newton_bignotto_41-58 arendt da revolução

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    NewtonBign

    otto*

    Hannah Arendt e a Revoluo Francesa

    Professor do Departamento de Filosofia da UFMG. Bolsista de Produtividade do CNPq.*

    Resumo

    O artigo trata, em primeiro lugar, das observaes feitas por Arendt emSobrea Revoluoa respeito dos acontecimentos que mudaram a Frana no final do

    sculo XVIII. Damos destaque ao fato de que ela procura entender a RevoluoFrancesa, sobretudo, a partir das posies de Robespierre, e de suas ligaes como pensamento de Rousseau. Reconhecendo as limitaes historiogrficas do livro,

    procuramos mostrar que a grande contribuio que ele d ao pensamento polticocontemporneo sua afirmao de que toda fundao de um novo regime de leisdepende no apenas de sua traduo na forma de uma Constituio, mas tambmde seu enraizamento simblico e imaginrio. Essa afirmao nos leva conclusode que no h para Arendt uma cincia da fundao como pretendem alguns posi-tivistas jurdicos do sculo XX.

    Palavras-chave: Revoluo francesa . Robespierre . Rousseau . fundao .constituio

    Abstract

    This article analyses, initially, the observations about French Revolution in Arendts

    On Revolution. We pay attention to the fact that she tries to understand the eventsfrom de point of view of Robespierre and Rousseaus philosophy. Even if we recogni-ze the historiographical problem of her book, we try to show that she gives a greatcontribution to contemporary political philosophy with her theory about foundationof new political regimes as creation of a new Constitution. We should notice also

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    that the recognition of symbolic and imaginary aspects of the process of creating new

    laws is an important part of her theory. This observation led us to conclude that,for Arendt, there is no science of foundation as we found in some positivist thinkersin the XX century.

    Key-words: French revolution. Robespierre. Rousseau. foundation.constitution

    Quando foi publicado em 1963Sobre a Revoluono conheceu de imediatoo sucesso de outros livros da autora, embora tenha sido resenhado em vrio

    jornais e revistas.1 Escrito num contexto no qual as disputas entre marxistase liberais dominavam o cenrio do pensamento poltico ocidental, Arendt seprops a trilhar um caminho diferente daquele das correntes de pensamentdominantes. Como mostra Wellmer, o propsito principal do livro mostrarque tanto democratas liberais quando marxistas no compreenderam o drama das revolues modernas porque eles no entenderam que o era realmete revolucionrio nessas revolues era sua tentativa de criar umaconstitutio

    libertatis.2

    Com isso, a pensadora colocava no centro de suas consideraessobre as revolues a noo de liberdade poltica. Ela indicava um caminhopara se pensar os acontecimentos dos ltimos sculos em alguns pases lude uma ideia, que parecia estar na contramo dos que insistiam na necessi-dade de interpretar a liberdade na modernidade como algo primariamenteligado sustentao dos direitos individuais. Para entender o sentido dessadmarche, deveramos recorrer no apenas aoSobre a Revoluo, mas tambma escritos que o precederam, comoA condio humanaeEntre o passado e o

    futuro, que fornecem as bases para algumas ideias que esto no centro do

    pensamento arendtiano.Nosso propsito nesse artigo, no entanto, mais modesto e se limita a

    tentar esclarecer o alcance e os limites das anlises feitas por Arendt sobreRevoluo francesa e o impacto que esse tema tem em sua teoria poltica esentido mais amplo. Particularmente, vamos nos preocupar com a questoda fundao do corpo poltico e com os problemas que cercam esse tema nafilosofia poltica de nossa autora.

    Sylvie Courtine-Denamy.Hannah Arendt. Paris: Belfond, 1994, p. 339.

    Albrecht Wellmer. Arendt on revolution. In: Dana Villa (org).The Cambridge Companion to Han-nah Arendt. Cambridge: Cambridge University Press, 2000, p. 220.

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    TradicionalmenteSobre a revoluo lido com um escrito sobre o fenme-

    no revolucionrio moderno, ancorado na comparao entre as duas revolu-es do sculo XVIII: a americana e a francesa. Mesmo sem adotar a posiradical de Habermas, que chega a falar de uma boa revoluo (a americae de uma m revoluo (a francesa),3 evidente que a obra se apoia numacomparao entre os dois acontecimentos e retira da sua fora. Transcorridas vrias dcadas desde sua publicao, possvel dizer que observaeshistricas contidas no livro tanto sobre a revoluo americana quanto sobra revoluo francesa foram superadas pelos estudos publicados desde o arecimento dos trabalhos pioneiros de Gordon Wood4 e de Bailyn5 sobre ahistria americana do sculo XVIII e de Furet6 sobre a Frana. Abordar, noentanto, o livro de Arendt a partir de um debate sobre a historiografia maisrecente sobre o fenmeno revolucionrio pode produzir um resultado poucelucidativo na medida em que podemos acabar caindo na armadilha de prduzir a hermenutica de um texto de um ponto de vista que nem mesmo sautor considerava como sendo o mais importante.7

    Nossa estratgia ser a de procurar compreender os argumentos princi-pais de Arendt sobre a Revoluo francesa e as consequncias tericas das

    posies por ela adotadas a respeito dos acontecimentos que sacudiram osculo XVIII. Com isso no estamos descartando, ou considerando invlida,a leitura comparativa entre as duas revolues como forma de esclarecimedo sentido da obra. Em grande medida foi esse o caminho escolhido pelapensadora para apresentar seus argumentos e certamente ele ainda podemostrar fecundo para uma hermenutica do texto. Acreditamos, no entantque ao realizar nossas anlises a partir de um recorte diferente, podemosalcanar uma compreenso maior de algumas proposies centrais da obre tambm de suas limitaes. A Revoluo francesa oferece um objeto in-

    Sylvie Courtine-Denamy.Hannah Arendt, p. 343.

    Gordon Wood.The creation of the American republic. 1776-1787.New York, London: W W Norton& Company, 1969.

    Bernard Bailyn.The ideological origins of the American Revolution. Cambridge: The Belknap Press ofHarvard University press, 1967.

    Franois Furet, Denis Richet.La Rvolution franaise.Paris: Hachette, 1965.

    Nesse sentido estamos de acordo com as observaes de Simona Forti, sobre o fato de que dificilmente Arendt no teria conscincia dos limites historiogrficos de seu trabalho, mesmo ludo que fora publicado at ento. Simona Forti.Hanah Arendt tra filosofia e politica. Milano: Mon-dadori, 1996, p. 236.

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    teressante por ser ao mesmo tempo o acontecimento que segundo Arendt

    mais influenciou a modernidade e o retrato de um processo que no atingiuplenamente seus fins por no ter sido capaz de erigir uma forma de governobaseada na liberdade.

    Nossa hiptese que o tema da fundao constitui o ncleo de sua ar-gumentao e que ele conserva sua pertinncia e coerncia mesmo diantedas peculiaridades da anlise histrica das revolues realizadas por nossaautora. Por esse caminho, acreditamos poder elucidar o sentido do confrontde Arendt no apenas com liberais e marxistas, mas tambm com as cor-rentes de pensamento que no curso do sculo XX procuraram estabelecer oparmetros de uma teoria positiva do direito, baseados na ideia de que umaConstituio o produto puramente racional da escolha de princpios e desua traduo institucional. Acreditamos que o recurso Revoluo francesafavorece a demonstrao dessa hiptese.

    I

    Sobre a Revoluocomea com a afirmao de que o objetivo das revoluessempre foi a liberdade.8 Embora essa afirmao possa soar banal, ela ter umaimportncia capital na argumentao da autora. preciso lembrar que Arendizia que a liberdade confere sentido poltica e alertava para o fato de queconsiderar a poltica como um meio de assegurar as provises vitais da so-ciedade e a produtividade do livre desenvolvimento social pode se constituna porta de entrada para regimes extremos, que ameaam a prpria vida, adestruir toda possibilidade de convvio baseado na diferena e na pluralida-

    de.9

    Ao associar as revolues liberdade poltica, Arendt fornece a chavepara a compreenso de aspectos essenciais de seu pensamento. Ela nos ajua entender o risco inerente a todo processo revolucionrio, que tem sempreem seu horizonte a violncia. Ora, no h nada mais oposto poltica do qua violncia, segundo a pensadora.10 Com isso, identificamos os marcos usadospor ela para pensar a experincia revolucionria: poltica e violncia.

    Hannah Arendt.On Revolution.New York: Penguin Books, 2006, p. 1.

    Hannah Arendt.A dignidade da poltica.Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1993, p. 118. Traduo:Fernando Rodrigues.

    Hannah Arendt.On Revolution, p. 9.

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    So esses os limites que determinam o carter dos fenmenos revolucion

    e nos indicam seu sucesso ou seu fracasso. So eles que na lgica arendtiadevem nos orientar no momento em que refletimos sobre os acontecimentque marcaram a histria moderna depois das revolues do sculo XVIII. Dmaneira mais precisa, pensar a partir da oposio radical entre poltica e vilncia ajuda a situar a questo da necessidade que est no centro das reflepolticas desde ento.

    Para abordar o tema das necessidades Arendt se refere ao que chama dquesto social, definida como a irrupo na cena pblica das massas famtas, que procuram superar a pobreza que, segundo ela o estado constannecessidade e misria aguda cuja ignomnia particular reside em seu podedesumanizar.11 O que h de particularmente grave na pobreza o fato de elasubmeter os homens ao imprio de seus corpos. Essas observaes tero ugrande repercusso nas dcadas seguintes publicao deSobre a Revoluo,sobretudo pelas implicaes no campo do que desde Foucault se convencinou chamar de biopoltica.12 No interior da obra analisada, elas conduzemArendt a dizer que o foco colocado nas necessidades materiais acabou porafastar a Revoluo francesa da busca pela liberdade.13 O efeito foi transformar

    a busca pela liberdade em luta pela liberao das necessidades. Essa oposientre liberdade e liberao ajuda a explicar porque a Revoluo francesa nconduziu formao de um regime que cumprisse as promessas que ajudaa colocar o processo de destruio do Antigo regime em marcha.

    Ora, como afirma Seyla Benhabib, nem a ausncia da questo social sozinha nem a ausncia da violncia so esteios sobre os quais se pode erigircontraste entre a histria das duas revolues.14 Permanecem vlidos os doismarcos extremos para se pensar a poltica, a saber, a liberdade e a violncia,mas no fica claro que a chamada questo social possa se incorporar nas

    anlises do fenmeno revolucionrio como um marco divisrio definitivo.Curiosamente Arendt nunca associou a luta pela superao da pobreza co

    Idem, p. 50

    A ideia de que a poltica contempornea se converteu em biopoltica foi primeiramente impor-tante na obra de Foucault, mas recebeu com Agamben um tratamento mais detalhado e sistetico. Ver Giorgio Agamben.Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: EditoraUFMG, 2002.

    Idem, p. 43.

    Seyla Benhabib.The reluctant modernism of Hannah Arendt.Lanham: Rowman & Littlefield Publi-shers, 2000, p. 160.

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    a luta pela igualdade. Presa oposio entre as duas revolues, baseada n

    ideia de que uma foi conduzida pela poltica e a outra pela questo social, eldeixou de lado no apenas o papel da chamada questo social na Revoluamericana, mas tambm o fato conhecido por Tocqueville, que ela cita vriavezes em seu livro, de que uma das coisas mais notveis na Amrica era aigualdade de condies, que d ao esprito pblico uma certa direo, ucerto aspecto s leis; aos governos novas mximas e hbitos particulares aogovernados.15

    H, portanto, na busca pela igualdade de condies materiais um aspectque no conduz necessariamente derrocada da poltica e sua converso ebiopoltica. Essa uma das possibilidades inscrita nos processos revolucio-nrios, mas no a nica. Se no caso da Frana a presena das massas empobrecidas forou a um abandono da causa da liberdade, como afirma Arendt,isso no significa que a igualdade de condies seja sempre o oposto daigualdade poltica entre cidados. Pode ser que na Amrica essa igualdadesocial estivesse na base do processo revolucionrio o que j foi contestadopor vrios estudiosos da Revoluo americana.16 O que importa sublinhar,no entanto, que a presena das massas empobrecidas na cena poltica po

    significar algo alm da vitria da liberao sobre a liberdade. Isso se evidenno clebre escrito de Sieys O que o Terceiro estado?, quando ele afirmaque o que esse segmento social queria, em primeiro lugar era ter nosEstadosGeraisuma influncia igual quela dos privilegiados.17 Pode-se arguir queosmiserveis18 aos quais se refere Arendt no correspondem exatamente aoTerceiro Estadode Sieys, e que a deriva para o Terror ocorreu justamentequando se perdeu o carter poltico das reivindicaes do comeo da Revoluo. Mas o prprio autor francs que nos alerta que a categoria deTerceiro

    Estadoabarca tudo o que pertence nao19 e no apenas uma categoria

    social especfica. Em outras palavras, no se trata de desconhecer o cartereconmico das demandas das camadas empobrecidas da populao francesno sculo XVIII, mas tambm no devemos negar-lhes o desejo de igualdad

    Tocqueville.De la dmocratie en Amerique.Paris: Flammarion, 1981, Tomo I, p. 57

    Seyla Benhabib.The reluctant modernism of Hannah Arendt, p. 155.

    Emmanuel-Joseph Sieys. Quest-ce que le Tiers tat?. In:crits politiques.Paris: ditions des

    archives contemporaines, 1994, p. 127.Hannah Arendt.On Revolution,p. 98.

    Idem, p. 121.

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    que, da maneira como era formulada por seus arautos, tinha uma explcita

    conotao poltica e tocava de perto a questo da participao, que est ncentro do republicanismo arendtiano.20 A reivindicao por bens materiaispara a massa pobre pode ter se intensificado no curso da Revoluo, masestava presente desde 1789.

    Do ponto de vista histrico chama a ateno o fato de que Arendt se refia poucos personagens da Revoluo francesa. Em dado momento ela faz oelogio de Sieys, sobretudo por sua separao entre o poder constituintepoder constitudo, que poderia ter ajudado aos revolucionrios a fugir doparadoxos postos pela criaoex-nihilode uma nova forma de governo.21 Maso elogio do pensador no significa o elogio da Assembleia Constituinte22 enem mesmo uma apreciao mais cuidadosa da atuao dele na cena poltfrancesa. Ao contrrio, Arendt concentra quase toda sua ateno na figuraRobespierre, que aparece como uma figura emblemtica de toda a Revolue de seu fracasso.

    Robespierre encarna com perfeio, aos olhos de Arendt, o momento deconverso da revoluo em um processo permanente de busca pela satisfao das demandas materiais. Ao trocar a procura da liberdade pela busca

    que ele chamou de direito dossans-culottes, o jacobino abriu a brecha pelaqual passariam vrias das revolues modernas e determinou o sacrifcio dideais do sculo XVIII no altar da necessidade.23 Esse processo foi realizadona linguagem de seu tempo e s por isso pde ser compreendido e tornar-efetivo. Robespierre mobilizava o tempo todo o recurso vontade do povque coincidia para ele com avontade geral. Arendt afirma que esse movi-mento produziu um giro da ideia de repblica para aquele de povo, o quedesobrigava os revolucionrios a procurar um assento institucional para suaes.24 Mantida a referncia ao povo, a revoluo poderia ser permanente

    a virtude poltica o apangio daqueles que sabiam escutar as demandas deente abstrato: o Povo. Oincorruptvelbuscou encarnar uma virtude perfeita,

    Ver a esse respeito: Margaret Canovan.Hannah Arendt.A reinterpretation of her political thougth.Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p. 232-243.

    Hannah Arendt.On Revolution, p. 153.

    Para um estudo sobre a importncia da Assembleia Constituinte, verTimothy Tackett.Par la

    volont du peuple. Paris: Albin Michel, 1997.Idem, p. 50.

    Idem, p. 67.

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    visando guardar na memria o bem do Povo, a identificao da vontade

    individual com aquela do povo.25 Nesse movimento destruiu qualquer possi-bilidade de que o processo revolucionrio pudesse se estabilizar por meio duma Constituio escrita. O carter ilimitado26 da virtude que Robespierrepretendia encarnar acabou levando-o a uma verdadeira caa aos hipcritasComo mostrou Arendt: Foi a guerra contra a hipocrisia que transformou aditadura de Robespierre num Reino do Terror.27

    No queremos negar o papel de Robespierre no desencadeamento doTerror e nas consequncias funestas que os meses dominados pelos jacobi-nos tiveram no destino da Revoluo francesa.28 As anlises de Arendt semostraram no apenas justas, mas premonitrias do que aconteceria depoisno sculo XX. O que se deve criticar a identidade subentendida entre Re-voluo e Terror, ou a ideia de que a Revoluo francesa estivesse compro-metida desde o incio com esse destino. O que contestvel no apenas aidentificao mencionada acima, mas, sobretudo, a ideia de que essa seriaalguma maneira a principal herana deixada pelo processo iniciado em 178de desmantelamento doAntigo Regime. No se trata de reescrever a histriada Revoluo francesa, mas de afirmar que ela legou para a posteridade alg

    mais do que o desenlace sangrento dos anos do Terror. Em particular, elapermitiu compreender que a liberdade, esteio dos governos republicanos, nlinguagem de Arendt, precisa ser vinculada questo da igualdade, e talveztambm da fraternidade, se quiser ser mais do que uma quimera para a mairia dos povos modernos.

    As referncias a Robespierre nos ajudam a entender as relaes de Arencom o pensamento de Rousseau. Um dos pontos importantes de sua argu-mentao a afirmao de que avontade geralde Rousseau devia tomar olugar da antiga noo de consentimento ou devontade de todosna linguagem

    do mesmo autor.29 Essa percepo da oposio entre a noo de consenti-mento, cara a Arendt, e sua interpretao do contrato de Rousseau comosacrifcio dos interesses privados que significaria a submerso dos indivduonum corpo nico, ajuda a compreender sua ideia do mundo pblico como

    Idem, p. 65.

    Idem, p. 80.

    Idem, p. 89.Sobre esse tema, ver Patrice Gueniffey.La Politique de la Terreur. Paris: Gallimard, 2000.

    Idem, p. 66.

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    lugar da pluralidade e da preservao da liberdade, mas sugere uma comp

    enso ambgua doContrato socialde Rousseau.30 Em primeiro lugar, devemosrecordar que o pensador de Genebra diz noContrato socialque:

    Os engajamentos que nos ligam ao corpo social s so obrigatriosporque so mtuos, e sua natureza faz com que ao cumpri-los nopodemos trabalhar para os outros sem trabalharmos tambm parans mesmos.31

    Devemos observar que o contrato coloca o interesse comum no centro e oprevalecer em seu conflito com as vontades particulares. Mas essas no sextintas ou consideradas negativas em todas as ocasies. Somente no queao que comum, e que deve ser reconhecido como tal no momento mesmdo pacto, o soberano prevalece. No restante, os indivduos continuam a ex-pressar seus desejos e a defender seus interesses. O soberano coloca um fa essas manifestaes apenas quando elas ameaam o interesse comum,como conclui Rousseau:

    (...) o poder soberano, por mais absoluto, por mais sagrado, pormais inviolvel que ele no ultrapassa e no pode ultrapassar oslimites das convenes gerais. Todo homem pode dispor plenamentedaquilo que lhe foi deixado pelas convenes de seus bens e de sualiberdade.32

    Alm disso, como mostrou Baczko,33 a obra do filsofo de Genebra foi mar-cada pela tenso entre o indivduo e sua comunidade e pelo tom afetivo quele sempre pretendeu conferir s comunidades humanas, desde a famlia a

    o Estado. No h lugar, portanto, para supor uma concordncia da parte dRousseau com a constituio de um aparato institucional que significasse ofim das liberdades individuais em toda sua extenso.

    Canovan.Hannah Arendt.A reinterpretation of her political thougth, p. 217.

    Jean-Jacques Rousseau. Du Contract Social. In:Oeuvres Compltes. Paris: Galliamard, 1964, VolIII, p. 373.

    Idem, p. 375.

    B. Baczko.Rousseau. Solitude et communaut. Paris, La Haye: cole Pratique des Hautes tudes etMouton &co, 1974.

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    Um dos pontos mais complexos e controversos dessa retomada do pen-

    samento de Rousseau a aproximao que ela faz entre as ideias do filsofe aquelas do mestre dos jacobinos. Em dado momento Arendt chega a dizerAvontade geralde Rousseau e de Robespierre sempre essa vontade divinaque tem necessidade apenas de querer para produzir uma lei.34 Deixandode lado a questo da interpretao da noo devontade geralem Rousseau,que no nos parece ser uma fora destinada a fazer desaparecer as vontadeindividuais em proveito de um entre abstrato,35 resta saber se de fato pode-mos realizar a aproximao estrita que Arendt parece sugerir entre Rousseae Robespierre. No h dvida de que o jacobino reivindica para si avontade

    geralde Rousseau. Esse gesto, no entanto, longe de singulariz-lo no seio domovimento revolucionrio o faz participar de uma corrente de pensamentoque por vezes inclua at os partidrios da monarquia, que fez do Genebrinoo guia para se pensar o problema da criao de uma forma de governo nascircunstncias surgidas com a ruptura de 1789. Sieys que nos debates daAssembleia Constituinte afirma: Uma associao poltica obra da vontadeunnime dos associados. Logo a seguir, ele conclui:

    Todos os poderes pblicos so sem distino, uma emanao da von-tade geral: todos vm do povo, quer dizer da nao. Esses dois termodevem ser sinnimos.36

    Rousseau de fato criou a linguagem davontade gerale de sua influncia nas-ceu o recurso ao povo como fundamento de todo o poder. Mas esse recursesteve longe de ser o apangio dos jacobinos. Ao contrrio, ele foi moedacorrente durante a Revoluo e talvez seja por isso queo incorruptvelpdelanar mo dele no momento de consolidar seu poder e conduzir a luta con-

    tra o que considerava os inimigos do processo revolucionrio. Ligar Rousseaa Robespierre por meio do recurso vontade geralpode levar a crer que haviauma perfeita identidade entre os dois personagens, que acabou por selar odestino da Revoluo, o que est longe de ser verdadeiro. Robespierre pro-

    Hannah Arendt.On Revolution, p. 175.

    Desenvolvemos esse ponto em Newton Bignotto.As aventuras da virtude. As ideias republicanas naFrana do sculo XVIII. So Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 163-175.

    Sieys. Preliminaires de la Conastitution. Reconaissance et exposition raisonne des droits delhomme et du citoyen. In: F. Furet e R. Halvi.Orateurs de la Rvolution franaise.Paris: Galli-mard, 1989, p. 1014-1015.

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    duziu por meio de suas aes, mas tambm em seus discursos, uma interp

    tao das ideias do Genebrino, que no foi certamente a nica nem mesma nica e mesmo a mais influente. Mesmo depois deTermidor, os francesescontinuaram a reverenciar a memria do filsofo de Genebra e a lig-la lpela liberdade e no ao Terror e suas terrveis consequncias. Isso no quedizer que a apropriao de suas ideias pelos jacobinos derivasse de um erde leitura. Os escritos de Rousseau foram lidos de vrias maneiras e foramapropriados pelos mais diversos grupos polticos, o que no quer dizer queeles no contivessem vrias possibilidade de leitura, inclusive aquela dos jcobinos. O que no nos parece razovel sugerir um caminho direto entreideias do filsofo de Genebra e o Terror comandado por Robespierre comoa melhor maneira para se compreender a Revoluo francesa e seus limite

    O breve percurso que fizemos at aqui indica que dificilmente podemostomar as anlises de Arendt a respeito da Revoluo francesa como uma hiria de seus principais momentos capaz de nos ajudar na compreenso de sdesenvolvimento complexo e multifacetado. Ao escolher os jacobinos, Robpierre em particular, como modelos dos revolucionrios e seus ideais comorepresentaes fieis e necessrias do caminho at ento seguido pelos pri

    pais atores envolvidos no processo de ruptura com a monarquia, ela fornecuma interpretao do sentido da Revoluo, mas deixa no ar a pergunta soo alcance das anlises oferecidas. Como procuramos mostrar, Arendt ofereuma viso muito especial dos eventos revolucionrios franceses, o que podimpedir a compreenso das nuanas e da complexidade de acontecimentoque, como ela mesma afirma, mudaram a cara da reflexo poltica moder-na. Essas observaes fazem eco s crticas que acompanharam o livro dessua publicao e foram formuladas tanto por historiadores como Hobsbawquanto por estudiosos como Robert Nisbet ou Enegrn.37

    Nossa questo saber se a crtica sua aproximao excessiva entre jaco-binismo e revoluo na Frana e o fato de que ela procura compreender o fnmeno revolucionrio francs a partir da distino entre o social e o polti suficiente para esclarecer os propsitos principais de seu livro. Sem abandonar a constatao da limitao de alguns de seus pontos de vista, vamomostrar que,para alm das questes historiogrficas, subjaz uma reflexosobre a questo da fundao do corpo poltico nas sociedades modernas, qpermanece vlida dentro do quadro conceitual que ela apresenta ao longode sua reflexo sobre os fenmenos revolucionrios na modernidade. Ness

    Simona Forti.Hanah Arendt tra filosofia e politica, p. 235-236.37

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    sentido, acompanhamos Simona Forti que prope que leiamosSobre a Revo-

    luosobretudo, como um texto de teoria poltica.38 Em nosso caso, vamosnos concentrar no problema especfico da fundao, que oferece um campofecundo para analisar a contribuio arendtiana para a filosofia poltica denosso tempo.

    II

    Se voltarmos nosso olhar para o primeiro captulo deSobre a Revoluo, va-

    mos ver que Arendt no se props a escrever uma histria das revolues.No resta dvida de que as apreciaes a respeito da histria da Revoluofrancesa interferem e, podemos dizer, prejudicam seus juzos a respeito dosacontecimentos do sculo XVIII, mas o fato principal que desde o incio desuas reflexes seu foco estava na ideia do fenmeno revolucionrio como unovo comeo. De maneira sinttica ela diz: A coincidncia da ideia de liber-dade e aquela de um novo comeo , pois, capital para toda compreenso drevoluo moderna.39 Assim, possvel realizar outro percurso analtico porseu escrito que, sem apagar as dificuldades geradas por sua visada singularRevoluo francesa, apontam para uma notvel contribuio no terreno dasdiscusses sobre a fundao das novas formas polticas. Como observa Gottsegen, preciso estar atento para a mudana do problema do consentimenpara aquele da fundao, para compreender o pensamento de Arendt.40

    Nesse terreno podemos dizer que Arendt estruturou seu pensamento emtorno de dois eixos: a questo da Constituio e aquela da dimenso simblica e imaginria da fundao. Nos dois casos a anlise do carter inovadorfenmeno revolucionrio que lhe permite explorar com fecundidade alguns

    temas, que fizeram parte das obras de muitos pensadores ligados tradiorepublicana. Em particular, sua ideia de que as revolues no podem serlidas como eventos necessrios da histria, que leva aproximao dos te-mas aludidos com aquele da possibilidade do ressurgimento da liberdade pomeio da ao dos homens na arena pblica.41 Como sintetiza Forti: A noo

    Idem, p. 238.

    Hannah Arendt.On Revolution, p. 19.

    Michael G. Gottsegen.The political Thought of Hannah Arendt. New York: State University of NewYork Press, 1994, p. 123.

    Simona Forti.Hanah Arendt tra filosofia e politica, p. 242-243.

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    de revoluo adquire assim seu contedo moderno de instaurao de uma

    nova ordem poltica.42No tocante ao primeiro tema, Arendt faz o elogio da Revoluo america

    por ter sido capaz de transformar em leis o sonho que alimentara os revolucionrios de viverem em uma terra livre:

    A Constituio americana consolidou definitivamente o poder da re-voluo e, como o objetivo da revoluo era a liberdade, ela foi o quBracton chamou deConstitutio Libertatis,a fundao da liberdade.43

    A capacidade de terminar as lutas pela liberdade por meio da redao de uConstituio parece ser o divisor de guas entre um movimento revolucio-nrio bem-sucedido e um movimento revolucionrio que se perde no terrorDe fato, esse o critrio que parece presidir a comparao entre as duasrevolues do sculo XVIII.44 Analisando os passos de Robespierre, Arendtvai concluir que sua incapacidade para terminar a Revoluo, ou seu temode ver ratificada a Constituio que fora elaborada pelos prprios jacobinosdepois do fracasso da chamadaConstituio girondina, conduziu-o ideia de

    revoluo permanente e da luta para derrotar todos os que acreditavamj era chegado o momento de tentar estabilizar a vida institucional da repca nascente. Os americanos, ao contrrio, souberam fugir dos perigos de utransformao sem fim, ao fazer da Constituio o marco de sua travessiadireo ao novo comeo.

    Em certos aspectos, as anlises de Arendt no fazem jus ao fato de quedesde Mirabeau, ainda naAssembleia Constituinte, passando por Condorcet eoutros membros do grupo dos girondinos, o desejo de terminar a revoluode fixar nas leis os marcos da liberdade fez parte do discurso revolucionri

    francs tanto quanto a ideia de revoluo permanente do discurso dos jacobinos depois de 1792. Suas consideraes, no entanto, e o fato de que elaescolha a questo da Constituio para levar a cabo a comparao entre avolues mostram que ela soube perceber que a grande virada da modernide ocorreu a partir do momento em que os homens perceberam que s umobra humana, produto de aes livres e por vezes contingentes, seria capa

    Idem, p. 244.Hannah Arendt.On Revolution, p. 145.

    Seyla Benhabib.The reluctant modernism of Hannah Arendt,p. 157.

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    dar forma ao sonho de viver em liberdade no interior de formas polticas qu

    eram o produto de um artifcio. Criticar a deriva da Revoluo francesa podeno ser a melhor maneira de compreender a dinmica dos acontecimentosque marcaram a cena poltica francesa depois da condenao e da execude Lus XVI.45 Mas esse caminho permite formular a questo da fundao apartir da aproximao entre o desejo de liberdade e a necessidade de dar foma institucional a esse desejo. Nesse sentido, o fracasso dos revolucionrifranceses mais importante do que o sucesso dos americanos, uma vez qdesvela o papel do texto constitucional na luta pela criao de uma forma dgoverno, que no podia recorrer a nenhuma forma estabilizadora proveniende uma longa tradio. Trata-se no apenas de afirmar a importncia das leio que seria uma banalidade, mas de colocar o problema de suas origens deum ponto de vista totalmente diferente do que guiara a experincia polticaat ento.

    O pensamento de Arendt estaria, no entanto, muito prximo daquele dealguns constitucionalistas contemporneos liberais e mesmo de alguns posivistas jurdicos se se limitasse a afirmar o papel determinante da Constituina construo das sociedades democrticas, que procuram traduzir institu-

    cionalmente a defesa da liberdade. A feitura de um texto constitucional estdeterminada no somente pelas ideias de seu tempo, mas tambm pelas codies objetivas que limitam as chances de sucesso e de fracasso de toda apoltica. nesse sentido que ela procura pensar o papel da questo socialna Frana. Arendt certamente levava em conta esses fatores, que podemosde chamar de objetivos, mas ela sabia que o caminho que une a revoluo liberdade muito mais tortuoso do que o que pode ser sugerido pelo simpleelogio da Revoluo americana. Aqui mais uma vez, o percurso sinuoso daRevoluo francesa pode ser muito mais elucidativo do que a suposta placi-

    dez da histria revolucionria americana. No podendo contar com os vastoterritrios do novo mundo, e nem com a homogeneidade existente entre oshabitantes das colnias, os franceses foram confrontados com dificuldadestais que no puderam ser superadas no curso dos anos revolucionrios. Nobastava um saber jurdico acumulado e nem mesmo a herana notvel do Ilminismo e de seus crticos. Era preciso um esforo extraordinrio para vencas foras do passado e os medos gerados pelas transformaes que se sucederam depois de 1789. Os franceses, na lgica arendtiana, fracassaram nes

    Michel Walzer.Rgicide et Rvolution. Le Procs de Louis XVI. Discours et controverses. Paris:Payot, 1989.

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    tarefa, mas expuseram aos olhos da modernidade a imensido do desafio

    espera os povos que decidem tentar um novo comeo.Ora, para Arendt os desafios enfrentados pelos revolucionrios no tm

    nada a ver com a maior ou menor capacidade para escrever um texto constitucional. A questo no de tcnica jurdica ou mesmo de cincia, mas dao. Se no fosse dessa maneira, Arendt seria mais uma pensadora consevadora repetindo velhas frmulas. Ocorre que ao iniciar uma revoluo, oshomens abrem as portas para dimenses do poltico que no se resumemregulao legal dos conflitos. Os revolucionrios se defrontam com a necessidade de um absoluto, que, ao mesmo tempo em que procura repor fora dalcance dos homens em suas aes ordinrias os fundamentos da liberdadcoloca-os diante da necessidade de evitar a vertigem que essa busca impComo resume a pensadora:

    A funo desse absoluto na esfera poltica era sempre a mesma: eledevia quebrar dois crculos viciosos, um aparentemente inerente obra legislativa dos homens e o outro petitio principii,que acompa-nha todo novo comeo, o que no plano poltico corresponde tarefa

    da fundao.46

    A fundao no se resume, portanto, redao de um novo cdigo, comoj afirmamos. Ao contrrio, ela exige o enraizamento fora do tempo de umobra que os homens sabem que tem a marca de sua finitude. A dificuldadede Robespierre no estava em perceber essa dimenso da fundao, mas sem como realiz-la. Ele procurou sanar essa dificuldade instituindo um novculto do Ser supremo e mantendo viva a chama da revoluo, por meio dum recurso frequente ao povo, que em sua abstrao lembrava a todos a v

    dadeira fonte da lei. Mas essa vertigem, nascida da percepo de que umcomeo uma tarefa gigantesca por ser tarefa de homens que devem pardeuses, acabou escapando ao controle dos atores e conduzindo ao Terror.fracasso da Revoluo francesa pode ser analisado a partir da incapacidade seus atores em fugir do crculo vicioso postos pela ideia de criao de uconjunto de leis que, ao mesmo tempo que reconhece sua origem humana,deve afirmar no plano do simblico e do imaginrio sua independncia dotempo presente.

    Hannah Arendt.On Revolution, p. 152.46

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    III

    Sobre a Revoluo um dos livros mais instigantes e polmicos de Arendt.Embora seja excessivo classific-lo como uma sntese de sua obra como fezGottsegen,47 inegvel que ele toca em um ponto crucial de suadmarcheenos ajuda a esclarecer um aspecto original de sua filosofia. Muitos intrpretafirmaram, no sem razo, que o captulo final da obra, que trata da tradirevolucionria surgida depois do sculo XVIII, permite fazer a ponte entre asreflexes sobre as revolues histricas e o pensamento da autora a respeitde nosso tempo. Nessas consideraes, a importncia acordada por ela ao

    tema dosconselhostem um papel fundamental por permitir visualizar no ce-nrio contemporneo a realizao de um de seus ideais mais caros: o aumeda participao dos cidados comuns na arena pblica de sociedades com-plexas.48 Sem negar a pertinncia dessas abordagens, parece-nos que o pro-blema da Constituio e de seus desdobramentos na vida pblica possuemuma atualidade que vai alm das crticas observadas por alguns intrpretesao liberalismo e ao marxismo, que alguns estudiosos colocam no centro dadmarche investigativa de nossa autora.49

    Em primeiro lugar, preciso notar a importncia da crtica feita ao pen-samento liberal, que desde o sculo XIX levou pensadores a colocar a noode utilidade no centro da reflexo poltica. Arendt no nega a importnciados interesses particulares e nem o fato existencial de que cada um de nsdeseja o melhor para si. Ao insistir na diferena entre vida pblica e vidaprivada, ela mostra que a defesa irrestrita dos direitos individuais ligados aomundo da necessidade no garantia suficiente para a manuteno da libedade poltica. Assim, embora Arendt tenha se equivocado na interpretaoalguns momentos da Revoluo francesa e tenha exagerado na atribuio d

    uma dimenso social s lutas dosmiserveis,para obter da repblica nascentesatisfao para suas necessidades, ela ofereceu um instrumental precioso ppensarmos o aparecimento de novas formas polticas no mundo moderno. Afrisar a importncia da Constituio para a criao de um regime republicanela ecoa o pensamento de Rousseau, que via na repblica antes de tudo um

    Michael G. Gottsegen.The political Thought of Hannah Arendt, p. 118.

    Sobre a questo, ver:Andr Duarte.O pensamento sombra da ruptura. Rio de Janeiro: Paz e Terra,2000, p. 299-317. Michael G. Gottsegen.The political Thought of Hannah Arendt, p. 120.

    Albrecht Wellmer. Arendt on revolution, p. 220-223.

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    regime de leis.50 Com isso, ela d o devido relevo aos espaos institucionais

    dentro dos quais vive a forma de governo democrtico-republicana. Mas elvai ainda mais longe ao negar que o problema da Constituio de natureapenas tcnica e jurdica - um negcio de especialistas como desejam muitAo mostrar a dimenso simblica e imaginria da criao de uma nova forpoltica, ela demonstra que o ato de fundao, que se consolida por meio dum texto constitucional, s ser capaz de assegurar a liberdade poltica sefor capaz de gozar da adeso e do apreo de todo o corpo poltico. Para quisso se efetive, preciso se expor aos riscos da ao, que o nico meio ptornar efetiva a conquista da liberdade e do interesse pblico como centrode nossas vidas em comum, pois, como ela afirma: da natureza mesmatodo comeo comportar uma medida de arbitrrio absoluto.51

    Situando-se em terreno muito prximo ao da tradio republicana, Aren-dt acabou carregando para o centro de sua obra a conscincia da importndos momentos iniciais de fundao de novos regimes. Ela abriu assim a viapara pensarmos os regimes livres e seus valores, distncia dos que negaa importncia da poltica diante da anlise econmica dos fenmenos sociae dos que veem nela apenas o fruto de decises e escolhas comandadas p

    razo. Com isso, Arendt renovou o pensamento republicano. Fez dele herdro das aspiraes libertrias das revolues do sculo XVIII, mas, ao mesmtempo, soube ver na deriva do Terror uma das possibilidades inscritas emmovimentos que perdem a capacidade de se guiar pela liberdade ao conduas transformaes sociais que muitas vezes so parte essencial dos procesrevolucionrios.

    Nesse sentido, suas referncias Revoluo francesa so preciosas porincorporar aos cenrios da poltica contempornea a possibilidade da des-truio da poltica no curso de processos que se iniciaram sob a bandeira

    da liberdade e da igualdade. Com ela o republicanismo ganha um lugar dedestaque entre as matrizes tericas mais fecundas para se pensar o mundcontemporneo. Nesse movimento, ela ofereceu uma alternativa s cinciasociais e ao positivismo jurdico, para dar conta dasbases das sociedadesdemocrticas numa era de dominao tecnolgica e de presena das mass

    Jean-Jacques Rousseau.Du contract social, p. 379. Jappelle dond rpublique tout Etat rgi par desloix, sous quelque forme dadministration que ce puisse tre: car alors seulement lintrt publgouverne, et la chose publique est quelque chose.

    Hannah Arendt.On Revolution, p. 198.

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    na arena poltica. Apontou tambm para uma via crtica da vida poltica con-

    tempornea que, ao mesmo tempo em que permite a compreenso dos riscde sua transformao pelo imprio da biopoltica, mostra os caminhos quepodem servir para nos ajudar a escapar da armadilha na qual se transformoo poder em nossa poca. No se trata, claro, de uma receita pronta para aao, mas da crena de que a liberdade permanece como possibilidade nohorizonte da condio humana.