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ISAÍAS CAMINHA LIMA BARRETO

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Page 1: RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAÍAS CAMINHA LIMA BARRETO

RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAÍAS CAMINHA

LIMA BARRETO

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Lima Barreto e o Pré-Modernismo Afonso Henriques de Lima Barreto –

estreia: 1909 : Recordações do Escrivão Isaías Caminha.

Marxista por adoção, situa-se nos padrões da Literatura Engajada : registro crítico da vida sociopolítica durante os primeiros momentos da República

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13 de maio de 1881, no Rio de Janeiro Filho de mestiços. Recebeu o nome do

padrinho, o Visconde de Ouro Preto. Aos sete anos de idade, perdeu a mãe. Ao ser proclamada a República, o pai de Lima Barreto foi demitido da imprensa nacional.

Em virtude da proteção do padrinho, ao completar os estudos secundários, ingressou na faculdade de Engenharia Civil da Escola Politécnica, no ano de 1898.

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Ao longo do curso, uma vocação se impôs de forma gritante: a Literatura.

Culto, mas sem influências ou dinheiro, o mulato Lima Barreto ingressou no jornalismo e, por intermédio da crítica aos profissionais da área, denunciou as injustiças sociais e ideológicas que marcaram a sociedade de seu tempo .

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Um pré-Modernista  A crítica daquele tempo acusou “o mulato

com nome do primeiro rei português” de desleixo frasal, e estilo demasiadamente popular.

O Pré-Modernismo não chegou a efetivamente antecipar a densidade temática e a revolução da linguagem do Modernismo, mas refletiu, e em especial em Lima Barreto, a busca de liberdade formal e a preocupação de retratar o social e o indivíduo inserido no meio em que ele vive.

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Graças à prática jornalística, conseguiu um estilo mais despojado, longe da tendência parnasiana que invadia as Letras na época. A adjetivação torna-se econômica, a linguagem flui com clareza e precisão.

Com esse estilo, compõe uma crítica ácida à realidade dos veículos de comunicação impressa de sua época, em especial, d’O Globo, jornal em que o personagem Isaías Caminha trabalha como contínuo e posteriormente como repórter.

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“Isaías é o narrador e o personagem principal da obra, transformando-se, no decorrer da narrativa, numa espécie de alter ego do escritor que lhe deu conformação, pois nele e através dele pode o leitor contemplar boa parte da vida, das ilusões e das ideologias de Lima Barreto”

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Um novo modo de ver o mundo: pelas lentes da literatura engajada

Mostrando o lado obscuro da sociedade, por detrás da acidez do discurso barretiano, residia a eterna esperança de quem acreditava que, via Literatura, seria possível modificar o que estava posto.

No espaço da obra, dá-se uma verdadeira guerra entre diferentes enunciados: um diálogo-protesto em que o enunciado individual é moldado pelas relações de força envolvidas no diálogo social. A língua, nesse cenário, é o canal da ideologia, que se deixa perceber através dos enunciados.

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E justamente por propor um olhar diferente e contrário aos valores da sociedade em que vivia, Lima Barreto foi relegado ao esquecimento.

Tal rejeição encheu-o de mágoa e terminou por fazer da bebida sua companheira inseparável, capaz de, mesmo momentaneamente, fazê-lo esquecer de suas agruras. Esta acabou por vitimá-lo, a 03 de novembro de 1922. Sua morte prematura acabou entristecendo até mesmo anônimos que viam, nele, o porta-voz dos desventurados, conforme diálogo relatado a seguir.

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Durante o velório, aparecera um homem com um pequeno ramalhete de perpétuas.

Ninguém o conhecia (...) depois, mal contendo a comoção, descobriu-lhe o rosto, beijou-o na testa, que ainda recebeu algumas lágrimas. Uma pessoa da família aproximou-se e quis saber quem ele era.

- Não sou ninguém, minha senhora. Sou um homem que leu e amou esse grande amigo dos desgraçados.

(...) Soube-se então que várias demonstrações semelhantes fizeram a Lima Barreto outras almas reconhecidas.

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O marginal das Letras Em 1919, Lima Barreto candidata-se à vaga

aberta na Academia Brasileira de Letras, disputando-a com Humberto de Campos e Eduardo Ramos; conquistou somente dois votos.

“Eu sou escritor, e seja grande ou pequeno, tenho o direito a pleitear as recompensas que no Brasil oferece aos que há anos se distinguem na sua literatura (1921, em A Careta). Apesar de não ser menino, não estou disposto a sofrer injúrias nem a me deixar aniquilar pela gritarias dos jornais”, frisou. (SODRÉ, 1983, p. 337).

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Preconceitos e superficialidades 

Em Recordações do Escrivão Isaías Caminha, aborda-se, em primeiro plano, o preconceito racial. Segundo Lima Barreto, um indivíduo nas condições de Isaías Caminha, embora tivesse todas as condições intelectuais para vencer, poderia ser massacrado pelo preconceito.

  O segundo núcleo temático é a imprensa. Versa-

se sobre a hipócrita, corrupta, tirana, incapaz, desonesta imprensa do início do século que, segundo o narrador, estava muito longe de empregar intelectuais competentes. O romance retrata vários tipos: o jornalista, o político e o burocrata, extraídos dos contatos do autor com as redações de jornais da época e com repartições públicas.

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Críticas ao preconceito racial A tristeza, a compreensão e a desigualdade de nível mental do meu meio familiar, agiram sobre mim de modo curioso: deram-me anseios de inteligência. Meu pai, que era fortemente inteligente e ilustrado, em começo, na minha primeira infância, estimulou-me pela obscuridade de suas exortações. Eu não tinha ainda entrado para o colégio, quando uma vez me disse: Você sabe que nasceu quando Napoleão ganhou a batalha de Marengo? Arregalei os olhos e perguntei: quem era Napoleão? Um grande homem, um grande general... E não disse mais nada. Encostou-se à cadeira e continuou a ler o livro. Afastei-me sem entrar na significação de suas palavras; contudo, a entonação de voz, o gesto e o olhar ficaram-me eternamente. Um grande homem!...

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Com “anseios de inteligência” , decidiu ir à capital com o intuito de tornar-se doutor. Ele almeja esse título como se fosse a solução para todos seus problemas.

O espetáculo do saber de meu pai surgiu aos meus olhos de criança, como um deslumbramento.Pareceu-me então que aquela sua faculdade de explicar tudo, aquele seu desembaraço de linguagem, a sua capacidade de ler línguas diversas e compreendê-las constituíam, não só uma razão de ser de felicidade, mas também um titulo para o superior respeito dos homens.Sabendo, ficávamos de alguma maneira sagrados, deificados... Se minha mãe me parecia triste e humilde — pensava eu naquele tempo — era porque não sabia, como meu pai, dizer os nomes das estrelas do céu e explicar a natureza da chuva...

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Foi com esses sentimentos que entrou para o curso primário. Dedicou-se inteiro ao estudo. Brilhou, e, com o tempo, foram-se desdobrando as suas aspirações.

Acentuaram-se-me tendências; pus-me a colimar glórias extraordinárias, sem lhes avaliar ao certo a significação e a utilidade. Houve na minha alma um tumultuar de desejos, de aspirações indefinidas. Para mim era como se o mundo me estivesse esperando para continuar a evoluir...

A sua energia no estudo não diminuiu com os anos; cresceu sempre. A professora admirou-se e imaginou que lhe passava pelas mãos um gênio.

“Vai, Isaías! vai!... Isto aqui não te basta... Vai para o Rio!”

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Quando acabou o curso do liceu, demorou-se na sua cidade natal ainda dois anos. Um dia, porém, leu no jornal que o Felício, seu antigo condiscípulo, ingressara-se em Farmácia.

Ora o Felício! Pensei de mim para mim. O Felício! Tão burro! Tinha vitórias no Rio! Por que não as havia eu de ter também — eu que lhe ensinara, na aula de português, de uma vez para sempre, diferença entre o adjunto atributivo e o adverbial?

Passava por um largo descampado e olhou o céu. Nuvens cinzentas galopavam, e, ao longe, uma pequena mancha mais escura parecia correr engastada nelas. A mancha aproximava-se e, pouco a pouco. Viu-a subdividir-se, multiplicar-se; por fim, um bando de patos negros passou sobre a sua cabeça, bifurcado em dois ramos, divergentes de um pato que voava na frente, a formar um V. Era a inicial de “Vai”. Tomou isso como sinal animador de seu propósito audacioso. No domingo, de manhã, disse de um só jato à sua mãe:

— Amanhã, mamãe, vou para o Rio.

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Sua mãe nada respondeu, limitou-se a olhá-lo enigmaticamente, sem aprovação nem reprovação.

As cigarras puseram-se a estridular e vim vindo de cabeça baixa, sem apreensões, cheio de esperanças, exuberante de alegrias.A minha situação no Rio estava garantida. Obteria um emprego. Um dia pelos outros iria às aulas, e todo o fim de ano, durante seis, faria os exames, ao fim dos quais seria doutor!Ah! Seria doutor! Resgataria o pecado original do meu nascimento humilde, amaciaria o suplício premente de minha cor... Nas dobras do pergaminho da carta, traria presa a consideração de toda a gente. Seguro do respeito à minha majestade de homem, andaria com ela mais firme pela vida em fora. Não titubearia, não hesitaria, livremente poderia falar, dizer bem alto os pensamentos que se estorciam no meu cérebro.

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De noite, no teto da sua sala baixa, pelos portais, pelas paredes, Isaías via escrito pela luz do lampião de petróleo: — Doutor! Doutor!

Quantas prerrogativas, quantos direitos especiais, quantos privilégios, esse título dava! Podia ter dois e mais empregos apesar da Constituição; teria direito à prisão especial e não precisava saber nada. Bastava o diploma.

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Supus que adivinhava os perigos que eu tinha de passar; sofrimentos e dores que a educação e inteligência, qualidades a mais na minha frágil consistência social, haviam de trair fatalmente. Não sei que de raro, excepcional e delicado, e ao mesmo tempo perigoso, ela via em mim, para me deitar aqueles olhares de amor e espanto, de piedade e orgulho.

No dia seguinte, quando se despediu, sua mãe deu-lhe um forte abraço, afastou-se um pouco e olhou-o longamente, com aquele olhar que lhe lançava sempre, fosse em que circunstância fosse, em que havia mesclados, terror, pena, admiração e amor.

— Vai, meu filho, disse-me ela afinal. Adeus!... E não te mostres muito, porque nós...'

E não acabou. O choro a tomou convulsa e eu me afastei chorando.

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Assim, o protagonista segue paro o Rio de Janeiro, com algum dinheiro e a carta de recomendação.

Em sua trajetória para o Rio de Janeiro, um rapaz

loiro tem seu pedido atendido prontamente, mas para Isaías o que restou foi apenas uma resposta atravessada.

Teve um deslumbramento com a cidade ao pegar um barco que o levaria ao Rio de Janeiro – sentimento que foi logo desfeito.Em plena cidade, na praça para onde dava a estação, Isaías teve uma decepção. Aquela praça inesperadamente feia, fechada em frente por um edifício sem gosto, ofendeu-o como se levasse uma bofetada. Sentiu-se enganado pelos que representaram a cidade como bela e majestosa.

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A beleza que ele viu do mar não condizia com a realidade que estava de frente a ele. Isso pode ser uma metáfora com o que ele havia idealizado e o que realmente o esperava no futuro.

A Rua do Ouvidor, iluminada e transitada, em pouco diminuiu a má impressão que ele fez a cidade. Pouco antes de partir, recomendaram-lhe o Hotel Jenikalé, na Praça da República, de modesta diária, para onde ele se dirigiu no propósito de demorar os poucos dias exigidos para obter a colocação que lhe daria o Deputado Castro.

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Foi jantar. Jantou calado, de olhos desconfiados, baixos, erguendo-os de quando em quando do prato para as gravuras que guarneciam a sala, sem se animar a pousá-los na fisionomia de qualquer dos comensais. Não obstante isso, alguém, pelo fim do jantar, venceu a sua obstinação:

— O senhor veio a passeio? Perguntou-me.

— Não senhor, disse-lhe de pronto. Vim estudar.

— Estudar! — De que se admira? — De nada.

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Aquele homem - Senhor Laje da Silva - ia pondo em Isaías uma singular inquietação. A sua admiração tão explosiva ao seu projeto de estudo, as suas maneiras ambíguas e ao mesmo tempo desembaraçadas, provocavam-lhe desencontrados sentimentos de confiança e desconfiança.

Antes de deixar sua cidade natal, o objetivo de Caminha era encontrar um emprego fixo que lhe permitisse estudar e formar-se em medicina. Seu tio Valentim o havia recomendado para o Coronel da cidade do interior, que por sua vez o recomendou ao Deputado Castro no Rio de Janeiro. A promessa era um trabalho fixo.

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Dirige-se, no dia seguinte, para a Câmara. A sua simplicidade tinha julgado fácil falar a um deputado na Câmara, mas era proibido; só se trouxesse ingresso; contudo, o porteiro disse-lhe que era melhor procurar o doutor Castro na sua residência. Isaías foi, então, assistir à sessão para travar conhecimento com o misterioso trabalho de fazer leis para um país.

De fato, subi pensando no ofício de legislar que ia ver exercer pela primeira vez, em plena Câmara dos Senhores Deputados — augustos e digníssimos representantes da Nação Brasileira. Não foi sem espanto que descobri em mim um grande respeito por esse alto e venerável oficio. Lembrei-me daqueles velhos legisladores da lenda e da história: esses nomes todos que os povos agradecidos pela fecundidade e pela sabedoria de suas leis reverenciaram por dilatados anos, ergueram-nos à altura de deuses, consagraram-lhes templos magníficos.

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Foi com grande surpresa que não senti naquele doutor Castro, quando certa vez estive junto dele, nada que denunciasse tão poderosas faculdades. Vi-o durante uma hora olhar tudo sem interesse e só houve um movimento vivo e próprio, profundo e diferencial, na sua pessoa, quando passou por perto uma fornida rapariga de grandes ancas, ofuscante de sensualidade. Nada nele manifestava que tivesse um forte poder de pensar e uma grande força de imaginar, capazes de analisar as condições de vida de gentes que viviam sob céus tão diferentes e de resumir depois o que era preciso para sua felicidade e para o seu bem-estar em leis bastante gerais, para satisfazer a um tempo ao jagunço e ao seringueiro, ao camarada e ao vaqueano, ao elegante da Rua do Ouvidor e ao semibugre dos confins do Mato Grosso. Onde estava nele o poder de observação e a simpatia necessária para entrar no mistério daquelas rudes almas que o cercavam e o elegiam? Nada transpirava na sua preguiçosa e baça personalidade.

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Quando Isaías saiu da Câmara, do interior de um café, o Laje o chamou. Não estava só; acompanhava-o o doutor Ivã Gregoróvitch Rostóloff, jornalista a quem o protagonista foi apresentado.

Só, subindo a rua movimentada, Isaías pôs-se a interrogar-se sobre Gregoróvitch. De que nacionalidade era? Que espécie de moralidade seria a sua? Com aquele título burlesco de doutor em Línguas Orientais e Exegese Bíblica, quem poderia ser ao certo? Um bandido? Um aventureiro simplesmente? Ou um homem honesto, de sensibilidade pronta a fatigar-se logo com o espetáculo diário e que por isso corria o mundo?

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Não está... Se os senhores algum dia quiserem encontrar

um representante da grande nação brasileira, não o procurem nunca na sua residência. Seja a que hora for, de manhã, ao amanhecer mesmo, à hora do jantar, quando quiserem enfim, se o procurarem, o criado há de dizer-lhes secamente: Não está.

Saíra de sua cidade, cheio de entusiasmo, certo de que aquela carta, mal fosse apresentada, dar-lhe ia uma boa situação. Era essa a sua convicção, dos seus e do próprio coronel. Tinha-se lá, por aquelas alturas, em grande conta a força do doutor Castro nas decisões dos governantes e a influência do velho fazendeiro sobre o ânimo do deputado.

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As suas idas e vindas ao hotel repetiam-se e não o encontrava. Vinham-lhe então os terrores sombrios da falta de dinheiro, da falta absoluta. Voltava para o hotel taciturno, preocupado, cortado de angústias. Sentia-se só, só naquele “grande e imenso formigueiro humano”.

Foram de imensa angústia esses meus primeiros tempos no Rio de Janeiro. Eu era como uma árvore cuja raiz não encontra mais terra em que se apoie e donde tire vida; era como um molusco que perdeu a concha protetora e que se vê a toda a hora esmagado pela menor pressão.

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Oprimido com sua antevisão de misérias, de humilhações a tragar, Isaías vivia subdelirante. Toda tarde, repetia a visita, e mais uma vez voltava desalentado, para ficar na janela do hotel, desanimado, oprimido de saudades do sossego, da quietude, da segurança do seu lar originário. Vinha a noite aos poucos e ele continuava a pensar, excitando recordações. Seu pai cuja dor contida se escapava no seu olhar e na sua fisionomia transtornada.

Ele amou-me sempre, talvez me quisesse mais por causa das condições que envolviam o meu nascimento. Em público, olhava-me de soslaio, media as carícias, esforçava-se por fazê-las banais; em casa, porém, quando não havia testemunhas, beijava-me e afagava-me. Ele temia o murmúrio, entretanto toda a redondeza quase seria capaz de atestar em papel selado a minha filiação...

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Na casa particular do deputado...

Ainda hoje, depois de tantos anos de desgostos dessa relação continua pela minha luta íntima, precocemente velho pelo entrechoque de forças da minha imaginação desencontrada, desproporcionada e monstruosa, lembro-me — com que saudade! Com que frenesi! — do inebriamento que essa mulher deu aos meus sentidos, com o seu perfume violentamente sexual, acre e estonteante, espécie de requeime das especiarias das Índias...

Doutor Castro o recebe friamente dizendo que era muito difícil arranjar empregos e mandou- o procurar no outro dia.

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— Você (mudou logo de tratamento) sabe perfeitamente como as coisas vão: o país está em crise, em apuros financeiros, estão extinguindo repartições, cortando despesas; é difícil arranjar qualquer coisa; entretanto...

Caminha depois descobre que o deputado estava de viagem para o mesmo dia da promessa e é tomado por um acesso de raiva:

“Patife! Patife! A minha indignação veio encontrar os palestradores no máximo de entusiasmo. O meu ódio, brotando naquele meio de satisfação, ganhou mais força [...] Gente miserável que dá sanção aos deputados, que os respeita e prestigia! Porque não lhes examinam as ações, o que fazem e para que servem? Se o fizessem... Ah! Se o fizessem!”

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Entrou no bonde. Um sujeito deu-lhe um grande safanão, atirando-lhe o jornal ao colo, e não se desculpou. Esse incidente fê-lo voltar de novo aos seus pensamentos amargos, ao ódio já sopitado, ao sentimento de opressão da sociedade inteira...

Até hoje não me esqueci desse episódio insignificante que veio reacender na minha alma o desejo feroz de reivindicação. Senti-me humilhado, esmagado, enfraquecido por uma vida de estudo, servir de joguete, de irrisão a esses poderosos todos por aí. Hoje que sou um tanto letrado sei que Stendhal dissera que são esses momentos que fazem os Robespierres. O nome não me veio à memória, mas foi isso que eu desejei chegar ser um dia.

Escrevendo estas linhas, com que saudades me não recordo desse heroico anseio dos meus dezoito anos esmagados e pisados! Hoje... É noite.

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Descanso a pena. No interior da casa, minha mulher acalenta meu filho único. A lua, no crescente, banha-me com meiguice, a mim e a minha humilde casa roceira. Por momentos deixo-me ficar sem pensamentos, envolto na fria luz da lua, e embalado pela ingênua cantilena de minha mulher. Correm alguns instantes; ela cessa de cantar e o brilho do luar é empanado por uma nuvem passageira. Volto às minhas reminiscências: vejo o bonde, a gente que o enchia, os sofrimentos que me agitavam,...

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Mulatinho A maior humilhação de Isaías, entretanto, veio quando foi

intimado a ir à delegacia. Por alto, soube de um roubo no hotel onde morava. Crente de que iria depor, sofreu ao perceber que ele era o acusado.

  Como estava acostumado com a valorização de sua condição,

possível através da fama de bom estudante, e de ser muito inteligente, ao ser chamado de 'mulatinho' pelo funcionário da delegacia, ficou ferido em sua susceptibilidade.

Ao ser agredido verbalmente, o delegado o encaminha para a

prisão. Só se livra da cadeia por ser conhecido do jornalista Gregoróvitch. Após o incidente, deixou o hotel, procurando abrigo em um quartinho de fundos. Lá conheceu o poeta revolucionário Abelardo Leiva, que se dizia socialista e era secretário do Centro de Resistência dos Varredores de Rua. O poeta vivia pobremente, mas curtia sua miséria, gabava-se de ter participado de duas greves e de ter conscientizado o operariado.

Através dele frequentou as reuniões do apostolado positivista e através dele desvendou o mistério da cidade que o acolheu tão friamente.

Page 35: RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAÍAS CAMINHA LIMA BARRETO

Decidi-me a lutar, a bater-me para chegar — aonde? — não sabia bem; para chegar fosse como fosse. Trabalharia — em quê? em tudo. E, enquanto considerava a delicadeza das minhas mãos e a fragilidade dos meus músculos, adormeci placidamente, satisfeito comigo e com a minha coragem e firme na resolução de procurar no dia seguinte qualquer ocupação, por mais humilde que ela fosse.

Page 36: RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAÍAS CAMINHA LIMA BARRETO

Com essa decepção e quase sem dinheiro para sobreviver, ele procurou outro tipo de emprego, não obtendo sucesso. Como já tinha feito alguns contatos na cidade, num momento de desespero desabafou com Gregoróvitch, romeno e jornalista do Globo. Este o indicou para trabalhar no jornal, onde se passa a maior parte de suas recordações no livro. Dentro da redação, deixou de lado suas ambições e esqueceu-se do seu sonho de cursar medicina. No período em que esteve na redação, percebeu uma grande superficialidade dentro do jornal, não entendendo o motivo daqueles jornalistas serem tão respeitados na sociedade sendo que não possuíam conhecimento suficiente para isso. O diretor do jornal era venerado por medo, não pela sua capacidade.

Page 37: RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAÍAS CAMINHA LIMA BARRETO

É notável o que se diz do crítico literário Floc (Frederico Lourenço do Couto) e do gramático Lobo - os dois mais altos ápices da intelectualidade do Globo. Lobo era defensor do purismo, de um código tirânico, de uma língua sagrada. Acaba num hospício, sem falar, com medo que o falar errado o tenha impregnado e tapando os ouvidos para não ouvir.

Floc "confundia arte, literatura, pensamento com distrações de salão; as suas regras estéticas eram as suas relações com o autor, as recomendações recebidas, os títulos universitários, o nascimento e a condição social."

Page 38: RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAÍAS CAMINHA LIMA BARRETO

Floc, o crítico literário do jornal, mata-se diante das pressões e Isaías surpreende o diretor em uma orgia quando foi transmitir essa notícia. Após esse fato, ele ganha confiança do diretor, um novo cargo e regalias que, após algum tempo, percebe que não o levaria a lugar algum. Começa a se sentir mal por ser uma sanguessuga de Loberant, o diretor. O que almeja, a partir do momento que descobre que jogou seu sonho fora, é casar e constituir uma família.

Page 39: RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAÍAS CAMINHA LIMA BARRETO

Por este tempo, Caminha havia perdido suas grandes ambições e acostumava-se com o trabalho de contínuo. Um incidente, porém, viria a mudar a vida do contínuo: Floc suicida em plena redação.

Estando a redação praticamente vazia, o redator de plantão chama Isaías e pede para que ele se dirija para o local onde Ricardo Loberant se encontra e jure que nunca dirá o que viu. Isaías vai ao local indicado e surpreende Loberant e Aires d'Ávila numa sessão de orgia e os chama apressadamente para o jornal.

Page 40: RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAÍAS CAMINHA LIMA BARRETO

  Loberant passa então a olhar com mais

atenção a Isaías e o promove a repórter. Divide confidências e farras. Isaías ganha a proteção e dinheiro de Ricardo Loberant. Depois da euforia inicial, Isaías se ressente.

  Lembrava-me de que deixara toda a minha

vida ao acaso e que a não pusera ao estudo e ao trabalho com a força de que era capaz. Sentia-me repelente, repelente de fraqueza, de falta de decisão e mais amolecido agora com o álcool e com os prazeres... Sentia-me parasita, adulando o diretor para obter dinheiro...

Isaías manifestou vontade de abandonar o Rio, satisfazer seus desejos mais simples, casar-se, ter filhos.

Page 41: RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAÍAS CAMINHA LIMA BARRETO

Eu sentia bem o falso da minha posição, a minha exceção naquele mundo; sentia também que, desajeitado para me adaptar, era incapaz de tomar posição, importância e nome. Sofria com essa “consideração” especial. Continuava, porém, a ir com ele aos teatros, às pândegas. Saiamos com raparigas, jantávamos nos arrabaldes pitorescos. Eu ia contente, mas o meu contentamento durava pouco. Não sei o que sentia de ignóbil em mim mesmo e naquilo tudo, que no fim estava sombrio, calado e cheio de remorsos. Desesperava-me o mau emprego dos meus dias, a minha passividade, o abandono dos grandes ideais que alimentara. Não; eu não tinha sabido arrancar da minha natureza o grande homem que desejara ser; abatera-me diante da sociedade; não soubera revelar-me com força, com vontade e grandeza... Sentia bem a desproporção entre o meu destino e os meus primeiros desejos; mas ia.

Page 42: RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAÍAS CAMINHA LIMA BARRETO

Recuando... Avançando... Depois de tanto sucesso, Isaías lembrava-se da vida

de sua mãe, da sua miséria, da sua pobreza, naquela casa tosca; lembrava-se... Lembrava-se de que deixara toda a sua vida ao acaso e que a não pusera ao estudo e ao trabalho com a força de que era capaz. Sentia-se repelente, repelente de fraqueza, de falta de decisão e mais amolecido agora com o álcool e com os prazeres...

Às minhas aspirações, àquele forte sonhar da minha meninice eu não tinha dado as satisfações devidas. A má vontade geral, a excomunhão dos outros tinham-me amedrontado, atemorizado, feito adormecer em mim com seu cortejo de grandeza e de força. Rebaixara-me...

Page 43: RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAÍAS CAMINHA LIMA BARRETO

O suposto caráter autobiográfico da obra Pela crítica que empreendeu, a trama do romance

se constrói como a extensão dos dramas do escritor, acerca de sua condição de mulato e das dificuldades que teve de enfrentar na preconceituosa sociedade carioca do final do século XIX e início do século XX.

Considerado um dos precursores do Modernismo, ironicamente, Lima Barreto falece justamente no ano da Semana de Arte Moderna, 1922. A prosa marcada pela ironia e pela contestação ao status quo, afirma-se na época e tem o Rio de Janeiro, capital recente do país, como principal fonte instigadora de contestação.

Page 44: RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAÍAS CAMINHA LIMA BARRETO

Agressivo e verídico Sustenta-se a tese de que a obra é uma sátira

ao Correio da Manhã, à época o jornal mais influente e por isso, mais retratável.

De acordo com o autor, na primeira edição, revela o nome verdadeiro de um dos personagens principais do romance: Frederico Lourenço do Couto, o Floc, responsável pelas crônicas literárias era, na vida real, João Itiberê da Cunha, o Jic, do Correio da Manhã. Tal premissa se confirma na passagem do livro, que descreve o suicídio deste, fato que Isaías descreve como se pudesse compreender/ ler o que, naquele momento, o crítico estava sentindo.

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Floc esteve um instante com a cabeça entre as mãos, parado, tragicamente silencioso; depois, levantou-se firmemente, dirigiu-se muito hirto e muito alto para um compartimento próximo. Houve um estampido e o ruído de um corpo que cai. Quando penetramos no quarto, eu, o paginador e dois operários, ele ainda arquejava. Em breve morreu. Havia um filete de sangue no ouvido e os olhos semicerrados tinham uma longa e doce expressão de sofrimento e perdão. Caído para o lado estava o revólver, muito claro e brilhante na sua niquelagem, estupidamente indiferente aos destinos e às ambições.

Diante de sua demora para redigir um texto, o chefe da oficina volta à redação, e assim se dirige ao famoso crítico:- “Seu” Couto!! (BARRETO, 1909, p. 123), sendo que, na redação do Correio, segundo Barbosa Sobrinho, Jic era chamado pelos superiores de “Seu” Cunha.

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Assim, o Correio da Manhã era atingido duramente pela pena do romancista, que o descrevia qual um museu de mediocridades, tendo à frente um diretor violento, mestre de descomposturas, destruindo reputações em nome da moral, mas que não passava, na realidade, de um corrupto e devasso.

Ainda de acordo com Barbosa, em Recordações, figuras influentes nos âmbitos jornalístico e literário nacional no início do século XX foram satirizados.

No entanto, há quem refute a tese de que o

romance seja autobiográfico, alegando que as semelhanças entre o autor e o personagem Isaías Caminha são poucas. Tal aspecto pode ser vislumbrado no trecho a seguir:

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O autor narrador é tomado de uma apatia e se deixa engolir pelo mundo mesquinho que inicialmente criticara; o escritor-criador, ao contrário, fez da Literatura sua razão de existir e foi coerente com seu projeto de arte militante até o fim da vida, conforme atestam todos os seus escritos. É certo que um dos intentos do escritor era mostrar que “um rapaz nas condições de Isaías, com todas as disposições, pode falhar, não em virtude de suas qualidades intrínsecas, mas batido, esmagado, prensado pelo preconceito”.

O protagonista Isaías Caminha tornou-se jornalista por acidente (assim como casualmente entrou como contínuo na redação d’O Globo), ao passo que Lima Barreto exerceu a profissão por vontade própria e com muita galhardia. Assim, se ele colocou o ambiente jornalístico e seus figurões foi para escandalizar e chamar a atenção para a sua narrativa e não para produzir um documento autobiográfico (RODRIGUES, 2001, p. 5).