nespoli, beh a década do renascimento dos coletivos teatrais

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1 A década do renascimento dos coletivos teatrais Beth Néspoli A década de 1990 dá início ao renascimento do teatro de grupo, entendido aqui como um coletivo com projeto artístico, pesquisa permanente e busca de inserção social, algo que havia sido pulverizado a partir de 1968, com o acirramento da censura, a perseguição política durante o golpe militar e o conseqüente exílio de muitos criadores da área teatral. No Rio, onde eu vivia, o início da década de 1990 dava a impressão de terra arrasada. Os últimos elos de ligação com o teatro que foi vital nas décadas de 1960 e 70 pareciam rompidos. O Plano Collor jogara uma pá de cal no Teatro dos Quatro, um importante centro produtor na década de 1980, cuja última grande montagem havia sido O Jardim das Cerejeiras, de 1989. Tendo Sérgio Britto entre seus sócios, o Teatro dos Quatro era o representante, no Rio, do modelo TBC de companhia, sobretudo no que diz respeito à escolha de repertório, ao elenco estelar e à produção esmerada. O Teatro Ipanema, de Rubens Corrêa e Ivan de Albuquerque, a essa altura estava reduzido a um teatro de aluguel. O mesmo esvaziamento se dera com o Circo Voador, apenas uma lona, igualmente espaço de aluguel para shows. Enquanto isso, o besteirol tomava conta dos palcos e atraía o grande público. Mas, se um teatro parecia agonizante, um outro estava começando a surgir. Só para citar alguns exemplos, é no início da década de 1990 que repercute, com A Bao A Qu, o trabalho da recém-fundada Cia. dos Atores, dirigida por Enrique Diaz. Em 1990, Aderbal Freire-Filho ocupa um teatro público abandonado, o Gláucio Gil, em Copacabana, cria com o seu Centro de Construção e Demolição Teatral e leva ao palco um romance de João do Rio, Mulher Carioca aos 22 Anos. Um ano depois, ocupa o Museu da República, antigo Palácio do Catete, com O Tiro que Mudou a História, e teatraliza assim o suicídio de Getúlio Vargas no local onde ele aconteceu. Não seria pertinente relacionar todos os grupos que surgem no Rio na época. O que vale notar é que a representação fora do edifício teatral e a linguagem épica – a escolha de levar textos não teatrais ao palco, crônicas, romances ou até mesmo um auto de inquisição, como fez o grupo do diretor Moacir Chaves em Bugiaria integram a pesquisa de muitas dessas companhias. É conhecida a dificuldade de manutenção de grupos no Rio, cidade que historicamente tem como característica uma cena que gira em torno de estrelas. Assim, muitas nascem e morrem na década de 1990, como a Cia. de Ópera Seca, fundada no fim da década de 1980 por Gerald Thomas, Luis Damasceno, Bete Coelho e Daniela Thomas, e o Fodidos e Privilegiados, dirigido por Antonio Abujamra, que mesmo mantendo alguma atividade perde seu vigor inicial. Outras sedimentam sua linguagem, como a Cia. dos Atores, e a qualidade de Ensaio.Hamlet é prova indubitável do crescimento desse coletivo artístico. Em setembro de 1997, chego à cidade de São Paulo para escrever sobre a atividade teatral no jornal O Estado de S. Paulo. Detecto que ocorre o mesmo renascimento, porém de forma mais intensa e articulada, na cena paulistana. Só para não falar no abstrato, não por coincidência, também em 1990 havia estreado, por exemplo, O Paraíso Perdido, o primeiro espetáculo do Teatro da

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Page 1: NESPOLI, Beh a Década Do Renascimento Dos Coletivos Teatrais

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A década do renascimento dos coletivos teatrais

Beth Néspoli A década de 1990 dá início ao renascimento do teatro de grupo, entendido aqui como um coletivo com projeto artístico, pesquisa permanente e busca de inserção social, algo que havia sido pulverizado a partir de 1968, com o acirramento da censura, a perseguição política durante o golpe militar e o conseqüente exílio de muitos criadores da área teatral. No Rio, onde eu vivia, o início da década de 1990 dava a impressão de terra arrasada. Os últimos elos de ligação com o teatro que foi vital nas décadas de 1960 e 70 pareciam rompidos. O Plano Collor jogara uma pá de cal no Teatro dos Quatro, um importante centro produtor na década de 1980, cuja última grande montagem havia sido O Jardim das Cerejeiras, de 1989. Tendo Sérgio Britto entre seus sócios, o Teatro dos Quatro era o representante, no Rio, do modelo TBC de companhia, sobretudo no que diz respeito à escolha de repertório, ao elenco estelar e à produção esmerada. O Teatro Ipanema, de Rubens Corrêa e Ivan de Albuquerque, a essa altura estava reduzido a um teatro de aluguel. O mesmo esvaziamento se dera com o Circo Voador, apenas uma lona, igualmente espaço de aluguel para shows. Enquanto isso, o besteirol tomava conta dos palcos e atraía o grande público. Mas, se um teatro parecia agonizante, um outro estava começando a surgir. Só para citar alguns exemplos, é no início da década de 1990 que repercute, com A Bao A Qu, o trabalho da recém-fundada Cia. dos Atores, dirigida por Enrique Diaz. Em 1990, Aderbal Freire-Filho ocupa um teatro público abandonado, o Gláucio Gil, em Copacabana, cria com o seu Centro de Construção e Demolição Teatral e leva ao palco um romance de João do Rio, Mulher Carioca aos 22 Anos. Um ano depois, ocupa o Museu da República, antigo Palácio do Catete, com O Tiro que Mudou a História, e teatraliza assim o suicídio de Getúlio Vargas no local onde ele aconteceu. Não seria pertinente relacionar todos os grupos que surgem no Rio na época. O que vale notar é que a representação fora do edifício teatral e a linguagem épica – a escolha de levar textos não teatrais ao palco, crônicas, romances ou até mesmo um auto de inquisição, como fez o grupo do diretor Moacir Chaves em Bugiaria – integram a pesquisa de muitas dessas companhias. É conhecida a dificuldade de manutenção de grupos no Rio, cidade que historicamente tem como característica uma cena que gira em torno de estrelas. Assim, muitas nascem e morrem na década de 1990, como a Cia. de Ópera Seca, fundada no fim da década de 1980 por Gerald Thomas, Luis Damasceno, Bete Coelho e Daniela Thomas, e o Fodidos e Privilegiados, dirigido por Antonio Abujamra, que mesmo mantendo alguma atividade perde seu vigor inicial. Outras sedimentam sua linguagem, como a Cia. dos Atores, e a qualidade de Ensaio.Hamlet é prova indubitável do crescimento desse coletivo artístico. Em setembro de 1997, chego à cidade de São Paulo para escrever sobre a atividade teatral no jornal O Estado de S. Paulo. Detecto que ocorre o mesmo renascimento, porém de forma mais intensa e articulada, na cena paulistana. Só para não falar no abstrato, não por coincidência, também em 1990 havia estreado, por exemplo, O Paraíso Perdido, o primeiro espetáculo do Teatro da

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Vertigem. O Grupo Tapa, que partira do Rio em 1986, estava consolidado na cidade. É na década de 1990 que o Oficina se recupera dos duros golpes sofridos durante a ditadura e hoje condensa tendências comuns a muitas companhias – a apropriação de um texto não teatral e sua atualização de forma a fazer dele instrumento para apreensão da formação do país e suas contradições históricas, políticas e sociais. Os artistas deixam o edifício teatral e vão às ruas (Núcleo Bartolomeu), aos rios (Vertigem), aos vãos dos viadutos (Oficina e Folias), às áreas degradadas da cidade (Satyros), à periferia (Pombas Urbanas) não só para ali se instalar, mas para tentar pensar a realidade do país, e recriá-la estética e eticamente nos mais diversos espaços teatrais. Desamparados pelo poder público que mantinha uma política de incentivos fiscais controlada pelo marketing das empresas – cujo investimento em patrocínios privilegiava produções independentes com nomes estelares –, os grupos paulistanos uniram-se um torno do Movimento Arte contra a Barbárie. Juntos, alcançam uma importante conquista: a lei de fomento ao teatro, voltada para os grupos de pesquisa permanente. Embora tímido, frágil, insuficiente, esse mecanismo dá fôlego aos coletivos que promovem seminários internos para aprimorar o pensamento que funda suas pesquisas. Mais ainda, amplia a geografia cultural da cidade – com a conseqüente abertura de sedes em áreas sem equipamento cultural ou revitalizando os existentes como fez a Cia. Estável em Cangaíba. E, não menos importante, permite a edição de programas mais alentados, cadernos como o do Folias e o da Cia. do Latão e até um jornal, O Sarrafo, que ampliam a ressonância dos debates éticos e estéticos que envolvem a cena. Aos poucos, a pesquisa de linguagem que servia sobretudo ao aprimoramento do próprio grupo vai ganhando inserção social. Deixamos de ir ao teatro para ver a “assinatura” de um diretor – atitude comum na década de 1980 – e vamos buscar a reflexão sobre o tempo presente a partir da visão de um coletivo artístico sobre o mundo em que vivemos, com suas contradições, injustiças e diversidade cultural. Observar as mais recentes realizações de coletivos como Grupo Tapa, Cia. do Feijão, Núcleo Bartolomeu, Cia. Livre, Parlapatões, Satyros, Cemitério de Automóveis, Ágora Teatro, Fábrica Teatro, Vertigem, Folias, Grupo XIX, Fraternal, Pombas Urbanas, Cia. do Latão, Teatro de Narradores, Cia. São Jorge de Variedades e Oficina é ter a certeza de que esse movimento iniciado na década de 1990 está com pleno fôlego neste início de século XXI. Vale ressaltar nesse cenário o reatamento com a academia – pela participação de intelectuais e professores nos seminários – e a parceria entre autores e grupos, com a presença do dramaturgo na sala de ensaio no chamado processo colaborativo. Outro dado importante é a desierarquização na organização interna dos coletivos – funções definidas, porém com igual grau de importância e remuneração é prática cada vez mais comum. Enfim, sob muitos aspectos a cena paulistana vive um momento de grande vitalidade – comum aos grandes centros em tempos de liberdade – com potencial para ir muito além, tanto em termos estéticos quanto de conquista de políticas públicas. Mas não há lugar para ingenuidades. A arte em geral, e o teatro em particular, são por natureza libertários e incomodam o poder. O programa de fomento não foi ampliado e enfrenta resistências. Outros mecanismos nos mesmos moldes – como o Fundo Estadual de Cultura – jamais saíram do papel. A elite

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brasileira ainda vê no teatro apenas fonte de entretenimento e lazer. O bom teatro – em todo o mundo – incomoda. É torcer para que novo retrocesso não aborte, mais uma vez, um ciclo vital. E lembrar que a censura econômica pode ser tão destrutiva quanto a ideológica.