nerociencias e a interpretaçao dos sonhos

9
JULHO 2005 28 VIVER MENTE&CÉREBRO A Interpretação dos Sonhos e as POR MARK SOLMS ILUSTRAÇÕES DE TIDE HELLMEISTER A investigação dos sonhos da perspectiva neuro- científica começou efetivamente logo após a morte de Sigmund Freud, em 1939. No início, esses estudos produziram resultados difíceis de conciliar com as proposições psicológicas estabelecidas em seu livro A interpretação dos sonhos (1900). A primeira grande descoberta apareceu em 1953, quando Eugène Aserinsky e Nathaniel Kleitman identificaram um estado fisiológico que ocorre periodicamente (em ciclos de 90 minutos) durante o sono, e ocupa cerca de 25% das horas que dormimos. Entre outras coisas, caracteriza-se por elevada atividade cerebral, ocorrência de movimentos rápidos dos olhos (REM), aumento das freqüências cardíaca e respirató- ria, estimulação genital e relaxamento muscular. Esse estado consiste em uma condição fisiológica parado- xal, na qual uma pessoa está, ao mesmo tempo, em intenso estado de vigília e ainda assim completamente adormecida. Não por acaso, Aserinsky e Kleitman suspeitaram que o sono REM (como ficou conhecido) era a manifestação externa do estado de sonho subjetivo, o que foi experimentalmente comprovado pelos pesquisadores em 1955. Hoje, é consen- so que se despertarmos as pessoas durante o sono REM e perguntarmos se estavam sonhando, elas responderão que sim em cerca de 95% dos casos. Por outro lado, se forem acordadas durante o sono não-REM, haverá relatos de sonho em apenas 5% a 10% dos casos. Essas descobertas geraram grande entusiasmo entre neurocientistas: pela primeira vez a manifestação física e ob- jetiva do sonho, um dos mais subjetivos de todos os estados mentais, parecia estar ao alcance. Portanto, tudo o que res- tava fazer era revelar os mecanismos cerebrais responsáveis DEPOIS DE REGREDIR NOS ANOS 70 A UMA CONCEPÇÃO PRÉ - PSICANALÍTICA DE QUE OS SONHOS SÃO FRIVOLIDADES ”, A NEUROCIÊNCIA RECUPERA AS TEORIAS DE FREUD E VERIFICA AS RELAÇÕES ENTRE SONO E DESEJO JULHO 2005 28 VIVER MENTE&CÉREBRO Neurociências * Esta é a versão revista e atualizada de um ensaio originalmente escrito em alemão para a reimpressão comemorativa do centenário da 1ª edição de A interpretação dos sonhos, de Sigmund Freud (Fischer Verlag, 1999).

Upload: wesley-souza

Post on 18-Nov-2014

791 views

Category:

Documents


5 download

DESCRIPTION

Mente & Cérebro

TRANSCRIPT

Page 1: Nerociencias e a interpretaçao dos sonhos

JULHO 200528 VIVER MENTE&CÉREBRO

A Interpretação dos Sonhos e as A Interpretação dos SonhosA Interpretação dos SonhosA Interpretação A Interpretação dos SonhosA Interpretação dos SonhosA Interpretação

e as

POR MARK SOLMS

ILUSTRAÇÕES DE TIDE HELLMEISTER

A investigação dos sonhos da perspectiva neuro-científi ca começou efetivamente logo após a morte de Sigmund Freud, em 1939. No início, esses estudos produziram resultados difíceis de conciliar com as proposições psicológicas

estabelecidas em seu livro A interpretação dos sonhos (1900). A primeira grande descoberta apareceu em 1953, quando Eugène Aserinsky e Nathaniel Kleitman identifi caram um estado fi siológico que ocorre periodicamente (em ciclos de 90 minutos) durante o sono, e ocupa cerca de 25% das horas que dormimos. Entre outras coisas, caracteriza-se por elevada atividade cerebral, ocorrência de movimentos rápidos dos olhos (REM), aumento das freqüências cardíaca e respirató-ria, estimulação genital e relaxamento muscular.

Esse estado consiste em uma condição fi siológica parado-xal, na qual uma pessoa está, ao mesmo tempo, em intenso estado de vigília e ainda assim completamente adormecida. Não por acaso, Aserinsky e Kleitman suspeitaram que o sono REM (como fi cou conhecido) era a manifestação externa do estado de sonho subjetivo, o que foi experimentalmente comprovado pelos pesquisadores em 1955. Hoje, é consen-so que se despertarmos as pessoas durante o sono REM e perguntarmos se estavam sonhando, elas responderão que sim em cerca de 95% dos casos. Por outro lado, se forem acordadas durante o sono não-REM, haverá relatos de sonho em apenas 5% a 10% dos casos.

Essas descobertas geraram grande entusiasmo entre neurocientistas: pela primeira vez a manifestação física e ob-jetiva do sonho, um dos mais subjetivos de todos os estados mentais, parecia estar ao alcance. Portanto, tudo o que res-tava fazer era revelar os mecanismos cerebrais responsáveis

DEPOIS DE REGREDIR NOS ANOS 70 A UMA

CONCEPÇÃO PRÉ-PSICANALÍTICA DE

QUE OS SONHOS SÃO “FRIVOLIDADES”, A

NEUROCIÊNCIA RECUPERA AS TEORIAS DE FREUD

E VERIFICA AS RELAÇÕES ENTRE SONO E DESEJO

JULHO 200528 VIVER MENTE&CÉREBRO

Neurociências

* Esta é a versão revista e atualizada de um ensaio originalmente escrito em alemão para a reimpressão comemorativa do centenário da 1ª edição de A interpretação dos sonhos, de Sigmund Freud (Fischer Verlag, 1999).

Page 2: Nerociencias e a interpretaçao dos sonhos

WWW.VIVERMENTECEREBRO.COM.BR VIVER MENTE&CÉREBRO 29WWW.VIVERMENTECEREBRO.COM.BR VIVER MENTE&CÉREBRO 29

Page 3: Nerociencias e a interpretaçao dos sonhos

JULHO 200530 VIVER MENTE&CÉREBRO

MARK SOLMS é professor de neuropsicologia da Universidade da Cidade do Cabo, África do Sul, diretor do Centro Arnold Pfeffer do Instituto de Psicanálise de Nova York, conferencista honorário da Real Escola de Medicina e Odontologia de Londres e consultor do Centro Anna Freud, em Londres. – Tradução de Irati Antonio

O AUTOR

por esse estado fisiológico; então, teríamos descoberto, no mínimo, como o cérebro produz os sonhos. Considerando que o sono REM pode ser demonstrado em quase todos os mamíferos, tal pesquisa também poderia ser desenvolvida com outras espécies (o que tem implicações metodológicas importantes, porque os mecanismos do cérebro não podem ser manipulados em pesquisas com seres humanos do mesmo modo que em experiências com animais).

Vários estudos sucederam-se rapidamente, nos quais diferentes partes do cérebro foram sistematicamente remo-vidas (em gatos) para isolar as estruturas que produziam o sono REM. Baseado nisso, Michel Jouvet demonstrou em 1962 que o REM (e, portanto, o sonho) era produzido por um pequeno grupo de neurônios numa parte do tronco encefálico conhecida como “ponte” (ver ilustração ao lado). Essa parte do sistema nervoso está situada em um nível ligeiramente acima da medula espinhal, próxima à nuca. Os níveis superiores do cérebro, como os próprios he-misférios cerebrais que preenchem a grande cavidade do crânio humano, não pareciam exercer qualquer influência na geração do sonho. O sono REM ocorre com regularidade invariável ao longo do sono enquanto a ponte se mantém intacta, mesmo se os grandes hemisférios cerebrais forem completamente removidos.

A pesquisa neurocientífica sobre o mecanismo do sono REM continuou nessa linha, recorrendo a vários métodos, até que, em 1975, surgiu um quadro detalhado da anatomia e da fisiologia do “sono de sonhos”. Esse quadro, sistematizado nas teorias de interação recíproca e de ativação-síntese de Robert McCarley e J. Allan Hobson, dominou o campo desde então: ou, pelo menos, como veremos, até muito recentemente. Estas reconhecidas teorias propuseram que o sono e o sonho REM eram literalmente “ligados” por um pequeno grupo de neurônios situado no interior da ponte, que produz a chamada “acetilcolina”, substância química que ativa as partes superiores do cérebro estimulando-as a gerar imagens conscientes (in-trinsecamente sem significado). Segundo os neurofisiologistas, essas imagens sem significado são nada mais que o cérebro superior fazendo “o melhor de um trabalho ruim… a partir de sinais desconexos enviados pelo tronco encefálico”. Depois de alguns minutos de atividade REM, a ativação colinérgica que surge do tronco encefálico é neutralizada por outro grupo de neurônios — também situado na ponte — que produz a

noradrenalina e a serotonina. Ambas as substâncias “desligam” a ativação colinérgica e portanto, de acordo com a teoria, a experiência consciente de sonhar.

Desse modo, todos os processos mentais complexos que Freud elucidou em seu livro dos sonhos foram deixados de lado e substituídos por um mecanismo oscilatório simples, por meio do qual a consciência é automaticamente ligada e desligada em intervalos de cerca de 90 minutos durante todo o sono pela interação recíproca de substâncias químicas produzidas numa parte primária do cérebro, que nada tem a ver com funções mentais complexas. Com isso, até mesmo as mais básicas proposições da teoria de Freud não pareciam plausíveis. Em 1977, Hobson e McCarley escreveram que “a força motivadora primária de sonhar não é psicológica, mas fisiológica, uma vez que os intervalos de ocorrência e a duração do sono de sonhos são muito constantes, sugerindo uma gênese pré-programada e determinada do ponto de vista neurológico. De fato, os mecanismos neu-rais envolvidos podem ser hoje precisamente descritos. Se assumirmos que o substrato fisiológico da consciência está no cérebro anterior, esses fatos (isto é, que o REM é gerado automaticamente por meio de mecanismos do tronco ence-fálico) eliminam qualquer possível contribuição das idéias (ou seu substrato neural) para a força primária que motiva o processo do sonho”.

Com base nisso, parecia legítimo concluir que os meca-nismos causais subjacentes ao sonho eram “motivacional-mente neutros” e que a imagem onírica nada mais era que “o melhor ajuste possível de dados incipientes produzidos pelo cérebro-mente auto-ativado”. A credibilidade da teoria de Freud foi, em resumo, desvirtuada de maneira severa pela primeira onda de dados sobre o sonho obtidos de prepara-

IARA

CO

UTI

NH

OIA

RA C

OU

TIN

HO

TEGMENTO

NÚCLEO DA RAFE DORSAL

LOCUSCERULEUS

NÚCLEOS DA PONTE encefálica ligados ao sono REM

Page 4: Nerociencias e a interpretaçao dos sonhos

WWW.VIVERMENTECEREBRO.COM.BR VIVER MENTE&CÉREBRO 31

ções anatômicas: e o mundo neurocientífico (na verdade, o mundo científico como um todo) retrocedeu à visão pré-psicanalítica de que “os sonhos são frivolidades”.

Entretanto, ao lado dessas observações, que ofereciam um quadro cada vez mais preciso e detalhado da neurologia do sono REM, um segundo conjunto de evidências começou a configurar-se, o que levou alguns neurocientistas, entre os quais me incluo, a reconhecer que talvez o sono REM não fosse, afinal de contas, o equivalente fisiológico do sonho.

A noção de que sonhar é um mero “epifenômeno do sono REM”, como propôs Hobson, baseou-se quase exclu-sivamente na análise de relatos de sonhos de 70% a 95% das pessoas despertadas durante o estado REM, enquanto apenas 5% a 10% das pessoas acordadas durante o sono não-REM relataram sonhos. Considerando os caprichos da memória subjetiva (em especial, da memória de sonhos), isto está tão perto de uma correlação perfeita quanto se poderia esperar. Porém, a divisão rigorosa entre sono (“sonho”) REM e sono (“não-sonho”) não-REM começou a deteriorar-se quando se descobriu que relatos de atividade mental complexa podiam ser observados, de fato, em cerca de 50% dos despertares durante o sono não-REM.

Isso ficou claro quando David Foulkes despertou seus pa-cientes durante o sono não-REM e perguntou-lhes “O que se passava em sua mente?”, em vez de “Você estava sonhando?”. Os relatos resultantes de sonho não-REM foram mais “do tipo pensamento” (menos alucinatórios), mas essa distinção se aplica apenas para a média estatística. Permaneceu o fato de que pelo menos de 5% a 10% dos relatos de sonho não-REM eram “indistinguíveis por qualquer critério daqueles obtidos dos despertares pós-REM”. Esses achados não admitem uma distinção dicotômica entre atividade mental REM e NREM, mas antes sugerem a hipótese da existência de um processo de sonho contínuo caracterizado por uma variabilidade durante e entre as fases do sono.

Os relatos de sonho não-REM não puderam ser classi-ficados como sonhos REM mal lembrados, pois logo ficou claro que tais narrativas poderiam ser obtidas regularmente até mesmo antes de o sonhador ter entrado na primeira fase REM. De fato, hoje sabemos que relatos de sonho ocorrem em cerca de 50% a 70% dos despertares durante a fase inicial do sono, isto é, logo nos primeiros minutos

APESAR DA FORTE CORRELAÇÃO ENTRE SONHO E SONO REM, JÁ NÃO É MAIS POSSÍVEL

ACEITAR QUE A ATITUDE ONÍRICA OCORRE EXCLUSIVAMENTE DURANTE ESSE ESTADO

após termos adormecido. Esse índice é o mais alto obtido quando comparado a qualquer outro ponto durante o ciclo não-REM, e quase tão alto quanto o índice REM. De modo semelhante, descobriu-se recentemente que sonhos não-REM surgem com crescente duração e freqüência próximos ao final do sono, durante o início da fase matutina do ritmo diurnal. Em outras palavras, sonhos não-REM não aparecem de maneira aleatória durante o ciclo do sono; o sonho é gerado durante o sono não-REM por meio de mecanismos não-REM específicos.

A única diferença confiável entre relatos de sonho REM, de sono inicial e outras classes de relatos de sonho não-REM é que os primeiros são mais longos. Em todos os outros aspectos, os sonhos não-REM e REM parecem idênticos. Isso demonstra que sonhos completos podem ocorrer in-dependentemente do estado fisiológico específico do sono REM. Portanto, qualquer que seja a explicação para a forte correlação entre sonho e sono REM, já não é mais possível aceitar que o sonho é causado apenas pelo estado REM.

O isomorfismo presumido entre sono e sonho REM viu-se mais desgastado pelo aparecimento de uma nova e inesperada evidência relativa aos mecanismos cerebrais do sonho. Como já observamos, a hipótese de que sonhar é um mero epifenômeno do sono REM apoiou-se na grande correlação entre o despertar do sono REM e os relatos de sonho. Mas isto não implica necessariamente que REM e sonho compartilhem um mecanismo cerebral único. Com a descoberta de que os sonhos ocorrem de modo regular e independente do sono REM, é com certeza possível que o estado e o sonho REM sejam controlados por mecanismos cerebrais independentes. Os dois mecanismos bem pode-riam estar situados em diferentes partes do cérebro, com o mecanismo REM freqüentemente ativando o sonho. Um fator causal de dupla fase do sonho REM implica que o mecanismo do sonho poderia também ser de-flagrado por gatilhos diferen-tes do mecanismo REM, o que explicaria por que os sonhos ocorrem com tanta freqüência fora do sono REM.

Page 5: Nerociencias e a interpretaçao dos sonhos

JULHO 200532 VIVER MENTE&CÉREBRO

CORRELAÇÃO CLÍNICO-ANATÔMICAA tese de que existem no cérebro dois mecanismos

separados – um para o REM e um para o sonho –, pode ser facilmente testada por um método padrão de pesquisa neurológica conhecido como correlação clínico-anatômica. Trata-se de um método clássico para testar esse tipo de hi-pótese: as partes do cérebro que suprimem o sono REM são removidas e o pesquisador observa se o sonho ainda ocorre; depois, as regiões cerebrais que suprimem o sonho são retira-das e checa-se se o REM ainda é atingido. Se os dois efeitos dissociam-se, então são causados por mecanismos cerebrais diferentes. Caso sejam simultaneamente afetados por danos em uma única estrutura cerebral, então são condicionados por um só mecanismo.

As partes do cérebro cruciais para o sonho e aquelas que são imprescindíveis para o sono REM estão completamente separadas, tanto no nível anatômico como do ponto de vista funcional. Enquanto as primeiras estão na ponte, localizada no tronco encefálico, próxima da nuca, as regiões essenciais para o sonho estão situadas apenas nas partes mais altas do cérebro, em duas áreas específicas nos próprios hemisférios cerebrais.

A primeira dessas áreas encontra-se no interior da subs-tância branca dos lobos frontais do cérebro, logo acima dos olhos. Esta parte dos lobos frontais contém um grande feixe de fibras que transporta uma substância química chamada dopamina do centro para as partes mais altas do cérebro (ver ilustração abaixo). Lesões nesse feixe tornam o sonho impos-sível, mas mantêm o ciclo REM inalterado. Isto indica que o sonho é gerado por um mecanismo diferente daquele que gera o sono REM: conclusão corroborada pela observação de que a estimulação química desse feixe de dopamina (com drogas como a L-DOPA) leva a um aumento maciço na freqüência e vivacidade dos sonhos, sem que haja qualquer efeito na freqüência e intensidade do sono REM.

Da mesma forma, sonhos excessivamente freqüentes e vívidos, causados pelo estimulante dopamina, podem ser interrompidos por drogas (como os antipsicóticos) que bloqueiam a transmissão da dopamina nesse feixe. Em re-sumo, sonhar pode ser “ligado” e “desligado” por um feixe neuroquímico que nada tem a ver com o oscilador REM na ponte. Qual é, portanto, o papel desse feixe emissor no cérebro, tão crucial para a geração do sonho? De acordo com Jaak Panksepp, sua principal função é “instigar a busca de realizações e a interação do organismo com o mundo baseada no desejo”; quer dizer, motivar o sujeito a procu-rar e garantir objetos externos que possam satisfazer suas necessidades biológicas internas. Estas são precisamente as funções que Freud atribuiu ao “impulso libidinoso” – o motivador primário dos sonhos – em sua teoria do início do século XX. Assim, é importante observar que lesões nesse feixe provocam a cessação do sonho junto com uma redução substancial no comportamento motivado.

SONHOS E LOUCURAEm vista da estreita associação entre sonhos e certas

formas de loucura, vale também observar que lesões cirúr-gicas no feixe dopaminérgico (que eram o objetivo básico da lobotomia pré-frontal das décadas de 50 e 60) reduzem alguns sintomas de doenças psicóticas, junto com a cessação do sonho. Seja o que foi que impediu os pacientes sub-metidos à lobotomia de manter os sintomas psiquiátricos, também os privou de gerar sonhos. Teorias contemporâneas sobre a esquizofrenia atribuem um papel central na causa de alucinações e ilusões ao feixe dopaminérgico, que parece gerar os sonhos.

Em resumo, a evidência neurocientífica corrente nos dá os argumentos para considerar seriamente a hipótese radi-cal – estabelecida primeiro por Freud há mais de cem anos – no sentido de que os sonhos são fenômenos motivados, determinados por nossos desejos. Embora seja verdade que o mecanismo (colinérgico) que gera o estado REM é “motivacionalmente neutro”, o mesmo não pode ser dito do mecanismo (dopaminérgico) que gera o estado de sonho. De fato, este último é um “sistema de comando” do cérebro baseado no desejo (isto é, libidinoso), ainda segundo Pank-sepp; e uma evidência recente confirma que ele é ativado ao máximo durante o sono REM.

Como já afirmamos, parece agora que o REM causa o sonho através da intermediação desse mecanismo motiva-tional. Além disso, o REM é apenas um dos muitos gatilhos diferentes capazes de ativar esse mecanismo. Uma variedade de outros gatilhos, que agem de forma independente do REM, tem exatamente o mesmo efeito. Os sonhos da fase inicial do sono e os últimos sonhos matutinos são dois exem-plos desse tipo. Sonhos induzidos por L-DOPA (e várias

IARA

CO

UTI

NH

OAMÍGDALA

CÓRTEXFRONTAL

HIPOTÁLAMOGIRO DOCÍNGULO

ÁREASEPTAL

ÁREA TEGMENTALVENTRAL

CAMINHO DA DOPAMINA do centro para a parte frontal do cérebro

Page 6: Nerociencias e a interpretaçao dos sonhos

WWW.VIVERMENTECEREBRO.COM.BR VIVER MENTE&CÉREBRO 33

drogas estimulantes) são outros. De interesse especial a esse respeito é o fato de que pesadelos estereotipados recorrentes podem ser induzidos por convulsões que acontecem durante o sono, deflagradas no sistema límbico temporal, que auxilia as funções emocional e da memória. Localizado no cérebro anterior, o sistema límbico, esse sistema é intensamente interligado pelo feixe de dopamina do lobo frontal. Além disso, sabemos que tais convulsões em geral ocorrem ao longo do sono não-REM. O fato de que pesadelos possam ser “ligados” por mecanismos nas partes mais altas do cérebro, que nada têm a ver com a ponte ou com o sono REM, é mais uma evidência de que o sonho e o REM são gerados por mecanismos cerebrais separados e independentes.

Não é por acaso que todos esses diferentes mecanismos capazes de ativar o sonho têm em comum o fato de criar um estado de vigília durante o sono. Isso corrobora outra hipóte-se central que Freud propôs em 1900, qual seja, a hipótese de que os sonhos são uma resposta a algo que perturba o sono. Pacientes que perderam a capacidade de sonhar devido à lesão cerebral têm mais distúrbios do sono que aqueles com

lesão cerebral que continuam a sonhar. Mais importante, um estudo polissonográfico recente de um paciente que não sonha registrou “insônia de manutenção do sono”, preci-samente como a proteção do sono de Freud teria previsto. Mais pesquisas sobre essa questão são necessárias.

No entanto, parece que os estímulos causadores do estado de vigília só disparam o sonho se e no momento em que ativam o feixe terminal comum motivacional nos lobos frontais do cérebro, pois somente quando esse feixe é lesionado (em vez dos próprios gatilhos de vigília, inclusive o REM) o sonho se torna impossível. Essa relação entre os vários gatilhos de vigília e o próprio mecanismo do sonho inicial lembra a famosa analogia de Freud: o sonho só ocorre se o estímulo que atua como o “empreendedor” do sonho atrai o apoio de um “capitalista”, um impulso libidinoso inconsciente que sozinho tem poder de gerar o sonho.

Assim, as principais inferências de Freud, com base na evidência psicológica relativa às causas e à função do sonho, são pelo menos compatíveis e até mesmo indi-retamente sustentadas pelo conhecimento neurocientí-

DORMINDO, SONHANDO, ACORDANDO

KEIT

H K

ASN

OT

SONO REM

O sono REM e o não-REM diferem de várias maneiras. Veja algumas delas nas ilustrações abaixo, e também uma das funções sugeridas para cada tipo de sono

Estado desperto

Neurônios indutores do sono estão desativados

VIGÍLIA

Ausência de sonhos vívidos

Disparo dos neurônios indutores de sono no prosencéfalo

SONO NÃO-REM

Movimento rápido dos olhos

Ocorrência de sonhos vívidos

Disparo dos neurônios indutores de sono REM no tronco cerebral

O SONO REM É O ESTÁGIO em que a ocorrência de sonhos é mais intensa, mas observações detalhadas da neurobiologia desse estágio indicaram que ele não é o equivalente fisiológico do sonho. Na verdade, os mecanismos cerebrais responsáveis por sonho e sono REM são independentes anatômica e funcionalmente. Isso indica que a atividade onírica não cessa de todo durante o sono não-REM, ainda que os sonhos nesse estágio sejam menos vívidos

Page 7: Nerociencias e a interpretaçao dos sonhos

JULHO 200534 VIVER MENTE&CÉREBRO

fico atual. O mesmo se aplica ao mecanismo do sonho?Nosso entendimento neurocientífico atual desse mecanis-

mo gira essencialmente em torno do conceito de regressão. A visão predominante é a de que imagens de todos os tipos (inclusive imagens oníricas) são geradas “projetando-se informações de volta no sistema”. Desse modo, sonhar é definido pelo neurobiólogo Semir Zeki como “imagens internamente geradas que são retroalimentadas no córtex como se estivessem vindo de fora”. Essa concepção de imagem onírica é baseada numa ampla gama de pesquisas neurofisiológicas e neuropsicológicas sobre numerosos as-pectos do processamento visual. No entanto, demonstramos a natureza regressiva do processamento do sonho em casos clínicos neurológicos.

Para ilustrar esse ponto, é preciso lembrar o leitor de que a perda da capacidade de sonhar devido a dano neurológico está associada a lesões em duas áreas do cérebro. A primeira delas é o feixe de fibras brancas dos lobos frontais de que já tratamos. A segunda consiste de uma porção da substância cinzenta do córtex na parte posterior do cérebro (logo atrás e acima das orelhas), chamada junção occipito-têmporo-pa-rietal (ver ilustração na pág. 35). Essa parte do cérebro realiza os mais altos níveis do processamento da percepção e é essencial para a conversão da percepção concreta em pensamento abs-trato, que sempre acontece na forma de esquemas internos, e para a memorização da experiência organizada ou, em outras palavras, não apenas para a percepção de informações, mas também para o seu armazenamento.

O fato de que sonhar cessa completamente quando há danos nessa parte do cérebro sugere que essas funções (a conversão de percepções concretas em pensamentos abstra-tos e memórias), como as funções motivacionais realizadas pelo feixe do lobo frontal, já discutido, são fundamentais a

todo o processo de sonhar. Entretanto, se a teoria de que a imagem do sonho é gerada por um processo que reverte a seqüência normal dos eventos em processamento per-ceptual estiver correta, podemos esperar que nos sonhos os pensamentos abstratos e as memórias convertidos em percepções concretas.

Isto é exatamente o que Freud tinha em mente quando escreveu que “na regressão, o tecido dos pensamentos do sonho converte-se em sua matéria primordial”. Essa infe-rência é sustentada de maneira empírica pela observação de que o sonho pára de todo quando há danos no nível mais alto dos sistemas da percepção (na região da junção occipi-to-têmporo-parietal), ao passo que só aspectos específicos da imagem onírica são afetados no caso de danos nos níveis mais baixos do sistema visual, mais próximo da periferia do sistema perceptual (na região do lobo occipital). Isto significa que a contribuição dos níveis mais altos precede a dos níveis mais baixos. Quando há danos nos níveis mais altos, o sonho é bloqueado, enquanto danos nos mais baixos apenas suprimem algo da fase final do processo onírico. Isso é o oposto ao que acontece na percepção consciente, que é toda eliminada quando há danos nos níveis mais baixos do sistema. Em outras palavras, sonhar reverte a seqüência normal dos eventos externos.

A evidência neurocientífica disponível, portanto, é compatível com a concepção de Freud sobre onde e como o processo do sonho tem início (por exemplo, por um estímulo de vigília que ativa os sistemas emocional e moti-vacional), e sobre onde e como ele termina (por exemplo, através do pensamento abstrato na memória e nos sistemas motivacionais, que retorna na forma de imagens concretas nos sistemas da percepção).

De fato, hoje é possível ver onde essa atividade neural é

Sabe-se que a destruição de partes da ponte ence-fálica (e de nenhuma outra parte) leva a uma cessação do sono REM em mamíferos inferiores, mas tais expe-rimentos não podem, é claro, ser feitos em humanos: a única espécie que poderia nos dizer se a destruição daquelas partes do cérebro leva, ao mesmo tempo, a uma cessação do sonho. Felizmente (para a ciência), estruturas cerebrais relevantes são ocasionalmente des-truídas em seres humanos em conseqüência de danos, como doenças ou lesões traumáticas. Vinte e seis casos de danos na ponte foram registrados pela literatura neurológica , o que resultou em perda total ou semitotal do sono REM. Surpreendentemente, a eliminação do REM nesses pacientes foi acompanhada pela perda do

sonho em apenas 1 desses 26. Nos outros 25 casos, os pesquisadores ou não puderam estabelecer essa corre-lação ou não a consideraram.

Por outro lado, em todos os outros casos já publi-cados na literatura neurocientífica, nos quais lesões no cérebro resultaram em perda da capacidade de sonhar (um total de 110 pacientes), uma parte diferente do cérebro havia sido danificada, enquanto a ponte per-maneceu intacta. Além disso, ficou provado que o sono REM foi preservado nesses casos, apesar da perda da capacidade de sonhar. Essa dissociação entre cessação do REM e cessação do sonho abala seriamente a dou-trina de que o estado REM é o equivalente fisiológico do estado de sonho.

PERDA DA CAPACIDADE DE SONHAR

Page 8: Nerociencias e a interpretaçao dos sonhos

WWW.VIVERMENTECEREBRO.COM.BR VIVER MENTE&CÉREBRO 35

distribuída no cérebro que sonha. Métodos neuroradiológi-cos modernos produzem imagens da atividade metabólica padrão no cérebro vivo, enquanto ele está realizando uma função específica e, no caso do sonho, essas imagens mos-tram como a energia cerebral relativa à catexia (“cathexis” como Freud a denominou) se concentra nas áreas anatômicas discutidas acima: ou seja, as partes (frontal e límbica) do cére-bro referentes à consciência, emoção, memória e motivação, por um lado, e as partes (posteriores do cérebro) referentes ao pensamento abstrato e à percepção visual, por outro.

Essas imagens também revelam algo sobre o que acontece entre as fases iniciais e finais do processo onírico. Nesse aspecto, a característica mais notável do cérebro que sonha é o fato de que uma região cerebral conhecida como convexi-dade frontal e dorsolateral permanece quase completamente inativa durante os sonhos. Isto é surpreendente porque essa área, que se conserva inativa durante os sonhos, é uma das mais ativas de todo o cérebro durante a atividade mental consciente. Se compararmos as imagens do cérebro cons-ciente com as do cérebro que sonha, literalmente veremos a verdade da afirmação de Gustav Fechner no sentido de que “a cena da ação onírica é diferente daquela em que se passa a vida consciente das idéias”. Enquanto na vida cons-ciente a “cena da ação” se concentra na região dorsolateral na frente do cérebro – a extremidade superior do sistema motor onde ocorre a passagem do pensamento para a ação –, nos sonhos a cena se concentra na região occipito-têm-poro-parietal na parte posterior do cérebro, na memória e nos sistemas da percepção. Em resumo, nos sonhos, a “cena” muda da função motora do aparato para a função percep-tual. É interessante observar que os sistemas repressivos mais importantes do cérebro anterior estão concentrados na extremidade do seu sistema motor, como descritos por

Freud na representação diagramática do aparato mental.Isso reflete o fato de que, durante a vida consciente, o

curso normal dos eventos mentais é dirigido para a ação, enquanto nos sonhos esse caminho não está disponível. A “passagem” para o sistema motor (convexidade frontal e dor-solateral do cérebro) é inacessível durante os sonhos, assim como o são os canais de saída motora (os neurônios motores alfa da medula espinhal). Desse modo, tanto a intenção como a habilidade para agir estão ausentes durante o sono, e parece razoável inferir (como fez Freud) que essa ausência é a causa imediata do processo do sonho, que assume um caminho regressivo, longe do sistema motor do cérebro e próximo dos sistemas perceptuais.

Finalmente, devido à relativa inatividade durante o sono de partes cruciais dos sistemas reflexos nas regiões frontais do cérebro límbico, a cena onírica imaginada é aceita sem discernimento, e o sonhador confunde a cena interiormente gerada com uma percepção real. Disfunções nesses sistemas reflexos (que não estão de todo inativos durante o sono) re-sultam num estado curioso de sonho quase constante durante o sono e uma inabilidade para distinguir entre pensamentos e eventos reais durante a vida consciente. Isso oferece outra evidência de que há um processo de pensamento contínuo durante o sono, que é transformado em sonho sob várias condições fisiológicas, em que o sono REM é apenas uma entre muitas.

As pesquisas neurocientíficas recentes indicam que o quadro do cérebro que sonha pode ser resumido da seguinte forma: o processo do sonho é iniciado por um estímulo de vigília. Se o estímulo é suficientemente intenso ou persis-tente para ativar os mecanismos motivacionais do cérebro (ou se ele atrai o interesse desses mecanismos por alguma outra razão), o processo do sonho começa.

IARA

CO

UTI

NH

O

JUNÇÃOOCCIPTO-TÊMPORO-

PARIETAL

LOBO FRONTAL

A PERDA DA CAPACIDADE de sonhar devido a dano neurológico relaciona-se a duas áreas do cérebro

Page 9: Nerociencias e a interpretaçao dos sonhos

JULHO 200536 VIVER MENTE&CÉREBRO

O funcionamento dos sistemas motivationais do cérebro, em geral, é canalizado para a ação

dirigida a realizações, mas o acesso ao sistema motor está bloqueado durante o sono. A ação propositiva que seria o resultado normal do inte-

resse motivado torna-se, assim, impossível. Como conseqüência (e bastante possivelmente para proteger o sono), o processo de ativação assume um curso regressivo. Isso parece envolver um processo de duas fases. Primeiro, as partes mais altas dos sistemas da percep-ção (que operam a memória e o pensamento abstrato) são ativadas, seguidas pelas mais baixas (que operam a imagem concreta). Como resultado desse processo regressivo, o sonhador, de fato, não ocupa a atividade motivada durante o sono, mas imagina fazê-lo. Em razão da inatividade dos sistemas reflexos durante o sono na parte frontal do cérebro límbico, a cena imaginada é aceita sem discernimento, e o sonhador a confunde com uma percepção real.

Há uma grande área do cérebro que sonha ainda não compreendida. Também é evidente que ainda não desco-brimos as correlações neurológicas de alguns componentes cruciais do “trabalho do sonho”, na forma usada por Freud. A função de “censura” é o exemplo mais flagrante aqui. Entretanto, começamos a entender algo sobre a correlação neurológica dessa função, e sabemos pelo menos que as es-truturas mais prováveis nesse sentido estão realmente ativas durante o sono em que se sonha.

O quadro do cérebro que sonha, que começou a emergir das mais recentes pesquisas neurocientíficas, é amplamente compatível com a teoria psicológica que Freud desenvolveu. Aspectos das proposições freudianos sobre a mente que sonha são tão consistentes com os dados neurocientíficos disponíveis que seria bastante aconselhável usarmos o modelo de Freud como guia para a próxima fase de nossas investigações neurocientíficas.

Ao contrário da pesquisa feita nas últimas décadas, o próximo estágio de nossa busca pelos mecanismos cerebrais do sonho (se tiver êxito) deve considerar como seu ponto de partida a nova perspectiva que adquirimos sobre o papel

do sono REM. O sono REM, que tem até agora desviado nossa atenção dos mecanismos neuropsicológicos do sonho, deveria simplesmente ser somado às várias “fontes somáticas” dos sonhos que Freud discutiu nos capítulos 1 e 5 de A interpretação dos sonhos. O enfoque principal de nossas futuras pesquisas deveria ser dirigido, portanto, para elucidar as correlações cerebrais dos mecanismos que Freud discutiu nos capítulos 6 e 7, que são os mecanismos do trabalho do sonho. Não teremos nenhuma surpresa perante a superestimação do papel exercido na formação dos sonhos por estímulos que não decorrem da vida mental. Não apenas eles são fáceis de descobrir e até mesmo pas-síveis de comprovação experimental; mas a visão somática da origem dos sonhos está em completa harmonia com a corrente de pensamento predominante hoje na psiquiatria. É verdade que o domínio do cérebro sobre o organismo é sustentada com aparente confiança. Contudo, qualquer coisa que possa indicar que a vida mental é independente de alterações orgânicas demonstráveis, ou que suas ma-nifestações são de alguma forma espontâneas, alarma o psiquiatra moderno, como se o reconhecimento dessas coisas inevitavelmente trouxesse de volta os dias da filosofia da Natureza, e da visão metafísica da natureza da mente. As suspeitas dos psiquiatras puseram a mente, vamos dizer, sob tutela, e agora insistem que nenhum de seus impulsos possa sugerir que ela dispõe de quaisquer meios próprios. Esse comportamento apenas mostra a pouca confiança que eles realmente têm na validade de uma relação causal entre o somático e o mental. Mesmo quando a pesquisa mostra que a causa primária de um fenômeno é psíquica, pesquisas mais aprofundadas um dia irão delinear o caminho futuro e descobrir uma base orgânica para o evento mental. Mas se, no momento, não podemos ver além do mental, não há razão para negar sua existência.

A interpretação dos sonhos. S. Freud. Imago, 1999.A vision of the brain. S. Zeki. Blackwell, 1993.The dreaming brain. J. Hobson. Basic Books,1988.Freud está de volta. Mark Solms, em www.vivermentecerebro.com.br (Reportagens, edição no 0, setembro de 2004).

PARA CONHECER MAIS

VMC

DEVEMOS CONSIDERAR SERIAMENTE A HIPÓTESE RADICAL DE FREUD SEGUNDO A QUAL OS SONHOS SÃO FENÔMENOS MOTIVADOS E DETERMINADOS POR NOSSOS DESEJOS