaçãosobre as possibilidades de desenvolvimentointegrado da América do Sul. De naturezasociológica, tal abordagem procurou valorizar ocontinente não em termos apenas de sua situaçãode subdesenvolvimento, mas do potencial dedesenvolvimento em situação de dependência. Osautores, porém, buscaram superar o conceito dedualismo estrutural, submetendo-o a uma crítica.

A crítica decorreu do fato de eles nãoconsiderarem as noções de tradicional e modernoamplas o suficiente para aplicar-se a todas asrealidades sociais que caracterizam a América doSul, além de não permitir perceber quais fatoresestruturais e condições particulares estruturaiscontribuíram para definir o modo de ser e ascondições de funcionamento de cada sociedade. Oimportante, para efeito de análise, seria evidenciaras conexões minimamente lógicas entre asestruturas sociais que pressupõem o tradicional e omoderno e as diferentes etapas do processo dedesenvolvimento econômico de cada país.

Dentro dessa perspectiva, e negando a ideia deque a dinâmica das sociedades subdesenvolvidaseram inteiramente determinadas e derivadas defatores externos - e que, portanto, tanto oselementos estruturais como as ações de grupossociais dos países subdesenvolvidos não erammais que desvios em relação aos países centrais -Cardoso e Faletto (2004) procuraram formular umaanálise focada no tipo de integração social dasclasses e grupos sociais, considerando este umdos fatores centrais condicionantes do processo dedesenvolvimento. Fatores histórico-estruturais,portanto, condicionados por uma mistura decondicionamentos internos são mobilizados para a

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compreensão dos processos de modernização,superando assim a obsessão exclusivista com opeso exercido pelo impacto das variáveis exógenase sobre as estruturas social e econômica dasdiversas regiões sul-americanas.

O desenvolvimento econômico por região,nesses termos, passa então a figurar comodimensão de um processo social complexo eintegrado. Sua análise somente pode ocorrer numaperspectiva global, na qual se somam aos fatoresestruturais herdados da experiência colonial osfatores sociais característicos da experiênciahistórica recente; ambos interpretados em suasrelações de determinação recíproca. Dessavariedade de formas históricas de evolução,resultaria também outra variedade de integração deeconomias nacionais ao mercado internacional:

O tipo de vinculação das economias nacionaisperiféricas às distintas fases do processocapitalista [...] implica que a integração à nova fasese realiza através de uma estrutura econômicaque, apesar de modificada, procede da situaçãoanterior. Serão distintos o modo e aspossibilidades de desenvolvimento de uma naçãoque se vincula ao setor exportador internacionalcom um produto de alto consumo [...]. Da mesmaforma serão distintas as possibilidades deintegração nacional e de formação de ummercado interno naqueles países cuja economianacional se organizou mais como “colônias depopulação” (CARDOSO; FALLETO, 2004, p. 49).O desenvolvimento seria resultado de um

processo histórico no qual a forma de interação dosgrupos e classes, bem como de cada área,interfere no sistema socioeconômico. Na medidaem que, internamente, os diferentes grupos eclasses conseguem negociar interesses, aestrutura política e social passa por ajustamentosque influenciam em seu maior ou menor grau deinteração com o mercado externo. O sistemaeconômico nacional mantém, assim, uma relaçãosimbiótica com as formas através das quais severifica oposição, conciliação ou superação dosinteresses de distintas classes. Possibilidades deintegração espontânea a blocos políticos e/oueconômicos transnacionais seriam diretamentecondicionadas por essa complexa dinâmica dadisputa interna pelo poder, na qual o papelquantitativo e qualitativo da classe média figuracomo um elemento de grande importância. Cardosoe Falleto (2004) apresentam, inclusive, umatipologia dessa presença e grau de influênciaeconômica variável da classe média em algunspaíses da América do Sul. Dependendo da forma ede integração dos setores médios da população àdinâmica da economia, dividem os países da

América Latina em sociedades com produçãocontrolada nacionalmente e economias de enclave.

As economias de enclave se caracterizam pelaquase total dependência em relação ao capital e àtecnologia externos, atraídos pela concessão delargas vantagens competitivas - especialmenteincentivos fiscais - em que se observa incontrolávelsangria de lucros para as economias matriciais,exportadoras do capital. Já nas sociedades comprodução controlada nacionalmente observa-se aexistência de uma burguesia nacional consolidadaque, na maioria das vezes em associação comsetor estatal, exerce relativo controle sobre o setorprodutivo exportador (BIELSCHOWSKY, 2000)

Fica evidente, na tipologia apresentada, que nosegundo tipo - sociedades com produçãocontrolada nacionalmente - a possibilidade deinserção em um contexto econômico internacional(continental ou transcontinental) com preservaçãoda autonomia econômica, ou mesmo dacapacidade de influenciar nas decisões e acordos,revela-se mais promissora. Nesse caso, assim seapresenta a classificação de alguns países eregiões da América Latina.a) sociedades com produção controladanacionalmente:- Argentina: caracterizada pela incorporação dossetores médios ao setor de exportação pela viaburocrática. Observa-se o desenvolvimento deindústrias e serviços orientados para o mercadointerno, além da subordinação das atividadeseconômicas preexistentes ao setor agro-exportador;- Brasil: caracterizado pela incorporação dossetores médios com gradual crise da dominaçãooligárquico-burguesa, especialmente a partir dadécada de 1930, quando se aplicou tanto o projetonacional-estatista como o nacional-desenvolvimen-tista de substituição de importações e ampliaçãodo mercado consumidor interno;- Uruguai: a principal característica deste país seriaa incorporação da classe média a uma aliança depoder da qual participam os pecuaristas,controladores do setor produtivo, e os comercian-tes, mais diretamente vinculados à exportação. Talaliança permitiu o desenvolvimento de uma políticaeconômica estatal de tipo conservadora;b) sociedade com economia de enclave:- Paraguai: caracterizado pela incorporação daclasse média pelo enfraquecimento do predomíniooligárquico, devido ao grande impacto exercidopelos interesses associados ao externo, diluidor de

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qualquer possibilidade de promoção de uma políticade substituição de importações; representa, nessequadro, o modelo mais frágil de organizaçãoeconômica. A abordagem fundada na Teoria daDependência rompeu, assim, com vícios oudeterminismos fundados sobre as noções dedependência ou subdesenvolvimento. A finalidade,ao invés disso, era a de buscar compreenderprocessos de evolução sócio-econômicos de umamaneira em que a política e as relações de classese apresentassem na condição de parteconstituinte da dimensão econômica.

Do ponto de vista da tipificação da realidade sul-americana, a classificação acima permite, por outrolado, perceber que sob o manto dosubdesenvolvimento revela-se uma multiplicidadede experiências específicas, subordinadas àmaneira como se deu a experiência históricacolonial da região em particular. Revela-se, assim,um mosaico de tendências no processo deformação e incorporação de setores médios àsinstâncias decisórias dos setores de produção ecirculação de bens. A forma como ocorreu aincorporação de tais setores representa umimportante termômetro tanto da capacidade dedesenvolvimento de um mercado internosuficientemente apto à retroalimentação comacumulação e reprodução ampliada do capitalcomo também à integração no circuito internacionalde comércio (DONGHI, 2010).

O desdobramento previsível e inevitável dessaabordagem é a valorização das possibilidades deum desenvolvimento integrado ou em relação diretacom outros mercados, sincrônicos ou não, no quediz respeito tanto à relevância externa como aonível da relação direta entre as condições dedesenvolvimento e os tais fatores políticos e sociaissupracitados. Inevitavelmente, diferenciados de paíspara país, principalmente quando se trata derealidades marcadas pelo subdesenvolvimento.Para os dois estudiosos, a dependência aparececomo um componente inevitável do capitalismo,ainda que se evidencie com maior impacto nospaíses periféricos do sistema, devido às própriasvicissitudes e incertezas que marcam a dinâmicade sua economia. A existência de uma contraditóriaestrutura social interna, além de uma associaçãoentre os fatores internos e externos, representafonte causadora de problemas de adequação àsrelações de troca em condições de igualdade comEstados economicamente mais fortes, na medidaem que são portadores de uma economia mais

diversificada, com tecnologia mais desenvolvida eindustrialização consolidada (LANDES, 2002).

Já nos países subdesenvolvidos, o conflitoocorre entre as classes e frações de classe queintegram o tecido social; representa um elementofundamental para a conformação do ambiente deinvestimento na produção para consumo interno eexportação. Nesse sentido, na maioria das vezes,nesses países, a forma como são discutidas esolucionadas as questões políticas definem demaneira direta o rumo que se dará à expansão oudiminuição da distância da periferia em relação aocentro. É como se, em tal abordagem, a um modode produção capitalista universal correspondesseuma multiplicidade de modos de produção locais,essenciais à preservação de sua lógica daacumulação. Cardoso e Falleto (2004), então,teriam proposto um método de estudo dos modosde produção dentro de cada economia, cujaconceituação é de tipo endógeno, na medida emque evidencia as condições em que ocorrem asvariadas formas de desenvolvimento econômico nospaíses que mantêm relações de subordinação aoscentros hegemônicos do sistema capitalista. Oraciocínio adotado, nesse caso, preserva umalógica dialética uma vez que considera que nomercado internacional toda relação entre Estados,mesmo as diacrônicas, são relações de caráterbilateral.

O fato de os autores priorizarem o enfoque desuas análises nos conflitos e negociações entre osdiferentes grupos sociais que muitas vezes seantagonizam dentro do plano, além de afirmaremque são justamente tais relações que interferem nodesenvolvimento dos países latino-americanos, nãosignifica dizer que não considerem as influênciasexercidas tanto pela economia como também pelosprocessos internacionais. O pensamentodependentista, nesses termos, incorporou-se à boaparte do patrimônio teórico acadêmico dos paísesde capitalismo tardio, especialmente na AméricaLatina, possibilitando assim a emergência de novasperspectivas e abordagens econômicas e políticasda participação desses países na configuração dosistema econômico e político internacional, cujadimensão analítica foi incorporada por um elevadonúmero de teóricos de tais países, os quais muitasvezes reformularam e aperfeiçoaram seuspreceitos, permitindo importantes avanços naproblematização da realidade de seus respectivospaíses e na apresentação de diretrizes para o seudesenvolvimento.

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3 O integracionismo sul-americano nos marcosda dependência

É correto reconhecer que as transformaçõesresultantes do aprofundamento do processo deglobalização reclamam um esforço teórico dereleitura da teoria da dependência. Tal esforço nãodeve ocorrer, porém, com prejuízo do caráterhistórico-dialético presente naquela perspectiva efundamental para uma análise atual daproblemática abordada. Em especial, cabe refletirsobre a funcionalidade da teoria da dependência,devidamente revista, para uma compreensão críticaacerca da viabilidade do Mercado Comum do Sul(Mercosul), não apenas enquanto bloco econômico,mas também como via de integração efortalecimento de regimes políticos democráticosno Cone Sul, ampliando inclusive o alcancegeográfico do projeto de integração.

O Mercosul por enquanto é o Cone Sul, mas achoque pode ser o pivô, ou pilotis, da organização detoda a América Latina. Acho que devemos fazertudo para ter a Venezuela ao nosso lado, porexemplo [....]. Não podemos perder isso de vistaporque, na minha cabeça, e isso eu digo desdeque assumi o Ministério das Relações Exteriores,o Mercosul é o pólo com base no qual vamosorganizar o espaço da América do Sul (CARDOSO,1998, p. 127).A noção de organização do espaço através do

Mercosul, do ponto de vista estratégico, implica,necessariamente, promover diretrizes derelacionamento entre os Estados as quaispossibilitem um equacionamento, ainda queparcial, das distâncias sócio-econômicas eculturais entre os países membros do bloco. Essaredução de distâncias não seria necessariamenteuma extinção das desigualdades e diferençasculturais, mas o estabelecimento de uma situaçãode equidade ideal na qual certas concessões daparte dos Estados com economias mais forte dobloco contribuiria para uma diluição da situação dedesequilíbrio em relação aos outros membros. Opapel de sustentáculos e promotores da política deredução de desequilíbrios, nesse caso, caberiaespecialmente a Brasil e Argentina. Tal fato implica,todavia, a superação de arestas que,historicamente, têm impedido uma maiorintegração entre os dois países.

Sempre achei que o Brasil e a Argentina tinhaque ter uma relação bem próxima [...] Ainda temosalguns problemas porque alguns setores daopinião pública e da imprensa argentina aindamantêm desconfiança em relação ao Brasil.Criaram até um termo que é muito ruim, Brasil-dependência (CARDOSO, 1998, p. 119, grifo doautor).

A superação do sentimento de Brasil-dependên-cia representa, no caso, um fator central para afluidez das relações no Mercosul. A intensificaçãoda troca não apenas de mercadorias, mas tambémde gente e informação entre os dois paísesapresenta-se como uma via imperativa para asuperação de preconceitos que dificultam odiálogo. A solução para tal questão passa tambémpela própria redefinição do sentido aplicado à noçãode dependência na supracitada expressão. “AArgentina está ganhando com o Mercosul. Elaexporta para o Brasil 30% a 40% de sua produção.Ganha dinheiro aqui. Qual é então adependência?”. (CARDOSO,1998, p. 124).

Outro aspecto a ser considerado como via deequacionamento das tensões entre os doisEstados-chave do Mercosul vem a ser oaprofundamento do intercâmbio cultural na medidaem que, em pleno século XXI, ainda se observa umincipiente circuito de trocas culturais entre paísesfronteiriços. É bem verdade que se pode considerarque grande parte da responsabilidade por essadistância cultural, a despeito da proximidadegeográfica, pode ser atribuída à esmagadorainfluência da cultura estadunidense sobre os doispaíses.

O efeito dessa influência sobre ambos é, nomínimo, marcado por certa estranheza. Nos doispaíses, do ponto de vista cultural, consome-se ediscute-se praticamente as mesmas coisas, mas oque se discute em ambos os países não tempossibilitado aos argentinos conhecer melhor acultura e a sociedade brasileira e vice-versa. Issoporque o que se discute em comum nos doispaíses revela muito mais acerca da literatura, arte,teatro e cinema estadunidense e europeu do quedos cenários culturais brasileiro e argentino(CARDOSO,1998)

Em um processo de globalização que se fazsob a batuta de uma hegemonia estadunidense eeuropeia, chega-se, ainda no que se refere àquestão cultural, ao extremo de se necessitar dachancela ou certificação de qualidade de produtosculturais de qualquer país latino-americano paraque ele possa vir a receber a devida atenção emoutro país latino-americano. Constatando-se essefato, torna-se possível reconhecer a evidência deque, no que diz respeito a certas questões, aglobalização tem contribuído para aprofundar asdistâncias entre Brasil e Argentina.

A discussão acerca das possibilidades deaprofundar a integração entre os países do

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Mercosul para também uma posterior integraçãolatino-americana não pode prescindir, portanto, daremoção de um entulho ideológico e cultural que,sendo produto de uma atribulada história derivalidades e desconfiança, não tem permitidoromper a situação de dependência que condicionaa região. Nos marcos do desenvolvimentocapitalista, a ausência de uma predisposição aodiálogo e a uma real cooperação entre paísessemelhantes, ao menos no que diz respeito à suamatriz histórica, tem-se revelado um central enegligenciado entrave ao reconhecimento efortalecimento de interesses comuns a todos ospaíses da região. O caminho para a mudança dequadro, inevitavelmente, implica na promoção dasubstituição de paradigmas políticos que,tradicionalmente, incorporam-se ao âmago daprópria identidade latino-americana. Uma alteraçãoprimeira, por exemplo, reporta à questão do próprioconceito de nacionalidade na forma concebidapelas elites políticas de cada país. Para Cardoso(1998, p. 131), “Se houver uma patriotada, querdizer, uma exploração daquele nacionalismo quenão é sadio, vai atrapalhar. Os discursos da direitae da esquerda, quando se radicalizam, são quasesempre patriotadas.”

A observação de Cardoso (1988) permite pensara realidade vivenciada pela America do Sul e pelopróprio Mercosul no atual momento, em especialno que se refere à cultura e ao comportamento daselites do subcontinente. Uma análise atentapermite afirmar a ocorrência de certo retorno a umciclo populista em que, a um estado de euforiaideológica e bravatas políticas, segue-se uma sériede medidas potencialmente fomentadoras de umsério risco de depressão econômica e catástrofesinstitucionais. Vem à tona, mais uma vez, o temorde que as democracias da região revelem umafragilidade maior do que se supõe.

Em maior ou menor grau, por exemplo, o que seobserva na maioria dos países que integram oMercosul, bem como em outros países que nãointegram o bloco mas que mantêm relações deafinidade com um ou mais países do mesmo, comoé o caso de Bolívia e Equador, são indícios dessenovo ciclo maníaco-depressivo populista. É verdadeque, ao menos pela primeira vez na história, todosos governos sul-americanos foram eleitosdemocraticamente, mas também não é menosverdade que, de diferentes modos, a maioriadesses governos tem promovido esforços parasolapar suas respectivas democracias, seja pelo

desrespeito a preceitos constitucionais, seja pelaadoção de medidas econômicas temerárias ou pelohipertrofiamento de políticas assistencialistascontraproducentes tanto do ponto de vista políticocomo econômico (MONTANER, 2002).

Assim sendo, Venezuela, Argentina e Brasilrepresentam, nesta ordem, exemplos desse lento,porém, cada vez mais, eficiente processo dedilapidação, seja da estabilidade política, seja daestabilidade econômica, seja de ambas. Esse éum aspecto que aproxima, em essência, asexperiências do chavismo na Venezuela, dokirschinerismo na Argentina e do lulismo no Brasil.Cada um desses fenômenos, ao seu modo, trazem seu âmago o “DNA” do populismo e tem cadavez mais inflado essa dimensão no que concerne àgestão das questões econômicas, políticas esociais .

O coronel Hugo Chavez, por exemplo, quetentou tomar o poder pela força na Venezuela em1992, já governava o país há mais de uma décadacom forte apoio popular e, ao mesmo tempo, comescandaloso desprezo pelas regras que definem ojogo político da sucessão democrática. O mesmoapoio popular, por sua vez, é que tem permitido aoclã dos Kirschiner também governar a Argentina porperíodo semelhante e, recentemente, arrouboschauvinistas - tanto em matéria de política externacomo de economia interna. No Brasil, a fidelidadepopular ao lulismo tem sido mantida à custa deuma centralização e inflacionamento de projetosassistencialistas, bem como do sacrifício fiscal daclasse média. Soma-se ainda, em todos os casos,o crescente esgarçamento do tecido político pelacorrupção epidêmica.

Concebida originalmente como produto daprofunda desigualdade que emerge entre ocontraste da capacidade produtiva e de consumoentre países periféricos e países centrais, a Teoriada Dependência necessita da inclusão de novasreferências a fim de explicar as razões dapersistência dos fatores de crise nos paísesperiféricos. A questão a ser incluída na discussãotem a ver com as razões intrarregionais queexplicam as causas do fracasso da América do Sulface ao sucesso de países como os EstadosUnidos. Urge, nesse caso, remexer em aspectosrelacionados à própria dinâmica interna da região,evitando-se as ideologizações, vitimizadoras eautocomplacentes, as quais apontam sempre ooutro como o agente responsável pelo estigma dosubdesenvolvimento.

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Sem dúvida, alguma responsabilidade pode seratribuída a um duro golpe que a América Latinasofreu no início da década de 1990. A adesão dospaíses da região às diretrizes propostas peloConsenso de Washington contribuiu sobremaneirapara o estímulo à diluição de um projeto deAmérica Latina unida e mais independente. Aopção, quando da adesão ao referido Consenso, foiprincipalmente pelo pragmatismo econômicoguiado pela necessidade de achar resolutividade àsquestões econômicas mais urgentes, como ainflação, bem como a modernização tecnológica, aredução dos níveis de desemprego e da baixaliquidez resultantes dos excessivos gastospúblicos.

Ao Consenso de Washington coube definir odesenho das medidas imediatamente necessáriasà conversão dos Estados aderentes em economiasdotadas dos requisitos mínimos necessários aoseu reconhecimento confiáveis no mercadoexterno, já que capazes de assegurar aosinvestidores a estabilidade macroeconômica.Naquele contexto, a palavra de ordem aos Estadosperiféricos era o estabelecimento das condiçõesnecessárias à sua inserção no processo deglobalização ditado pela mundialização do capital.Tais iniciativas, em sua lógica, atendiam apreceitos definidos segundo pressupostos contidosna Teoria da Dependência, a qual assumiu umaperspectiva relacional, vinculativa, ao considerar obinômio mercado interno-mercado externo. Nesseviés, o fortalecimento do regionalismo ainda nãoseria possível a não ser em uma etapa posterior emque a constituição de blocos econômicos passou arepresentar importante ferramenta de expansão daspotencialidades dos países-membros. Essaexpansão das potencialidades de Estadosassociados em bloco, por seu turno, possibilitaria ainserção competitiva na economia mundialglobalizada (CARDOSO, 2010).

No caso latino-americano, entidades como aComunidade Andina de Nações, a União dasNações do Sul e a Aliança bolivariana para ospovos da nossa América representam exemploshistóricos que se somam à experiência doMercosul. Conscientes ou inconscientes,pautaram-se tanto nos princípios dependentistasherdados do pensamento econômico que marcou omundo subdesenvolvido durante os anos 1970como na necessidade de prevenir-se da forteconcorrência e das exigências cada vez maisampliadas da globalização. Entretanto, as

mencionadas organizações encontram-se emestágio embrionário e ressentem-se de políticasinstitucionais mais eficientes e concretas. Naverdade, manifestam explicitamente pretensões depromover uma integração regional que possa servirde alicerce para o rompimento da condiçãoperiférica no circuito internacional de comércio. Ofato, porém, é que simples declarações deintenções não são suficientes para se redefinir aordem das coisas. Objetivamente, essa redefiniçãodepende em muito da maneira como flui e refluemos investimentos em função de atrativos eprioridades do capital (FUKUYAMA, 2010).

4 Mercosul e integracionismo

O contexto histórico de criação do Mercosul -março de 1991 - era de um otimismo políticomarcado pela derrocada dos regimes militares epela redemocratização de Brasil e Argentina. Ospresidentes José Sarney e Raul Alfonsínassinaram, em 30 de novembro de 1985, aDeclaração de Iguaçu, na qual foi enfatizada anecessidade tanto de consolidação da democraciacomo da conjugação de esforços para a defesa deinteresses comuns no âmbito internacional (LEME,2006).

Em 1988, na esteira do incremento dointercâmbio comercial entre Brasil e Argentina,promoveu-se a assinatura do Tratado de Integração,Cooperação e Desenvolvimento. No documento,estabeleceu-se um prazo de 10 anos para que osdois países promovessem a formação de umespaço econômico comum, eliminando barreirastarifárias e elaborando políticas conjuntas (LEME,2006).

Já nos anos 1990, no contexto da adesão àsdiretrizes econômicas do Consenso deWashington, oficializou-se o Mercosul. Verificava-se, na ocasião, a aceleração da estratégia dereformas econômicas neoliberais com base naliberalização comercial. Ao esforço de integração,uniram-se o Paraguai e o Uruguai, formulando-se, apartir de então, o projeto de criação do Mercosul. Aassinatura do Tratado de Assunção, em 26 demarço de 1991, consolidou o processo aoestabelecer, como uma das principais metas, aampliação das dimensões dos mercados nacionaisdos países-membros do tratado, destacando-se aintegração como premissa fundamental paraacelerar o processo de desenvolvimento econômicoe social da região (FUKUYAMA, 2010).

A influência de preceitos do Consenso de

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Washington foi inevitável devido ao momentohistórico. Porém, a postura integracionista do blocoreporta de alguma forma a pressupostos da Teoriada Dependência. Dificuldades de ordem operacionalpara o avanço do Mercosul podem estarrelacionadas a dois aspectos estruturais darealidade sul-americana: por um lado, os jámencionados ciclos de instabilidade econômica epolítica que, de uma maneira crônica, afetam aregião como um todo ou alguns países comdiferentes formatos e que, na maioria das vezes,são combatidos com intervenções paliativas,insuficientes e, num extremo, equivocadas; poroutro lado, as iniciativas de implementação deprojetos de integração econômica, que são alvo deidealizações desde os movimentos deindependência, com frequência esbarram emtradições políticas de tipo exclusivista eintervencionista, as quais, em geral, banalizammedidas casuísticas (FUKUYAMA, 2010).

São esses dilemas característicos dos paísessul-americanos que, a rigor, interferem naefetivação da experiência de integração propostapelo Mercosul. Observa-se, na atual conjuntura, porexemplo, um sensível enfraquecimento da propostade liberalização comercial recíproca em favor deuma ênfase em aspectos puramente políticos deuma integração de caráter casuístico. Faz-sereferência, no caso, aos três recentes episódiosque, no seu conjunto, contribuíram sobremaneirapara comprometer o lastro de legalidade e a própriacredibilidade do bloco:a) a suspensão açodada do Paraguai, emdecorrência da remoção do presidente FernandoLugo, menos com a intenção de debater alegalidade do ato promovido pelo CongressoParaguaio e muito mais para favorecer o ingressoda Venezuela no bloco, removendo-seconvenientemente o único voto contrário;b) a complacência dos países-membros do blococom o claro desrespeito do regime chavista àConstituição venezuelana no atual episódio dasucessão presidencial. Não só o bloco não agiucom o mesmo rigor como, no caso do Paraguai,mesmo observando-se que no caso venezuelano odesrespeito à legalidade é ainda mais acintoso,como as lideranças políticas dos dois principaispaíses-membros - Brasil e Argentina - temmanifestado solidariedade com a manobra chavista,atendendo a imperativos ideológicos.

Quaisquer que sejam os pesos relativos dessesdois conjuntos de fatores e seus efeitos concretos

sobre as intenções proclamadas e as açõesefetivas dos países-membros do Mercosul, o fato éque o impacto varia bastante de país para país.Pode-se reconhecer, entretanto, que o prejuízomaior ocorre para o projeto de constituição de umbloco integrado e forte. Compromete-se, com isso,as possibilidades de boa aceitação do mesmo nomercado global dada a crise de confiançaresultante de posições assumidas com base emconvicções puramente ideológicas e afinidadespolíticas. Na prática, observa-se um perigosodistanciamento do projeto original de se caminharpara instituições orgânicas mais consentâneascom o formato de um mercado comum, em favor deinstâncias seletivas de cooperação política setorial,associada a posicionamentos ideologicamente comantigas práticas oligárquico-populistas. Taispráticas é o que vem moldando atualmente o perfildo Mercosul, com gradual envolvimento de seusmembros em áreas não delineadas no mandatoeconômico-comercial original. Essascircunstâncias revelam uma persistência no quadropolítico sul-americano.

5 Conclusão

Pelo que foi apresentado até o momento, nopresente artigo, conclui-se que o debate einiciativas para criação de uma comunidade deEstados e de um mercado comum na AméricaLatina não pode prescindir de considerações arespeito dos condicionamentos resultantes dasituação de dependência do Cone Sul em relação àdinâmica da sociedade globalizada. Assim sendo,nenhum programa de liberação comercial intrazonae implantação de uma tarifa externa sem que seleve em consideração tanto as assincroniaseconômicas, políticas e culturais existentes entreos países da região, como também o histórico deinstabilidades políticas e econômicas que tem sidouma marca permanente ao longo de todo o séculoXX e início do século XX.

Em observância às assimetrias dos Estados-membros, buscou-se destacar a importância que,para qualquer tentativa de explicação teórica paraas mesmas, assume os pressupostos presentesna teoria da dependência, segundo a fórmulaelaborada por Fernando Henrique Cardoso e EnzoFalleto (2004) um regionalismo aberto para asrelações entre os Estados que integram osubcontinente se, por um lado, muitas vezes éapresentado como a solução para osubdesenvolvimento e a dependência, por outro,inevitavelmente, deve ocorrer sob o peso dos

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* Doutora em História Social pela UniversidadeFederal Fluminense (UFF), doutoranda em Direitopela Universidade Nacional Lomas de Zamora(Buenos Aires, AR) e professora da UniversidadeEstadual do Piauí/Uespi e da Universidade Estadualdo Maranhão/Uema.** Doutor em História Social (UFF), professor/Uespi edo Instituto Dom Barreto (IDB).

limites impostos por esse subdesenvolvimento edependência precedente.

Ocorre, todavia, que somente nos marcos daTeoria da Dependência é que se pode tambémvislumbrar, realisticamente e sem voluntarismos, aspossibilidades de desenvolvimento para a região.Essa possibilidade, porém - e justamente nesseponto reside a dimensão realística do raciocínioderivado da aplicação da mencionada teoria -, emnenhum momento implicará a superação daassincronia ente os próprios Estados sul-americanos e, dificilmente, os alçará à condição deeconomias reconhecidas como paritárias àseconomias que integram os centros hegemônicosdo capitalismo. A integração, assim sendo, deimediato deve vislumbrar no máximo umaredefinição de diretrizes no desenho das relaçõesintraregionais de forma a pelo menos favorecer umconjunto de medidas e meios os quais possamfavorecer a satisfação de necessidades easpirações das sociedades da região

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PESQUISA E INOVAÇÃO: expansão dasoja no PiauíPor Maykon Daniel Gonçalves Silva*, Maria Jessyca Barros Soares**, Maria Madalenade Sousa do N. Neta*** e Edivane Lima****

Resumo: O artigo tem por objetivo analisar a importância da tecnologia e da pesquisa como estratégiasessenciais ao aumento e à melhoria dos ganhos de produtividade e da produção de soja no Nordeste e,especialmente, no Piauí. A metodologia baseia-se no método descritivo e na coleta de informações através derevisão de literatura e dados secundários obtidos em fontes oficiais.Palavras-chave: Pesquisa. Inovação. Soja. Piauí.

Abstract - The study aims to analyze the importance of technology and research as important strategy for theincrease and improving productivity gains and soy production in the Northeast and especially Piauí. Themethodology is based on the deductive method and gathering information through bibliographic sources andsecondary data.Keywords: Search. Innovation. Soy. Piauí.

1 Introdução

O cultivo de soja no mundo começou com oaparecimento de plantas oriundas de cruzamentosnaturais entre duas espécies de soja selvagensdomesticadas e melhoradas por cientistas daChina, mas sua produção em escala comercialcomeçou no Ocidente, depois da segunda décadado século XX, nos Estados Unidos; inicialmente,como forrageira; depois, como commodity. NoBrasil, sua produção em escala comercial só teveinício a partir da década de 1960, por meio dossubsídios dados ao trigo, o que lhe permitiuestabelecer-se como uma cultura importante doponto de vista econômico (EMBRAPA, 2004).

A produção brasileira de soja começou naregião Sul e, posteriormente, foi alastrando-se paraas regiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste. Essedeslocamento foi possível devido ao uso depesquisas, tecnologia e inovações voltadas aocrescimento da produtividade e ao aumento da áreaplantada com soja na região do Cerrado, uma vezque as sementes foram adaptadas ao clima e aosolo dessa região, importante papel desempenhadopela Empresa Brasileira de PesquisasAgropecuárias (Embrapa). Entre os fatores quepossibilitaram maior produtividade no Nordesteestão, por exemplo, expansão do cultivo nas áreasde cerrado, pesquisas das cultivares adaptadas aosolo do cerrado e aumento dos financiamentos decusteio e investimento para a atividade.

O crescimento econômico se faz notar pelas

mudanças nessas áreas de produção. As regiõesprodutoras de grãos vêm apresentandotransformações significativas como: estradas sendoasfaltadas para o escoamento da produção, asfazendas sendo estruturadas, além disso, pode-seobservar a ampliação dos serviços de hotelaria,restaurantes, postos de combustíveis, hospitaisetc., em alguns municípios; também sãoverificadas melhorias na distribuição urbana, emáreas planejadas, com a construção de habitaçõesmais confortáveis, dispondo de redes de esgoto eenergia elétrica (VALENTE JUNIOR, 2011).

Objetiva-se, com este artigo, analisar aimportância do uso da tecnologia e da pesquisacientífica como estratégia importante na produçãode soja, evidenciando a expansão dessa cultura noNordeste e, especialmente, no Piauí.

O artigo está dividido em cinco seções: aprimeira refere-se à introdução, a segunda consisteda metodologia; na seção 3, discute-se o conceitode estratégias de inovação nas visões de algunsautores citando Schumpeter, Kon, Hayami e Ruttane sua importância no processo produtivo; a seção 4mostra a importância da pesquisa e da inovação naexpansão da soja no cerrado nordestino, bemcomo a contribuição do sistema de plantio direto(SPD); a seção 5 trata da expansão da soja nasmicrorregiões do Piauí; e, na conclusão, apontam-se os motivos da expansão da soja no Piauí, dandoênfase especial à inovação.

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2 Metodologia

O procedimento metodológico baseia-se nométodo descritivo, sendo a coleta de informaçõesfeita através de revisão bibliográfica e deinstituições oficiais de pesquisa. Segundo Barros eLehfeld (2007), a pesquisa bibliográfica é a que seefetua tentando-se resolver um problema ou adquirirconhecimentos a partir do emprego predominantede informações advindas de material gráfico, sonoroe informatizado. Assim, para alcançar o objetivoproposto, o trabalho assentou-se no levantamentode literatura sobre o tema, dados estatísticossecundários obtidos em instituições oficiais depesquisa, tais como: Instituto Brasileiro deGeografia e Estatística (IBGE), Embrapa,Companhia Nacional de Abastecimento (Conab),Fundo de Apoio à Cultura da Soja (Facs), entreoutros. A pesquisa trabalha com o levantamentodas seguintes fontes de informação: documentosoficiais, artigos publicados em jornais, revistas,comunicações em seminários etc.

3 Estratégia de inovação tecnológica

Dentre as principais correntes teóricas queestudam a questão da inovação tecnológica, aprincipal é a institucionalista - shumpeteriana. Essacorrente focaliza a sua análise nas empresas, nossetores industriais e nas relações em rede comoutros agentes econômicos.

Segundo essa escola, as inovaçõestecnológicas radicais que são acompanhadas porinovações organizacionais e institucionais sãocaracterizadas como sistêmicas. O principalagente é a empresa, um organismo vivo que realizaa inovação. Dessa forma, introduz variedades naestrutura industrial existente e criam novasestruturas (HASENCLEVER; TIGRE, 2002).

No momento em que uma empresa introduzuma tecnologia nova, ela fica sujeita a duassituações (KON, 1999): por um lado, sujeita aosobjetivos próprios de desenvolvimento dos recursosde que dispõem, à natureza do mercado em queoperam, ao conhecimento das opções tecnológicasdisponíveis e à situação político-econômica do paísem que são sediadas; por outro lado, a escolha datecnologia apropriada a essas condições e do ritmodas inovações prendem-se também à capacidadeda força de trabalho existente de ajustar-se aosnovos requisitos de capacitação advinda daintrodução de técnicas inovadoras. Kon (1999)menciona, ainda, que a inovação tecnológica deveser entendida através dos conceitos de invenção,

inovação, imitação, mudanças induzidas, progressotécnico, oportunidades tecnológicas, avaliação deresultados, economias e deseconomias de escala.

Os processos de inovação e capacitaçãotecnológica atuam diretamente no sistemaprodutivo, exigindo uma ampla capacidade degeração autônoma e disseminação deconhecimento, além da criação de um ambiente deaprendizagem contínua para que as inovaçõessejam compreendidas e nele inseridas.

Para Matesco e Hasenclever (1998), odesenvolvimento econômico de uma nação e aampliação da competitividade sistêmica dasempresas relacionam-se com a capacidade derealização de inovações tecnológicas que tem essanação.

Autores como Hayami e Ruttan (1971)apresentam o modelo de inovação induzida para odesenvolvimento da agricultura. Eles tomam comobase teórica o modelo de progresso econômico deHicks, que passa a considerar o progresso técnicocomo uma variável endógena. Nesse modelo deinovação induzida, o processo de inovação é obtidoatravés das instituições públicas de pesquisa eindústrias produtoras de insumos e equipamentosagrícolas. A hipótese do modelo defende que ageração de tecnologia depende da interação defatores de produção, na qual a mudança técnica éguiada com eficiência, através dos sinais emitidosao mercado por meio dos preços desses fatores.Assim, quando o custo da mão de obra ruralaumenta, os agricultores pressionam asinstituições de pesquisas e as indústrias para queelas forneçam tecnologia e os insumos agrícolaspara poupar trabalho.

4 A pesquisa agrícola, a inovação e aexpansão da soja no cerrado nordestino

De acordo com as informações do Fundo deApoio à Cultura da Soja (2011), a evolução inicialda soja no Brasil foi fortemente amparada pelodesenvolvimento de tecnologias que possibilitaramo aumento da área de cultivo, mantendo-se aprodutividade estabilizada ou com relativo aumento.Além de cultivares adaptadas às diversas regiõesprodutoras, tecnologias geradas por diversasinstituições de pesquisa têm contribuído para queessas cultivares mostrem seu potencial produtivo.As tecnologias geradas para a cultura da sojativeram contribuições diferentes nos diversosmomentos da evolução dessa cultura no Brasil.Pode-se dividir essa evolução em três fases:

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primeira fase, adaptação de tecnologias; segundafase, geração de tecnologias ou independênciatecnológica; e terceira fase, tecnologias paraexpansão da fronteira agrícola.

Com isto, apresenta-se, nesta seção, aexpansão da soja no Nordeste, considerada porvários analistas uma área potencial ao cultivo dasoja. A expansão da soja na região dos cerrados sófoi possível devido aos avanços das pesquisascientíficas que possibilitaram o seu cultivo. Dessaforma, interessa a explicação da terceira fase datecnologia, mostrando como foi a contribuição dapesquisa para a cadeia produtiva da soja e osdiversos fatores que permitiram essa expansão noscerrados.

Durante as décadas de 1980 e 1990, houve umagrande expansão dessa cultura na região doscerrados, principalmente na região Centro-Oeste,precisamente no estado de Mato Grosso,expandindo-se, posteriormente, para os estados doNordeste: Maranhão, Piauí e Bahia. De acordo comdados da Conab (2012), nas áreas de cerrado doNordeste, a quantidade produzida da soja em grãosna safra de 2011/2012 foi de 6.096,3 toneladas,correspondendo a um crescimento de 57% emrelação à safra 2006/07.

Destacam-se dois aspectos favoráveis àexpansão: a estabilidade climática da região doscerrados e as condições topográficas favoráveis,que contribuíram de forma importante para aexpansão, não somente da soja, mas também daagricultura do país. Contudo, o solo dessa região épobre, sendo possível surgir, a partir daí, aspesquisas de cultivares desenvolvidas pelaEmbrapa Cerrados - Centro de PesquisasAgropecuário dos Cerrados - viabilizando, em parte,a produção sustentável de grãos (FACS, 2011).

Essas tecnologias são desenvolvidas paraaumentar a potencialidade da região,especialmente daquelas situadas no sul doMaranhão e sudoeste do Piauí, incluindo também onorte de Tocantins e o oeste do Pará. A obtençãode cultivares adaptadas e estudos de sistemasprodutivos direcionados à região começaram avigorar a partir da criação do Centro Nacional dePesquisa de Soja, na metade dos anos 1980.

Essa iniciativa foi amparada através deparcerias feitas com o Banco do Nordeste e com aEmpresa Maranhense de Pesquisa Agropecuária(Emapa) e culminou com a instalação do CampoExperimental de Balsas (CE Balsas). A sequênciados trabalhos experimentais no CE Balsas teve

amparo decisivo da Companhia Vale do Rio Doce(CVRD), que, através de parceria, viabilizou odesenvolvimento de tecnologias mais modernas, oque contribuiu para significativos aumentos da áreade cultivo (FACS, 2011).

Conforme Valente Junior (2011), um conjunto defatores contribuiu para o crescimento do cultivo dasoja no Nordeste, citam-se, por exemplo:a) a expansão do cultivo nas áreas de cerrado;b) as pesquisas sobre novas cultivares adaptadaspara os cerrados, o que levou ao incremento daprodutividade;c) o aumento dos financiamentos de custeio einvestimentos para a atividade;d) o investimento e a melhoria na infraestrutura dearmazenamento e escoamento da produção.

Outro motivo que explica a expansão do cultivotem sido a elevação do nível de preços da soja nomercado internacional ao longo dos anos. Comrelação às pesquisas e ao crédito, destaca-se opapel do Banco do Nordeste no apoio à sojiculturana região, a partir da criação do Fundo deDesenvolvimento Cientifico e Tecnológico (Fundeci),que apoia as pesquisas tecnológicas. Associadoàs políticas públicas e a outros investimentos, ocrédito constitui importante instrumento paraproporcionar a expansão da soja (VALENTEJUNIOR, 2011).

De maneira geral, as pesquisas representam oelemento principal para a expansão da soja no Paíse, principalmente, no Nordeste. O desenvolvimentotecnológico está possibilitando a definitivaincorporação dos cerrados à agricultura brasileira,transformando a região no principal polo decrescimento de produção do Brasil. Com aspesquisas científicas, a agricultura nos cerradosganhou tecnologias mais modernas, o que tempermitido, em parte, melhorar a competitividade dasoja no mercado internacional. Existem duasdireções desse desenvolvimento tecnológico; aprimeira tem sido o aprofundamento doconhecimento dos ecossistemas que compõem aregião a segunda, a construção do solo agrícola.(MAROUELLI, 2003).

De acordo com Marouelli (2003), o resultado detodos os desenvolvimentos tecnológicos tem sido acriação de novos produtos, de sementes, dequímicos e de implementos mecânicos que sãoproduzidos em escala industrial e estão disponíveisno mercado.

Neste contexto, é notável a importância daspesquisas para o desenvolvimento tecnológico e,

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consequentemente, como fonte de explicação paraa expansão da sojicultura no Nordeste,especialmente aquelas desenvolvidas pelaEmbrapa.

A expansão da soja no cerrado nordestino temcontribuído para impulsionar, também, odesenvolvimento local. Algumas cidades jávislumbram essas mudanças, a exemplo de LuísEduardo Magalhães e Barreiras, na Bahia; Balsas,no Maranhão; e Uruçuí, no Piauí. Por fim, otrabalho de Vicente Junior (2011) confirma acontribuição do Banco do Nordeste para aexpansão do segmento de soja nos cerrados, poiso mesmo vem atuando por meio de financiamento àprodução, tanto para investimentos como para ocusteio, além do aporte de recursos em ciência etecnologia.

Com base na Figura 1, observa-se a evoluçãoda produção e da produtividade da soja no Nordesteao longo das safras de 2001/02 a 2009/2010. Aevolução da produção de soja por tonelada mostraum período de ascensão que vai da safra 2001/02até 2004/05, quando atinge 3.953,1 toneladas,correspondendo a um crescimento de 86%. Nasafra 2008/09 houve uma queda na produção de14% em relação ao ano safra 2007/08; um dosprincipais motivos está relacionado a problemasclimáticos que prejudicaram a safra,especificamente a seca. Após esse declínio houveuma recuperação de 27% na safra 2009/10. Porfim, observa-se em todo o período analisado umcrescimento total de 186,93% sendo essecrescimento proveniente, em parte, da inovaçãotecnológica para essa cultura.

4.1 Sistema de plantio direto

O SPD tem sido uma técnica produtivaimportante para a condução da expansão da sojano Brasil, de maneira especial no Piauí, o que temformado a produção de uma lavoura mais viável doponto de vista ambiental. O plantio direto é umatécnica de cultivo conservacionista na qual seprocura manter o solo sempre coberto por plantasem desenvolvimento e por resíduos vegetais. Essacobertura tem por finalidade protegê-lo do impactodas gotas de chuva, do escorrimento superficial edas erosões hídrica e eólica. Existem diversossinônimos ou termos equivalentes para plantiodireto: plantio direto na palha, cultivo zero, sempreparo (“no-tillage”), cultivo reduzido, entre outros(CRUZ et al., 2006).

O Brasil possui a segunda maior área plantadano mundo sob SPD. Esse fato representa umagrande conquista para a sociedade brasileira emtermos de preservação do meio ambiente, uma vezque, em área sob SPD, a perda de solo por erosãoé reduzida e o estoque de matéria orgânica,aumentado (LOPES et al., 2004).

Assim, as práticas com o SPD podemminimizar os impactos no solo causados pelasojicultura. Conforme Alvim e Oliveira Junior (2005),esse sistema tem demonstrado sua eficácia nasolução dos problemas de solo, principalmentecom a introdução de práticas de cobertura de solono inverno e a rotação de culturas; além decontribuição decisiva para uma agriculturasustentável em termos ambientais,economicamente competitiva e socialmenteequitativa, tem sido o foco das atenções depesquisadores e produtores, dentro do que se podedenominar cadeia de sustentabilidade daagricultura brasileira. Para os autores, o cultivo dasoja, especificamente, no Mato Grosso do Sul, queutilizou o SPD, apresenta custos menores elucratividade maior em comparação ao sistema deplantio convencional, além de ser um sistemapreservacionista.

Logo, depois de estabelecido o SPD, os seusbenefícios vão além da proteção do solo; incluindotambém o rendimento das culturas e acompetitividade dos sistemas agropecuários. Como uso do SPD, o agricultor tem maior garantia derenda e estabilidade da produção, em comparaçãocom os métodos tradicionais de manejo do solo(CRUZ et al., 2006).

De acordo com Rodrigues; Barbosa; Almeida(2009), o uso do plantio direto no município de

Figura 1 - Evolução da produção de soja (emtoneladas) e da produtividade (Kg/ha). Nordeste.Safras 2001/02-2009/10.Fonte: Conab (2012).

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66informe econômicoAno 16, n. 31, jun. 2014

Pedro Afonso, no estado de Tocantins, apresentacustos de produção com 13,4% menor que oplantio tradicional. Com base em indicadores deeficiência econômica, eles demonstram uma nítidavantagem econômica com o uso do SPD emrelação ao plantio convencional.

Diante disso, acredita-se que o uso detecnologias modernas e do SPD tenha sidoimportante para elevar os ganhos de eficiênciaeconômica da soja no Nordeste.

5 A expansão da soja nas microrregiõesprodutoras do Piauí: uma contribuição dapesquisa agrícola

O Piauí ocupa a terceira posição entre osmaiores produtores de grãos do Nordeste, com2.439,0 toneladas na safra 2010/2011. A Bahiacontinua sendo o maior produtor, com 7.331,5toneladas. O Maranhão vem em segundo lugar,produzindo 3.373,1 toneladas, sendo a soja um dosprincipais produtos exportados (EMBRAPA, 2011).

A Unidade de Beneficiamento de Sementes(UBS) atende cinco culturas distintas: soja, milho,feijão, arroz e vigna (feijão de corda). No entanto,um dos seus grandes diferenciais é estar instaladapróxima aos produtores de sementes de soja dosul do Maranhão, no sul do Piauí e Tocantins.Segundo o chefe geral da Embrapa Soja, AlexandreCattelan, a UBS tem como objetivo aumentar aeficiência dos produtores de sementes quecomercializam as cultivares de soja da Embrapanas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste(EMBRAPA, 2010).

No Piauí, o cultivo de soja teve início em 1972,com o programa de pesquisa voltado para essacultura através da Estação Experimental “ApolônioSales”, do Ministério de Agricultura, com o apoio devários órgãos, sendo um deles a AssociaçãoNordestina de Crédito e Assistência Rural do Piauí.A criação da Embrapa veio a fortalecer o programaque teve continuidade a partir de 1977/1978, com acooperação do Centro Nacional de Pesquisa deSoja e do Banco do Nordeste do Brasil (NEVES,2011).

Conforme Pinazza (2007), o crescimentoprojetado para a produção de soja no Piauí temsido condicionado a vários fatores, destacando-sealguns:a) consolidação das zonas produtivas no sudoeste,onde está concentrada a produção;b) fortalecimento do parque processador de soja;c) melhoria da estrutura de logística e distribuição

da produção em direção ao porto de Itaqui para omercado externo e, por intermédio da CompanhiaFerroviária do Nordeste (CFN), visando atender aomercado interno da região Nordeste.

A soja é produzida em maior quantidade nasmicrorregiões do sul do Piauí. Essa produção vemse desenvolvendo com a expansão da áreaplantada e com o aumento da produtividade. Deacordo com a Tabela 1, nos cerrados do Piauí, aprodutividade média da soja foi 2.566 kg/ha de 2006a 2010. O valor médio da área plantada no mesmoperíodo foi de 13252,76, sendo que em 2010 asmaiores áreas plantadas ocorreram no município deUruçuí, com 95.592 hectares, o que correspondeua uma taxa de crescimento de 24,64%; emseguida, Baixa Grande do Ribeiro, com 73.761(116%), e Bom Jesus, com 34.635 (27,26%).

Um dos projetos da Embrapa Meio-Norte(EMBRAPA, 2005) é aumentar de formasustentável em pelo menos 20% a produção desoja nos cerrados do Piauí e do Maranhão; projetoque começou a ser executado nos municípios deBaixa Grande do Ribeiro (PI) e Balsas (MA). Emdois anos, foram estabelecidos sistemas depreparo e de culturas de coberturas vegetais àscondições das áreas exploradas. O projeto tevecomo objetivo maior, segundo o pesquisador LuizFernando Carvalho Leite (da Embrapa), conduzir ostrabalhos, caracterizar a dinâmica da matériaorgânica do solo em sistemas de preparo e deculturas (EMBRAPA, 2005) para definição dasestratégias de manejo, buscando a melhoria daqualidade do solo e do ambiente, dandoestabilidade à produção de soja.

De acordo com a Fundação Centro dePesquisas Econômicas e Sociais do Piauí (Cepro),em 2009, dentre os municípios que apresentarammaior produto interno bruto (PIB) per capita noPiauí destacam-se: Uruçuí, o maior produtor; BaixaGrande do Ribeiro e Ribeiro Gonçalves que figuramcomo municípios de elevados PIBs per capita emfunção do peso que a agropecuária tem nessaseconomias, com principal destaque para aprodução de soja; e Santa Filomena tem naagropecuária a maior força de sua economia, sendoo 5° maior produtor de soja no Piauí (CEPRO,2011).

6 Conclusão

Os processos de inovação e capacitaçãotecnológica atuam diretamente no sistemaprodutivo, exigindo uma ampla capacidade de

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geração autônoma e disseminação deconhecimentos, além da criação de um ambientede aprendizagem contínua para que as inovaçõessejam compreendidas e neles inseridas.

A expansão da soja na região dos cerrados,especialmente no Nordeste, torna-se evidente como uso de pesquisas e tecnologias que têmpossibilitado as inovações no setor. A consequên-cia tem sido, sem dúvida, maior produção eganhos de produtividade, principalmente no Piauí,no Maranhão e na Bahia, considerados as novasfronteiras agrícolas do Brasil.

A Embrapa tem papel fundamental na realiza-ção de pesquisas voltadas ao melhoramento dassementes de soja, no combate a pragas edoenças, no aperfeiçoamento do plantio e nosnovos modos de adaptação das cultivares ao climae solos na região dos cerrados, garantindo qualida-de às sementes genéticas de suas cultivares.O aumento da produtividade cria oportunidades deemprego e de renda para a população das cidadese do campo. Essa expansão está possibili-tando odesenvolvimento das regiões produtoras.

Municípios

Área plantada (hectare)

Produtividade (Kg/ha)

2006 2007 2008 2009 2010 2006 2007 2008 2009 2010 Alvorada do Gurguéia 2350 3500 3800 3950 2530 2516 1995 3161 2827 2580

Antônio Almeida 2600 3450 3067 3059 3400 2372 2140 3229 2400 2400 Baixa Grande do Ribeiro 34.143 34346 41408 66715 73761 2613 2716 3299 2841 2730

Bom Jesus 27.215 24994 28022 28387 34635 2535 2421 3273 3023 2003 Corrente 0 0 75 80 1547 0 0 3000 2400 2230 Cristalândia do Piauí 0 0 80 240 580 0 0 3000 3000 2200

Currais 13.564 11374 10776 15818 21194 2065 1896 3180 2260 1997 Gilbués 6.689 7290 11660 8820 13175 2419 2599 3238 3060 2480 Landri Sales 0 0 1745 4866 5000 0 0 3480 2969 3100 Manoel Emídio 0 600 1375 400 0 0 960 3179 3000 0 Monte Alegre do Piauí 5.208 6785 8408 6265 10791 2824 2369 3174 2810 2572

Piracuruca 150 90 140 0 0 2640 1977 1321 0 0 Palmeira do Piauí 5005 5870 7199 8726 10460 1635 1794 3180 2812 2372

Porto Alegre do Piauí 0 1000 1000 1200 1400 0 600 2880 2640 2580

Redenção do Gurguéia 0 0 0 480 0 0 0 0 3000 2155

Regeneração 0 0 0 500 600 0 0 0 3300 2800 Ribeiro Gonçalves 34111 35274 40856 28940 34133 2533 2531 3179 3000 2977

Santa Filomena 13629 12330 15915 19692 25405 2298 2247 3094 2603 2521 Sebastião Leal 10650 6300 5240 10282 7907 2602 1633 3493 3411 3056 Uruçuí 76695 66657 72800 69311 95592 2096 1911 3240 2727 2489

Por fim, observa-se que a soja é produzida emvários municípios no sul do Piauí, nos quais aexpansão da área plantada de soja tem sidopossível, em parte, por meio da pesquisa e dainovação tecnológica, o que tem garantido elevadosganhos de produtividade a cada safra agrícola

Tabela 1 - Evolução da área plantada de soja (em hectares) e da produtividade (Kg/ha) nos municípios

piauienses. 2006-2010

Fonte: IBGE (2013).

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* Graduando em Ciências Econômicas naUniversidade Federal do Piauí (UFPI).** Graduanda em Ciências Econômicas na UFPI.*** Graduanda em Ciências Econômicas na UFPI.**** Professora Adjunta do Curso de CiênciasEconômicas da UFPI.

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69 Ano 16, n. 31, jun. 2014informe econômico

PEQUENOS MUNICÍPIOS EAGRONEGÓCIO: dinâmicas e impactosem Sebastião Leal (PI)Valéria Silva*

Resumo: este artigo, originário de pesquisa de campo realizada em Sebastião Leal (PI), município quecompõe o território conhecido como última fronteira agrícola do Brasil, tematiza a realidade instaladalocalmente a partir da chegada do agronegócio, traçando a caracterização sócio-econômico-cultural dacidade, localizada no cerrado do sudoeste piauiense, trazendo a agricultura em escala para consideraçãoquanto aos processos em curso e impactos que desencadeia localmente sobre a agricultura camponesatradicional e seus modos de vida. Utilizou-se, para tanto, da etnografia, da observação direta, da entrevistasemiestruturada e da análise documental.Palavras-chave: Pequenos municípios. Piauí. Agronegócio.

Abstract: this article from field research conducted in Sebastian Leal (PI), county that composes the territoryknown as the last agricultural frontier of Brazil. Focuses the reality installed locally from the arrival ofagribusiness tracing the socio-economic-cultural setting of the city located in the Piauí southwest, bringingagriculture scale for consideration as those processes and impacts that triggers locally on the traditionalpeasant agriculture and their livelihoods. The methodology used is ethnography, direct observation, semi-structured interviews and documentary analysis.Keywords: Small municipalities. Piauí. Agribusiness.

1 Introdução

Com a escassez de terras e o consequente altocusto das mesmas, o agronegócio desencadeouuma diáspora pelo Brasil, fazendo-o migrar do suldo País ao Sudeste, Centro-Oeste e depois Norte.Seguindo em busca de terras e mão de obra debaixo preço, o agronegócio aportou nos derradeirosestados brasileiros ainda com grandes áreas deterra não cultivadas em escala, como o Maranhão,o Tocantins, a Bahia e o Piauí. Neste último, asterras do cerrado, ao sul e sudoeste deste Estado,levaram-no a ser considerado o mais promissor dosprodutores de soja do Nordeste, tendo ocupado osegundo lugar na produção da safra de 2010, com63,4 mil hectares plantados. Ancorado nesseambiente, o presente trabalho enfoca como temacentral a presença da agricultura em escala empequenos municípios, objetivando configurar acaracterização local, a performance econômicamunicipal, as dinâmicas e impactos da produçãosobre a ocupação e o uso da terra, o meioambiente e os modos de vida locais. Para tanto,utilizou-se da etnografia, da observação direta, daentrevista semiestruturada e da análisedocumental.

A pesquisa foi realizada, no período 2010-2013,na localidade rural Roça Nova, em Sebastião Leal,

cidade situada a 435 km da capital, Teresina, tendopor sujeitos os moradores e moradoras dalocalidade, envolvidos direta e/ou indiretamentecom a agricultura de aprovisionamento (GODOI,1999) e com o trabalho nas fazendas de soja.Todos os participantes são apresentados comnomes fictícios, a fim de que suas identidadessejam preservadas.

O artigo está organizado em cinco seções. Emsequência a esta Introdução, a segunda seçãoapresenta a configuração geral do pequenomunicípio estudado; a terceira, trata do processode ocupação das terras do sudoeste e do municípioestudado; a quarta, do perfil de produção e rendamunicipais no ambiente do agronegócio, paraconcluir, na seção 5, apontando osdesdobramentos encontrados.

2 Um pequeno município do sudoestepiauiense: caracterização geral

Sebastião Leal está situada na mesorregião dosudoeste piauiense, na microrregião de Bertolínia,1

tendo por fronteiras, ao norte, Landri Sales eCanavieira; ao sul, Manoel Emídio e Uruçuí; aooeste, Uruçuí e Landri Sales e, ao leste, ManoelEmídio, Bertolínia e Canavieira. De acordo com alei complementar n. 87/2007-PI, Sebastião Leal faz

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parte do Aglomerado 25, do Território deDesenvolvimento Tabuleiros do Alto Parnaíba.Conforme Aguiar e Gomes (2004, p. 2), “a sedemunicipal tem as coordenadas geográficas de 70º33’ 56” de latitude sul, e 44º 03’50” oeste deGreenwich [...].” O clima do município é quente esemiúmido, por volta de 30º durante o ano, comchuvas ocorrendo de novembro a maio,concentradas nos meses de janeiro, fevereiro emarço.

A cidade foi formada a partir de áreas territoriaisantes pertencentes aos municípios de Bertolínia eUruçuí, sendo emancipada em 1994, por meio dalei estadual 4.680, de 26 de janeiro de 1994 (IBGECIDADES, 2011a), no esteio de uma política dedesmembramento de territórios levada a cabo pelaselites políticas brasileiras e piauienses, no esteiode um movimento de geração de fontes de recursosfiscais e de novas bases políticas para os gruposque atuavam nas regiões atingidas.

A pesquisa de campo revelou que aemancipação do município não goza de legitimida-de unânime dentre os moradores de Roça Nova.Seu Armando assim se manifestou sobre estaquestão (grifo nosso): “Ói, moça, o Irapuá foi aíemancipado, mas eu mesmo não dou quarentenapor isso, não”. Na simplicidade de sua narrativa,Seu Armando quis dizer que a emancipação nãoimplicou em alterações substanciais para omunicípio; e o modo como permanecedenominando a cidade - Irapuá - denota que sequerlegitima a nova designação e possivelmentetambém não reconheça Sebastião Leal comocidade. Cidade, para ele, é Bertolínia, Uruçuí,Floriano e demais municípios de maior porte e demaior complexidade urbana.

Floriano, como o maior centro urbano maispróximo, situado a 160 km de Sebastião Leal, compopulação de 57.690 habitantes e densidadedemográfica de 16,92 hab/km2 (IBGE CIDADES,2011b), também deste ponto de vista, ancora asreferências citadinas adotadas por Seu Armando eos demais. A propósito, é em Bertolínia, e maisespecialmente em Floriano, que a população deSebastião Leal busca “serviços bancários,assistência médico-hospitalar, assistênciaeducacional complementar [...] vestuários,calçados e produtos industrializados diversos.”(SOUSA, [s.d.], p. 14). O sistema de transportealternativo das vans, que pratica preços econdições mais vantajosos do que o ônibus, facilitaa movimentação dos moradores, fazendo desses

municípios as referências maiores de urbanidadepara os residentes em Sebastião Leal.

Outros dados populacionais de Sebastião Lealauxiliam no dimensionamento local. A populaçãoinformada (4.116 mil habitantes) está distribuída emuma área territorial de 3.111,103 km², consolidandoa densidade populacional apontada de 1,31 hab./km². Da população encontrada, 2.151 pessoas sãohomens e 1.965 mulheres,2 sendo que 1.922habitantes residem no núcleo urbano e 2.194, naárea rural. Do total de habitantes, 1.124 estão nafaixa etária de 15 a 29 anos, os quais representam27,3% da população e constituem o potencialpopulacional para a reprodução da agriculturatradicional e/ou avanço da agricultura em escala nomunicípio (IBGE CIDADES, 2011c).

A população de Sebastião Leal encontra-seinstalada em 1.131 domicílios particularespermanentes e a quantidade de habitantes pordomicílio particular permanente é de quatropessoas residentes em cada domicílio, sendo esteo total mais expressivo. Nos estratos superiores,encontramos 165 domicílios onde habitam cincopessoas e 80 onde habitam seis pessoas. Nosestratos acima de seis pessoas, a quantidade dedomicílios segue diminuindo. Nos estratosinferiores, está registrado que em 254 domicíliosresidem três pessoas e em 224, apenas duaspessoas (IBGE, 2011). É possível observar queas famílias pequenas são mais expressivas,embora se trate de uma realidade onde a maioriada população ainda reside no meio rural,apontando que o próprio rural vem sofrendoinfluências do padrão urbano também no tocanteà constituição familiar.

Quanto ao acesso aos serviços sociais, dosdomicílios estabelecidos, 755 possuem abasteci-mento de água em rede geral e apenas 983 casaspossuem energia elétrica fornecida pela companhiadistribuidora local. 650 domicílios contam combanheiro de uso exclusivo e 731 domicíliosqueimam o lixo produzido (IBGE, 2011).O município de Sebastião Leal dispõe de um postode saúde com duas equipes de saúde da família,porém, com restrita possibilidade de internação,3 oque é oferecido mais apropriadamente na cidadevizinha de Bertolínia, situada a 18 km, em um únicoestabelecimento, ou nas cidades de Uruçuí eFloriano, que possuem uma rede de serviços desaúde mais ampla e de maior complexidade. Emsituações que requerem intervenção de alta com-plexidade, o atendimento é buscado em Teresina.

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No que se refere à situação educacional, olevantamento do IBGE (2004) apontou que, em2001, havia 544 pessoas de 10 anos ou mais quenão possuíam qualquer instrução ou quetinham menos de um ano de estudo e 1.411pessoas da mesma faixa etária que tinham cursadoapenas de um a três anos de estudo. Isso significaque, naquela data, praticamente a metade dapopulação se encontrava nas condições deexclusão educacional apontadas. Por outro lado,os dados do Censo de 2010 (IBGE, 2011) informamque o quadro geral tem melhorado, mas aindapersistem 27,7% de pessoas analfabetas, contra2.733 pessoas alfabetizadas. Destas últimas,1.394 delas residem no meio urbano e 1.339, nomeio rural. Considerando a diferença populacionalpara mais no meio rural, encontramos que 72,5%da população urbana estão alfabetizados, contra63,5% da rural, o que evidencia a permanência dadesvantagem rural quanto ao acesso à educação.

A rede escolar disponível na cidade conta com16 estabelecimentos pré-escolares, 17 do ensinofundamental, urbanos e rurais (IBGE, 2011), e, deacordo com as informações locais, duas escolasde ensino médio, uma municipal e outra estadual,estão instaladas na sede do município, ambas comacesso a internet. Nesta última também funciona aUniversidade Aberta do Brasil (UAB), operadaatravés da Universidade Federal do Piauí (UFPI) emconvênio com o Governo do Estado, o qual instituiua Universidade Aberta do Piauí (UAPI). Em 2009, omunicípio contava com 758 matrículas no ensinofundamental e 92 no ensino médio.

Quanto à religião, não obstante o catolicismomostrar-se forte, com a participação inclusive dosjovens, quase um terço da população da cidade éde evangélicos, o que merece destaque. De acordocom IBGE Cidades (2011d), da população residenteem Sebastião Leal, 3.441 declaram-se católicosapostólicos romanos, 1.429 declararam-seevangélicos, vinculados a igrejas diversas, 3 sedisseram espíritas e 69 informaram não ter religião.No levantamento não foi registrada nenhumaresposta para umbanda e candomblé. Por meio daetnografia, localizamos dois templos protestantesna sede do município - Igreja Batista e Assembleiade Deus - e um templo católico, tendo São JoãoBatista como seu padroeiro.

Ainda conforme nossa pesquisa, o pesopopulacional e comercial da sede do município deSebastião Leal encontra-se ao longo da avenidacentral da cidade, de nome Ulisses Guimarães,

congregando para esse espaço os interesses doshabitantes, tanto da sede como das localidadesrurais. Um cenário característico dessa avenida é oprofuso trânsito de carretas que operam otransporte de equipamentos, insumos, soja, milhoe derivados. Além dessa importante via,existem as pequenas ruas transversais e a praçaJoão Veloso - segundo maior espaço dassociabilidades locais -, perto da qual estálocalizada a prefeitura e a igreja católica.

As casas da cidade ainda não possuem anumeração feita pela prefeitura, entretanto, issonão impede o trabalho dos Correios, visto que ocarteiro conhece todos os moradores, posto quepartilha das relações de interconhecimento locais.Para quem mora nas localidades rurais, o maiscomum é o uso do endereço de conhecido ouparente residente na cidade.

Do ponto de vista institucional, além daprefeitura, também observamos que a cidade contacom a Câmara de Vereadores, o Conselho Tutelardos Direitos da Criança e do Adolescente, o Centrode Referência da Assistência Social, umabiblioteca municipal e uma delegacia de polícia.Existem ainda na cidade uma agência dosCorreios, um caixa eletrônico da Caixa EconômicaFederal, um posto do banco Bradesco, um postotelefônico, telefonia celular de duas operadoras,uma lan house, três pequenos hotéis, dois clubes,duas lojas de departamentos de pequeno porte,pequenas lojas de produtos diversos, váriosmercadinhos, duas lanchonetes e pequenos baresdiversos. Dentre as lojas existentes, algumascomercializam roupas de grife originais, que,segundo os moradores da localidade rural RoçaNova, são todas vendidas com celeridade e a preçoalto. Para o transporte de passageiros entre acidade e demais municípios vizinhos, bem como acapital, Teresina, os moradores contam com oônibus da Viação Princesa do Sul.

Por último, registramos a polêmica em torno dadenominação recebida pela cidade quando da suaemancipação. A história local registra que o lugarrecebeu o nome de Irapuá dos pioneirosportugueses que chegaram à região, em umamenção às abelhas ali encontradas.Posteriormente, Eugênio Borges Leal foi quemprimeiro fixou moradia no local, estimulando outraspessoas a segui-lo (SOUSA, [s.d.]). Com aemancipação, o município passou a serdenominado Sebastião Leal, em homenagem a umdeputado do Piauí, falecido em 1993, reforçando a

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interpretação de que os interesses políticosorientaram a escolha. Assim, alguns munícipes,como Dona Eva, disseram que “[...] se fosse pragente escolher, eu acredito que não ia ser estenome. Podia ser Irapuá ou outro nome.” Nalocalidade Roça Nova, a cidade aparece na fala daspessoas como Irapuá, mesmo dentre aquelas maisjovens, já nascidas após a emancipação.

Traçados os marcos gerais, resta, então, situaro município no novo contexto produtivo da região dosudoeste piauiense, alinhavando alguns impactosdo fenômeno para a sociedade local.

3 Dos agricultores locais aos fazendeiros dasoja: a ocupação das terras

Discutindo o processo da ocupação do cerrado,Moraes (2006), apoiando-se no argumento dediversos autores, propõe que o imagináriopartilhado por aqui configura um sudoeste ermo,embrenhado nas chapadas e tabuleiros e vivendoem torno das práticas rudimentares desubsistência. Assim os ocupantes secomportaram, porque, separados por grandesdistâncias dos núcleos urbanos, e também um dosoutros, sem acesso aos serviços públicos básicos(estradas, financiamentos, tecnologias, educaçãoetc.), permaneciam sem possibilidades de imprimirdinâmica mais arrojada à interação que mantinhamcom o que lhes oferecia a natureza.

Por outro lado, o ideário de que as terras deconstituição areno-argilosa, predominantes nolocal, eram pouco apropriadas à agricultura(SOUSA, [s.d.]),4 determinavam certo desinteressedos governos e eventuais exploradores pelo local,constituindo uma representação do sudoeste comovazio (MORAES, 2006) a exemplo do que Heredia,Palmeira e Leite (2009, p. 24, grifo nosso)encontraram também em relação a outras regiõesexploradas pela monocultura:

Com efeito, até os anos 70 do século passado,as terras dos estados do Centro-Oeste, hojecobertas pela soja, eram consideradasinadequadas para agricultura e eram ocupadaspor populações indígenas e pequenos posseiros,além de algumas fazendas de pecuária extensivadispersas ao longo de um vasto território.Orientando práticas e discursos, esse

entendimento sofreu profunda alteração a partir dadécada de 1970, consolidando também no Piauíoutra narrativa acerca dos cerrados. De acordo comMoraes (2006, p. 174), os anos 1990

[...] rompiam definitivamente, com o imperativo dodestino pastoril e assumiam a idéia da vocaçãoagrícola como mais uma feição da economiapiauiense [...]. Sem, dúvida, isto se vincula aoprocesso de incorporação dos cerrados

piauienses, que, a partir do final dos anos de1980, ganharia visibilidade como uma nova frentede expansão do agronegócio do complexo carnes/grãos, mais tarde largamente tratada como umanova fronteira agrícola.

Foi nessa vaga de reorientação produtiva doscerrados que Sebastião Leal, e municípiosvizinhos, teve o seu cenário reconstruído a partir daostensiva presença das propriedades monocultorasgraníferas instaladas na região, com o apoiomaterial e a parceria política do Estado.

Historicamente com produção centrada naagricultura de aprovisionamento, cultivada em terrasem cerca, livre, a partir da década de 1970, omunicípio experimentou uma importante mudançana sua estrutura fundiária, no processo, no tipo ena quantidade de produção gerada. Com aquelesque os moradores denominam de “projeteiros”,chegou também significativo montante de recursosprovenientes da Superintendência para oDesenvolvimento do Nordeste (Sudene). Segundoos habitantes locais, os projeteiros foram osprimeiros grandes produtores adeptos da modernaagropecuária que ali chegaram na década de 1970,inicialmente, no município de Uruçuí (Diário deCampo, 2011). Estimulados pelos incentivosprovenientes dos governos federal e estadual, opropósito era investir na produção de caju e napecuária, entretanto, a iniciativa “[...] na realidadenão resultou em produção agrícola, mas emocupação especulativa de terras” (MONTEIRO;AGUIAR, 2006, p. 173).

A interpretação de Seu Vicente corrobora oafirmado pelas pesquisadoras supra:

[...] os projeteiros chegaram e tomaram tudo [...].E ainda hoje a gente sofre... sofre essaconsequência grande da questão fundiáriamesmo [...]. Aqui havia a ideia de quem marcasseum aceiro [limite] de terra, garantia aquela terra.Aí, foi quando eles [os projeteiros] chegaram eencostaram em nós.Assim começava a demarcação de grandes

extensões de terra que serviriam inicialmente aosprojetos de modernização agrícola e ondeposteriormente se instalaria o agronegócio por meioda monocultura de soja no município de SebastiãoLeal. Anos depois, a maior parte dos projeteirosabandou a região, sendo sucedidos, a partir dedécada de 1990, por grandes produtores do sul edo sudeste brasileiros; estes, assim como osprojeteiros, também recebendo estímulosestatais - aspecto que tem marcado as mudançaspor que passa a agricultura no Brasil.

Tratando da questão da presença estatal nasrecentes modificações sofridas pelo campo brasileiro, Heredia, Palmeira e Leite

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(2009, p. 14, grifo nosso) afirmam que[...] são os enormes investimentos que põem emevidência o fato de que não se pode falar doagronegócio sem pensar no Estado e naspolíticas públicas, que não só viabilizam suaorigem, mas também sua expansão. No inícioessa presença se traduziu na política de terras(assentamentos), mas logo se manifesta napolítica de inovações tecnológicas e de pesquisa,naquilo que alguns autores denominaram como“recriação dos solos”, por intermédio da correçãoda acidez das áreas de cerrados, ou ainda pelomelhoramento genético de sementes, naimplantação de insfraestrutura local, etc. [...].A presença do Estado não elimina, por certo,aquela dos grandes grupos empresariais, que sesomaram aos fazendeiros tradicionais, aoscolonos também presentes [...], ou ainda, aatuação in loco das empresas multinacionais(tradings), etc. Mas, a leitura corrente desseprocesso deixa – em maior ou menor grau –explícita a ideia de que as transformaçõesoperadas nessas áreas a partir do final dos anos1980 e durante todo período seguinte foramtributárias exclusivamente da iniciativa privada,reforçando a construção do mito do pioneiroexterno (“gaúcho”) que, desembarcando nessasterras “vazias”, dedicaram-se ao trazer o processocivilizatório (e sua correspondente variantetecnológica agropecuária) para uma regiãosupostamente desprovida de investimentospúblicos e de atividades à cargo de grupos locais.Embora apreciem realidades do agronegócio

presente em outros estados do Brasil, a análisefeita pelos pesquisadores supracitados poderia serperfeitamente referente ao que acontece no Piauí.Aqui, a ocupação do cerrado piauiense, a despeitode ter ocorrido tardiamente, não se fez corrigindoos problemas já experimentados em outrosestados brasileiros. Os estudiosos do assunto ad-vertem que o fenômeno deveu-se ao fato de que o

Governo do estado do Piauí, com o objetivo detornar a região um significativo polo de agriculturacomercial, a exemplo do que acontecia emBarreiras (Bahia) e em Balsas (Maranhão),incentiva o uso de mecanismos estatais definanciamento à agropecuária e institui políticasde favorecimento à obtenção de terras, uma vezque o Estado detinha vastas áreas de terrasdisponibili-zadas através da Companhia deDesenvolvimento do Piauí (COMDEPI) a preçosditos “simbólicos.” (MONTEIRO; AGUIAR, 2006, p.3, grifo das autoras).Mas também aqui a autoria do feito é obliterada.

A ostensiva presença estatal oferecendo suporteaos campos de soja não se popularizou naquelaregião. A voz corrente no sudoeste piauiense é deque os grandes realizadores da transformação docampo piauiense são os gaúchos ou “os home doSul”, como dizem os locais.

4 As fazendas de soja e os impactossocioeconômicos na cidade

No período da pesquisa já estavam instaladasem Sebastião Leal diversas propriedades voltadaspara a produção de soja e milho, além de duas

grandes empresas do agronegócio, produtoras degrãos, mais conhecidas como fazendas de soja: aProgresso e a Chapada do Céu/Girassol. Noentorno do município, especialmente no municípiovizinho de Uruçuí, existem, dentre outras, Trento,Buzzato, Cruzeiro do Sul, Graúna, Canel, OuroFino, Campo Verde e Bunge, as quais concentramsuas produções nos grãos de soja, milho ealgodão, com produção menor de milheto, algumgirassol, feijão e arroz e, por vezes, algumaatividade de pecuária.

Do ponto de vista da produção alcançada nesseperíodo no sudoeste piauiense, encontramos emDantas e Monteiro (2010, p. 1) que

A ocupação do cerrado piauiense alicerçado nocultivo de soja, apesar de intensificar-se a partirda década de 1990, integrou o mesmo modelo demodernização agrícola, iniciado e capitaneadopelo governo brasileiro duas décadas antes.A ocupação agrícola da região assentada namonocultura da soja e no tripé grandes extensõesde terras, mecanização e adubação química,provocou impactos ambientais, como o desma-tamento, o aumento de emissões de gases deefeito estufa, a perda de patrimônio genético e dehabitat de espécies nativas, a contaminação dossolos e das águas com resíduos de fertilizantes eagrotóxicos e, principalmente, a aceleração dastaxas de erosão.Como se pode ver, as realidades de produção e

circulação dos bens produzidos pelas fazendas desoja guardam semelhanças, desde o seunascedouro, com as condições hoje presentes noagronegócio brasileiro como um todo. Além dascaracterísticas citadas, também ali se podeencontrar a concentração de renda, o trabalhotemporário precarizado, a evasão de capital para osgrandes centros etc. Entretanto, somam-se àscondições explicitadas também as oportunidadesde assalariamento, com a consequentecapitalização de parte dos camponeses, incidindosobre a independência financeira, o rompimentocom a hierarquia paterna, a inserção no mercado,enquanto consumidores, e a diferença de statusdiante dos demais. São essas as razõesapontadas para a busca do emprego como safristada soja, especialmente pelos jovens locais.Durante a pesquisa, observamos que é recorrente aalegação de que o trabalho na roça “é muitosofrido”; “não recebe apoio”; “não dá para nada, sópara o básico mesmo [para alimentação]” e de quea soja é a alternativa para todos. Desse modo,asfixiada pela presença da monocultura, pelaescassez decorrente da falta de oportunidades epela ausência de políticas públicas de apoio aoslocais, a agricultura tradicional enfrenta sériasdificuldades à sua reprodução.

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Cabe analisar, então, como o agronegócioimpacta o perfil econômico do município em geral.De acordo com o IBGE Cidades (2011c), enfocandoo PIB ali encontrado em um período de 11 anos, de1999 a 2009, exatamente correspondente aoperíodo de consolidação da soja no município, alinha que encontramos é ascendente (Gráfico 1):

Com o PIB crescente até 2008 e, em 2007,exibindo PIB per capita da ordem de R$ 8.676,00- o maior da microrregião e superior ao do estadodo Piauí, o qual no mesmo período era deR$ 4.661,00 -, as novas condições do municípionão têm alterado o alto índice de pobreza da suapopulação. Naquele mesmo período o IBGE (2002,IBGE 2003) registrava que 52,72% dos munícipeseram pobres e destes 38,77% se encontravamabaixo da linha de pobreza. Por outro lado, asestatísticas de 2010 mostram discreto aumento depobres, subindo para 52,77% da população (IBGE,2011). Segundo a mesma fonte, a população aindaapresenta pobreza subjetiva da ordem 64,31 eÍndice de Gini correspondente a 0,33 (IBGE,2011c). Ainda operando com os dados do Censo2010, do IBGE, ao abordar os níveis de rendadomiciliar, os mesmos se comportam de maneira aratificar considerável quadro de empobrecimentoquando apresentam que 35,5% dos domicílios seencontram com renda que varia de 0 a ½ saláriomínimo (Tabela 1). Tendo por referência que amédia de habitantes por domicílio é de quatropessoas, teremos que em 401 domicílios da cidadeas pessoas sobrevivem com renda per capitamensal de, no máximo, de R$ 68,13.

A Tabela 2 oferece um comparativo da situaçãode pobreza dentro da microrregião, tanto da relaçãoentre os dois importantes índices (PIB per capita eíndice de pobreza) como da configuraçãoapresentada em cada município em relação a umaspecto considerado de urgente prioridade emqualquer gestão pública: a erradicação doanalfabetismo, problema diretamente relacionadocom os níveis de pobreza e com a poucaefetividade e/ou inexistência de políticas públicasquanto-qualitativamente suficientes e adequadas.

No geral, a receita municipal e o rendimento aque os moradores tinham e têm acesso provêmespecialmente das fazendas de soja. Entretanto,com uma ou outra discrepância, em toda amicrorregião, o PIB per capita, mesmo quandoexpressivo, está combinado com altos índices depobreza. Isso pode indicar a existência deconcentração de renda e, por outro lado, da poucainfluência das fazendas de soja para a mudançados índices de inclusão social na cidade.

Além dos rendimentos auferidos na sojicultura,também contribuem nesse aspecto o pequenocomércio varejista, o emprego público e o trabalhodiarista na agricultura de aprovisionamento,conforme explicitou o entrevistado Paulo: “umservicinho aqui, outro ali quando um vizinho

Gráfico 1 - Produto interno bruto. Sebastião Leal.Piauí. 1999-2009

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados brutos do IBGECidades (2011c).

0

10000

20000

30000

40000

50000

60000

1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009

Sem rendimento

Até ½ SM Mais de ½ a 1 SM

Mais de 1 a 2 SM

Mais de 2 a 5 SM

Mais de 5 a 10 SM

Mais de 10 a 20 SM

Mais de 20 SM

221 180 244 302 160 20 2 2

Tabela 1 - Rendimento mensal em saláriosmínimos (SM) distribuído pelos domicíliosparticulares permanentes. Sebastião Leal. Piauí.2010

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados brutosdo IBGE, 2010.

Tabela 2 - PIB per capita, índice de pobreza e índicede analfabetismo da microrregião de Bertolínia. Piauí.2003/2010

Municípios PIB per

capita (R$) (2007)

Índice de pobreza-(%)

(2003)

Pessoas de 15 a 24 anos que não sabem ler e escrever-(%) (2010)

Sebastião Leal 8.676,00 52,72 27,7 Antônio Almeida 5.018,00 66,04 24,08 Porto Alegre do Piauí 3.749,00 54,97 27,60 Bertolínia 3.110,00 59,83 24,09 Manoel Emídio 2.753,00 54,04 24,2 Landri Sales 2.697,00 59,58 26,60 Eliseu Martins 2.718,00 64,72 3,2 Colônia do Gurguéia 2.498,00 70,62 22,00 Marcos Parente 2.497,00 59,14 25,2 Fontes: Elaboração própria a partir dos dados brutos do IBGE

Cidades (2011e).

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precisa. Aqui, não tem serviço, não. A gente dágraças a Deus quando aparece uma coisa. É difícil,aqui.” Em agosto de 2010, o valor pago pela diáriade trabalho era de R$ 25,00.

Sobre o quadro de empresas locais, as quaisestariam gerando os postos de trabalho e empregopara a população, tanto no campo como na cidade,o IBGE Cidades (2011c) notifica que no municípioexistem 18 empresas registradas, as quaisempregam 147 pessoas, pagando o salário médiode 1,8 salários mínimos.

Para um município onde se encontraminstaladas duas grandes fazendas de soja e umasérie de outras de pequeno porte, esse total deempregados parece diminuto; porém, a realidadede emprego na soja permite esclarecer a situação.Em entrevista realizada com o gerente da FazendaProgresso - a maior do entorno do município, comárea plantada de 22.800 ha e um faturamento daordem de R$ 30.000.000,00 para 2010 - tomamosconhecimento, durante a pesquisa de campo, deque a mesma empregava apenas 123 pessoas,lotadas no campo (em serviços especializados ounão) ou no escritório. Os empregados vêm deBertolínia, Landri Sales, Uruçuí, no Piauí, e deBalsas (MA), sendo apenas seis deles de Sebas-tião Leal. A empresa reclama da resistência dostrabalhadores do município-sede em aceitar ascondições, horários e demais exigências do traba-lho, o que a levou a deixar de contratá-los. Apequena distância física (17 km) fazia com que, porexemplo, os empregados resistissem em perma-necer na fazenda ao fim do expediente, retornandoapenas no final da semana. Com os trabalhadoresde fora, não enfrentavam tal “dificuldade”, dentreoutras similares, conforme reclamadas.

No caso da Fazenda Chapada do Céu/Girassol,havia 37 trabalhadores para atuação no escritório,tratamento de 2.500 ha de agricultura e 2.500 ha depecuária. Apenas quatro empregados eram deFloriano; os demais, procedentes de Bertolínia eSebastião Leal. A Fazenda não objeta contratarempregados do município-sede.

Muito embora o trabalho nas fazendas sejamecanizado, o resultado do cruzamento extensãoda terra X posto de trabalho geradoimpressiona pela magnitude. Por meio de umasimples operação aritmética, chegamos àconclusão de que na Fazenda Progresso sãonecessários 185,4 ha de terra explorada para gerarcada um dos postos de trabalho, enquanto que naFazenda Chapada do Céu/Girassol são

necessários 135,1 ha.Conforme os dados demonstram, a grande

plantação do agronegócio não vem gerando ostantos empregos que o discurso hegemônico emtorno da soja tem prometido, justificando osmassivos investimentos governamentais. Alémdisso, os empregos gerados se dão sob condiçõesprecárias. Os trabalhadores têm contratostemporários de apenas três meses, enquantoserviços gerais, sendo obrigados a cumprirjornadas exaustivas de 12 horas ininterruptas detrabalho, alternadas em turnos diurno e noturno,conforme informaram patrões e empregados,embora a carteira de trabalho esteja assinada coma jornada legal de 8 horas. O restante,contabilizado como hora extra, sequer ficaplenamente esclarecido, calculado e remunerado,conforme as palavras de Paulo:5 [...] mas nunca éoito, não. Essa é a obrigação, mas lá você semprefaz extra. Sai R$ 1,00 e pouquinho. [...] Também,no fim, a gente não sabe direito o tanto...”

De um modo geral, consolida-se a insegurançade trabalho e de renda e a dependência dotrabalhador em relação à monocultura, o que podeestar fechando e reproduzindo o ciclonecessidade - ida à fazenda - necessidade.Essa realidade vai de encontro às dinâmicas daagricultura tradicional local, tanto em relação aocalendário agrícola camponês e às sistemáticas detrabalho como à possibilidade de permanência dosmais jovens nas pequenas propriedades ereprodução dos modos de vida.

Quanto aos estabelecimentos produtivos rurais,no geral, encontramos em Sebastião Leal 549 uni-dades produtivas, distribuídas, conforme a naturezada propriedade e a área ocupada (cf. Tabela 3).

Natureza da propriedade Quant. de unid. produtivas

Área ocupada (ha)

Por unid. prod. Total Propriedade individual 443 103,76 45.965 Soc. anônima ou por cotas 2 9.675,00 19.350 Condomínio, consórcio ou sociedade de pessoas 1 37.000,00 37.000 Assentado s/ titulação definitiva 20 27,10 542 Arrendatário 02 - - Parceiro 15 102,47 1.537 Ocupante 13 9,00 117 Produtor sem área 53 - -

Tabela 3 - Unidades produtivas: quantidade e área.Sebastião Leal. Piauí. 2006

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados brutos do CensoAgrapecuário 2006 (IBGE, 2009).

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76informe econômicoAno 16, n. 31, jun. 2014

Ainda conforme o levantamento do CensoAgropecuário 2006, apenas 27 estabelecimentosdo município se ocupavam de lavouraspermanentes, com área de 790 ha, enquanto queas terras ocupadas com lavoura temporáriasomavam 22.349 ha, distribuídos por 308estabelecimentos rurais (IBGE, 2009). A produçãodaquele ano ficou configurada conforme ilustrado naTabela 4.

As tabelas permitem depreender que nomunicípio abordado vige uma estruturaconcentradora de terras quanto às unidadesprodutivas e ao tipo de produção efetivado. Ficasugerido também que, no período estudado, aprodução de milho e feijão pode advirespecialmente dos pequenos estabelecimentos,reafirmando, já naquela época, a escolha da sojacomo produto principal do agronegócio, comoratificam os achados de Dantas e Monteiro (2010),ilustrados no Gráfico 2.

A produção referente ao ano de 2010 (Tabela 5)vem reafirmar a prioridade da soja nos campos doagronegócio, evidenciando, entretanto, umamudança em relação à produção do milho e doalgodão, oleaginosas bem cotadas no mercadointerno e externo, foco da intermediação comercialde commodities realizada pelas trades do

agronegócio que operam na região, especialmenteapós as iniciativas brasileiras quanto à produção dobiodiesel. Os produtos que poderiam abastecer omercado local, barateando o custo de vida - como ofeijão e o arroz -, não despertam o interesse dosprodutores que hoje exploram o cerrado piauiense.

Não obstante o perfil produtivo do município, aliteratura especializada e os próprios sujeitosparticipantes da pesquisa têm apontado que aescolha política do modelo agroindustrial ora emofensiva distancia-se da orientação social daprodução e, desse modo, não enfrenta osproblemas mais cruciais das populações locais,como ampliação de renda, acesso a direitossociais e consequente usufruto dos bens eriquezas sociais (FUNAGUAS, 2010). Além disso,a questão premente da ameaça ao ecossistemados cerrados, de perda de patrimônio genético,contaminação de solos e águas, conformeassinalado por Dantas e Monteiro (2010),sedimentam a ideia de que a ocupação doscerrados piauienses, nos termos em que vemocorrendo, encerra um grave problema social paraas populações locais, como apontam alguns,como, por exemplo, Seu Vicente, de Roça Nova:

Quando a soja se instalou veio a promessa doemprego, mas hoje a gente é mais prejudicado, doque beneficiado. Eles fazem contrato de 30, 40dias [...] e pior é o desmatamento. [...] Até doençaque não tinha aqui, era raro ouvir falar de câncer,agora tem e muito. [...] A produção deles não servepara a comunidade. Eles não interessam emnegócio pequeno. Eles não têm nenhum interesse.Eles vendem é de mil toneladas pra fora.

Como se pode ver na magistral síntese doagricultor, uma grave e complexa situação seengendra localmente. Quando da pesquisa,pudemos presenciar que seus rebatimentos têmsido deixados para resolução por cada pequenoprodutor, em nível individual e de acordo com suasrestritas margens de gestão de cada problemaenfrentado (SILVA, 2011).

-

100,0

200,0

300,0

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500,0

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900,0

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0

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2006

/07

2007

/08

Safras

Prod

ução Milho

ArrozSoja

Fonte: Dantas e Monteiro (2010).

Produto Quant. de unid. produtivas Produção (ton) Por unid. prod. Total

Feijão de corda 25 0,24 6 Feijão fradinho 209 0,22 45 Milho 144 36,7 5.286 Soja 4 8.961,0 35.844

Tabela 4 - Produção da lavoura temporária.Sebastião Leal. Piauí. 2006

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados brutosdo Censo Agropecuário 2006 (IBGE, 2009)

Gráfico 2 - Produção de milho, arroz e soja no Piauísafras de 1990/1991 a 2007/08 (em mil toneladas)

Tabela 5 - Produção da lavoura temporária. SebastiãoLeal.Piauí. 2010. (em ton.)

Soja Milho Algodão Arroz Feijão 24.168 24.030 13.500 1.998 155

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados brutos do IBGECidades (2011f).

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77 Ano 16, n. 31, jun. 2014informe econômico

5 Conclusão

A atual expressão do campo em SebastiãoLeal, como evidenciado, é fruto direto do processoalgo recente de aquisição de terras e ocupaçãoprodutiva a partir da ação de agricultores oriundosdas regiões sul e sudeste do Brasil ou porestrangeiros - em menor proporção - estabelecidosnos cerrados piauienses, mais intensamente apartir dos anos 1990. Embora estabelecidos,inclusive no que respeita à propriedade e ao uso daterra, com fartos incentivos público-estataisrecebidos através de iniciativas e programasgovernamentais, o resultado final do processoprodutivo pouco resulta em benefícios para osagricultores locais, seja em emprego direto, emmelhoria real do capital injetado no município, sejaem possibilidade de se produzir ou consumir umalimento saudável a preço mais baixo e sobcondições laborais não precarizadas.

Por outro lado, os processos engendrados pelarealidade de produção e circulação dos bensadvindos das fazendas de soja, ambientados nacontemporânea expressão do capitalismo mundial,guardam semelhanças - desde o seu nascedouroaté aos desdobramentos atuais - com ascondições presentes no agronegócio brasileirocomo um todo. Como tal, as repercussões darealidade posta não se resumem ao ambientenatural, às relações com a terra e às condiçõesobjetivas de produção, circulação e consumo dosprodutos; indubitavelmente, suscita importantesmudanças também para as culturas locais emgeral, implicando na alteração dos modos de vida,das pautas orientadoras da convivência social, daspráticas e trocas intergeracionais, com impactosdiretos sobre as condições gerais de produçãoe reprodução da agricultura de aprovisionamentoconforme existente até então nos cerradosdo Piauí

Notas:(1) A mesorregião do sudoeste piauiense abrange 62municípios. Destes, compõem a microrregião deBertolínia: Antônio Almeida, Bertolínia, Colônia doGurgueia, Eliseu Martins, Landri Sales, ManoelEmídio, Marcos Parente, Porto Alegre do Piauí eSebastião Leal.(2) Dos nove municípios da microrregião deBertolínia, seis têm população masculina maior que afeminina, contrariando a estatística que encontramosno estado do Piauí, bem como em todos os outrosestados do Nordeste e no próprio Brasil, onde asmulheres são maioria. Careceria de maiorinvestigação no sentido de se entender se areorientação da agricultura que, de algum modo,

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envolve todos esses municípios em relação a estefenômeno (IBGE CIDADES, 2011e).(3) Na pesquisa de campo, pudemos apurar in locoque o médico da cidade, residente em Teresina,permanece no município de Sebastião Leal dequarta-feira a sábado.(4) Os moradores também se orientavam por estainterpretação: “Só por volta de 1985 a gente deu contade que no cerrado produzia arroz!”, disse Seu Vicente,relembrando que apenas os baixões eramaproveitados pelos agricultores locais. Essa ideia écorroborada por Sousa ([s.d.], p. 49), ao apontar queno município “Existem também os solos tipo aluvião emassapé, predominantes nos brejos e baixões, ondeé explorada a cultura de arroz pelos pequenosprodutores.”(5) Embora esse seja o padrão geral encontradoquanto aos trabalhos realizados e às jornadascumpridas, entre os trabalhadores da soja deSebastião Leal persiste a opinião de que a FazendaChapada do Céu/Girassol oferece melhorescondições de trabalho no que se refere a alojamento,alimentação e relação com os proprietários.

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78informe econômicoAno 16, n. 31, jun. 2014

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA -IBGE. CIDADES. Piauí: Sebastião Leal. Disponível em: <http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=221063&search=piaui|sebastiao-leal>. Acesso em: 26 ago. 2011c.INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA -IBGE. CIDADES. Piauí. Sebastião Leal: síntese dasinformações. Disponível em: <http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/temas.php?lang=&codmun=221063&idtema=16&search=piaui|sebastiao-leal|sintese-das-informacoes>.Acesso em: 26.ago. 2011d.INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA -IBGE. CIDADES. Piauí. Disponível em: <http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/uf.php?lang=&coduf=22&search=piaui>.Acesso em 26 ago. 2011e.INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA -IBGE. CIDADES. Piauí. Sebatião Leal. produção agrícolamunicipal: lavoura temporária - 2010. Disponível em: <http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/temas.php?lang=&codmun=221063&idtema=74&search=piaui%7Csebastiao-leal%7Clavoura-temporaria-2010>. Acesso em: 28 ago. 2011f.

* Professora do Departamento de Serviço Social e doPrograma de Pós-Graduação em Sociologia daUniversidade Federal do Piauí. Doutora em SociologiaPolítica pela Universidade Federal de Santa Catarina.

MONTEIRO, M. S. L.; AGUIAR, T. J. A. Ocupação do cerradopiauiense: valorização fundiária e consequências ambientais.In. ELIAS, D.; PEQUENO, R. (Org.). Difusão do agronegócio enovas dinâmicas sócio-espaciais. Fortaleza: BNB, 2006. p.173-209.MORAES, M. D. C. Do destino pastoril à vocação agrícola:modernização agrícola dos cerrados e inflexões discursivasnas narrativas mestras do Piauí. In: ELIAS, D.; PEQUENO, R.(Org.). Difusão do agronegócio e novas dinâmicas sócio-espaciais. Fortaleza: BNB, 2006. p. 173-209.SOUSA, I. A. S. História de Sebastião Leal. Sebastião Leal:[s.n.], [s.d.]. (manuscrito).SILVA, M. V. Pisando em terra firme(?): identidades juvenis ereprodução social na localidade rural Roça Nova, SebastiãoLeal - PI. 2011. 175 f. Relatório (Pós-doutorado) Programa dePós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento,Agricultura e Sociedade, Universidade Federal Rural do Riode Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.

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IMPRENSA E SINDICALISMO: asrepresentações dos empregados docomércio de Teresina através dos jornais(1943-1983)Eliane Aparecida Silva* e Solimar Oliveira Lima**

Resumo: este artigo, cuja ênfase recai sobre o sindicalismo comerciário teresinense, tem como objetivocentral analisar o processo de organização nos primeiros 40 anos de sua trajetória, a partir dos discursospublicados na imprensa escrita de Teresina.Palavras-chave: Sindicalismo. Comerciário. Teresina. Imprensa.

Abstract: this article, whose emphasis is on unionism Teresina in commerce, is mainly aimed to analyze theprocess of organizing the first 40 years of his career, from the speeches published in the written press inTeresina.Keywords: Unionism. Comerciario. Teresina. Press.

1 IntroduçãoInicialmente, a fim de melhor caracterizar o

processo de organização sindical dos empregadosno comércio de Teresina, há que se traçar umparalelo com o movimento sindical brasileirodestacando os seus principais acontecimentos.Embora a ênfase recaia na trajetória sindical dosempregados do comércio de Teresina, faz-se umarelação com a situação sócio-econômica a fim deentender o modo como esta situação interferiu noprocesso de organização dos comerciários.Segundo Weffort (1973), a análise da conjuntura érelevante justamente por trazer ao nível doconhecimento estas encruzilhadas da história emque as orientações ideológicas e a capacidade deação assumem uma importância decisiva.

Destacando a linha do discurso oficial que foiconstruído em torno da categoria comerciária,neste artigo abordam-se as ações erepresentações que marcaram a trajetória doSindicato dos Empregados no Comércio deTeresina (S.E.C.T., na sua sigla original) nos seusprimeiros 40 anos, suas formas de organização,principais reivindicações por melhores condiçõesde trabalho e salariais, bem como as suasconquistas.

No que diz respeito à periodização, atemporalidade escolhida é colocada em termos deimportância para o Sindicato dos Empregados doComércio. O início do recorte em 1943 foi marcadopor seu reconhecimento como Sindicato pelo

Ministério do Trabalho, o que trouxe para acategoria maior possibilidade de recebimento dosdireitos sancionados pela legislação social. Orecorte final, 1983, porque foi quando ocorreu aretomada desta entidade com a primeira vitória naseleições do grupo de oposição à então diretoriavigente.

Na análise do contexto teresinense, observou-se que o sindicalismo se apresentou como umatemática recorrente nos jornais de circulação local.Por isso, fez-se uma análise das ações erepresentações do sindicalismo comerciárioteresinense a partir dos discursos publicados nosjornais impressos. Para tal, o conceito derepresentação por Roger Chartier (1990) é degrande relevância. Este traz como proposta teórico-metodológica o conceito de representação,buscando percebê-lo como construções que osgrupos fazem sobre suas práticas. Dessa forma, asrepresentações dizem respeito ao modo como emdiferentes lugares e tempos a realidade social éconstruída, pensada e dada a ler por diferentesgrupos sociais. Ademais, as representações domundo social são determinadas pelas relações depoder e pelos conflitos de interesses dos grupossociais.

As percepções do social não são de formaalguma discursos neutros: produzem estratégiase práticas (sociais, escolares, políticas) quetendem a impor uma autoridade à custa de outros,por elas menosprezados, a legitimar um novoprojecto reformador ou a justificar, para ospróprios indivíduos, as suas escolhas e condutas.

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Por isso essa investigação sobre asrepresentações supõe-nas como estando semprecolocadas num campo de concorrências e decompetições cujos desafios se enunciam emtermos de poder e de dominação (CHARTIER,1990, p. 17).Então, o conceito de representação se

apresenta como alternativa à compreensão dosocial e cultural da realidade, portanto, contribuipara a análise das representações do sindicalismocomerciário de Teresina entre os anos de 1943 e1983.

É inquestionável a importância do uso dosjornais como fonte de pesquisa no estudo histórico;através da imprensa, compreende-se melhor asatividades que marcaram a trajetória doscomerciários; afinal, os periódicos se tornaramfontes fundamentais para os estudos de temáticasdiversas, como a própria história do movimentooperário:

Dados acerca das formas de associação ecomposição do operariado, correntes ideológicase cisões internas, greves, mobilizações econflitos, condições de vida e trabalho, repressãoe relacionamento com empregadores e poderesestabelecidos, intercâmbios entre liderançasnacionais e internacionais, enfim, respostas paraas mais diversas questões acerca dossegmentos militantes puderam ser encontradasnas páginas de jornais, panfletos e revistas, quese constituíam em instrumento essencial depolitização e arregimentação (LUCA, 2005, p. 119).Neste estudo destacam-se as fontes

hemerográficas, notadamente os jornais escritos decirculação local (Diário Oficial, Jornal do Comércio,Jornal do Piauí, jornal O Dia) localizados no ArquivoPúblico do Piauí, Casa Anísio Brito.

Inicialmente, trabalhou-se com o Diário Oficial,órgão noticioso que trazia principalmente asnotícias do governo, servia à própria estrutura depoder durante o período estado novista. Nesteperiódico as notícias sobre o S.E.C.T. abordavam:convocação para assembleias, alteração decargos, participação em homenagens aos poderespúblicos em solenidades cívicas, cartas/telegramasenviados pela entidade ao presidente Vargas comoforma de reivindicação e também de apoio ao seugoverno.

O Jornal do Comércio, que teve comoproprietário Bento Clarindo Bastos - filiado aoPartido Trabalhista Brasileiro (PTB) -, abordavanotícias relacionadas ao sindicalismo no geral. Nasnotícias editadas por esse jornal, destacam-se ascríticas aos empregadores por não respeitarem asleis trabalhistas.

O jornal O Dia, fundado por Leão Monteiro em1951, de viés opinativo, também era simpatizantedo PTB. Em 1962, este periódico divulgou nas suas

páginas a “Coluna Sindical” escrita pelo entãopresidente do S.E.C.T., Deusdedit Sousa,mostrando que a entidade tinha espaço em umimportante órgão do estado.

O presente estudo sofreu algumas limitações,ao analisar os primeiros anos do S.E.C.T., emvirtude da dificuldade de encontrar fontesdocumentais, visto que poucos jornais circulavam apartir dos anos 1940; deste período, a maioria estálacrada. Ao investir junto ao Sindicato, a informaçãoobtida foi a de que não dispunham sequer de ata/estatuto de fundação ou de outros documentos dosprimeiros 40 anos da entidade. Alegou-se quemuitos documentos foram perdidos ou queimadospropositadamente nas gestões anteriores. Buscou-se o estatuto de fundação nos cartórios maisantigos da cidade, porém, sem êxito.

A destruição do patrimônio documental destaentidade sindical é mais notória levando em contaas turbulências dos meios de comunicaçãocontrolados pelo regime militar. Constatou-se queas notícias sobre o S.E.C.T. pouco apareceram nosjornais, dificultando o levantamento dos prejuízoscausados aos empregados no comércioteresinense e à sua entidade pelo regime militarpara reparação moral, política e material.

2 Reflexões acerca do movimento sindicalbrasileiro e piauiense

Quando o Brasil passou a ser um paísindustrial, a classe trabalhadora ganhou umaimportância maior. Por isso, durante o governoGetúlio Vargas implantou-se uma legislaçãotrabalhista, sendo os sindicatos a principal via deorganização dos assalariados urbanos. Em virtudedas intensas reivindicações, a partir dos anos 1930e 1940 teve início a elaboração de uma políticavoltada para o cidadão-trabalhador brasileiro:

É a partir desse momento, demarcado pelaRevolução de 30, que podemos identificar deforma incisiva toda uma política de ordenação domercado de trabalho, materializada na legislaçãotrabalhista, previdenciária, sindical e também nainstituição da Justiça do Trabalho. É a partir daíque podemos igualmente detectar – em especialdurante o Estado Novo (1937-1945) – toda umaestratégia político-ideológica de combate àpobreza que estaria centrada justamente napromoção do valor do trabalho [...] (GOMES, 1999,p. 55).Dessa forma, era imprescindível a intervenção

do Estado, cujo imobilismo em anos anteriores foiapontado como as razões das inúmerasdeficiências no setor trabalhista. Predominava,então, o discurso que procurava aproximar oEstado, na figura de Vargas, dos trabalhadores.

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81 Ano 16, n. 31, jun. 2014informe econômico

Todavia, o governo mostrava-se repressivo mediantequalquer reivindicação dos trabalhadores,reprimindo os que não se enquadravam às suasnormas. Por esse motivo, o sindicato passou a sercontrolado pelo Ministério do Trabalho, o qualdeterminava as condições de trabalho e salários.

Antunes (1988) afirma que, para que haja oentendimento da atuação do Estado varguista e doseu relacionamento com a classe operária, épreciso destacar que sua face repressivamanifesta-se inicialmente na formulação de umapolítica sindical controladora e que visou sujeitarpoliticamente a classe operária à dominação docapital através da dissolução de suas organizaçõesindependentes e, em função da resposta operária,do desencadeamento da repressão policial, que emdeterminados momentos foi incontrolável.

O modelo de estrutura sindical oficial oucorporativista foi difundido a partir dos anos 1930 etinha como características principais o regime desindicato único (por categoria e região), além davigência do imposto sindical - uma contribuiçãoanual obrigatória de todos os trabalhadores aossindicatos. Estes passaram a ser órgãos decolaboração com o Estado e qualquermanifestação política ou ideológica ficava proibida.

No Piauí, os sindicatos são marcados por umsindicalismo voltado mais para o recebimento dosbenefícios sociais do Estado do que para areivindicação salarial. Em Teresina, de acordoMedeiros (1995), foram criados sindicatos queseguiam o modelo corporativista, destacam-se:Syndicato dos Criadores Piauhyenses (patronal),Syndicato dos Operários Sapateiros, Syndicatodos Operários em Construção Civil, Syndicato dosOperários Carpinteiros e Marceneiros, Syndicatodos Empregados no Commércio de Therezina,Syndicato dos Operários Pedreiros, Syndicato dosOperários Metalúrgicos e Mechanicos, Syndicatodos Engenheiros do Piauhy, Syndicato dosOperários Panificadores Teresinenses.

Em 1943, foi sancionada pelo governo Vargas aConsolidação das Leis do Trabalhado (CLT),principal instrumento para regulamentar as relaçõesde trabalho e proteger os trabalhadores com oobjetivo de unificar a legislação trabalhista. Osseus principais assuntos eram sobre o registro dotrabalhador, jornada de trabalho, férias, medicina dotrabalho, organização sindical e convençõescoletivas.

A partir de 1945, a representação sindicalpassou a ser reconhecida na forma da lei, haja

vista a função importante dos sindicatos debeneficiar as classes operárias de cada setortrabalhista. Ademais, a modificação na organizaçãosindical permitiu que os operários sesindicalizassem, já que antes estavamsubordinados à onipotência do Ministério doTrabalho e da vontade governamental.

No Brasil, como consequência da debilidade doEstado Novo, houve o ressurgimento das lutassindicais. Neste contexto, o número de greves dostrabalhadores cresceu e se estendeu por todo oBrasil, inclusive para o setor rural. Além disso, asmudanças ocorridas na legislação do trabalhofizeram com que aumentasse a quantidade desindicatos no País. Portanto, a busca cada vezmaior por melhores condições de trabalhoincentivou a sindicalização da classe trabalhadora:

Ao findar do ano de 1954, havia atingido 2.172 onúmero de sindicatos no Brasil, contra 2.082,existentes em 1953. No ano passado, portanto,foram cadastradas pelo Serviço de Estatística daPrevidência do Trabalho mais de 90 associaçõesde gênero em todo o país, dos quais 58 eramformados de empregados, 28 de empregadores e4 de profissionais liberais [...] (2.172..., 1956, p.10).O aumento considerável no número de

sindicatos no Brasil na década de 1950 ocorreudevido à influência da ideologia trabalhista adotadapelo governo Vargas, que, com a aprovação eexaltação da legislação trabalhista, buscouincentivar a sindicalização; e o próprio GetúlioVargas fazia questão de mencionar os benefíciosalcançados pela classe trabalhadora, quandoesteve em Teresina pela segunda vez em agosto de1950. Outra conquista foi o aumento do salário doscomerciários a pedido do Sindicato dosEmpregados no Comércio:

Como se vê, estão adiantadas as dermaches parao entendimento das justas pretensões doscomerciários desta capital, e poderemos admitirque a classe patronal concordou com uma boaparte da solicitação que lhe foi endereçada pelosempregados, sendo de esperar-se que tudo seharmonize sem deflagração de dissídio coletivo.[...] (AUMENTA..., 1952, p. 1).Os trabalhadores piauienses tiveram outras

reivindicações atendidas, dentre elas, a aprovaçãode um anteprojeto que regulamentava o direito degreve, porém, deviam obedecer aos dispositivos dalei, onde constava que a greve deveria ter ummotivo convincente e pertinente às relações dotrabalho.

A partir de 1964, quando o País esteve sob ocontrole restrito dos militares, foram frequentes asintervenções no movimento sindical. De acordocom Armando Boito Junior (1991, p. 46), “toda vida

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interna dos sindicatos oficiais era rigidamentecontrolada. Havia o estatuto padrão detalhado eimpositivo, regulando até os mínimos detalhes davida de cada sindicato.” A ação reivindicativaatravés dos sindicatos oficiais praticamenteinexistia; e os que tentavam confrontar o governosofreram forte repressão.

No Piauí, o movimento sindical persistiu com alegislação sindical corporativista. Na maioria dossindicatos urbanos, houve intervenção, porém, amaioria foi reativada por diretorias pelegas.Medeiros (1995, p. 177) destaca que “de 1965 a1980, foram criados 131 novos sindicatos - 46patronais e 85 de trabalhadores.”

No final da década de 1970 e início de 1980,quando houve um progressivo afrouxamento docontrole governamental, o sindicalismo brasileiroviveu sua fase áurea com o ressurgimento domovimento sindical de massa. Marcava-se umanova etapa da atuação sindical através da criaçãoda Central Única dos Trabalhadores (CUT). Naquelaépoca, em substituição ao sindicalismocorporativista, foi inaugurado o novo sindicalismo -estrutura sindical caracterizada por sua atuaçãoreivindicatória e que adotou como estratégia avinculação mais efetiva entre o sindicato e ostrabalhadores, estimulando o surgimento de novaslideranças sindicais. Os sindicatos procuraramorganizar seus trabalhadores por local de trabalho,houve a ampliação do direito de greve e ostrabalhadores começaram a ocupar um espaço nocenário político.

O movimento dos trabalhadores piauienses, porsua vez, integrou-se a esse esforço de renovaçãono âmbito nacional, através de um discurso deprática sindical que propôs o rompimento com asgestões sindicais tradicionais e participando doprocesso de criação da CUT no Piauí.

3 O processo de organização sindical dosempregados do comércio de Teresina

Os empregados no comércio começaram a seorganizar, primeiramente, na forma de associação,fundada em outubro de 1928. Dentre os seusprincipais objetivos, zelar pelos interesses daclasse, confederar-se com as demais existentesnos diversos estados da União, prestar aos seusassociados auxílios médicos, publicar um periódicoe representar os comerciários perante os governossobre questões de interesses comerciais, agindoem seu benefício e justas pretensões.

A Associação dos Empregados do Commércio

de Theresina era constituída por sócios queexerciam funções do comércio, compondo-se detrês categorias: fundadores, efetivos e voluntários(pagavam uma taxa fixa e contribuiçõesestabelecidas). As admissões dos sócios eramfeitas mediante requerimento do candidato aos trêsórgãos responsáveis pela direção da associação.

No decorrer da década de 1930, a entidadepassou a ser denominada nos jornais de Sindicatodos Empregados no Comércio de Teresina. Osjornais impressos de circulação local noticiavam asconvocações para assembleias gerais realizadasna sede da entidade, onde eram discutidosassuntos gerais do seu interesse: eleições paracargos sindicais, aprovação e reforma dosestatutos, discussão e aprovação de orçamentos,apresentação de relatório pela diretoria e pedido dereajustamento salarial com a classe empregadora.

No que se refere ao movimento sindical emTeresina, verificou-se uma forte influência dadoutrina trabalhista ditada por Vargas. Nascimento(2002) observa que no período compreendido entre1935 e 1945 não se encontram em registrosnenhuma alusão a manifestações relacionadas amelhores condições de trabalho, salariais ou outrasreivindicações trabalhistas. As notícias maiscomuns eram referentes à participação emsolenidades, destacando-se as que homenageavamautoridades políticas.

Criou-se uma espécie de tempo festivo com oobjetivo de envolver a população em torno decomemorações que resumiam a imagem doregime. Para GOMES (2005) cada uma dessasfestas assumiu o mesmo ritual: o presidente empessoa falava para a multidão e, acentuando omomento mítico, grandes desfiles e músicasconstruíam a grandiosidade do espetáculo.Em Teresina, de acordo com informaçõespublicadas no Diário Oficial, as comemoraçõesseguiam esse mesmo ritual.

Em maio de 1942, o Diário Oficial (ASSOCIA-ÇÃO..., 1942) noticiava que a Associação Profis-sional dos Empregados no Comércio de Teresinaconvocou os seus associados para uma assem-bleia geral, com a finalidade de discutir e aprovar oprojeto de novos estatutos elaborados de acordocom o modelo oficial. Contudo, o principal objetivoda assembleia era deliberar sobre o pedido dereconhecimento da referida associação profissionalcomo sindicato da respectiva categoria (emprega-dos do comércio), tendo por base alguns decretos-leis e as instruções das portarias ministeriais.

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No ano seguinte, o Diário Oficial (SINDICATO...,1943) congratulou a categoria informando odeferimento do pedido de reconhecimento comosindicato (o S.E.C.T.) pelo Ministro do TrabalhoMarcondes Filho, ocorrido em 13 de abril de 1943:

Do Presidente do Sindicato dos Empregados noComércio de Teresina, recebemos participaçãoque muito agradecemos, de haver o exmo. Sr.Ministro Marcondes Filho, da pasta do Trabalho,deferido o pedido de reconhecimento daquelaassociação. Como sindicato, por despacho de 13de abril transacto. Fazendo esse registro,enviamos ao S. E. C. T. os nossos melhores votosde prosperidade (SINDICATO..., 1943, p. 1).Desse modo, o reconhecimento pelo Ministério

do Trabalho deu aos empregados do comércio deTeresina maiores possibilidades de pleitear osbenefícios decorrentes da legislação trabalhista deVargas, contribuindo para efeito de reivindicações,negociações e acordos; também, para orecebimento de recursos provenientes decontribuições obrigatórias como o imposto sindical,por exemplo. Ainda no ano de 1943, de acordo coma imprensa escrita, passou a circular entre acategoria o Boletim do S. E. C. T., cuja finalidadeera tratar dos interesses da classe.

Outra conquista significativa para a categoria foio feriado no dia do empregado do comércio. Assolenidades de comemoração da data consagradaà classe eram marcadas por palestras versandosobre as finalidades, direitos e vantagens dasindicalização, em face da legislação trabalhistavigente.

Como sempre vem sucedendo anualmente, osempregados no comércio têm hoje a felizoportunidade de comemorar, em todos osquadrantes do nosso território, o 30 de Outubro.Classe antigamente destituída de prerrogativas edireitos que asseguram a estabilidade, emsentido amplo, de todo servidor da Nação, oscomerciários, graças à sábia legislação socialintroduzida pelo nosso ínclito presidente Vargas,estão atualmente colocados em plano não menossuperior. Data eminentemente consagrada aosque desenvolvem sua atividade exclusiva nocomércio, é ela digna, por todos os títulos, daveneração e acatamento de todos os brasileiros.Como de praxe e para maior brilho dasmanifestações de regozijo pelo auspicioso evento,o comércio local permaneceu com as suas portascerradas, hoje à tarde (DIA..., 1944, p. 8).A citação acima, embora seja longa, evidencia

que a participação nas comemorações era umatentativa de legitimar o discurso oficial em relaçãoque aos trabalhadores comerciários de Teresina.Porém, se a categoria estava satisfeita com apolítica varguista, é difícil saber, pois o órgão oficialdefendia os interesses da classe patronal.

Na conjuntura sócio-econômica vivenciada nosanos 1940 e 1950, Teresina emergiu como centroda economia piauiense e os recursos originavam-se

principalmente da atividade comercial. Com isso,houve o aumento do número de estabelecimentoscomerciais e, consequentemente, de trabalhadoresempregados. Daí, a importância dos sindicatoscomo forma de organizar e representar essestrabalhadores, à medida que crescia a pressão porreformas econômicas e sociais, embora naqueleperíodo as mobilizações sociais fossem muitoocasionais.

No que se refere à representatividade dasatividades comerciais, o Instituto de Aposentadoriae Pensões dos Comerciários (IAPC) e a AcademiaComercial Piauiense (ACP) eram órgãos quetratavam dos interesses relacionados aoscomerciários, dos empregadores e empregados. Noprimeiro caso, tratava-se de uma organização deprevidência que beneficiava os comerciáriossegurados com pagamentos de pensões (por óbito)e aposentadoria (por invalidez), também resolviaproblemas de habitação e assistência médica. Aimprensa escrita noticiava com frequência asatividades ligadas ao IAPC.

Em uma carta endereçada a Getúlio Vargas, em1944, publicada no Diário Oficial (APELO..., 1944)na íntegra, o então presidente do S.E.C.T., LeucipoVeiga de Almeida, enumerava algumasreivindicações: aumento salarial, dilatação doperíodo de férias, estabilidade no emprego apóscinco anos de serviço, participação nos lucros daempresa, casa própria e o pagamento integral dosalário ao associado durante o período deenfermidade; além disso, enfatizava a importânciada sindicalização obrigatória pelos seus benefícios,ao reunir os trabalhadores para o fortalecimento daestrutura sindical.

O Sindicato dos Empregados no Comérciotambém apresentou à ACP, órgão representativodos empregadores que oferecia cursos deaperfeiçoamento aos comerciários, um memorandopleiteando a adoção da Semana Ingleza (expressãoutilizada pelos empregados no comércio, assimcomo por outros movimentos sindicais, paraidentificar a proibição do trabalho nos sábados àtarde, domingos e feriados, a exemplo do queocorria em vários países europeus) no comércioteresinense. A justificativa era que traria maisbenefícios não só ao empregado como também aoempregador, visto que teria mais disposição paratrabalhar durante a semana, caso tivesse odescanso nos fins de semana.

Percebe-se que a principal reivindicação dacategoria foi o aumento de salário, considerado

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pelo comerciário desproporcional ao custo de vida.Em outra matéria publicada no Diário Oficial(SINDICATO..., 1945, p. 5) para justificar o pedidode aumento, a entidade expôs a tabelademonstrativa da alta de preços das principaisutilidades, bem como a tabela de elevação dossalários. Portanto, o descontentamento com ossalários baixos foi o principal fator de mobilizaçãoda categoria comerciária na década de 1950, erepercutiu bastante nos jornais de circulação local.

O Jornal do Comércio (OSEMPREGADORES..., 1952), o qual atuou comoórgão informativo das atividades ligadas ao trabalhoe sindicalismo, fez uma crítica aos empregadoresque não davam o aumento salarial aos seusempregados; inclusive chegando a criticar osindicato da categoria comerciária e pedir a suacolaboração no sentido de fiscalizar a classeempregadora:

Certos empregadores do comércio de Teresina,até o momento, não pagaram aos seus modestosempregados (que passam horríveis privações) oinsignificante aumento de salário, desrespeitandosem qualquer punição, a Lei já publicada no“Diário Oficial”, em edição de [30] trinta de marçodo corrente ano. E os empregados, como todosnós sabemos, não recebem os benefícios que alei lhes concede visto como vem acontecendo emnosso país e de um modo especial em nossaTeresina, isto porque a fiscalização é ineficientede um modo por demais escandaloso, nãopodendo o empregado fazer as suas justasreclamações, em virtude da inutilidade (namaioria) dos fiscais do sindicato que não seprestam para tal administração, pois levam otempo tomando “Chica Bôa” com limão em todosos botequins da cidade num verdadeiro bate-papocom os seus amigos proprietários e gerentes dasprincipais firmas da cidade (OSEMPREGADORES..., 1952, p. 5)Como se vê, os sindicalistas comerciários

colocaram como maior fator de mobilização, alémdo comparecimento às assembleias, asdiscussões sobre as questões salariais e porocasião da eleição para renovação das diretorias.Porém, o que chama atenção na citação acima é adenúncia de corrupção contra os dirigentessindicais feita por um órgão noticioso que tratavadas questões sindicais.

No ano de 1958, somente no mês de julho, porexemplo, foram realizadas cerca de seisassembleias pelo S.E.C.T. convocadas pelo entãopresidente Paravecini Viana de Sousa(SINDICATO..., 1958) - logo, as principais pautasdiscutidas pelos comerciários nos ajudam aentender como a categoria se movimentava: leiturade relatório referente ao exercício do ano anterior,discussão e aprovação da proposta orçamentáriapara o ano de 1959, discussão para a aprovação do

plano para a instituição de uma caixa deempréstimos ou fundação de cooperativa de créditoe efetuar operação imobiliária com o instituto doscomerciários destinada à aquisição da sedeprópria. Neste mesmo ano, ainda foi realizadaeleição de novos cargos dentro da entidade.

Vale destacar que na década de 1960 osindicalismo foi tema recorrente nas páginas dojornal O Dia, este dedicou uma coluna especialpara os sindicalistas piauienses, denominada“Coluna Sindical”, que trazia vários informativossobre a legislação trabalhista, notícias dos sindica-tos teresinenses e piauienses, suas reivindicaçõese conquistas, decisões das assembleias gerais,avisos e convocações para reuniões de candidatosindicados pelos líderes sindicais. Nesta coluna,constantemente, publicava-se noticias sobre oS.E.C.T.; afinal, o seu redator era o entãopresidente da entidade, Deusdedit Sousa.

�Em uma nota de agradecimento, em 1 dejulho de 1962, a “Coluna Sindical” (1962a) noticiouque a Câmara Municipal de Teresina aprovou oprojeto de lei concedendo isenção de impostos etaxas relativas à transmissão de terreno adquiridopelo S.E.C.T. para construir sua sede própria, umadas maiores aspirações da entidade:

O Sindicato dos Empregados no Comércio deTeresina acaba de adquirir um terreno de 9 x 14metros na travessura David Caldas, na zonacentral da cidade, para edificar sua sede social.Os serviços de construção devem começar aindaeste ano, mas para isso o Sindicato, emitiu obônus, com os quais vendidos a comerciários,comerciantes e amigos outros, pretende deixarsenão concluídos pelo menos em vias deconclusão a sede própria– que será um edifíciode dois pavimentos (COLUNA..., 1962a, p. 3).Com o objetivo de ajudar o sindicato a construir

a sede própria (COLUNA..., 1962b), foi emitido edistribuído entre os comerciários o chamado bônuspró-aquisição da sede própria. Estes eramencontrados nos principais estabelecimentoscomerciais da capital, na Casa Ingleza e na CasaMarc Jacob. Ainda, na Coluna Sindical foi divulgadoque uma única chapa foi registrada na secretaria doS.E.C.T. para concorrer à eleição em 1962,encabeçada pelo Sr. José Maria Silva de Carvalho.

Além disso, foi criada pelo governo ChagasRodrigues (1959-1962) a sede do ConselhoSindical - que promoveu cursos de orientação/aperfeiçoamento sindical compostos das seguintesmatérias: legislação sindical, legislação dotrabalho, segurança e higiene do trabalho,cooperativismo e previdência social, os quaisfuncionavam nos horários noturnos. O referido

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Conselho reunia-se para discutir assuntos políticos,situação econômica do País, indicação para cargospolíticos ou na área do trabalho e sindical. Em umanota da Coluna Sindical (1962b), o redatorDeusdedit Sousa lamentava a renúncia dogovernador Chagas Rodrigues para candidatar-se aoutro cargo, enfatizando sua boa relação com aclasse sindical piauiense e os benefícios quetrouxe para os trabalhadores em geral.

Em janeiro de 1964, o pedido de aumentosalarial pelos comerciários gerou dissídio coletivo.O jornal Folha da Manhã (SINDICATO..., 1964)publicou a Ata de Audiência de Instrução eConciliação no Dissídio Coletivo suscitado peloS.E.C.T. contra a classe patronal. Na ocasião, opresidente da entidade, José Mário Silva deCarvalho, apresentou as condições para o acordo.Dentre as propostas da classe patronal aceitaspela categoria, destacou-se que as obrigaçõesatingiriam aos empregados das categoriasprofissionais do grupo dos empregados docomércio, e que o aumento deveria atingir a todosos empregados do comércio e não apenas ossindicalizados.

No que se refere ao aspecto sócio-econômico epolítico:

[...] a cidade de Teresina, no períodocompreendido entre 1950 e 1970, viveu umprocesso de transformações econômicas esociais ligadas diretamente ao modelo econômicoproposto pelos governos populistas e militares.Nessa época o governador do estado HelvídioNunes de Barros afirma, por exemplo, que acidade é pequena, pessimamente iluminada,possui um deficiente e precário serviço deabastecimento d’água e não dispõe de asfalto,esgoto sanitário ou sistema de comunicação.Teresina era, assim, o retrato da pobreza e doatraso do Piauí, denunciando a imprensa escritalocal até a falta de produtos de primeiranecessidade, como a carne e o café [...](NASCIMENTO, 2007, p. 197).Teresina, como centro urbano mais desenvolvido

do estado, constituiu-se polo de atração de intensofluxo migratório nas décadas de 1960, 1970 e 1980,contribuindo para o processo de urbanização emtodo o estado piauiense. Logo, criou-se umaperiferia urbana com uma massa dedesempregados. Embora a situação fosse deinsatisfação, não se constituiu um movimentosocial mais ativo, pois o movimento sindical aindase encontrava tutelado. Segundo Medeiros (1995,p. 177) “na maioria dos sindicatos houveintervenção, sendo a maioria reativada por diretoriaspelegas.”

O comércio se expandiu pela implantação defiliais de grandes firmas, tanto regionais como

nacionais, na capital, contribuindo para o processode terceirização na economia urbana. De acordocom Tajra (1995, p. 151) “no decorrer dos anos1970, ganhou destaque o crescimento do comérciolojista com a chegada de algumas lojas de altopadrão na capital, como a Lojas Brasileiras(Lobrás), Casas Pernambucanas, Lojas Jet e omagazine do grupo Pintos.”

Desse modo, a base de representação sindicalfoi ampliada. Além dos trabalhadores do comércio,os dos setores de serviços passaram a serrepresentados nos anos 1980. Tal fato repercutiunas formas de organização do capital e do trabalhode Teresina, observando-se uma movimentaçãoorganizativa do segmento sindical de trabalhadoresurbanos em busca de melhores condições decidadania, a destacar os empregados do comércio.

Paralelamente ao processo de revitalização domovimento sindical ocorrido no Brasil nos anos1980, em Teresina, um grupo de sindicalistasconduziu o processo de filiação do sindicato doscomerciários. Nesse período, ocorreu a primeiravitória nas eleições sindicais dos empregados nocomércio teresinense, originando uma nova formade condução da luta dos trabalhadores dessesetor; também foi deflagrada a primeira greve dacategoria, em virtude da disposição dos dirigentese dos trabalhadores de conquistarem melhorescondições de trabalho.

Estratégia para uma virada sindical urbana doPiauí foi a renovação do Sindicato dosComerciários. Pilar da estrutura sindicaltradicional, pela liderança que sua diretoriaexercia sobre praticamente todo o movimentosindical urbano piauiense, sua mudança de rumofoi decisiva, com repercussões em outrossindicatos e na consolidação da CUT no Piauí.Nessa perspectiva, num momento posterior, pode-se situar a renovação do Sindicato dos Bancários.Por sua capacidade de intervenção e por suaarticulação nacional, a nova orientação dessesindicato em muito fortaleceu o processo deafirmação dos sindicatos como interlocutoresrepresentativos e legítimos, ante osempregadores, o governo e a sociedade.Bancários, comerciários, servidores eempregados do setor público e trabalhadores sãohoje a base da CUT (MEDEIROS, 1995, p. 181).No ano de 1983, iniciou-se uma nova etapa na

trajetória da organização dos comerciários emTeresina, quando se formou um grupo de oposiçãoà diretoria vigente por iniciativa de algunsassociados com experiência de militância. No anoseguinte, o grupo de oposição conseguiu articular aprimeira chapa para concorrer às eleições daqueleano, contrapondo-se à chapa da diretoria presididapor José Noronha Teixeira, que, por cinco gestõesconsecutivas, controlou a entidade. O registro das

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chapas concorrentes ocorreu num clima de tensãoe hostilidade; porém, a chapa de oposiçãoconseguiu sair vitoriosa.

4 Conclusão

A discussão feita até aqui permite algumasconclusões sobre o movimento sindical organizadopelos empregados do comércio de Teresina nasprimeiras décadas de sua trajetória. Este não sedesenvolveu como um movimento sindicalautônomo, em virtude do seu atrelamento aochamado sindicalismo oficial ou corporativista.Além disso, na construção de sua representaçãoatravés dos jornais impressos, observou-se que oprincipal fator de mobilização da categoria foram asdiscussões sobre as questões salariais e ocomparecimento às assembleias, onde eramdiscutidos os diversos interesses da classe

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* Mestranda em História do Brasil na UniversidadeFederal do Piauí (UFPI), desenvolvendo pesquisaintitulada “Trabalho e organização sindical: históriae memória do Sindicato dos Comerciários deTeresina (1984-2000)”, orientada pelo prof. Dr.Solimar Oliveira Lima (UFPI) – Linha de Pesquisa:História, Cidade, Memória e Trabalho, e graduadaem História pela Universidade Estadual do Piauí(UESPI) / Bolsista Capes. (e-mail:[email protected]).** Doutor em História do Brasil (PUC- RS); professordo Departamento de Ciências Econômicas e doMestrado de História do Brasil (UFPI). (e-mail:[email protected]).

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O PIAUÍ NA ROTA DO COMÉRCIOINTERNACIONAL: a presença doscomerciantes ingleses no Piauí oitocentistaJunia Motta Antonaccio Napoleão do Rego*

Resumo: o objetivo deste artigo é explicar de que forma comerciantes ingleses, estabelecidos em Parnaíba(PI), porto exportador e importador, articularam a integração da economia do Piauí a partir do século XVIII; eexplicar como a economia do Piauí se articulava, por intermédio desses comerciantes, notadamente a CasaInglesa, ao mercado nacional e à economia internacional.

Palavras-chave: Comércio. Comerciantes. Ingleses.

1 Introdução

Gilberto Freyre (2000), em sua obra “Ingleses noBrasil”, traça um panorama do comércio realizadoentre a Inglaterra e o Brasil, demonstrando opredomínio econômico1 e cultural dos britânicos,desde os primeiros dias de D. João VI, acentuando-se de 1835 a 1912, quando a influência inglesacomeçou a declinar vagarosamente, vencida pelaexpansão comercial norte-americana e alemã.

Ao discorrer sobre este assunto, Freyre (2000)informa que, a princípio, o comércio britânicodominou as praças do Rio de Janeiro, Bahia ePernambuco, mas aos poucos conquistou todo omercado brasileiro, deixando pouco espaço para osartigos franceses e americanos. Freyre acrescentaque, ao tempo da chegada de D. João VI, osnegociantes britânicos transacionavam com artigoscaracteristicamente ingleses: artigos de ferro, aço,cobre, bronze, vidro, couro, chá, cerveja, relógios,munição, pregos, pedras de amolar, foices, folhasde flandres, tintas, papel, genebra, ladrilho,chapéus de sol, carvão, selas, arreios, baetas, lãs,bacalhau, móveis, pianos e até tintura para barbasou suíças; além de mesas, cadeiras, óculos,binóculos, martelos, alfinetes, agulhas, barômetros,utensílios de jardim e de lavoura; artigos - salientaFreyre - mais de natureza masculina do quefeminina, também pelo seu porte e peso.

Por sua vez, Volpi (2007) registrou que o grandeproduto da Inglaterra era o tecido de algodão; prova

Abstract: The purpose of Thaís articule is to explain how English merchants, established in Parnaiba, export. andimport port, articulated the integration of Piauí from the eighteen century; explain how the econony of Piauí wasarticulated by these traders, notable the Casa Inglesa, at national and international trade.

Keywords: trade, merchants, englismen

disso são os anúncios de jornais brasileiros daprimeira metade do século XIX, pesquisados porFreyre, que demonstram que os ingleses eram osdonos dos melhores armazéns de fazendas nasprincipais cidades da colônia, e depois do Império.Freyre (2000) registrou a diversidade das fazendascomercializadas, bem como de suas cores: era oirlandês de algodão, baetões de cores e escarlates,baetas (tecido felpudo feito de lã ou algodão)estreitas e largas também de cores, panos azuisordinários e extrafinos. Quanto à cartela de cores,esclareceu Freyre que os ingleses davampreferência às cores sóbrias - azuis, pretas,cinzentas e brancas -, raramente alguma cor maisviva. Na análise de Freyre, a Inglaterra expulsou domercado brasileiro os arcaicos tecidos orientais decores rutilantes (cores vivas e brilhantes),vermelhos, amarelos, azuis-claros - mais ao gostoda gente luso-americana. Nas palavras de Freyre(2000, p. 159): “Tudo isso foi ficando plebeu,matuto ou fora de moda.” Ainda discorrendo sobre ocomércio inglês, ele acrescenta que era:

Raro, desde 1808, o brigue inglês que chegassea porto brasileiro de importância – o Rio dejaneiro, a Bahia, Pernambuco – sem seus fardos,não só de louça inglesa, de vidro, de pano, decobre, de ferro, como de ferragem inglesa, emparte considerável destinada às casas, àsresidências, às cozinhas (FREYRE, 2000, p. 159).Com a introdução dos produtos ingleses,

grandes modificações se operaram no Brasil. Essasituação é descrita por Volpi (2007, p. 39):

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A face do consumo no Brasil foi transformada. Asruas ficaram repletas de produtos como algodãoestampado, panos largos, louças e ferragens deBirmingham, que, sem a necessidade de passarpor Portugal, aqui chegavam a preços baixos.Freyre já havia assinalado a importância desse

comércio para o processo de modernização doBrasil:

É quase impossível ao brasileiro ouvir falar emmáquina, em motor, em ferramenta, em estradade ferro, em rebocador, em draga, em cabosubmarino, em telégrafo, em artigos de aço e deferro, em brinquedo mecânico, em cadeira demola, em louça doméstica, em bicicleta, em paim,em aparelho sanitário, em navio de guerra, emvapor, em lancha, em fogão a gás ou a carvão,sem pensar em ingleses. Os ingleses estãoligados como nenhum outro povo aos começos demodernização das condições materiais de vida dobrasileiro: das condições de produção, habitação,transporte, recreação, comunicação, iluminação,alimentação e repouso entre nós (FREYRE, 2000,p.159).O comércio analisado por Freyre e Volpi não se

dava em mão única. O Brasil, por sua vez,exportava para os britânicos ouro, diamantes,pedras preciosas, açúcar, algodão, peles, fumo,aguardente, pau-brasil e, mais tarde, borracha ecafé. Para dar uma ideia da influência da economiainglesa, Freyre aponta algumas das iniciativas docapital britânico que ficaram célebres no Brasil:

As companhias de mineração em Minas Gerias,como a de Gongo Soco, o calçado Clark, ostecidos Coats, em São Paulo, e Carioca, no Rio, aFundição de Harrington & Starr e a Bowmann, noRecife (onde também se guarda a tradição dos DeMornay), as velhas firmas Stevenson e Duder, daBahia, especializadas em negócios de cacau eóleo de baleia, Boxwell, em Pernambuco,especializada em algodão, Clark, no Piauí eMaranhão, especializado em cera de carnaúbacom o fervor de um pioneiro lúcido, Wilson e Corycom seus depósitos de carvão, seus estaleiros eseus rebocados célebres no Brasil inteiro, oBristish Bank, o London and Brazilian, o RiverPlate, o Hotel Bennett, a Casa Inglesa de Mrs.Brack, do Recife, Proudfoot & Comp., do RioGrande do Sul, a Casa Inglesa do Ceará, fundadapelo irlandês Willian Wara [...] (FREYRE, 2000, p.83).Além de um número significativo de

comerciantes de sucesso que se estabeleceu noBrasil, outro dado que merece atenção nestetrabalho é aquele que se refere aos portos inglesesque lideram o comércio; no caso, o porto aconsiderar é o da cidade de Liverpool.

Durante a primeira metade do século XIX, aInglaterra foi a potência industrial e comercialdominante do mundo. A cidade de Liverpool foi ocentro distribuidor da indústria do país. O progressode Liverpool é explicado por Muir (apudPENNINGTON, 2009, p. 52):

É numa confluência de grandes movimentos quese encontram explicações para o estupendodesenvolvimento de Liverpool no período de 1760a 1835. A invenção da maquinaria têxtil; o uso do

carvão para a fundição de ferro, a aplicação dovapor às máquinas, a concentração da grandeindústria inglesa num raio de uns 200 km em voltado rio Mersey; a abertura dos mercados da Índia eAmérica Espanhola; o vasto e rápido crescimentoda América do Norte; a concentração de seucomércio no porto de Nova Iorque; a abertura àInglaterra, como nunca antes, por estradas,canais e mais canais, ferrovias: estes são ossegredos do majestoso progresso de Liverpool.Os navios a vapor que chegavam e partiam de

Liverpool atravessavam o Atlântico, fazendo escalasem Santos, Salvador, Recife, Belém, Manaus eIquitos (no Peru), trazendo, como narra Pennington(2009, p. 52):

Toda sorte de mercadorias como lastro: objetosde ferro fundido, cimento, tijolos, até pedras paraconstrução; insumos para a caça e a pesca,bebidas e alimentos e toda sorte de novidadesque pudessem arregimentar compradores.Voltavam com a cobiçada borracha,principalmente, mas também com castanha-do-pará, óleos essenciais como, por exemplo, o pau-rosa, a andiroba, fibras como a piaçava, peles deanimais.Além das mercadorias assinaladas acima, a

Inglaterra foi a grande compradora de toda acotonicultura brasileira no decorrer do século XIX(TAKEYA, 1994), principalmente após o fim do ciclodo ouro. O professor Manchester (apud FREYRE,2000) lembra que Liverpool chegou, com efeito, aabsorver grande parte do algodão da Bahia e doCeará, e a Grã-Bretanha inteira, ¾ do algodãoexportado por Pernambuco.

2 Comerciantes ingleses no Piauí

O comércio de algodão do Brasil com Liverpoolnão se deu somente com a Bahia, o Ceará e oMaranhão,2 deu-se também com o Porto deParnaíba através dos comerciantes ingleses láestabelecidos, conforme será visto.

Em princípios do século XIX, a pecuária, emboraestivesse em crise, persistia como a principal fontede riqueza do Piauí, porém, por volta de 1815, ocultivo de algodão - que desde o início do séculoXVIII vinha sendo feito no Piauí, cuja produção erautilizada na fabricação de tecidos grosseiros3 -tomou impulso e começou a adquirir carátercomercial, cotado no mercado internacional. Ointeresse do mercado europeu pelo algodão se deuquando a Guerra da Independência americana(1775-1783) provocou a queda dramática daprodução de algodão dos Estados Unidos. NoPiauí, houve, então, o interesse pelo algodão, emrazão da alta extraordinária do preço, devido àexcessiva procura desse produto pelas fábricasinglesas (SANTANA, 1964).

A produção do algodão, mesmo usando essastécnicas primárias, foi incentivada pela crescente

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demanda comercial, o que é atestado por fontesde informação datadas de 1790. Elas registram afundação, em Parnaíba, de uma Alfândega doAlgodão e de uma Inspeção de Algodão, “simplesentreposto de ensacamento e verificação doproduto” (REGO, 2010, p. 168).Os portos de exportação da carne das

charqueadas e couros atraíram o escoamento daprodução do algodão pela mesma via de transportedo gado, sendo que as exportações regulares doalgodão fizeram sua presença em 1815 com amarca de 30.000 quilos de algodão em rama. Em1846, no Piauí, o volume da exportação desseproduto chegou a provocar sua alta de preço. Osagricultores da região da Vila do Poti, União e SãoGonçalo responderam a essa alta com maisprodução, o que motivou a construção de barcosem Teresina, em grande parte para seu transporte.Apesar de todo esse aparato comercial e dointeresse crescente dos agricultores em aumentara produção do algodão, cujo cultivo exigia poucocapital, as técnicas de plantio, de colheita e detratamento do produto eram rudimentares. Noregime de plantação em terreno de derrubada defloresta, em que pouco se providenciava aadubação do solo, as colheitas tendiam, em geral,a declinar após três anos de consecutivaexploração do terreno.

Em termos econômicos, os lucros obtidos pelocomércio de exportação não eram capitalizadossob forma de investimentos em geral, pois osexportadores os absorviam na importação deapreciados bens europeus (SANTANA, 1964).Dessa maneira, o comércio tornou-se vulnerável eexposto a fatores instáveis, como uma queda nacolheita ou uma alteração no mercado externo.Prova disto foi a crise de 1872, motivada pela mácolheita do algodão, que levou muitas casascomerciais à falência (SANTANA, 1964). No casoda oscilação do mercado externo, a volta daconcorrência da produção americana no mercadoeuropeu foi agravada pela evasão dos escravos parao sul, portanto, pela diminuição da chegada doalgodão aos portos e pelo declínio da demandapelo mercado europeu.

O comércio do algodão do Nordeste levou àinstalação de casas comerciais estrangeiras noCeará,4 no Maranhão e no Piauí, maisespecificamente em Parnaíba. A instalação decasas comerciais inglesas e francesas serviu paraestreitar a articulação da região ao comérciointernacional. Essa expansão agroexportadora tevecomo base a produção algodoeira e, em segundolugar, o couro.

A expansão comercial significava para osinteresses comerciais ingleses e franceses apossibilidade de atuarem tanto no ramo daexportação de matérias-primas (algodão e couro)para a Europa como no ramo da importação demanufaturados (TAKEYA, 1994), a exemplo doalgodão: exportado para a Inglaterra, cujasatividades têxteis produziam tecidos sofisticados,voltava a Parnaíba via importação dos comerciantesestrangeiros. A cadeia comercial, baseada, aprincípio, no consórcio algodão-couro, estendeu-seprogressivamente durante a década de 1970 dentrodos limites das províncias do Nordeste e, depois,para fora delas (TAKEYA, 1995).

Para demonstrar a importância do comércioinglês de tecidos, mais uma vez recorre-se àDenise Takeya, que, ao escrever sobre o comércioda província do Ceará, registra as palavras docônsul francês em Pernambuco. Analisando asituação do comércio francês frente àconcorrência inglesa no tocante a tecidos, eledizia em 1883:Os tecidos de algodão (cotonsécrus, madrapolans, indiennes, coutils, drap´s)têm uma grande venda nesta província porqueestes artigos são usados pela população docampo e são de proveniência inglesa.Todopequeno negociante do interior possui na sua lojaalgumas centenas de peças de “indiennes” ou de“madrapolans” e todo pequeno fazendeiro quevem vender seu açúcar ou seu algodão levaalgumas peças de algodão cru, de “madrapolans”ou “indiennes” TAKEYA, 1995, p. 120).Takeya (1995) aponta que as atividades

comerciais de algumas casas comerciaisestrangeiras que atuavam no Brasil estavambaseadas em uma estrutura matriz-filial. As casascomerciais assim estruturadas atuavam em doismercados-polo simultaneamente: o nacional e ointernacional. Para Takeya a existência dessaestrutura (intercâmbio matriz - no Exterior - e filial -no Brasil) garantia, para esses comerciantes, umaposição privilegiada frente aos demais.

3 A Casa Inglesa

A Casa Inglesa tem sua origem na R.Singlehurts & Co, de Liverpool, Inglaterra.Localizada no Pará, Ceará, e Parnaíba, nãoconseguimos estabelecer uma relação mais diretaentre elas.5

Escrevendo sobre a origem da Casa Inglesa, doCeará, Takeya (1994, p.115) indicou que:

Remonta a 1811, quando o irlandês William Warachegou ao Ceará, criando em 1835 uma filial daR. Singlehurst & Co, de Liverpool. A filial ficoupopularmente conhecida como Casa Inglesa esobreviveria, por todo o século XIX, como principaldistribuidora das mercadorias vindas daInglaterra, além de compradora dos produtoscearenses para o mercado europeu. A Singlehurst& Co era proprietária da Red Cross Line of MailSteamers, uma das duas companhias de

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navegação a vapor que estabeleceram asprimeiras linhas regulares ligando o Ceará àEuropa, na década de 1870.Conforme Raimundo Girão (apud REGO, 2010,

p. 170), no comércio cearense, a Casa Inglesa senotabilizou “pela sua prestança e longevidade’ [...],continuando a tradição da escuna Mayflower, pelaqual, em dias ainda remotos, os cearensesreceberam de Liverpool ‘chitas, louças, meias deseda e paninhos.”

Em Parnaíba, a Casa Inglesa instalou-se em 15de março de 1849, com razão social Andrew Miller& Cia, à qual sucederam-se várias outras, comoSinglehurst e Brocklehurts, Singlehurst Nicholson eCo (NUNES, 2007), depois Singlehurst e Co. Aolongo do Império, alterações havidas nas tarifasalfandegárias tornaram-nas menos favoráveis aosingleses, o que levou Paul Robert Singlehurst & Co.a venderem suas cotas ao sócio minoritário emParnaíba, James Frederick Clark, em 1° de janeirode 1900.

Se não é possível estabelecer uma ligação maisdireta entre a Casa Inglesa de Parnaíba e asdemais, também não é possível pensar em seusucesso comercial e do comércio parnaibano semestabelecer uma articulação mais ampla com ocomércio das demais províncias do Norte e doNordeste e suas ligações com o exterior, no caso:Amazonas, Pará, Ceará, Maranhão e Piauí com aInglaterra, a França e a América do Norte. Essaarticulação deslanchou e se fortaleceu em 1866,ano em que um vapor da Booth Line partiu pelaprimeira vez de Liverpool para o Porto do Pará. Apartir daí, o fluxo de comércio regular entre essesportos ficou estabelecido (PENNINGTON, 2009, p.159).

A grande vantagem comercial da Casa Inglesatanto do Ceará e do Pará como de Parnaíba, eraque, além de contar com a estrutura matriz-filial,contavam com uma companhia de navegação avapor (TAKEYA, 1994); “a Red Cross Line, amesma companhia de navegação que fazia oserviço direto de Liverpool com Manaus, a partir de1877, de propriedade da Singlehurst, Broklehurts eCia.” (REGO, 2010, p. 171).

4 Singlehurst e Clark: “respectable merchants”em Parnaíba

Em 1810, com a Corte portuguesa exilada noRio de Janeiro, a Inglaterra obteve o status denação mais favorecida no comércio com o reino.Com a abertura dos portos, começou umacrescente onda de imigrantes ingleses para o

Brasil,6 de diversas profissões: cientistas,7

viajantes,8 artesãos, missionários, comerciantes9 e,como distingue Freyre (2000, p. 77), “respectablemerchants”.

Os respectable merchants e não apenastradesmen (comerciantes) seriam os ingleses quese arriscaram “a vir residir com as famílias nascidades ou nos ermos de um país tão diferente daInglaterra como o Brasil colonial”. Eles despertarama confiança nos brasileiros como homens denegócios, “sólidos” e “pontuais”, como apontouFreyre (2000, p. 163), e comercializavam produtosque inspiravam “confiança”, por serem “maismodernos” (PENNINGTON, 2009, p. 92).

Entre os negociantes que chegaram ao Brasil eaqui ficaram, alguns casaram-se com moçasricas da terra e constituíram família. Freyre cita osDodsworth, Thom, Grey, Street, Boxwell, Studart,Cox, Ayres, Taylor, Lynch, Brotherhood, Ellis,Comber e os Clark (FREYRE, 2000) - famíliaestabelecida em Parnaíba. Podem ser citadosoutros ingleses que antecederam os Clark emParnaíba: Andrew Miller, Robert Brocklehurst ePaul Robert Singlehurst,[10] da Singlehurst,Broklehurts e Cia., proprietários da Red CrossLine [...] e proprietários da Casa Inglesa, queresidia em Parnaíba com a mulher e cinco filhosingleses. Paul Robert Singlehurst era conhecidoem Parnaíba como “Paul Inglês” [...] ou “velho PaulInglês” (REGO, 2010, p. 172).Instalando-se em Parnaíba, Robert Brockelhurst

deu preferência à compra de um sobrado(FREYRE, 2000), o de número 25, na Rua Grande,apesar da disponibilidade de terrenos ou lotes, quepoderia adquirir para construir seu estabelecimentocomercial. O sobrado comprado devia satisfazer aexpectativa ou a mentalidade do comerciante inglêsque buscava instalações adequadas ao materialque comerciava. Como um grossista, necessitavade um prédio grande, com armazéns e depósitoque se adaptassem à estocagem de mercadoriaspesadas. Além de buscar uma boa localização,caso da Rua Grande, o sobrado ficava nasproximidades do rio Parnaíba, do porto Salgado, daalfândega e do consulado inglês.11

O inglês James Frederick Clark nasceu emKeswick, no condado de Cumberland, Inglaterra, nodia 14 de março de 1855 e faleceu em Parnaíba, nodia 2 de setembro de 1928. Aos 14 anos de idade,deixou sua pátria para trabalhar como aprendiz12 naCasa Inglesa de Parnaíba. Chegou à Parnaíba,desembarcando do navio Enterprise, da Red CrossLine, no Porto do Ceará. Em 27 de maio de 1889,ele deu início à comercialização regular da cera decarnaúba,13 exportando-a para praças europeias enorte-americanas e transformando-a no principalproduto de exportação da região. Paralelamente,

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ele próprio e seus familiares também auferiramgrandes lucros.

A Casa Inglesa de Parnaíba foi comprada porJames Frederick Clark em 1900, quando se tornouúnico proprietário também dos imóveis que asediavam: o sobrado da Rua Grande (atual GetúlioVargas), compreendendo o estabelecimentocomercial e mais os grandes armazéns e diqueseco existente no Porto das Barcas - espaço hojeintegrado à área cultural e de lazer ali instalada.

A Casa Inglesa começou seus negócios emParnaíba tendo como base o envio para a Inglaterrade algodão e couros e recebendo as mercadoriasmencionadas por Freyre (2000) como produtostipicamente ingleses. O Diário da Casa, datado defevereiro de 1875, registra, como seria de seesperar, uma grande variedade de tecidos:madapolão, chita larga, morim, algodãozinho,musseline, marroquim, bretanha, cambraia, riscadoxadrez e brim liso, entre outros, além de linhas emnovelo; artigos masculinos, como chapéu do Chile,camisas e meias de homem; objetos em ferro,como facas e garfos, vergalhões, barras, panelas ebacias e, ainda, ferros de engomar, tesouras,canivetes, facas de charquear, barris de pregos,tintas e brochas.

Com o passar do tempo, as mercadoriascomercializadas foram se modificando. Nunes(2006) lembra Parnaíba no início do século XX,quando as lojas ofertavam produtos europeusvindos principalmente de Liverpool e Amsterdã:eram sedas, casimiras, linhos, perfumes,espelhos, chapéus, sapatos, relógios de parede,cristais, porcelanas, bebidas que atendiam aosconsumidores de Parnaíba e das cidades vizinhas(REGO, 2010, p. 173).Coube à Casa Inglesa introduzir no Piauí, em

1915, os produtos do petróleo, caso do carbureto,do querosene Jacaré e da gasolina, a máquina decostura, o primeiro automóvel e o primeiro motor adiesel, dentre outras inovações que sinalizavam asmudanças de hábitos e costumes, bem como amodernização da cidade.

Importa ressaltar algumas colocações de MarcTheophile sobre a importância que o comérciorealizado entre Parnaíba e o mercado estrangeiroexercia sobre o cotidiano de Parnaíba. Era atravésdessas embarcações que o luxo e os costumesrefinados chegavam ao Piauí:

Durante o tempo em que os navios da Europaentravam em Amarração, a população da pequenavila e a de Parnaíba usavam o linho escocês, operfume francês, o cimento em barricas vindo daBélgica, de onde também viria o arame farpado eo prego recozido usado – este último, naconstrução dos currais para o aprisionamento depeixes; o ferro e os instrumentos de trabalhovinham da Alemanha ou da Inglaterra, machados,

facões, enxadas etc.; as louças eram alemãs,francesas, inglesas e até japonesas; as mulheresusavam sedas francesas, sombrinhas da moda etudo quanto lhes era dado a consumir (JACOBapud REGO, 2010, p. 174).Ocorreu, como se nota, um aburguesamento da

elite piauiense, que, além de adquirir instrumentosde trabalho e desenvolver hábitos vindos dasgrandes metrópoles estrangeiras, passou aconsumir utensílios domésticos que trouxeramfacilidade e glamour ao dia a dia

5 Conclusão

O litoral do Piauí, mais precisamente o delta dorio Parnaíba, já era um ponto de atração comercial.O período de desenvolvimento econômico do Piauíse deu quando os criadores de gado das regiõesmais longínquas do litoral mudaram a via deescoamento das reses pelos caminhos terrestres,penosa e onerosa para adotar a via fluvial pelo rioParnaíba; foi o início da trajetória do sertão ao mar,abrangendo, além dos portos brasileiros, outrosmais distantes, através da comercialização dosprodutos da atividade pastoril.

A estrutura do comércio de exportação fundadapelas charqueadas permitiu a comercialização deoutros produtos oriundos da agricultura e daatividade extrativista que passaram a serrequisitados no mercado internacional, maisprecisamente para a indústria europeia em plenarevolução.

A intensidade da exportação levou à instalaçãode comerciantes ingleses e suas famílias, criandouma camada social economicamente situada notopo da sociedade.

Para compreender a atuação e a integração doscomerciantes estrangeiros ao mercadointernacional, recorreu-se à leitura de GilbertoFreyre (2000) e Denise Monteiro Takeya (1995).Ambos publicaram trabalhos que tratam dasrelações comerciais internacionais e explicam aforma de atuação dos comerciantes estrangeirosno Brasil

Notas:(1) Volpi (apud REGO, 2010, p. 164) “apontou os tratadosfirmados em 1810 e 1827, que confirmam a posiçãoprivilegiada dos ingleses no ‘livre’ comércio brasileiro.”(2) “Responsável por 75% das exportações de algodão, oMaranhão despontou como o maior produtor brasileiro.”(REGO, 2010,p. 167).(3) “Escrevendo sobre esse tema, Brandão [...] observou quesurgiu, nesta época, um novo sistema agrícola, tendo porbase o consórcio algodão-gado.” (REGO, 2010, p. 168).(4) Denise Monteiro Takeya (1994) estuda as casas decomércio francesas instaladas no Ceará.

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(5) “No âmbito dessa pesquisa, não foi possível conseguirresponder várias perguntas a respeito das Casas Inglesasdo Pará, Ceará e Maranhão: - Seriam todas propriedades daSinglehurst e Brockehurst? Seriam todas filiais da matrizinglesa? Seriam unidas por alguma sociedade? Quem asadministrava: no Ceará, Girão menciona Wara; em ParnaíbaAndrew Miller – eles seriam proprietários, socioproprietáriosou apenas administradores?” (REGO, 2010, p. 170).(6) “Séculos antes da abertura dos portos, o Brasil já eravisitado por estrangeiros, inclusive ingleses: sea dogs,piratas e aventureiros. Lopes (2007, p. 14) define o termosea dog ou “cão do mar” como o grupo de corsáriosprotestantes que serviram à rainha Elizabeth I da Inglaterra,nas suas disputas com a Espanha. Estavam voltados para olucro fácil por meio de pilhagem sistemática.” (REGO, 2010,p. 171).(7) “A exemplo do mineralogista John Mawe.” (REGO, 2010, p.171).(8) “A exemplo de Henry Koster, que chegou a Pernambucoem 1809, foi o primeiro inglês a percorrer e a descrever osertão nordestino.” (REGO, 2010, p. 171).(9) “Na primeira onda de ingleses a desembarcar no Rio deJaneiro veio o comerciante de tecidos John Lucckock.”(REGO, 2010, p. 171).(10) “Não se sabe em que ano Paul Robert Singlehurst chegoua Parnaíba, mas sabe-se que outros membros da famíliaSinglehurst circulavam pelo Ceará. Para esta pesquisa,conseguiu-se localizar, no arquivo público do Ceará, entre ostítulos de residência de estrangeiros, datado de agosto de1842, o título de José Singlehurst, inglês, natural deLiverpool, com idade de 30 anos, casado, profissão decomerciante, que, vindo para o mesmo fim, chegou aFortaleza no dia 27 de julho de 1842, do porto de Liverpool.Infelizmente, não é possível esclarecer que parentesco eque relação comercial ele mantinha com Paul Robert. José,certamente Joseph, é descrito no documento como sendoalto, branco, de cabelos castanhos, olhos azuis, nariz alto,rosto oval e bastante barba.” (REGO, 2010, p. 172).(11) “É interessante comparar a escolha de Broklehurst com asinformações de Freyre (2000, p.172-173), assim pode-seconstatar a coincidência das escolhas por parte doscomerciantes ingleses no Rio de Janeiro e outras cidades, deimóveis com as mesmas características.” (REGO, 2010, p.172).(12) “Na Inglaterra, um comerciante normalmente começavasua carreira como aprendiz, aprendendo e trabalhando comum mestre, sendo, após alguns anos, libertado dele. Esse foio caso de James Frederick Clark.” (REGO, 2010, p. 173).(13) “O navio utilizado no carregamento da primeira remessacomercial da cera de carnaúba foi o Grangense, e a arrobada cera em 1900 valia doze mil réis.” (REGO, 2010, p. 173).

ReferênciasFREYRE, G. Ingleses no Brasil: aspectos da influênciabritânica sobre a vida, a paisagem e a cultura do Brasil. 3.ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000.NUNES, O. Pesquisa para a história do Piauí: lutaspartidárias e a situação da Província. Teresina: Fundapi,2007. v. IV.PENNINGTON, D. Manaus e Liverpool: uma ponte marítimacentenária – anos finais do Império – meados do século XX.Manaus: EDUA/Uninorte, 2009.REGO, J. M. A. N. Dos sertões aos mares: história docomércio e dos comerciantes de Parnaíba (1700-1950).2010. 290 f. Tese (Doutorado em História) - Programa dePós-Graduação em História Social, Universidade FederalFluminense, Niterói, RJ, 2010.SANTANA, R. N. M. Evolução histórica da economiapiauiense. Teresina: Cultura, 1964.TAKEYA, Denise Monteiro. O capital mercantil estrangeiro noBrasil do século XIX: a atuação da Casa Boris Freres noCeará. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. XXV, n. 1-2, 1994.TAKEYA, Denise Monteiro. Europa, França e Ceará: origensdo capital estrangeiro no Brasil. Natal: EDUFRN, 1995.VOLPI, Alexandre. A história do consumo no Brasil: domercantilismo à era do foco no cliente. Rio de Janeiro:Elsevier, 2007.

* Professora do Departamento de Ciências Sociais/UFPI. Doutora em História Social pela UniversidadeFederal Fluminense.

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AS SINGULARES “RECORDAÇÕES DACAMPANHA DO PARAGUAY” DEJOSÉ LUIZ RODRIGUES DA SILVAMário Maestri*

As memórias tardias de um militar de carreira

Meio século após o fim do grande conflito dabacia do rio da Prata [1864-70], José LuizRodrigues da Silva (1924) publicou livro com suas“Recordações da campanha do Paraguay”. O oficialsuperior reformado do Exército participara naqueleconflito, do início dos combates, quando da invasãodo Estado Oriental do Uruguai, em 12 de outubrode 1864, pelas tropas imperiais, em intervenção emfavor do caudilho Venancio Flores e contra ogoverno constitucional blanco, até praticamente ofim da longa guerra, ocorrida quando da morte emcombate de Francisco Solano López, em 1º demarço de 1870, em Cerro Corá (CASCUDO, 1927).

Respeitando literalmente o título do livro, ogeneral de brigada honorário do Exército nacionalapoiou-se essencialmente nas suas recordaçõespara a produção do ensaio, de 128 páginas,lançado pela Companhia Melhoramentos de SãoPaulo, em 1924. Não são portanto de se estranharos pequenos lapsos de datas, de nomes, de locaisetc. que jamais comprometem a excelência dotexto. Com inúmeros flashbacks, a narrativa temcomo fio condutor geral a progressão do entãojovem oficial através do Uruguai, da província deCorrientes e do Paraguai, ainda que o narradorrefira-se raramente à sua trajetória e experiência naguerra.

Resumo: meio século após o fim do conflito, general de brigada honorário José Luiz Rodrigues da Silvapublicou o ensaio “Recordações da campanha do Paraguay”, apoiado sobretudo em sua memória. Eleparticipara do início do confronto, quando da invasão do Uruguai, em 12 de outubro de 1864, até praticamenteo seu fim, com a morte de Solano López, em 1º de março de 1870. Com inúmeros flashbacks, o fio condutorda narrativa é a progressão do jovem oficial através do Uruguai, Corrientes e Paraguai. Seu trabalho destaca-se na importante produção memorialística de ex-participantes nas forças imperiais por afastar-se de muitasexplicações da historiografia apologética e pela referência a múltiplos aspectos do quotidiano enfrentadosobretudo por oficiais, mas também por praças de pret, naqueles anos.Palavras-chave: Bacia do Prata. Guerra do Paraguai. Historiografia

Abstract: half a century after the end of conflict, the honorary Brigadier General José Luiz Rodrigues da Silvapublished the essay Memories of Paraguay Campaign, supported mainly in his memory. He attended thebeginning of the confrontation, when the invasion of Uruguay, on October 12, 1864, until almost its end withthe death of Solano López, on 1st March 1870. With numerous flashbacks, the thread of the narrative is theprogression of the young officer by Uruguay, Paraguay and Corrientes. His work stands on importantproduction memoirs of former participants in the imperial forces by moving away from many apologeticexplanations of historiography and by reference to many aspects of daily life faced by particular officers, butalso by courts pret those years.Keywords: River Plate Basin. The Paraguay War. Historiography.

O livro registra a escassa informação sobre asrazões profundas da guerra que possuíam ospróprios oficiais combatentes, realidade que poucomudaria passadas décadas da conclusão doconfronto. Meio século após o silêncio das armas,Silva (1924) reproduzia as explicações simplistas,apologéticas e fantasiosas do Estado imperial e, aseguir, da historiografia nacional-patriótica sobre ascausas do conflito, com destaque para o uso como“pretexto”, por Solano López, da “invasão dasforças brasileiras” do “Estado Oriental do Uruguai”,para “agredir-nos de modo descomunal,traiçoeiramente, covardemente [...].”

Segundo o autor, tal ação teria sido planejada,“muito tempos antes, ressentido [Solano López],dizem, por não haver o Imperador Dom Pedro 2º, oaceitado para genro ao acorrer-lhe a estulta edescabelada pretensão.” (SILVA, 1924, p. 9).Destaque-se que a verdadeira lenda do pedido damão de uma de suas filhas, negado pelo Imperadordo Brasil, não possui qualquer base histórica,apesar de seguir sendo citado, aqui e ali, emtrabalhos contemporâneos.

“Recordações da campanha do Paraguay”participa igualmente da execração habitual deSolano López pela historiografia brasileira de entãoe, não raro, recente, própria ao lopizmohistoriográfico negativo, que se serve do mariscal

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para personificar literalmente aqueles complexossucessos históricos. No mesmo sentido, o autorabraça o elogio desbragado dos oficiais superioresimperiais, nesse caso sem exceções - Osório,Caxias, Mena Barreto etc. Destaca-se avaliaçãopositiva do comando do conde d’Eu por este oficialferreamente republicano. Apesar dessasconcordâncias com a retórica nacional-patriótica, obreve relato constitui obra singular na verdadeira“historiografia de trincheira” sobre o grande conflitosul-americano (MAESTRI, 2013a).

Historiografia de trincheira

As primeiras obras brasileiras sobre a referidaGuerra, em geral de forte cunho memorialista,foram realizadas durante e imediatamente após oconflito (DIAS, 1870; MADUREIRA,1982). Trataram-se, sobretudo, de narrativas sobre o heroísmo e aabnegação das forças armadas - identificadasessencialmente à oficialidade - “em defesa doBrasil e da ‘civilização’, agredidos por ‘barbárie’corporificada pelo ditador paraguaio”. “Comumenteproduto de ex-combatentes, registrou leituraapologética dos fatos desde a trincheira” imperial,centrada sobretudo nos combates edespreocupada com as razões profundas doconflito. (MAESTRI, 2009, n.p.)

Ao contrário do habitual nessa produção, Silva(1924) não abraça as explicações tradicionais dasdificuldades do Império de vencer a guerra, devidoao pretenso melhor aparelhamento e maior númerodas tropas paraguaias; à inclemênciaexclusivamente para as tropas imperiais do clima edo relevo do teatro dos combates; ao fanatismo emisticismo do exército inimigo etc. Explicaçõesque serviram tradicionalmente para justificar adificuldade do poderoso Império a impor-se àpequena nação hispano-americana, em aliançacom a Argentina mitrista e com o Uruguai florista.Em 1864, o Império possuiria em torno a10.250.000 habitantes. O Paraguai, talvez, vintevezes menos! (CONRAD, 1975; WHITE, 1989).

Silva (1924) destaca o caráter sempreimprevidente do governo imperial e a incompetênciade parte da oficialidade, com destaque para osoficiais dos corpos dos Voluntários da Pátria,guindados aos cargos devido às injunções políticasou como recompensa ao agenciamento de pessoalfardado à sua custa. Seu trabalho se apresentacomo espécie de corroboração da ácida narrativado cônego francês naturalizado brasileiro JoãoPedro Gay (1980) sobre a invasão paraguaia do Rio

Grande do Sul, escrita no calor dosacontecimentos, ou do diário do conde d’Eu sobresua viagem em busca de seu sogro e da vila deUruguaiana, então ocupada pelas tropas inimigas,publicado, pela primeira vez, em 1920, quatro anosantes do relato de Silva vir a lume (GAY, 1980; EU,1981; MAESTRI, 2012).

A avaliação dura e sincera do militar experiente,já há muito tempo em retiro, não deixa dúvidassobre as enormes deficiências estruturais dasforças armadas do Império no grande conflito.Escreveu o general: “Se resplandeu a nosso lado avitória no Paraguai” foi porque “éramos em númerosuperior, armados e municiados com maisvantagem, primando pela educação militar;enfrentamos, por último, inimigo mais atrasado,pois em valor individual nada deixava a desejar[...].” (SILVA, 1924, p. 56, 124).

Afirmação sobre a escassa capacidade bélicadas tropas imperiais que o próprio comandantemáximo das mesmas, o então marquês de Caxias,reconheceria, em correspondência privada, em 13de dezembro de 1868, sem ser capaz de aferrar asrazões últimas do fenômeno que descrevia: “[...]todas as vitórias alcançadas [...] têm sido emgrande parte devida ao cuidado com que nuncaconsenti que forças nossas [...] se batessem comas do inimigo sem se acharem muito superioresem número.” (DORATIOTO, 1996, p. 70).

Um exército classista

Na década de 1990, estudos acadêmicospassaram a ler as forças armadas imperiaissurgidas da guerra do Paraguai como espécie decadinho de um mundo novo. A convivência daoficialidade com a tropa, formada por libertos elivres pobres de todas as cores, teria infundido naprimeira, proveniente em grande número dasclasses médias de então, verdadeiro espíritodemocrático e igualitário que teria contribuído paraa abolição da escravatura, para a proclamação daRepublica, para a gênese de nova sociedadeapoiada na ordem capitalista.

“A guerra do Paraguai”, de Ricardo Salles(1990), é indiscutivelmente a mais bem realizada econhecida expressão dessa vertente interpretativarevisionista. Nela, o autor propõe (SALLES,1990, p.110): “A guerra mostrou a esses oficiais o ladopodre da laranja; colocou-os em contato eproximidade com o soldado enquanto expressão dopovo [sic].” Nesse processo teria se constituídoexército nacional profissional, reformista,

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descontente com a classe dominante e com aselites dirigentes do Império. O novo exército surgidoda longa convivência entre oficiais e soldados naluta no Uruguai, no Rio Grande do Sul e,finalmente, no Paraguai abraçaria um conceitomais amplo de cidadania, identificar-se-ia com os“interesses gerais da nação”; tornar-se-ia o porta-voz das “camadas médias” “de populares eescravos e mesmo fazendeiros não escravistas”;desempenharia “papel de peso no início doprocesso de transição para uma economiacapitalista” (SALLES, 1990, p. 15, 110, 108).

Entretanto, não há comprovação histórica dessametamorfose, de forças armadas aristocráticas emabolicionistas, populares e progressistas, queteriam dado origem a um novo exército surgido daguerra contra o Paraguai. Silva (1924) contribui parailuminar a real dinâmica interna dessa corporaçãodurante aquele conflito. Uma importantecontribuição do relato de Silva (1924), escrito epublicado quando já escasseavam os sobreviventesda guerra, é o registro de cenas quotidianasexemplares do conflito vividas em primeira pessoa,fundamentais para a avaliação dos impasses quecontribuíram para que o exército imperial“patinasse” diante de inimigo ao qual ultrapassavasubstancialmente em homens e em meios, comoassinalado por aquele e outros autores.

Um dos maiores handicaps negativos das forçasarmadas imperiais foi o caráter pré-nacional eelitista do exército imperial, produto da inevitávelreprodução nas forças armadas das relações declasse da sociedade escravista do Brasil, queseparavam oficiais ricos e oficias pobres e aquelese estes dos suboficiais e praças de pré, em grandeparte negros, mulatos, mestiços, caboclos e índios- realidade referida por Silva (1924) e corroboradapor rica informação, em geral fornecida em formaobliqua e indireta, por relatos e documentos sobreaqueles fatos.

Carne, charque, sal

Silva (1924) descreveu uma força armadaimperial essencialmente desqualificada paraenfrentar frontalmente o esforço de uma populaçãonacional, como a paraguaia, mesmo de parcosrecursos, unida em torno da autonomia de seupaís, quando da defesa do território nacional; ouseja, após ter-se concluído a desastrada expediçãolopizta ao exterior (MAESTRI, 2013b). Apesar de sedeter sobretudo nas dificuldades materiaisencontradas pelos oficiais desprovidos de recursos

próprios, como era seu caso, sua narrativa permiteentrever as condições desumanas a que foramcomumente submetidas as tropas ditas inferioresdas forças armadas imperiais.

Segundo apontava e sugeria aquele autor, aspraças de pré do exército, da política civil, daguarda nacional, dos voluntários da pátria morreramou inutilizaram-se às dezenas de milhares apenasdevido às deficiências de alimentação, de vestuário,de alojamento, de cuidados militares e àdespreocupação relativa do alto mando com asbaixas nos combates - realidade nascida dodescaso das classes dominantes para com ossubalternizados e do atraso da formação socialbrasileira. A alta valoração militar da valentiapessoal e o desprezo pela vida dos soldados porparte do alto comando imperial, associados à faltade preparo técnico dos mesmos, causarammilhares de mortes de infantes, “levados aatacarem as posições inimigas frontalmente e emlinhas cerradas, mesmo quando podiam contorná-las, envolvê-las, cercá-las com menor exposição,como registrou Taunay perplexo”. Esse autor, aindajovem oficial, anotava perdas de 62 homens emassalto a uma trincheira, “sem dúvida pelo péssimosistema de se atacarem esses obstáculos defrente e não os torneando [...]”. (MAESTRI, 2009, p.8; TAUNAY, 2008, p. 76).

Em “Recordações de guerra e de viagem”,referindo-se aos momentos finais da guerra, quepresenciara como espécie de escriba do prínciperegente, o futuro visconde de Taunay registrouatônito a divergência de visão entre o célebregeneral Osório e o conde d’Eu. O primeiro queriaatacar “logo de frente desfazendo os meios deresistência do inimigo”. Propunha: “Leva-se tudo[...] a cachações [pescoçadas] num instante.”Visão da qual divergiria o então chefe máximo dastropas imperiais, que servida em exércitoseuropeus: “Mas por que perder inutilmente gente?”(TAUNAY, 2008, p. 52).

Em defesa da pátria nacional

Ao lembrar que a “coluna cerrada” era a“disposição mais predileta” das tropas imperiais“para atacar os pontos fortificados” inimigos, o quelevava a que as tropas avançassem sob “bocas defogo que vomitam bombas, granadas, cachos deuvas, lanternetas”, com enorme mortandade entreos atacantes, Benjamin Constant não deixou derecriminar os combatentes paraguaios porprotegerem-se sem pejo na “mata atrás dos paus”,

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“zombando da bravura com que” os imperiais eramatacados “a peito descoberto”. E irritava-se com aordem de os oficiais não usarem “suas divisas emdias de combate”, para não serem alvejadospreferencialmente pelos atirados inimigos, e com“oficiais que” se escondiam “atrás dos paus e atéfazem buracos no chão para esconder-se nos diasde combates e bombardeios”! (LEMOS, 1999, p.91).

Na sua célebre descrição da retirada da Laguna,Taunay registrou igualmente seu estranhamentocom a tática militar utilizada pelos paraguaios dedispararem fora de forma, em posições que lhepermitissem melhor proteção individual, quasecomo se estivessem caçando. “Usavam [...] deuma manobra nova: deitavam-se por trás dosacidentes do terreno e daí nos faziam fogo,deixando ver apenas as cabeças; depois, [...]furtavam-se à nossa vista.” (TAUNAY, [s.d.]a, p.131). Ele se referiria elogiosamente ao “ditadorparaguaio” que se esforçava que suas tropasaproveitassem “todos os acidentes do terreno” parase protegerem, não dando as “provas de tamanhasinépcias” fornecidas pelas tropas imperiais(TAUNAY, [s.d.]a, p. 52).

Destaque-se que o eventual uso maleável edisperso tático do soldado, em vez das tradicionaislinhas cerradas e rígidas, foi celebrizado quando daGrande Revolução, em 1789. Nos exércitos doAncién Regime, de mercenários e soldadosarrolados à força e desinteressados nas razões enos resultados da luta, as tropas avançavam emformações rígidas, o que facilitava o controle dasdeserções pelos oficiais. As novas formas de lutanasceram e foram possíveis devido ao interessedos combatentes franceses na defesa da nação eda revolução.

Distanciado dos sucessos que relatava, o velhooficial assustava-se ainda com o assinaladodesperdício da soldadesca enviada à morte emassaltos frontais, sem conveniente ação daartilharia, que o exército imperial possuía emabundância, o que levava a “prejuízos em pessoal ematerial sem razão de ser”. “Tivéssemos maispreparo guerreiro e a campanha não teria perduradoextraordinariamente com tamanho sacrifício devidas e dinheiro” - propunha, sintetizando seudesconforto, passadas já décadas daquelahecatombe humana. (SILVA, 1924, p. 17, 124).

Disciplinando homens livres

Admirador da disciplina consciente e

moralizadora, que não se servia do “vitupério” docastigado, Silva (1924) lembrava desgostoso queele, oficial, por perder pistola antiquada, talvezdurante cavalgada, teve desconto pleno no seusoldo e anotação disciplinar na sua “fé de ofício”,para sempre. Assinala que, naqueles “desumanostempos de antanho, o extravio de qualquer peça defardamento por parte das praças do Exército, alémdo desconto de quinta parte do soldo, importava empancadas de espada de prancha.” (SILVA, 1924, p.128) - ou seja, as famosas pranchadas que eramdistribuídas aos soldados em forma regular eextrarregular. O castigo físico era prescrito pelostemidos Artigos de Guerra do Conde Lippe, de1763, que o exército imperial herdara das forçasarmadas lusitanas. Mas o código militar imperialexigia, explicitamente, conselho peremptório, comdireito de defesa, para que um soldado fossecondenado a ele (AVISOS, 1859, p. 298.).Entretanto, o castigo físico era utilizadohabitualmente por oficiais, não raro proprietários decativos, que distribuíam pranchadas de espadapara disciplinarem as praças de pré, o que causariagraves e imprevisíveis reações.

Francisco Marques Xavier, Chicuta, era tenenteno 5º Corpo da Cavalaria da Guarda Nacional,convocado para a defesa do Rio Grande diante doprovável ataque paraguaio. Conhecemos parte dacorrespondência familiar do jovem estancieirodurante a guerra. Em 24 de junho de 1865,escrevendo ao cunhado, contava que, quatro diasantes, tivera a “ocasião de ver dar 300 bordoadasem um soldado por ter desistido da trincheira[desertado]. Hoje já temos soldados no 5º [castigo]porque eles estão vendo que cá não é o que sequer, é o que se pode ser.” (FERNANDES, 1997, p.45-46). Ou seja, antes mesmo de iniciarem-se oscombates, o laço corria solto nas tropas imperiais.

Além do próprio castigo físico, as praças de préencontravam-se sob a permanente ameaça deexecução, como a relatada por Taunay (2008), nocaso referente a dois soldados argentinos fuziladossem mais processo por terem, levados pela fome,matado para comer, a montaria de um oficial sul-rio-grandense. Ou seja, duas vidas por um cavalo!O caso relatado pelo futuro visconde registrava asituação de maior ou menor penúria, no relativo àalimentação, vestuário, abrigo, etc., conhecidacomumente por subalternos durante períodos doscombates. Entretanto, toda pena máxima ditadapor conselho de guerra, em primeira instância, econfirmada, pela junta militar de justiça, em

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segunda, devia ser examinada pela 4ª Secção doConselho de Estado e aprovada pelo imperador.

Quem tem direito ao soldo?

Silva (1924) reafirma fenômeno em geral poucoexplorado mesmo pelos trabalhos recentes sobre ogrande conflito na bacia do rio da Prata. Se osoficiais recebiam o soldo a cada mês, o pagamentodas praças podia atrasar até um ano! Arrolado demaio de 1865 a junho de 1866 como engenheiro-militar, André Rebouças (1973) referiu-se a oficiaiscomandantes com três meses, oficias de tropacom até seis meses e soldados com um ano desoldos atrasados!

Um atraso literalmente dramático já que, naépoca, nos exércitos aliancistas, à exceção daração fornecida diariamente, a etapa, restrita, nomelhor dos casos, à carne verde [comumentesubstituída pelo charque], ao sal e à farinha, oscombatentes deviam comprar tudo o mais decomerciantes e provedores particulares, verdadeirosassaltantes, que seguiam as tropas em carretas,cargueiros, a pé (FIGUEIRA, 2001). “Os parcosvencimentos, recebidos a 1º do mês, sempre,pontualmente, o que não acontecia entretanto, comas praças de pret, pagas às vezes com atrasopróximo de um ano, com dificuldade cobriam asdespesas urgentes.” Tal prática ensejava “privaçõesinjustas, mal cabidas, tanto mais que o comércioreputava os gêneros de primeira necessidade porpreços exageradíssimo, só acessíveis aos oficiaisempregados nos estados maiores, cujasgratificações reforçavam o soldo.” (SILVA, 1924, p.109).

Oficial de escassos recursos, com importantefamília a cargo, Benjamin Constant desdobrou-separa obter comissão quando no front paraguaio, afim de poder fazer frente às suas obrigações enecessidades, impossíveis de serem cobertasapenas com o soldo simples (LEMOS, 1999). Ofuturo general honorário assinalou em suasmemórias que os oficiais que enviavam parte dosoldo para a família no Brasil deviam submeter-seao “regime dietético do macaco assado com farinhana ponta da faca e chá sem açúcar, das folhas dalaranjeira!”. O símio assado era o eufemismomalvado com que os combatentes designavam ochurrasco de “xarque” “magro como o de cãovagabundo, estendido ao espeto sobre as brasas.”(SILVA, 1924, p. 68).

Espécie de porta-voz tardio dos oficiais semmaiores recursos, José Luiz Rodrigues da Silva

lembra que os mesmos deviam financiar igualmenteos custosos fardamentos com o escasso soldo.Devido a isso, aqueles que não possuíam fortunafamiliar, portavam comumente “peças de uniformesdos soldados, e na falta, roupa, à paisana, já velha,mais semelhantes a andrajos, tendo por distintivosa espada e os galões do braço tão somente.”(SILVA, 1924, p. 68). Entretanto, para os soldadosparaguaios, as tropas aliancistas possuíamcobiçado fardamento, que era trocado pelosandrajos que vestiam, sempre que possível(THOMPSON, 2010, p. 159-169).

A golpes de moedas de ouro

Silva (1924) enfatiza o que tantos outroscontemporâneos seus apenas se referiam, quandose referiram. Enquanto as praças de pré viviam naquase miséria e os oficiais desprovidos de recursosapertavam o cinto para manterem-se com seusmagros soldos, os oficiais endinheirados, doEstado Maior e comissionados arranjavam-se paraviver com quase conforto, servidos por seusordenanças/camaradas e abastecidos de tudo quese desejasse junto aos comerciantes efornecedores.

O velho general relata sobre os diversosacampamentos onde as tropas lagarteavam, nãoraro, meses a fio, antes de reiniciar o ataque, comoo estabelecido nas proximidades da vila deCorrientes, antes de se cruzar o rio Paraná, emTuyuty, em Asunción etc. “Se a soldadescacontinuou de barracas armadas, a oficialidadeinstalava-se em cômodos ranchos, cobertos depalha e paredes de torrão”, com “curiosas mobíliasque cobriam com fazenda, aparentando trabalhosde arte”, realizada por soldados habilidosos, paraos oficiais que serviam (SILVA, 1924, p. 33).Sobretudo os oficiais provenientes de famíliasabastadas, acostumados a serem em tudo servidospela criadagem negra, arranjam-se para porem aosseus serviços ordenanças capazes de prestaremos serviços que estavam habituados, quando àrefeição, aos cuidados das vestes, das montariasetc. Na falta de alimentos, os “soldados ao serviçoparticular dos oficiais [...] esforçavam-se pordescobrir qualquer cousa” para que seus oficiaispudessem comer. Não raro, caçavam, pescavam eplantavam para tal (SILVA, 1924, p. 84).

Ser ordenança/camarada de um oficial bemcolocado ou endinheirado era oportunidadecertamente buscada por um soldado. BenjaminConstant propunha, sobre essa realidade:

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“[...] excetuando aqueles poucos que sãocamaradas de oficiais ou empregados, a maiorparte desta pobre gente não tem uma barraca quelhe sirva de abrigo, dormem ao relento expostos aosereno e às chuvas, muitos sem mantas, semcapotes”, sujeitos às doenças “com muito maiorintensidade” (LEMOS, 1999, p. 155).

A golpes de moeda de ouro, os oficiaisargentados garantiam-se condições excepcionaisde existência. Nos momentos finais da guerra,Taunay (2008) juntara-se a um grupo de oficiais sul-rio-grandenses igualmente abonados paragarantirem, com uma mesada de até doze librasmensais, um excelente cozinheiro queprovidenciasse os almoços e os jantares dignos desuas pessoas.

A guerra é uma festa

Silva (1924) lembra quase saudoso da vidadesbragada dos oficiais, com destaque para oscom as algibeiras plenas de patacões, nos teatrose nos salões de bailes, de banquete, de jogos, deconcertos, que foram rapidamente erguidos porempreendedores comerciantes durante os longosanos de combate, nas longas e pachorrentasinterrupções do lento avanço das tropas imperiais;realidade que espera uma exploração maissistemática por nossa historiografia. Silva (1924, p.44) confessa que o acampamento doscomerciantes constituía verdadeiro “boulevard”,onde se “palestrava com amigos”, “saboreava-se obom café, os doces finos, os melhores vinhos ecervejas [...] cavaqueava-se, fugitivamente embora,com as hetairas [prostitutas] de alto coturno, deorigem platina ou européia”. Damas que lembravaserem “acessíveis apenas aos argentários, aoselevados chefes de gola bordada, calça de galão echapéu de penacho [...].”

Já velho general, Silva (1924) lembra-se dostempos em que sonhava com as mundanas apenasao alcance dos oficiais superiores e endinheirados.Mas, certamente, ao lado das hetairas de algocoturno, haveria igualmente as acessíveis aosoficiais de guaiacas menos poderosas! Sem dar onome ao boi, o autor fala de distinto general que sefazia acompanhar de sua querida particular, emcavalo garboso, bem apeirado, nas própriasexcursões difíceis, até fazerem-se soar osprimeiros tiros.

Em suas “Memórias”, publicadas por suaexpressa vontade apenas 100 anos após seunascimento, em 1946, Taunay refere-se à morte do

general rio-grandense João Manuel Mena Barreto,em 12 de agosto de 1869, atingido por uma bala navirilha, quando do ataque de Piribebuy, terceiracapital paraguaia: “Caiu do cavalo nos braços devalente china, que o acompanhava sempre, até nomeio dos mais rijos combates, o que de certo nãoera nada regular mas tem grandeza.” (TAUNAY,[s.d.]b, p. 346). Segundo Benjamin Constant (apudLEMOS, 1999), oficiais mandavam seusordenanças servirem de domésticos a suasamadas de ocasião na vila de Corrientes.

As ruas do comércio desses acampamentos,em cada seção dos acampamentos, possuíam detudo, a elevado preço, inclusive o que havia de maismoderno, como os estúdios fotográficos, onde osoficiais faziam-se retratar, em uniforme, sozinhosou em grupos. Os pequenos retratos do tamanhode uma carta de visita [carte-de-visites], maiseconômicos, eram distribuídos aos parentes,amigos, conhecidos. Em sua “História da guerra doParaguai”, o major prussiano Max von Versen(1976) relata o constrangimento que sofreu quandoo coronel argentino Susini propôs quepermutássemos nossos retratos, que ele nãodispunha. Temos milhares de fotografias de oficiaisimperiais, argentinos, orientais e paraguaios - as desoldados isolados são raríssimas (cf. TORAL,2001; VERSEN, 1976).

Após a ocupação, a cidade de Asunción teria setransformado igualmente em uma verdadeira micro-Paris, no contexto de um país ainda avassaladopela guerra, pela destruição, pela fome, pelamiséria, pela dor: “Hotéis, cafés, bilhares, teatros,casas de bailes, festas de igrejas [...], o convivoconfortante de muitas famílias de oficiais chegadosdo Brasil [...] roçava pelas fronteiras da verdadeiradelícia.” (SILVA, 1924, p. 68-69). A jogatina correriatambém em forma desenfreada, fazendo quepassassem para mãos sobretudo dos jogadoresprofissionais espertos chegados do Brasil“soberanos, a onça de ouro, o mexicano, o dólar”, alibra esterlina. (SILVA, 1924, p. 79).Definitivamente, a guerra não tratava a todos domesmo modo, mesmo nas fileiras dos vencedores!Ao contrário, ela teria continuado a ser uma grandefesta, ao menos para os que já estavamsocialmente habilitados para ela, ou se arranjavampara serem financiados pela cada vez maisexauridas burras imperiais; porque aquela guerrafoi, também, um enorme e rendoso negócio, paramuitos cidadãos imperiais e sobretudo para ogrande comércio e contratadores argentinos e

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comerciantes e banqueiros inglês! (FIGUEIRA,2001).

O preço da vida e da morte

A diferença entre as chances dos feridos demorrerem ou de viverem devia-se igualmente emforma substancial à situação na hierarquia militar eàs libras e patacões que os oficiais dispunham.Benjamin Constant escrevia tranquilizando suaesposa que não se assustasse com a “notícia” daepidemia de cólera. Ele não estaria, ou estariapouco exposto ao mal, já que ele “só tem atacadoaos desgraçados soldados que dormem a maiorparte [do tempo] ao relento sem roupa para seagasalharem, sem uma alimentação regular”(LEMOS, 1999, p. 145). Entretanto, a epidemiagolpearia também oficiais superiores, em bomnúmero.

Em 26 de março de 1867, o cólera eclodira noPaso de la Patria, trazido por passageiros esoldados dos transportes que chegavam amiúde daCorte. Do Paso de la Pátria, a enfermidadealcançaria o acampamento de Tuyuty. Em Curuzu,onde havia enorme concentração de soldados, aenfermidade produziu verdadeira hecatombe. Noacampamento, a seguir abandonado, os mortos secontavam por milhares (THOMPSON, 2010;CENTURIÓN, 2010). Em maio de 1867, o cóleragolpearia as tropas paraguaias a partir de PasoGómez, atacando oficiais e praças de pré. Opróprio mariscal Solano López teria ficado doente.A seguir, a enfermidade se espalharia por parte doParaguai que jamais a conhecera como epidemia(THOMPSON, 2010).

Silva (1924) lembra que era enorme odescalabro, a sujeira, a falta de recursos e aimprovisação dos hospitais militares, ondeestudantes do 1º ano das escolas de medicinadesempenhavam trabalhos peculiares à altacirurgia, empunhando os instrumentos cirúrgicoscom a maior sem-cerimônia; fala de hospitais semaparelhos necessários e sem enfermeirospreparados, com instrumentos cirúrgicos sem aexigida assepsia, verdadeiro horror dos feridos;descreve soldados doentes deitados em puro e friochão, em barraquinhas mal armadas, no hospitalcentral do Exército. Em 1865, em sua viagem embusca de Uruguaiana ocupada, o conde d’Euassinalara a precariedade do serviço militar naprópria província do Rio Grande do Sul (cf. SILVA,1924; EU, 1981).

Em época em que a medicina praticamente não

dispunha de recursos contra as infecções, otétano, a gangrena, além da improvável limpezaprofilática, nos campos de batalha, médicos eaprendizes de médicos serviam-se normalmentedas amputações. Em junho de 1869, o jovem poetaCastro Alves teve perna amputada abaixo do joelho,em operação que não se demorou mais do quedois minutos, por cirurgião que se especializara naprática cirúrgica extremada nos campos doParaguai. A intervenção foi feita a frio, sem o uso declorofórmio, devido à fraqueza geral do enfermo(MAESTRI, 2011). Segundo Silva (1924, p. 113),devido ao descalabro dos hospitais militares doParaguai, muito “raramente escapava das garras damorte quem se via na obrigação de amputar umbraço ou uma perna [...].

Antes da invasão do Paraguai, para contornar operigo de terminarem nos infectos hospitais desangue do exército imperial, os oficiais argentadosmeteram igualmente a mão nas algibeiras efundaram espécie de seguro privado de saúde. Asociedade Saudades do Brasil teria sidoinaugurada com banquete de 200 talheres, onde seserviram as “melhores iguarias, os capitosos vinhose doces procedentes da próxima cidade deCorrientes”, para os generais, comandantes eoficiais presentes. Aos intermináveis discursos e osbrindes, regados fartamente ao champagne,seguiu-se, à noite, um “baile esplendido”. A jóia deingresso à sociedade era de três libras esterlinas, amensalidade, de uma (SILVA, 1924, p. 115).

O Paraguai teria sido igualmente oportunidadede enriquecimento no mínimo pouco ortodoxo,sobretudo para altos oficiais e comerciantesespertos. Silva (1924, p. 66, 77) refere-se rápida eindiretamente ao conhecido saque geral efetuadopelas tropas imperiais da rica e deserta cidade deAsunción, com “prédios abertos [sic], mobiliadoscom luxo e apuro, armários cheios de roupas finasde homem, mulher e crianças, cristais e talheresde valor, instrumentos e objetivos de arte” que alijaziam “num abandono incrível”. Silva (1924)descreve longamente o hábito dos paraguaiosendinheirados de enterrarem em suas casas ejardins seus bens preciosos, antes de abandona-rem a capital, e de oficiais e soldados imperiais epaisanos de cavarem por toda parte, à procura dostesouros escondidos. Durante longos meses apósa ocupação de Asunción, sobretudo os pátios,pisos e paredes das residências mais ricasassumiram a aparência de verdadeiros queijossuíços, de tão esburacados que ficaram, devido à

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ávida atividade dos caçadores de tesouros.Em 12 de agosto de 1869, após a conquista de

Piribebuy, caiu nas mãos das tropas aliancistas operseguido tesouro de guerra de Solano López. Oconde d’Eu relatou ao governo imperial o ricoachado: “[...] depósitos de farinha, erva mate,vinhos da Europa em grande quantidade, caixõescom roupa, diferentes objetos de prata lavrada,numerário de diversos países, uma soma de papelmoeda do Brasil” (ORDENS DO DIA, 1877, p. 518).Após o ataque, foi geral o saque das enormesriquezas por parte dos soldados, possivelmentetambém para substituir os soldos sempreatrasados.

A cor do oficial

Também é tradicional na historiografia brasileiraassinalar a tendência à confraternização entrenegros e brancos e o espírito emancipacionista eabolicionista que teriam se desenvolvido nas tropasatravés da convivência entre oficiais, no geralbrancos, e soldados, comumente negros, mulatos,cafuzos, caboclos. Em 1865, na sua viagem paraUruguaiana, o conde d’Eu ressaltou o carátermestiço dos batalhões de Voluntário da Pátria;afirmou sobre o 31º Batalhão da Corte: “[...] aoinverso de todos os outros batalhões de voluntários,é, na sua maioria, formado de brancos [...].”Apontaria também a chegada da 1ª companhia dosZuavos baianos, composta “exclusivamente denegros”, com oficiais “negros retintos”. O príncipeconsorte se destacava por seu enorme racismo,que deixa registrado no livro que citamos (EU,1981, p. 69, 89).

A proposta de democracia racial nas forçasimperiais confronta-se com a visão habitual dosoficiais sobre a qualidade do soldado negro oumestiço. O marquês de Caxias propôs, ao sereferir, em correspondência privada, à baixaqualidade militar dos soldados imperiais libertos:“[...] homens que não compreendem o que é pátria,sociedade e família, que se consideram aindaescravos [...]”; visão abraçada igualmente pelocoronel e futuro general e marechal José AntonioCorrêa da Câmara, que explicou o insucesso deassalto à posição inimiga por “nossos soldados deinfantaria” serem “os negros mais infames destemundo, que chegam a ter medo até do inimigo quefoge” (DORATIOTO, 2002, p. 274-275); teriam, comtoda razão, medo de morrerem por luta que não eradefinitivamente suas.

Ao escrever aos seus familiares, Benjamin

Constant referiu-se também ao que via como baixaqualidade dos soldados imperiais, obtidosesvaziando “as cadeias” de “criminosos” e com“escravos libertados” por proprietários com o fim deobterem “honras, condecorações, títulos denobreza, posições oficiais” mais úteis que osserviços prestados pelos “estúpidos e miseráveiscativos”. Uma escória que, segundo ele, indignado,era incumbida “de defender os brios e a honra danação” (LEMOS, 1999, p. 118, 142).

Silva (1924) acena igualmente às relaçõesraciais no exército, no seio do oficialato, aolembrar-se do seu “distinto amigo, companheiro deBarraca e de companhia”, no 13º Batalhão deInfantaria, o alferes Teotônio Lopes Barros; anotavaque “homem de cor” “jamais negava a sua condição[sic], e, se era convidado a comparecer a qualquerfesta particular, furtava-se e respondia logo: ‘Negronão dá carreira certa. Não vou’.” Ou seja, durante aguerra contra o Paraguai, em festa de branco,negro não entrava, mesmo se oficial! Em possívelreferência à discriminação racial nas promoções,lembrava que, talvez devido à “sua exageradaindependência de caráter”, o oficial negro nãoobtivera a progressão correspondente ao seu valorcomo oficial (SILVA, 1924, p. 94). BenjaminConstant (apud LEMOS, 1999, p. 135) desdizia emsua correspondência as notícias positivas do frontenviadas por “um Dr. Dória, o homem (negro) maisadulador, mais imundo que conheço.”

Bebida, massacre, desordem

Abordando questão singularmentecontemporânea, José Luiz Rodrigues da Silvarefere-se igualmente ao estresse da guerra.Segundo ele (SILVA, 1924, p. 96), a dilaceração davida sob as armas, em um combate que parecianão ter fim, teria levado “muitos rapazes distintosna campanha, e oficiais de meia idade”, acontraírem o “terrível vício da embriaguês”,superado por alguns após a guerra e jamais poroutros, que “sacrificaram” assim “o futuro risonhoque os aguardava.” Em suas célebres “Memorias oreminiscencias históricas sobre la guerra delParaguay”, Juan Crisóstomo Centurión (2010)assinala que o amplo uso da caña pelo exércitoparaguaio, para aplacar a fome e a dor, para curarenfermidades e afugentar as tristezas etc. teriacontribuído ao alcoolismo, após a guerra.

Silva (1924) anota, pontualmente, a questãocrítica dos crimes de guerra praticados por oficiaisimperiais e aliancistas durante o conflito ao referir-

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se a general tarimbeiro, ou seja, sem formaçãomilitar institucional, baronizado após a guerra,possivelmente sul-rio-grandense, de poucas luzes;e afirma que sua “feição militar” delineara “umpersonagem digno de imitação”, e até mesmo de“veneração”, se não lhe tivesse empanado “o brilho[militar] a ação repugnante de mandar trucidarcruelmente no Espinilho, 300 e tantos inimigosindefesos, ali refugiados, depois da batalha doCampo Grande”, em 16 de agosto de 1869 (SILVA,1924, p. 103). Dias antes, no assalto à vila dePiribebuy, a degola de prisioneiros paraguaios, emboa parte adolescentes e crianças, teria sidopraticada amplamente (cf. TAUNAY, [s.d.]a;CERQUEIRA, 1929).

Silva (1924) assinala igualmente a deficiência doserviço de informações do Império. Em 1865, ocônego Gay (1980) denunciara no seu relato sobrea invasão paraguaia do Rio Grande o péssimoserviço de polícia na fronteira, com viagens decidadãos correntinos, entrerrianos, orientais etc.entre Santo Tomé, na província de Corrientes, eSão Borja, sem qualquer controle. O que permitiuaos paraguaios informações seguras sobre o queocorria naquele ponto da fronteira. Segundo o padreJoão Pedro Gay (1980), espiões das tropasatacantes teriam ateado fogo à casa do seu irmão,como sinal de que a ocasião era propícia apassagem do rio. Uma realidade que não teria semodificado até o fim da guerra, já que Silva (1924,p. 24) registrou igualmente que os “acampamentos[do exército Imperial] viviam à mercê de quemquisesse percorrê-los”. Segundo ele, penetrava“neles e saía, com franqueza ampla, qualquerindivíduo, sem que lhes fossem às mãos ou, aomenos, o advertissem da obrigação de apresentar-se à autoridade encarregada da identificaçãoconveniente.”

O terror lopizta

Os momentos finais da guerra do Paraguaicelebrizaram-se pela duríssima repressão ordenadapor Francisco Solano López contra parte dossegmentos das classes dominantes e dignitáriosdo Estado paraguaio, entre os quais seencontravam seus irmãos e irmãs e sua mãe. Olopizmo negativo tem se servido desses sucessospara consolidar as interpretações apologéticas dainsanidade, despotismo, barbarismo, etc. do tirano,negando comumente a existência de movimentoconspirativo contra o prosseguimento daresistência. Ao contrário, as leituras do lopizmo

positivo ensaiam justificativas ingênuas ouhipócritas sobre aqueles sucessos, em geral semincorporar à análise o sentido político da repressão(O’LEARY, 1970; MAESTRI, 2013b ).

A operação militar ofensiva paraguaia emdireção ao Mato Grosso, ao Rio Grande do Sul eao Prata, em apoio do Uruguai, contou com oconsenso do bloco político-social dominanteparaguaio, conformado sobretudo por estancieiros,plantadores, comerciantes, alto clero, altaoficialidade etc., que se fortalecera durante a eralopizta [1842-1865]. Esse grupo social dependia,no geral, da manutenção e ampliação da economiamercantil-exportadora empreendida pelaadministração lopista, que tinha sua sorte ligada alivre acesso ao comércio internacional através doPrata, ainda que, nesse momento, já subsistissesegmentos das classes proprietárias interessadosno fim do lopizmo e gestão direta do poder.

As amplas classes camponesas do interior dopaís não foram consultadas sobre a oportunidadeda intervenção exterior, apesar do esforçogovernamental de construção de consenso entreelas sobre aquela operação. A liberação por SolanoLópez do saque no Rio Grande do Sul pode sereventualmente compreendida como meio de obter oconsenso de tropas conformadas essencialmentepor segmentos sociais de extração camponesa,que não receberam soldos durante aquelasoperações. A baixa belicosidade das tropasparaguaias durante essa ofensiva, com destaquepara a rendição de Uruguaiana, sugere adesãosuperficial à operação no exterior (MAESTRI,2013b).

A oposição à invasão aliancista do Paraguai,sobretudo após o conhecimento do tratado secretoda Tríplice Aliança, transformou-se em verdadeiraguerra de defesa nacional, protagonizadaessencialmente pelos segmentos camponesesproprietários, arrendatários e detentores do país,que defenderiam as conquistas que haviamconsolidado, com destaque para a era francista.Durante a guerra defensiva, o bloco político-socialdominante foi se separando gradualmente deFrancisco Solano López, até então sua principalexpressão política.

Após a ultrapassagem de Humaitá, quando jáse mostrava inevitável a vitória das tropas doImpério e impossível impor aos aliancistas paznegociada, o núcleo central do que restava dobloco político-social dominante, no qual a famíliaLópez desempenhava papel central, tentou

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destacar-se da resistência desesperada dossegmentos populares, realizada em torno domariscal (TAUNAY, 2002).

O caráter extremamente duro da repressão aosconspiradores registraria a necessidade deneutralizar pelo terror qualquer prosseguimento demovimento pela rendição, a partir do núcleo centraldo antigo governo, que já tinha agora Solano Lópezcomo seu antagonista. Utilizamos aqui a categoriaterror em seu sentido político-sociológico, ou seja,a tentativa de imobilização de facções sociais pelomedo das represálias tomadas contra elas. Terrorrevolucionário e contra-revolucionário, na RevoluçãoFrancesa; terror vermelho e branco, na RevoluçãoRussa; terror ditatorial, na Argentina, no Brasil, noChile etc., durante os regimes militares etc.

Silva (1924) registra os paraguaios eparaguaias, de todas as idades, verdadeirosfrangalhos humanos, com que as tropas imperiaisdepararam-se nos últimos momentos do combate,devido à falta de recursos e à repressão lopizta.“De Capivary em diante, começamos a encontrarpelo caminho gente de Lopez, degolada oulanceada por sua ordem severa [...].” (SILVA, 1924,p. 91). O autor avança que, com a “exposição doscadáveres recentes”, Solano López talvezprocurasse pôr fim aos esforços de Caxias em“minar-lhe, com diplomacia” [sic], sua autoridade egoverno. “Constava no Exército, realmente, à bocapequena, que o notável homem de guerra [Caxias],com as maiores cautelas, tentou um diacorresponder-se com os vultos proeminentes daprimeira camada da Capital”. (SILVA, 1924, p. 91).

Silva (1924, p. 91) lembrava pertinentementeque o marquês “sabia manejar com destrezatambém a arma fina e humanizada que bemdistinguiu a individualidade máscula de Talleyrand.Não seria, pois, de surpreender uma tentativa a talrespeito [...].” Nas revoltas regenciais, com odestaque para a farroupilha, após vencer osopositores no campo de batalha, o hábil político emilitar imperial costumava obrigar seus oponentesà rendição final com poderosos golpes de centenasde contos de réis!

O fracasso dos esforços de suborno de Caxiasforam igualmente registrados por BenjaminConstant, em sua correspondência (LEMOS, 1999,p. 119): “O López não é suscetível de suborno, nãose vende. O Caxias supôs que [...] com osimensos recursos de que o governo o rodeia podiaassombrar o Paraguai. [...] O exército de moedascom que pretendia, como sempre, vencer o inimigo

tem desaparecido esterilmente [...]”.Enganava-se, porém, Benjamin Constant. Como

sugerira Silva (apud CENTURIÓN, 2010), oseventuais destinatários das tentativas deaproximação de Caxias seriam os membros dasclasses dominantes dissidentes, entre eles afamília López, que também parece ter se esforçadoem contatar o inimigo, sobretudo quando doprimeiro ataque naval a Asunción, sem sucesso

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* Doutor em História pela UCL, Bélgica. Professor doPrograma de Pós-Graduação da Universidade dePasso Fundo/RS. e-mail: [email protected]

O’LEARY, J. E. El mariscal Solano López. 3. ed. Asunción:Casa America, 1970.ORDENS DO DIA. Exército em operações na Republica doParaguay. Sob o comando em chefe de todas as forças, desua alteza o senhor príncipe marechal do Exercito Luiz FelipeFernando Gastão de Orleans, Conde d’Eu. Compreendendoas 1 a 47. 1869 a 1870. Re-impressa por ordem do Governo.Rio de Janeiro: Francisco Alves de Souza, 1877.REBOUÇAS, A. Diário da guerra do Paraguai (1866). SãoPaulo: Instituto de Estudos Brasileiro, 1973.SALLES, R. A Guerra do Paraguai. Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1990.SILVA, J. L. R. Recordações da campanha do Paraguay. SãoPaulo: Melhoramentos, 1924.TAUNAY, A. E. [Visconde de]. A retirada da Laguna. Rio deJaneiro: Garnier, [s.d.]a.TAUNAY, A. E. [Visconde de]. Memórias. São Paulo:Melhoramentos, [s.d.]b.

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GRAMSCI, CLAUSEWITZ, GUERRA EPOLÍTICA Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos*

Resumo: o objetivo do texto é esboçar uma resposta às seguintes questões: Qual a relação entre guerra epolítica no pensamento de Antonio Gramsci? Como relacionar guerra e política em Gramsci às teses sobretais temas do general prussiano Carl Von Clausewitz? A hipótese central que orienta o raciocínio do artigosustenta que a abordagem da guerra como metáfora da política - ponto predominante na abordagem da guerrano pensamento de Gramsci - tem sentido muito mais amplo do que a guerra no sentido de um conflitointerestatal, conceito trabalhado por Clausewitz. Em que pese a conexão da guerra com a política em ambosos autores, o conflito interestatal se coloca predominantemente no sentido clausewitziano e o sentido maisamplo de guerra como política na abordagem gramsciana.Palavras-chave: Gramsci. Guerra. Política.

Abstract: the aim of this text is to draft an answer to the following questions: What is the relationshipbetween war and politics in Antonio Gramsci’s thought? How is it possible to make a relationship of war andpolitics according to Gramsci with Prussian general Carl von Clausewitz’s same themes? The mainhypothesis of this article points to understand that war as a metaphor of politics approach – predominant pointin Gramsci’s approach of war – has a broader meaning that war as an interstate conflict, which isClausewitz’s concept. Although the war is connected with politics in both authors, interstate conflict has astronger emphasis in clausewitzian sense and a wider sense of war as politics is found in gramscianapproach.Key-words: Gramsci. War. Politics.

1 Introdução

O objetivo deste texto é esboçar uma respostaàs seguintes questões: Qual a relação entre guerrae política no pensamento de Antonio Gramsci?Como relacionar guerra e política em Gramsci àsteses sobre tais temas do general prussiano CarlVon Clausewitz (1780-1831)?

Não se tem a pretensão de fazer umaabordagem eclética em que se justaponha ouconfunda autores com sistemas teóricos, fontes econtextos históricos absolutamente distintos. Oobjetivo é iniciar uma reflexão sobre eventuais

relações entre ambos no que refere ao tema daguerra e da política.1 Mesmo frisando taisdiferenças, há pequenas coincidências na trajetóriae legado intelectual de ambos.

Gramsci e Clausewitz tiveram o cativeiro comomomento significativo de suas vidas. O primeiro,prisioneiro do fascismo italiano, redigiu a maiorparte de sua obra nas precárias condições doconfinamento ao qual foi relegado nos últimos anosde sua vida. As suas cartas e cadernos carceráriossão o ponto alto de seu opus. O segundo foi

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prisioneiro entre 1806 e 1808, na França e naSuíça, na condição de ajudante de campo dopríncipe herdeiro Augusto da Prússia durante partedas guerras napoleônicas. Essa foi umaexperiência na qual Clausewitz tomou contato comtodo um universo intelectual que marcaria aelaboração de sua obra. O conhecimento de obrasde autores como Montesquieu fez parte dessaexperiência. Ressalve-se que sua experiênciacomo prisioneiro foi confortável (ARON, 1986b), aocontrário daquela de Gramsci.

Ambos tiveram doenças nervosas em suasrespectivas trajetórias (ARON, 1986b; FIORI, 1979).

Os dois viveram partes importantes de suasvidas na Rússia. Gramsci como dirigente erepresentante do Partido Comunista da Itália juntoà Internacional Comunista na terra da revoluçãoliderada pelos bolcheviques. Clausewitz renunciouà sua patente como oficial no exército prussianopor não aceitar a submissão de seu país à França,vitoriosa no campo de batalha; emigrou para aRússia, onde se tornou oficial do exército para aluta contra o Grand Armée e tomou parte nacampanha vitoriosa de 1812 e 1813 da coalizãoantinapoleônica; foi readmitido no exércitoprussiano em 1814.

O comunista italiano e o general prussianotencionavam revisões mais abrangentes em suasúltimas obras, respectivamente: “Quaderni delcarcere” (GRAMSCI, 1975) e “Vom Kriege”(CLAUSEWITZ, 1984).2 Eles reescreveramlimitadamente trechos das obras. Gramsci legouos textos que Valentino Gerratana classificou comotextos “C”, textos reescritos com alterações ou nãoem relação a textos de primeira redaçãoclassificados pelo pesquisador italiano como textos“A”. Clausewitz deu como pronto e revisado ocapítulo 1 do livro I de Da guerra e apontou essetrecho como referência para toda a reelaboração deseu tratado, tomando por base duas ideiascentrais: a conexão da guerra com a política e asguerras de tipo real e absoluto. Ambos nãosobreviveram para as reformulações de maiorescopo. A publicação de ambas as obras tambémfoi póstuma. Suas obras mencionadas foramapropriadas e reivindicadas por diferentesinterpretações e tradições teóricas e intelectuais,algumas bastante excludentes entre si. As obrasem questão foram mutiladas, seja em ediçõesincompletas ou antologias, e tiveram boa parte deseu significado distorcido.

É sabido que são diversas as apropriações fora

de contexto ou compartimentalizadas do legado deGramsci, nas mais diferentes perspectivas:culturalista, nacionalista, populista, liberal,populista, eurocomunista, stalinista, pós-moderna,social-democrata.

Clausewitz foi apresentado de diferentes formas;algumas delas serão resumidas. Entre elas, ele foivisto como o “profeta do morticínio e da destruição”da Primeira Guerra Mundial, como será abordadoadiante. Toda uma tradição de historiadoresmilitares legou de alguma forma essa perspectiva.3

Contudo, diferentes apropriações não tiveram taltratamento depreciativo e buscaram inseri-lo emseu projeto intelectual de alguma maneira.Referências a Clausewitz por parte de Marx,Engels e alusões às batalhas, guerras de classesem suas obras já sugerem, ainda que vagamente,uma afinidade entre guerra e política.

A especial atenção dedicada a Clausewitz porLenin (1979) e Trotsky (1977) e o uso dos racio-cínios do general prussiano de modo mais explícitopelos líderes revolucionários bolcheviques reforça-ram essa temática no âmbito do marxismo.4 Leninvinculou-o a Hegel nas suas formulações. Outrosautores marxistas, como Henri Lefebvre (1968,1975, 1977) e Pierre Naville (1955), tambémexploraram o contato de Clausewitz com o pensa-mento de Hegel, bem como o estudo de sua obra eas menções ao general prussiano por Marx a ela.

Em outra perspectiva, Carl Schmitt (1992)avaliou a formulação de guerra como continuaçãoda política de forma violenta do general prussianocomo suporte à tensão especificamente políticamanifestada pela confrontação concreta amigo-inimigo e a consequente eliminação física doinimigo público. Hitler (apud RYBACK, 2009)transformou a política em arte e luta de guerra e emsua forma mais refinada, aquela pela vida do povoalemão, e costumava citar tal ideia antecedida pelaformulação clausewitziana sobre a guerra comopolítica com o uso da força. Raymond Aronapropriou-se de Clausewitz fazendo de suaconcepção de política pacífica e violenta (comoguerra), ponto central para caracterizar suacategoria de conduta diplomático-estratégica comopolítica externa dos Estados; também repeliu oeventual vínculo intelectual com Hegel, buscandoligá-lo principalmente ao pioneirismo sociológico deMontesquieu, autor bastante influente sobre ogeneral prussiano (ARON, 1986a, 1986b).

Clausewitz foi um autor vulgarizado a partir domomento de que teria sido supostamente a base

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vitoriosa da doutrina militar prussiana vitoriosa naguerra franco-prussiana. O então chefe do Estado-Maior prussiano, Helmut von Moltke, deu aopensamento de Clausewitz o crédito doutrinário deseu plano bem-sucedido em campo de batalha. Apartir de então, uma deformação de seupensamento figurou como base das doutrinas deemprego militar na Primeira Guerra Mundial. Oataque frontal sem manobra às fortificadíssimastrincheiras seria, segundo essa simplificação, umponto central da formulação clausewitziana.5 Essaorientação gerou um gigantesco custo em vidas.Simplificação semelhante acompanha recentesedições de “Da guerra”. Um dos pontos que resumeem tais edições e na Primeira Guerra a distorçãode seu pensamento seria a ideia da superioridadedo ataque sobre a defesa. Muitas ediçõesmutiladas de “Da guerra” omitem justamente o livroVI, que aborda exatamente o contrário: asuperioridade da defesa sobre o ataque.6

Por fim e mais importante, Gramsc eClausewitz trataram da relação entre guerra epolítica. Não há no tratado sobre a guerra deClausewitz uma abordagem sistemática sobre apolítica, ao passo que Gramsci, no todo do seuopus carcerário, tem uma elaboração também nãosistemática sobre os vários temas tratados.Contudo, Gramsci fez da política a principalpreocupação de sua opera carcerária.

Gramsci vê a política como mais complexa quea guerra; entende pontos comuns à arte política e àarte militar; e sublinha em sua obra carcerária aunidade entre as funções técnico-militares e apolítica. Clausewitz vê a guerra como parte dapolítica e uma extensão desta com o aditivo dosmeios violentos. Jamais a guerra pode serdivorciada da política. Mesmo quando há umamanifestação extrema da violência - a guerraabsoluta, ponto aceitável apenas logicamente -,coloca-se como conceito ligado ao fenômenobélico.

A tese a ser apresentada e esboçada nessetexto - a guerra como metáfora da política; pontopredominante na abordagem da guerra nopensamento de Gramsci - tem sentido muito maisamplo do que a guerra no sentido de um conflitointerestatal, conceito trabalhado por Clausewitz.Em que pese a conexão da guerra com a políticaem ambos os autores, o conflito interestatalcoloca-se predominantemente no sentidoclausewitziano e o sentido mais amplo de guerracomo política na abordagem gramsciana.

Neste artigo, o “teatro de operações” seráapresentado; percorre um resumo da relação entreguerra e política na formulação clausewitziana de“Da guerra”; posteriormente, uma breve análise docontato indireto da obra de Gramsci com o generalprussiano. Em seguida, um esboço da temáticanos “Cadernos do cárcere”. Por fim, uma conclusãoque resume e aponta os principais pontos emcomum entre ambos, além de possibilidadesinvestigativas futuras.

2 A política como o embrião da guerraconforme Clausewitz

Conforme o feliz comentário de Henri Lefebvre, épossível caracterizar a perspectiva de política deClausewitz tomando por base o entendimento deque não há continuidade nem descontinuidadeabsoluta no que toca à manifestação da violência(quando se trata, por exemplo, da guerra) e dosmeios pacíficos (tomando como exemplificação orecurso à diplomacia). A guerra e a diplomacia sãoações políticas muito distintas entre si. Ao mesmotempo, possuem semelhanças ao terem emcomum a política configurando uma relaçãodialética entre ações pacíficas e ações violentas(LEFEBVRE, 1975). O ponto em comum entre adiplomacia e a guerra é a sua lógica política. Aguerra como política acontece através de batalhase a diplomacia como troca de notas entre osEstados (CLAUSEWITZ, 1984).

A violência é seu meio, o objetivo é impor anossa vontade sobre o inimigo e desarmar essemesmo inimigo é seu fim. Trata-se de um conflitoque envolve necessariamente Estados.

Clausewitz classifica as guerras em reais eabsolutas. As primeiras são aquelas que envolvemtodo tipo de obstáculo, dificuldade, imprevisto ecomplexidade que marcam a manifestaçãohistórica, concreta e social desse fenômeno. Aviolência se manifesta em erupções distintas eseparadas. De modo diverso, a guerra absoluta éuma erupção única, extrema e decisiva daviolência. Como tal, Clausewitz (1984) a entendecomo uma fantasia lógica, um fenômenoinexistente. A guerra absoluta é uma referênciageral para o fenômeno bélico como um todo. Doponto de vista da teoria, toda manifestação daguerra deve levar em consideração o tipo absolutoe, quando for o caso, deve ser-lhe aproximado.Clausewitz sugere que a manifestação extrema daviolência seria uma espécie de peculiaridade daguerra em face dos outros fenômenos. Seria a

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natureza específica da guerra, muito embora jamaisse separe da política.7

No que concerne ainda aos pontos comunsentre guerra e política, há que se entender que oesforço para a consecução do objetivo político epara a superação da penalidade, do esforçocolocado pelo oponente determina a natureza daluta (CLAUSEWITZ, 1984). A ação política e aguerra comportam tal perspectiva. A guerrademandou pioneiramente um esforço no âmbito detoda a sociedade a partir da sua condução porNapoleão Bonaparte e o esforço de seus oponentesteve que ser equiparado. Se uma ação política podeser empreendida pacificamente com vistas a impor-se perante o oponente, tal será o teor do conflito.Uma perspectiva diversa de conflito demandaráoutra postura. Neste caso, uma ação política nãodemanda somente o Estado, mas qualquer outroator político.

A guerra estaria menos afeita à condição dearte, de ciência ou de teoria. Isso porque na artenão há reciprocidade das ações na perspectiva dacontemplação. De modo diverso, isso ocorre naguerra. Mesmo que o oponente se renda semcombate, é como se ele tivesse efetuado o cálculodo que seria se optasse pelo contrário. Portanto, aguerra pertence ao domínio das relações sociais,pois há reação perante a intenção de emprego e oefetivo uso da violência. Além do âmbito dasrelações sociais, a guerra insere-se mais aindamais no campo da política. Uma vez que se tratada busca de imposição de uma vontade a outrem,ela pode ser comparada ao comércio em largaescala, diferindo pelo fato de empregar um meioviolento. Ainda próximo dessa perspectiva, a guerrapode ser entendida metafórica e analogamente coma execução de uma promissória em espéciedaquilo que foi contraído a crédito. Como diferença,ao invés de pagar-se em espécie, paga-se emsangue. Como pertencente ao domínio histórico esocial, Clausewitz (1984) recorre à metáfora de queela é um verdadeiro camaleão que se adaptasutilmente ao caso dado. Em outras palavras, aguerra se adapta às distintas conjunturashistóricas. Para concluir com outra metáfora deClausewitz, a guerra encontra na política as suasformas elementares do mesmo modo que os seresvivos encontram nos embriões as suas feiçõesfundamentais.

3 Gramsci e Clausewitz

Gramsci não foi leitor direto de Clausewitz; seu

conhecimento do general prussiano se deu atravésde autores que citam o militar prussiano(GRAMSCI, 1975). Segundo Valentino Gerratana(apud GRAMSCI, 1975), não há indícios precisosdas obras lidas e consultadas por Gramsci quecitam Clausewitz, havendo inclusive a possibilidadede um dos contatos indiretos com a obra dogeneral prussiano ter sido através da obra deBenedetto Croce.8 A ideia da direção política daguerra em conformidade com a assertivaclausewitziana lhe é clara (GRAMSCI, 1975).

Todavia, não há indícios mais claros numaprimeira avaliação se Gramsci teve contato com asideias de Clausewitz através de escritos ediscursos de Lenin e Trotsky.

O fato relevante é a ampliação do sentido deguerra mais estrito para o sentido de política, uma“tradução” que talvez não remeta somente ao usode Clausewitz como principal referência para aabordagem da relação da guerra e da política,como será abordado posteriormente. Entende-se“tradução” no sentido gramsciano como aadequação não mecânica de uma categoria a outrocontexto cultural, histórico e social (GRAMSCI,1975).

4 Gramsci e a guerra como política

É possível caracterizar no pensamento deGramsci a unidade entre as funções técnico-militares e a política. Corrobora esse entendimentosua afirmação de que toda inovação orgânica naestrutura modifica organicamente as relaçõesabsolutas e relativas no campo internacional pormeio de suas manifestações técnico-militares(GRAMSCI, 1975). Dito de outra forma, asquestões bélico-militares estão ligadas àsmodificações estruturais e políticas ocorridas nassociedades. Trata-se de ponto em que Gramsci eClausewitz convergem, embora cheguem a essasconclusões em linhas de raciocínio bem distintasentre si.

Uma tipologia incompleta, não exaustiva, daguerra como metáfora da política na obra carceráriade Gramsci leva às noções de guerra de posição eguerra de movimento. A primeira é característicadas democracias modernas, na qual a complexida-de da sociedade civil. Por outras palavras, aestrutura produtiva e social complexa constitui,metaforicamente, trincheiras para assalto aoaparelho estatal, a sociedade política. A estruturadas sociedades “ocidentais” tem uma estruturacomplexa e resistente às crises, depressões. A

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análise gramsciana se insere em contexto maisamplo da discussão da tradução da revoluçãorussa para o Ocidente. Por conseguinte, coloca-seum ponto central na reflexão de Gramsci sobre anatureza da luta política a ser empreendida comtal objetivo. É sugestivo que as relações de forçasejam distintas na Rússia e no Ocidente com oobjetivo da revolução. Ressalte-se que “Ocidente”e “Oriente”, parte de um todo separável somentemetodologicamente por Gramsci, também sãometáforas e não se baseiam em critériosgeográficos. Eles se referem à complexidade dasociedade civil, na qual a oriental é menoscomplexa por oposição à ocidental.

Lutar na perspectiva da guerra de posição ouguerra de movimento - par conceitual tambéminseparável e pertencente a um todo - não éexatamente uma escolha e sim decorrência daanálise de forças de um momento histórico.Somente a superioridade de forças de um oponentepermite escolher a natureza da luta, se guerra demovimento ou guerra de posição. ConformeGalastri (2011), a avaliação histórica conjuntural deequilíbrio de forças das classes sociais na Europalevou Gramsci a tal avaliação na perspectiva da lutarevolucionária.

A perspectiva mais ampla de guerraapresentada por Gramsci, não somente comometáfora da política, mas como guerra no sentidoestrito, aparece em outro raciocínio sobre a guerrade posição. Mesmo tratando da guerra de posiçãocomo conflito interestatal, a característica doequilíbrio de forças e da complexidade paradeterminar a superioridade das forças referidascontinua como ponto característico. Ela é definidacomo o avanço da técnica militar no contexto daPrimeira Guerra Mundial - armas químicas, avião,submarino -, ponto que inviabiliza um cálculopreciso da potência de um Estado (GRAMSCI,1975). Esse raciocínio justifica a transformação,também na política, de uma guerra de movimentoa uma guerra de posição ou assédio. Em primeiromomento, a avaliação remete justamente ao pontoressaltado no entendimento da guerra de posiçãocomo metáfora da política: um equilíbrio de forçascomo ponto que caracteriza tal tipo de conflito,uma definição não precisa das forças referidas nocaso das classes sociais. No campo internacional,o avanço das forças produtivas incidiu na tecnologiamilitar e nas suas expressões técnico-militarestrazendo o equilíbrio ou imprecisão no cálculo depotência para todos os lados da luta.

Voltando ao tema da guerra de posição comoconflito no interior dos Estados e como metáfora dapolítica, a vitória na guerra de posição é definitiva,pois exige uma extraordinária concentração dehegemonia, de coesão interna, mais recursos,intervenção, sacrifícios, espírito inventivo epaciência. Isso porque se trata da vitória depois deum relativo equilíbrio de forças e de destruição decomplexa rede reforçada de trincheiras.

5 Conclusão

Foram esboçadas ao longo desse texto aspossibilidades de entendimento da guerra nosentido estrito como conflito interestatal violento naacepção clausewitziana e como conflito interestatalviolento e metáfora da política no veio gramsciano.Foi abordado que a guerra no sentido gramscianocomporta tanto o sentido estrito de conflitointerestatal, mais próximo e relacionável aClausewitz, como o de metáfora da política, distintodo general prussiano e que mostra uma abordagemparticular do comunista sardo no tema em pauta.

Passar-se-á a elencar possibilidadesinvestigativas futuras não abordadas neste artigo.

Uma hipótese a ser considerada parainvestigação futura é a tradução (no sentidogramsciano) da perspectiva maquiaveliana referenteà guerra e à política. Refere-se àquilo que Gramsci(1975) chama de “arte militar” e “arte política”. Oque ocorre em uma ocorre em outra para justificarnas sociedades civis complexas a transformaçãoda guerra de movimento em guerra de posição.Uma hipótese a ser investigada sobre a melhorcompreensão da relação entre guerra e políticaespecificamente remeteria a uma terminologiacomum a Maquiavel sobre tal arte da guerra.Conforme já escrito, não é a abordagempreferencial de Clausewitz entender a guerra comoarte. Fica o indicativo de que Maquiavel seja achave explicativa mais adequada.

Em que pese guerra e política sereminseparáveis na perspectiva clausewitziana,o general prussiano deixou indícios de que sepoderia pensar uma essência da guerra na qual elafosse concebida puramente, somente com amanifes-tação da violência. Isso aponta para outrahipótese a ser investigada futuramente: aespecificidade epistemológica do conceito deguerra clausewitziano que comportaria - em tese -um isolamento da guerra em face da política

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Notas:(1) Dois autores discutem a relação entre Gramsci eClausewitz: Ferreira (1986, 1994) e Coutinho (1987). Oprimeiro sugere uma validade da definição da guerra para aconceituação da política com vistas à compreensão dasações hegemônicas, mostrando pontos comuns dessas comas ações belicosas. O segundo critica brevemente a primeirainterpretação. Em seu entender, trata-se de uma leitura quevê Gramsci como uma variante da ciência da guerra. Issoseria um mal-entendido, uma abstração politológica queprescinde do historicismo absoluto característico da obra docomunista sardo (COUTINHO, 1987).(2) São usadas nesse trabalho a tradução de Vom Kriege tidacomo referência nos estudos clausewitzianos, aquela doalemão para o inglês elaborado por Michael Howard e PeterParet (CLAUSEWITZ, 1984), e a edição crítica dos cadernoscarcerários gramscianos organizada por Valentino Gerratana(GRAMSCI, 1975).(3) O maior representante de tal tradição é o historiador militarbritânico Henry Basil Liddell Hart (1991). Outro historiadorque integra tal tradição é John Keegan (1995).(4) Em outro momento foi esboçada a importância deClausewitz no contexto da obra de Marx e Engels, bem comoo forte parentesco intelectual de Lenin com as formulaçõesdo general prussiano desde o início do século XX (PASSOS,2012).(5) Curiosamente, Gramsci tomou por base para a metáfora daguerra de posição o fenômeno ocorrido a partir do fim dabatalha do Marne em 1914 e que perduraria nos frontesorientais e ocidentais até quase o final da Primeira GuerraMundial. Por outras palavras, foi um equilíbrio de forças emque nenhum dos lados se impôs de modo contundente e queas trincheiras permaneceram praticamente estáveis porlongo período (GALASTRI, 2011).(6) Consultar a respeito: Clausewitz (1982, 1986). Taisreferências correspondem a edições nas característicasmencionadas; a primeira simplesmente contempla somente oscinco primeiros livros, portanto, ignora o sexto, o sétimo e ooitavo livros; a segunda omite os livros cinco, seis e sete,além disso, traz de modo incompleto o livro oito.(7) Em outro momento foi demonstrado como a lógica daguerra é aquela da política e sua gramática, suaespecificidade ou regras próprias concernem à violência(PASSOS, 2005).(8) Consulte-se o aparato crítico de Valentino Gerratana aos“Quaderni del Carcere” à página 2976 (GRAMSCI, 1975).

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Números anteriores das publicações do Curso deEconomia - Informe Econômico e Texto de Discussão -, bem como informaçõessobre o referido Curso, encontram-se no site da UFPI, na página do DECON: www.ufpi.br/economia.

Os artigos foram revisados, respeitando-se o estilo individual da linguagem literária dos autores, conforme a 5.ª edição do VocabulárioOrtográfico da Língua Portuguesa (VOLP, 2009), aprovado pela Academia Brasileira de Letras.

Esta publicação possui classificação Qualis, sistema de avaliação CAPES, nas áreas: Economia, Interdisciplinar, História, Serviço Social,Filosofia, Ciência Política e Relações Internacionais, Ciências Ambientais, Sociologia e Geografia. Mais informações: WebQualis.

* Professor da Universidade Estadual Paulista deMarília (SP) e Professor Colaborador de Pós-Graduação em Ciência Política da UniversidadeEstadual de Campinas; pesquisador e colíder doGrupo “Marxismo e Pensamento Político” do Centrode Estudos Marxistas da Universidade Estadual deCampinas.

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