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36 psique ciência&vida Neurociência S e os anos 1990 foram considerados a dé- cada do cérebro, verificamos atualmente a proliferação de informações sobre as des- cobertas neurocientíficas na sociedade, atraindo cada vez mais a atenção dos meios de comu- nicação e do público em geral, com matérias constantes sobre o assunto. A cada semana apa- recem “novidades” como a descoberta de um gene para algum transtorno ou uma área cere- bral responsável por uma compulsão ou algo do gênero. O objetivo deste artigo é verificar como todo este processo dinâmico e complexo vem afetando a Psicologia, especialmente a prática clínica. Devido à complexidade do tema, ressal- taremos apenas algumas pesquisas e estudos que julgamos relevantes para este objetivo. ATIVIDADE PSÍQUICA E CORPO A partir dos avanços das técnicas de neuroimagem foi possível constatar que toda atividade psicológica age em tecido nervoso, alterando o padrão da comunicação sinápti- ca no cérebro (Landeira-Fernandez & Cruz, 1998). Em experimento dos mais reconhecidos do final do século passado, Baxter demonstrou que o tratamento psicoterápico promoveu mo- dificações do tecido nervoso nas mesmas áreas em que foram apresentadas alterações no gru- po que se tratou apenas com fármacos (Baxter, 1992). Este estudo, e tantos outros realizados posteriormente, permitiu a afirmação de que a mudança do comportamento em psicoterapia se dá por meio da capacidade de alteração do padrão de funcionamento neural. Um dos mais reconhecidos neurocientistas da atualidade, o português Antônio Damásio, também descarta qualquer tipo de concepção imaterial da mente. Nossa capacidade de exibir imagens internas resulta de um conjunto de modificações nos circuitos de neurônios por meio de sinapses, formando representações neurais (Damásio, 1996). A formação das ima- gens não ocorre em um único local do cérebro e, sim, em sistemas localizados em áreas sepa- radas, mas dentro da mesma janela temporal, passando uma impressão de sincronicidade. A atividade entre estas áreas cerebrais e nossa me- mória de trabalho permite a representação das imagens durante certo tempo, permitindo-nos manipulá-las, realizando estratégias e conceitos, Recentes descobertas neurocientíficas têm afetado conceitos psicológicos e, principalmente, a prática clínica no consultório Para aplicar

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Por Marco Aurélio Mendes Neurociência

Se os anos 1990 foram considerados a dé-cada do cérebro, verificamos atualmente a proliferação de informações sobre as des-

cobertas neurocientíficas na sociedade, atraindo cada vez mais a atenção dos meios de comu-nicação e do público em geral, com matérias constantes sobre o assunto. A cada semana apa-recem “novidades” como a descoberta de um gene para algum transtorno ou uma área cere-bral responsável por uma compulsão ou algo do gênero. O objetivo deste artigo é verificar como todo este processo dinâmico e complexo vem afetando a Psicologia, especialmente a prática clínica. Devido à complexidade do tema, ressal-taremos apenas algumas pesquisas e estudos que julgamos relevantes para este objetivo.

AtividAde psíquicA e corpo A partir dos avanços das técnicas de

neuroimagem foi possível constatar que toda atividade psicológica age em tecido nervoso, alterando o padrão da comunicação sinápti-ca no cérebro (Landeira-Fernandez & Cruz, 1998). Em experimento dos mais reconhecidos do final do século passado, Baxter demonstrou

que o tratamento psicoterápico promoveu mo-dificações do tecido nervoso nas mesmas áreas em que foram apresentadas alterações no gru-po que se tratou apenas com fármacos (Baxter, 1992). Este estudo, e tantos outros realizados posteriormente, permitiu a afirmação de que a mudança do comportamento em psicoterapia se dá por meio da capacidade de alteração do padrão de funcionamento neural.

Um dos mais reconhecidos neurocientistas da atualidade, o português Antônio Damásio, também descarta qualquer tipo de concepção imaterial da mente. Nossa capacidade de exibir imagens internas resulta de um conjunto de modificações nos circuitos de neurônios por meio de sinapses, formando representações neurais (Damásio, 1996). A formação das ima-gens não ocorre em um único local do cérebro e, sim, em sistemas localizados em áreas sepa-radas, mas dentro da mesma janela temporal, passando uma impressão de sincronicidade. A atividade entre estas áreas cerebrais e nossa me-mória de trabalho permite a representação das imagens durante certo tempo, permitindo-nos manipulá-las, realizando estratégias e conceitos,

Recentes descobertas neurocientíficas têm afetado conceitos psicológicos e, principalmente, a prática clínica

no consultórioPara aplicar

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Por Marco Aurélio Mendes

MarcoAurélioMendes é psicólogo, psicoterapeuta cognitivo e diretor do Núcleo de Novas Abordagens (NUNAP), no Rio de Janeiro. Contatos: [email protected] / www.nunap.com.br.

Nota do autor: Agradecimentos especiais ao professor Landeira e ao professor José Ignacio Xavier.

Contatos: Landeira - [email protected] e José Ignacio Xavier

- [email protected].

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formando o processo que chamamos de pensa-mento. Desta forma, o pensamento não é me-tafísico nem etéreo. Ele tem uma base neural e material. A natureza das imagens percebidas e das imagens evocadas não é diferente, basean-do-se nas mesmas representações neurais.

Falando ainda de Damásio, o corpo é con-siderado como a referência de base para a cons-trução da identidade e da subjetividade huma-na. Não existe um processo puramente racional, com uma razão separada da emoção. A razão, ligada às áreas evolutivamente mais recentes do cérebro humano (neocórtex), não funciona ade-quadamente sem a qualidade gerada pelas emo-ções emergentes das estruturas evolutivamente mais antigas, subcorticais. Nosso corpo possui, para este autor, mecanismos pré-organizados e inatos, cujo objetivo é o de assegurar a nossa so-brevivência, e que classificam os acontecimen-tos em termos de ameaçador e não-ameaçador, prazer e desprazer, em função de seu impacto na nossa vida. Sua hipótese de um marcador somá-

tico para as emoções sugere que, se escolhermos uma opção e obtivermos uma resposta seguida de um estado corporal desagradável, nossos sen-timentos fazem com que este estado negativo proveniente da sensação somática desagradável marque esta imagem negativamente também. Assim, quando pensamos sobre determinada situação, nossa mente tende a descartar as ima-gens ligadas às situações desagradáveis, otimi-zando o processo de raciocínio e reduzindo o número de opções. Somente após este processo é que podemos realizar uma análise racional do tipo custo-benefício tradicional, aumentando assim a eficiência dessa mesma razão. O título de sua obra mais famosa, O Erro de Descartes (Companhia das Letras, 2000), é uma síntese de todo este processo: não é possível separarmos os processos cognitivos dos afetivos, entenden-do uma mente separada do corpo, uma mente desencarnada.

Médico e doutor em Psicologia pela Uni-versidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o

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mente e cérebro, de corpo e alma. A mente é uma propriedade emergente do corpo. Isto cor-robora a perspectiva reichiana de que o aparelho psíquico é regido por leis vegetativas”.

A perspectiva de que é a emoção que agrega valor à razão e de pesquisas apontando a impor-tância dos mecanismos subliminares na percep-ção (Vasconcellos & Machado, 2006), fez com que a racionalidade e o objetivismo tão caracte-rísticos da Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) começassem a ser questionados, dando suporte à chamada segunda geração das terapias cognitivas, como a Terapia do Esquema e a Psi-coterapia Cognitivo-Construtivista. A eficiência tão propagada pela Terapia Cognitiva pode ser expandida ao se incluir, além dos já tradicionais aspectos ligados à racionalidade, intervenções precognitivas valorizando a expressão das emo-ções e as questões ligadas ao vínculo estabeleci-do entre paciente e terapeuta (Vasconcellos & Machado, 2006). O objetivismo, como forma de apreensão da realidade, perde também o sen-tido para alguns teóricos já que o processo de conhecimento é apresentado como uma orga-nização ativa, pela existência de um sujeito que é construtor de suas cognições e não um mero receptor passivo das impressões causadas pelos objetos (Castañon, 2005).

Apego e psicobiologiA Apesar das primeiras pesquisas de Bowlby

e Ainsworth com o apego já estarem bastante consolidadas no meio acadêmico, as descobertas neurocientíficas têm reafirmado a importância do vínculo e da relação mãe-bebê. Bowlby acre-ditava que os mamíferos possuem padrões ina-tos de se vincularem às mães, sendo este sistema comportamental reforçado a partir das respostas de cuidado parentais. Schore (2002) propõe que o desenvolvimento do comportamento de ape-go explicaria a tendência de alguns indivíduos a desenvolver o chamado Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT). O estresse ligado aos maus-tratos na infância, especialmente até os dois anos de idade, estaria associado a fatores adversos no desenvolvimento cerebral e altera-ções nos sistemas de regulação biológica e hor-

Neurociência

pesquisador associado do Núcleo de Pesquisas Cognição & Coletivos (NUCC-UFRJ) José Ignacio Xavier acredita que a Neurociência endossa os conceitos do psicanalista Wilhelm Reich, considerado o precursor das abordagens corporais na Psicologia. “Reich foi o primei-ro a dizer que o self emerge do corpo, o que é justamente o que Damásio menciona quando elabora o conceito de proto-self, uma espécie de germe inicial do self, decorrente da aparição dos estados do corpo nos circuitos neurais, a partir das estruturas subcorticais. Se não houver a si-nalização dos panoramas viscerais, o organismo não tem esta espécie de eixo ordenador da ex-periência que é o sentido de si. No momento em que esta sinalização entra na rede neural, ela se propaga para os hemisférios cerebrais ou córtex, aparecendo assim a noção mais ampla de self ou consciência cognitiva. Já que o self emerge do proto-self e este por sua vez, emerge do corpo, rompe-se a perspectiva dualista de

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procamente regulados pelas atividades cor-ticais e cognitivas. É por meio da interação recíproca entre estes diversos sistemas que a consciência, em sua forma mais complexa, emerge (Panksepp,2003).

É consenso entre os psicólogos do desenvol-vimento que o brincar é fundamental na vida da criança, sendo uma preparação das futuras habilidades necessárias para a vida e para o convívio social. Em seus estudos com roedores na Bowling Green State University nos EUA, Panksepp parece ter chegado a uma comprova-ção psicobiológica desta teoria. Ele propõe que os jovens mamíferos “necessitam” dos jogos e brincadeiras como parte do desenvolvimento dos circuitos neurais (play). Ratos que foram privados de brincar tiveram a área dos lobos frontais prejudicada no seu desenvolvimen-to, sendo esta área responsável pelas funções

monal, especialmente em relação ao hemisfério direito que, devido a sua grande interconexão com o sistema límbico e autonômico, poderia criar uma vulnerabilidade e predisposição ao estresse. Sendo o hemisfério direito dominante para a inibição da reposta emocional, estes dis-túrbios podem ter sua origem na incapacidade do córtex pré-frontal direito em inibir a ação da amígdala. Schore, em suas pesquisas sobre o apego, mostrou a existência de períodos críticos na interação do filhote com um meio saudável e seguro, em que os estados afetivos positivos provenientes deste meio seriam responsáveis pela liberação de dopamina, favorecendo as sinapses do córtex pré-frontal e o desenvol-vimento da capacidade cognitiva (Andrade, 2003). Já Hofer, em seus estudos com modelos animais, observou que ratos separados da mãe mais cedo apresentariam vulnerabilidade pos-terior às úlceras gástricas (Andrade, 2003).

Outro autor de destaque dentro da área neurocientífica e que traz contribuições para a clínica é Jaak Panksepp. Ele vem realizando um trabalho minucioso de mapeamento da circui-tação neural dos chamados sistemas emocionais básicos. Panksepp propõe que as experiências afetivas iniciais se traduzem em formas primá-rias de experiência nos sistemas subcorticais, que funcionariam como uma espécie de plata-forma evolucionária para a emergência de for-mas mais complexas. Assim, precisamos enten-der as emoções em um patamar neural básico, para podermos entender a complexidade das emoções humanas. “Devem existir períodos sensíveis para o desenvolvimento neuroafetivo similares aos encontrados nos animais, produ-zindo, em conseqüência, efeitos neurais perma-nentes que modificam a economia mental da criança por algum tipo de darwinismo neural ”. Este campo de estudo ficou conhecido como Affective Neuroscience (Neurociência Afeti-va). Os sistemas emocionais estudados inicial-mente por Panksepp são os seguintes: seeking (busca), fear (medo), rage (raiva), lust (desejo), care (cuidado), panic (medo), play (brincar) e o sistema self. Estes sistemas dividem funções e componentes entre si, regulando e sendo reci-

Nãoépossívelsepararmososprocessoscognitivosdosafetivos,entendendoumamenteseparada

docorpo,umamentedesencarnada

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lhotes, os mamíferos possuem um contato estreito, “apegado” a sua prole. Em pesquisas com animais, quando os jovens mamíferos são deixados sós, eles aparentam experienciar uma dor tão severa que acabam entrando em depressão, podendo chegar até mesmo à mor-te (Panksepp, 2004). Os sistemas ligados aos vínculos sociais e à dor física se encontram correlacionados. O apego saudável na primeira infância faz com que o indivíduo seja menos sensível à dor física quando adulto. O toque gentil e suave pode aliviar a dor física e psicoló-gica pela ativação de opióides endógenos como as endorfinas e também pela ocitocina. A pro-dução da ocitocina e da prolactina interrompe respostas ligadas ao estresse de separação entre a mãe e o filhote (Panksepp, 2004). Estas des-cobertas sugerem, entre outras coisas, a impor-tância das experiências positivas e saudáveis na primeira infância, de um modelo potencial para o desenvolvimento de novas drogas e também de pensarmos sobre como algumas técnicas de psicoterapia corporal que incluem o toque, o relaxamento e a massagem, como a Biodinâ-mica de Gerda Boyesen, podem agir sobre o organismo, além, é claro, de valorizar o contato corporal entre as crianças e seus cuidadores.

FormAção de memóriAs

Uma outra área que ganhou bastante aten-ção dos neurocientistas foi a memória. Joseph LeDoux em seus estudos sobre o medo propôs a existência de duas vias cerebrais: a via princi-pal, que passa do tálamo para o córtex e depois para a amígdala e uma via secundária, que passa direto do tálamo para a amígdala, sem a inter-mediação do córtex. A via primária, permite uma melhor avaliação do estímulo, sendo mais lenta e detalhada. Já a via secundária permite uma reação rápida. Em seu livro mais famoso O Cérebro Emocional (Editora Objetiva, 1998), LeDoux exemplifica brilhantemente esta dife-rença: “Quando andamos por uma floresta e vemos uma forma retorcida no chão, a amíg-dala pode ‘pensar’ se tratar de uma cobra e dis-parar as reações enquanto que apenas o córtex pode precisar a diferença entre esta forma e uma

executivas e autocontrole. Esta descoberta sugere, segundo este autor, uma ligação entre o brincar e o Transtorno de Deficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). A explosão deste transtorno nas crianças ocidentais nas últimas décadas poderia estar refletindo uma exigên-cia escolar excessiva, com pouco espaço para brincadeiras livres e intensas. “Se a criança não tiver a oportunidade de brincar, podem ocorrer falhas no desenvolvimento nor-mal dos lobos frontais fazendo com que se apresente então todo o estado neurológico descrito na literatura médica do TDAH” (Panksepp, 2004).

Corroborando as propostas de Bowlby sobre o apego, Panksepp acredita que os mamíferos possuem circuitos espe-cíficos ligados à afiliação e à convivência social. Enquanto a maioria dos répteis abandona seus fi-

Neurociência

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cobra. De qualquer maneira, evolutivamente, é melhor reagir do que nada fazermos”. LeDoux afirma que a amígdala exerce uma maior influ-ência sobre o córtex do que este sobre a amígda-la, explicando em parte a dificuldade que pos-suímos em evitar que algumas emoções sejam deflagradas.

A memória explícita, consciente, tem como principal coordenador o hipocampo, enquan-to que na memória implícita este papel cabe à amígdala. Episódios de estresse intenso podem produzir disfunções no hipocampo, explicando o porquê da impossibilidade de se recordar um trauma (LeDoux, 1998). O mesmo não acon-tece com as memórias emocionais inconscientes armazenadas pela amígdala: “É perfeitamente possível que um indivíduo tenha uma péssima memória consciente de um episódio traumáti-co, mas, ao mesmo tempo, produza memórias emocionais inconscientes potentes e implícitas, graças à mediação do condicionamento do medo feita pela amígdala”. A amnésia infantil proposta por Freud pode também ser explicada por este viés biológico, já que o hipocampo, res-ponsável pela memória consciente, atinge seu amadurecimento apenas por volta dos três aos quatro anos (LeDoux, 1998).

Para LeDoux, os sistemas de memória explí-cita e implícita operam sempre em paralelo, ar-mazenando tipos diferentes de informação. Em um episódio traumático, o sistema explícito do hipocampo armazena as informações referentes ao contexto da situação: com quem estávamos, o que fazíamos. Já o sistema implícito da amíg-dala é responsável por ativar toda uma série de reações orgânicas que vão desde a elevação da pressão sanguínea, tensão muscular, até a liberação de vários hormônios. Como os dois sistemas são ativados pela mesma situação eles parecem funcionar como uma memória úni-ca, mas na verdade são, a princípio, dois siste-mas diferentes. As memórias implícitas podem então ser ativadas sem o sistema de memória explícita, levando a reações emocionais “inex-plicadas” para a consciência, seja em função de um processamento inconsciente dos estímulos ou de uma associação não identificada.

AnsiedAdeOs estudos relacionados à ansiedade também

vêm ganhando novas perspectivas e contornos. J. Landeira-Fernandez, professor de pós-gra-duação em Psicologia na PUC- RJ, empregou um modelo para induzir pânico em animais por meio da estimulação de determinada área do cérebro, a matéria cinzenta periaquedutal dorsal. “Quando os animais são colocados em um lugar no qual tenham tomado um choque no dia anterior, ficam bastante ansiosos. Ima-ginamos a princípio que, se o animal estivesse muito ansioso a indução do ataque de pânico seria mais fácil em relação ao grupo de controle. O que aconteceu, porém, foi o contrário: se o animal já estava ansioso, a indução do ataque de pânico era muito mais difícil. Desta maneira, a ansiedade e o ataque de pânico parecem manter relações opostas. Na verdade, esta teoria já vem sendo proposta por um pesquisador brasileiro, Frederico Graeff, da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto, juntamente com o psiquia-tra inglês William Deakin.

O que fizemos foi na verdade um teste ex-perimental desta teoria. Agora, estamos come-çando a pesquisar este tema com seres huma-nos também. Se a teoria estiver correta, então é maior a probabilidade da ocorrência de um ataque de pânico quando o sujeito está relaxado e descontraído. Mais ainda, se um paciente que teve um ataque de pânico começar a apresen-tar uma preocupação com o fato de ter novos ataques, é de se esperar que estes diminuam de freqüência. De fato, existe uma diferença entre o ataque de pânico e o transtorno de pânico. O ataque de pânico são aquelas reações intensas de ansiedade, taquicardia e toda uma série de

Umindivíduoquetenhaumapéssimamemóriaconscientedeumepisódiotraumáticopode,aomesmo

tempo,produzirmemóriasemocionaisinconscientespotenteseimplícitas,graçasàmediaçãodo

condicionamentodomedofeitapelaamígdala

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reações somáticas ligadas a um sentimento de morte iminente. Já no transtorno de pânico, o que realmente perturba o paciente é o medo de ter novos ataques de pânico. Dessa forma, o transtorno do pânico é extremamente com-plexo, porque, além dos ataques, apresenta também outras reações de ansiedade dificul-tando assim seu estudo e compreensão”.

Uma descoberta bem recente é a dos cha-mados neurônios-espelho (mirror neurons),

que seriam neurônios localizados especial-mente no córtex pré-motor e nos cen-

tros da linguagem. Estes neurônios são disparados quando observamos

alguém realizar uma ação nas mesmas áreas cerebrais que são ativadas quando realizamos a ação. Dito isto de outra for-ma, seria como se ensaiásse-mos ou imitássemos mental-mente toda a ação observada, tendo os neurônios-espelho

importância fundamental para percebermos o que acontece ao

nosso redor e reconhecer a atitude do outro. Desta forma, temos uma aproximação clara entre a psicobiolo-gia e a cultura, com os neurônios-es-pelho sendo sugeridos como possível explicação para várias características como a empatia, a aprendizagem, a imitação e a observação. Além dis-so, várias pesquisas importantes es-tão sendo realizadas sugerindo uma possível relação entre os neurônios-espelho e o autismo.

conclusão

Talvez em função de a mente ter sido encarada por muito tempo como algo imaterial, etéreo, ainda existe grande resistência dos psicólogos clí-

nicos em se defrontarem com as ques-tões mais orgânicas e biológicas trazidas

à tona pelas Neurociências. “As escolas de psicoterapia que não revisarem o seu arca-

bouço teórico mediante o panorama apresenta-

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Neurociência

Umaposiçãopossívelaseradotadaéade

afirmaraimportânciadopsíquiconas

chamadasdoençasorgânicassem,porém,descartarosaspectos

neurobiológicosdasdoenças.Ostranstornos

psicológicosteriamsempreumacausa

orgânica,masamesmaimportâncianãoédadapelascausaspsíquicas

dostranstornosorgânicos

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do pela Neurociência não irão acompanhar esta mudança de paradigma. Em relação aos psicólogos, ainda há uma negligência em relação à Neurociência, o que acaba favore-cendo esta cultura de banalização e excesso de medicação. Você ainda escuta psicólogos dizerem que a Neurociência não diz respeito a sua clínica”, diz José Ignacio Xavier.

Para não perder espaço e afirmar o seu papel de contribuição nas Neurociências é necessário um amplo trabalho que vai desde a reformulação dos cursos de graduação para reforçar o estudo das disciplinas de cunho biológico, neurológico e fisiológico (Landeira-Fernandez, 1998), da tomada de consciência dos psicólogos e de suas instituições de classe sobre o papel e importância da Psicologia nas Neurociências, do que é realmente a atividade psicológica, bem como a utilização dos resul-tados dos estudos neurocientíficos no transtor-no e diagnóstico, traduzindo-se em avanços na prática psicoterápica e na maneira como per-cebemos e tratamos os pacientes e os transtor-nos que nos chegam à clínica.

Um outro aspecto interessante a assi-nalar é que o discurso da causa orgânica agrada também a muitos pacientes. Parece ser mais simples acreditar que seu “proble-ma” deriva de algo que se reduza ao bio-lógico (no sentido tradicional do termo), do que ser algo derivado da sua história de vida. Dessa maneira, a “máquina” hu-mana parece ter um defeito bastando para isto trocar a peça ou repor o que ela não está produzindo. O estresse da sociedade moderna impõe a nós uma velocidade im-pressionante, que se expressa também na forma como lidamos com a doença, exi-gindo resultados rápidos.

Uma posição possível a ser adotada é a de afirmar a importância do psíquico nas chamadas doenças orgânicas sem, porém, descartar os aspectos neurobiológicos das doenças. Hoje, o que observamos, apesar de todo um aparente discurso de aspectos mul-tifatoriais na etiologia das doenças, é um viés biológico: os transtornos psicológicos teriam

sempre uma causa orgânica, mas a mesma importância não é dada pelas causas psíquicas dos transtornos orgânicos (Andrade, 2003). Esta concepção reafirma a importância do meio e das relações sociais na constituição do indivíduo, sem descartar a causalidade orgâ-nica. Atribuir, por exemplo, a causa de um transtorno mental à falta de uma determina-da substância é olhar a problemática sob um ponto de vista estanque, sem considerar as variáveis que levaram o indivíduo a se consti-tuir desta maneira. n

referêNCIAs :

ANDRADE, V.M. Umdiálogoentreapsicanáliseeaneurociência : A “Psicanálise Maior” prevista por Freud torna-se realidade no século XXI como metapsicologia científica . São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.

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LANDEIRA-FERNANDEZ, J.; Cruz, A. P. M. (1998). DaFilosofiaàNeurobiologia: o que o Psicólogo precisa saber sobre os efeitos da psicoterapia no Sistema Nervoso. Cadernos de Psicologia. vl. 4.

LEDOUX, J. Océrebroemocional: os misteriosos alicerces da vida emocional. Rio de Janeiro : Objetiva,1998.

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