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NEGRAS DE TABULEIRO: TENSÕES EM VILA RICA NO XVIII VIVIANE DOS SANTOS DIAS* 1 1 Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais - Campus Franca. Graduanda. Financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado São Paulo FAPESP.

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NEGRAS DE TABULEIRO: TENSÕES EM VILA RICA NO XVIII

VIVIANE DOS SANTOS DIAS*1

1Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais - Campus

Franca. Graduanda. Financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado São Paulo – FAPESP.

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FRANCA

2018

As Negras de Tabuleiro e os poderes coloniais2

Vila Rica, principal cenário onde viveram e trabalharam as mulheres de tabuleiro

estudadas, teve sua origem na justaposição de dois arraiais: Antônio Dias, onde a principal

atividade era a extração aurífera, e Ouro Preto (Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto), com

atividades mais variadas e forte presença de comerciantes. Esse último arraial acabava

alcançando, do ponto de vista da presença de instituições jurídicas e administrativas, uma

posição de maior relevância, uma vez que concentrava diversas matrizes de paróquias,

fundamentais à reorganização política e administrativa da região após o fim da Guerra dos

Emboabas. 3 Os embates desenrolaram-se entre moradores paulistas, mais antigos, e

mineradores, recém-chegados, vindos de diferentes regiões da colônia e mesmo da metrópole,

pelo direito de exploração de terras. Com todos os percalços advindos do conflito, Minas Gerais

acabou se firmando como território propício ao estabelecimento de cidades, tendo Vila Rica

como Cabeça da Comarca em 1711, após apenas três anos do clímax do conflito entre paulistas

e emboabas. A câmara local, à época um órgão eminentemente administrativo, fez sobre as

terras não mineradoras objeto de tributação e passou a controlar mais de perto as obras públicas

e o povoamento, ainda disperso, mas que já contava com o comércio de alguma caça, de poucos

frutos e peixes (CAMPOS, 2012). A historiadora Kátia Campos destaca uma diferença entre o

comércio em Vila Rica no Arraial de Antônio Dias. Segundo ela, a distinção essencial se dava

entre as “vendas” localizadas no Morro, constantemente referidas como antros de prostituição

e de venda irregular de bebida aos negros, e as chamadas “lógeas” de fazenda e gêneros do

reino, que abastecia os mineradores de mantimentos, ferramentas, utensílios, vestuário e

materiais diversos. Daí decorre uma outra distinção entre os dois núcleos: o comércio do Pilar,

mais complexo e sofisticado, e o de Antônio Dias, mais básico e restrito (CAMPOS, 2012: 8).

2O texto aqui exposto faz parte do primeiro capítulo do Trabalho de Conclusão de Curso – TCC. 3Ver mais sobre o tema In: ROMEIRO, Adriana. A construção de um mito: Antônio de Albuquerque e o

levante emboaba. Revista Tempo, n29, 2009. pp, 176-177.

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Mas esse mundo de mineradores e muitos outros homens e mulheres livres, libertos e

escravos não estava fora do alcance das autoridades. As ordenações e leis extravagantes

produzidas pelos soberanos portugueses regulamentaram a vida na colônia brasileira. Seu

objetivo fundamental, pelo menos em princípio, era civilizar hábitos e costumes. Existia nas

Minas uma estrutura burocrática minimamente estabelecida, a qual, ainda assim, não era

onipresente por não conseguir atender toda a demanda, sendo comum, no desenrolar de uma

devassa, por exemplo, a substituição ou a mudança do julgador.

Foi apenas a partir do início da segunda década do século XVIII, segundo os estudiosos,

que as ruas começaram a ser percebidas pelos moradores como um espaço sujeito a normas,

controle e manutenção oficial, com tributação e fiscalização do cumprimento de posturas, que

logo tiveram consequências no cotidiano da vila. Isso foi particularmente percebido nos largos,

espaços que sempre se destacavam como centros de sociabilidade frequentados por diferentes

membros daquela sociedade. Dentre outras atividades, nesses largos se concentravam

lavadeiras de roupas, vendeiras e outros escravos ao ganho que se misturavam às populações

locais.

Mas a zona mineradora apresentava peculiaridades administrativas em relação ao restante

da colônia. No mesmo período, quando Vila Rica do Albuquerque era governada pelo

governador e capitão general Antônio de Albuquerque, a localidade se transformou em Vila

Rica do Ouro Preto. A mudança não foi apenas relativa à denominação. Vila Rica passou a

abrigar as autoridades máximas da capitania, as quais chefiavam, inclusive, poderes autônomos

como a Real Intendência do Ouro. Esse poder centralizado acabou por unir física e

administrativamente os dois arraiais mineiros.

O caráter singular da capitania mineira, com a descoberta das minas de ouro e diamantes

proporcionou a Vila Rica uma organização camarária, cerne da organização político-

administrativa presente em qualquer vila da América Portuguesa de então que ali se instalou, e

foi constituída de modo muito particular, quase único no âmbito do Brasil colonial. Houve a

criação dos cargos de sargento-mor, guarda-mor, escrivão e procurador. A Coroa ia pouco a

pouco estabelecendo ofícios governativos que pudessem materializar a sua autoridade no

território mineiro, na imposição da lei e da ordem. Cabia, por exemplo, ao ouvidor proceder as

eleições dos juízes e oficiais da câmara, fiscalizar anualmente os oficiais de justiça, fiscalizar a

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cadeia, os forais, as rendas e as posturas camarárias, zelar pela “boa ordem” e os “bons

costumes”, como destaca a historiadora Maria de Fátima Silva Gouvêa,

[…] a conjuntura política estabelecida a propósito da revolta de 1720 evidencia de

modo bastante claro o enorme conflito jurisdicional então travado no seio da

sociedade de Vila Rica do Ouro Preto. De um lado, uma organização político-

administrativa sendo progressivamente instituída, processo esse fruto em grande

parte das necessidades e ações governativas advindas do boom aurífero em curso.

Uma Coroa distante, que governava seus domínios através da gestão desses conflitos

jurisdicionais via a ação de — e das cartas trocadas entre — seus oficiais. De outro,

um conselho camarário que constantemente esbarrava na dificuldade em defender

plenamente suas prerrogativas e suas jurisdições governativas frente a vigilância e à

interferência das demais autoridades administrativas. Contexto que revela a força da

tensão social que permeava as relações de poder travadas no seio da sociedade de

Vila Rica. (GOUVÊA, 2003: 130-131) Com o aparelho administrativo em formação, nas primeiras décadas do XVIII não se observa

um grande volume de inquéritos e devassas, o que vai se intensificar na década de 1730, período

quando foram produzidos os autos analisados no presente estudo. Tais autos, apesar de

constituírem-se como documentos oficiais elaborados pela câmara de Vila Rica, com objetivo

precípuo de civilizar hábitos e costumes, acabaram sendo utilizados pelos historiadores como

fontes para o estudo do avesso da norma.

Sobre a Câmara Municipal de Vila Rica, centro comercial da capitania durante todo o

século XVIII e início do XIX, o trabalho de Luiz Alberto Ornellas Rezende muito nos ajuda a

entender como se institucionalizaram essas casas administrativas. Eram compostas pelas elites

heterogêneas da região e pelas forças que limitavam localmente os próprios poderes da

instituição. A câmara acabava por representar interesses locais ao mesmo tempo em que

reforçava a presença régia, com incumbências ligadas à normatização do cotidiano das vilas,

como a coleta de taxas municipais, controle dos preços de produtos, fiscalização do comércio,

dentre outras demandas.

Rezende aponta que há na historiografia uma discordância em relação à autonomia das

câmaras de Minas Gerais. Segundo ele, existe “quem diga que houve um processo de redução

da autonomia dos poderes locais na região, e outros autores que veem a região com grande

autonomia, em função da distância em relação ao poder central” (REZENDE, 2015: 61). Não

nos aprofundaremos nesse momento em tal polêmica, pois o que é relevante para esse trabalho

é entender, em linhas gerais, como funcionava a câmara como instituição que se encarregava

de autuar negras de tabuleiro assim como seus senhores, no caso das escravas.

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Havia nos processos da câmara um rito a ser seguido na elaboração dos registros. Os autos

trabalhados seguem claramente um padrão, sendo sempre iniciados pelo escrivão da câmara

com a datação, na qual segue com detalhes mais aprofundados sobre o ocorrido, seguido sempre

de termos de publicação, conclusão, de data, de ajuntado, dentre outros. Também é importante

destacar, em linhas gerais, alguns cargos da câmara como o escrivão,

cargo que foi muito cobiçado por ter domínio de tudo o que se passava na administração

municipal. O procurador da câmara atuava pressionando os outros oficiais da cúpula, para

lançarem editais visando o combate ao atravessamento de mantimentos no comércio ilegal ou

na falta de carne, além da pressão sobre o uso adequado das fontes de água, sendo esses os

homens que detinham a maior experiência com o universo das leis que vigia na colônia. Os

cargos da almotaçaria fazem parte do legado administrativo árabe, e eram atribuídos a eles

funções acerca do comércio, atuavam inspecionando pesos, medidas e licenças a

estabelecimentos comerciais, mantinham listas sobre os preços dos produtos comercializados,

e também investigavam práticas de mercado negro, armazéns irregulares e atividades

comerciais clandestinas (REZENDE, 2015: 93-102). É notável a presença desses homens nos

autos de infração que envolvem as negras de tabuleiro, como se nota na autuação de Teresa,

caso que veremos mais adiante. As petições e os requerimentos foram os itens que mais

refletiram a atuação da câmara municipal junto à sociedade.4

Os governantes e os grupos mais favorecidos, chamados de homens bons, e podemos

entender isto como homens brancos com posses, em sua maioria senhores de escravos, eram os

grupos mais preocupados com o fisco, com o enriquecimento e com a ordem reinante. As negras

de tabuleiro expressavam, ao ver desses homens, perigo a essa ordem, pelo comércio aligeirado,

além do estreito contato com os escravos das minas de ouro, como relata a historiadora Julita

Scarano:

Os negociantes e as autoridades locais manifestaram especial aversão às negras de

tabuleiro. O mercadejar ambulante oferecia um aspecto de clandestinidade, uma vez

que dificilmente se controlavam as mercadorias vendidas e porque eram oferecidos

os mais variados e, às vezes, ilegais produtos. As negras de tabuleiro eram muito

populares, e mesmo pessoas de baixo poder aquisitivo eram suas clientes. Comprando

e vendendo produtos nas vilas, roças e arraias, gozavam de grande popularidade. As

autoridades as acusavam de contrabando, e o fato de trabalharem por conta própria

e, ainda mais, o de serem alforriadas ou livres, aumentava o desfavor em que eram

tidas. (SCARANO, 1994: 16)

4Esse é o tema do segundo capítulo desse trabalho, onde procuraremos mapear a tensão gerada entre as negras

comerciantes e a comunidade.

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A mobilidade da escravaria sempre preocupou a ordem, pois era frequentemente

associada a estorvos, badernas e à clandestinidade. O comércio exigia dessas mulheres agilidade.

As vendas eram sempre feitas em lugares mais afastados, como as paragens nos morros da Vila,

onde poderiam se afastar da fiscalização. Com atenção a esse aspecto, os bandos 5 dos

governadores trataram de limitar as ações das pretas.

Foi esse o caso de Joana, preta fora, que foi escrava do Coronel João Fernandes

Guimarães, presa na cadeia da vila por vender no morro onde é proibido pelo bando do

governador. Ao ser ouvida, disse que foi lhe imposta uma condenação, e por padecer de muitas

necessidades e ser sumamente pobre, pede em termos que deseja ser solta da cadeia.6 Joana não

alegou pobreza sem fundamento, para ser solta teria que pagar uma quantia em oitavas de ouro

para a câmara, o que só acabou acontecendo semanas depois, já que o documento data a prisão

em 18/02/1732, sendo que o recibo de pagamento só foi registrado em 6 de março de 1732,

onde Gregório de Matos [Lobato?] registrou, “[Recebi?] de Joana da Conceição, preta forra,

vinte e quatro réis por [?] de sua condenação que se faz o jornal por ter venda o morro desta

vila e de como recebe a dita que se passe está.”7 Depois de pagar 24 réis por sua condenação,

Joana foi encaminhada para a casa de soltura da vila.

A alimentação do período não era farta, como destaca Eduardo Frieiro, pois a base do que

se comia era composta por milho e mandioca. O autor destaca, em especial, a prática alimentar

dos escravos na região. De acordo com Frieiro:

O escravo negro, pau para toda a obra, armava o tripé de varas, fincado no chão e

pendurava nele o caldeirão de ferro em que se cozinhava o feijão com toucinho,

servido em pratos de estanho. Estendia-se a farinha ao sol numa toalha e ao lado não

faltava o ancorote de água ou aguardente. Galinha, ovos e doces, quando os havia,

muito raros, eram tudo por preço da hora da morte. (FRIEIRO, 1966: 55) Essa escassez de alimentos perdurou durante todo o período colonial, não só no território

mineiro como na região dos engenhos. Mesmo no final dos Setecentos a situação da crise de

gêneros de subsistência revelava-se nos documentos oficiais. Os governadores empenhavam-

5Os bandos dos governadores eram uma espécie de conjunto de decretos ou leis que um governador mandava

publicar, para evitar desordens, que continha a pena imposta aos transgressores, de alguma lei militar. Os bandos

fazem parte dos documentos produzidos pela secretaria de governo, um espaço central da governação, na qual se

nota, em uma gama vasta de relação com as leis, requerimentos, bandos, ordens, editais, termos, dentro outros, a

possibilidade de se obter informações sobre as relações que ligavam os colonos portugueses aos seus interesses

metropolitanos. In: BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico.

Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 - 1728. 8 v. p, 31. 6CMOP CX. 03 DOC. 22. Arquivo Público Mineiro, Câmara Municipal de Ouro Preto. 7Ibid.

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se para que os lavradores plantassem não só a mandioca, mas feijão e milho para abastecer os

povos, como se pode perceber no bando citado pelo escrivão Valentim Nunes de Sousa, na

autuação da Joana da Conceição, documento já mencionado anteriormente

[…] e somente será permitido que as pessoas moradoras do morro e mais lugares

acima ditos, possam mandar conduzir para a sua casa comestível que houvessem para

seu sustento, porém conduzindo-se pelos seus negros e levarão os tais escritos de seus

senhores em que declararem o que levarem os ditos escravos, e no caso em que sejam

achados sem o tal escrito ficarão inclusos na pena deferida aos lavradores de milho,

feijão, farinha, casos poderão levar os ditos gêneros ou vendas nos ditos lugares [..]8. Em um outro auto de infração9, envolvendo a negra forra Teresa, presa por vender cachaça no

morro da vila, Valentim Nunes de Souza cita o mesmo bando do processo de Joana da

Conceição, do então governador das minas de ouro e diamante, Dom Lourenço, onde é proibido

a qualquer pessoa que seja, que possa ter nos lugares do morro Ouro Podre, Ouro Fino, Ouro

Guerra, Córrego Seco, Rio das Pedras e Campinho, nenhuma carta de vendas, (uma espécie de

licença que permitia as vendas), de seco ou molhado, sendo ela pública ou particular, sendo,

ainda, devidamente proibido vender aos negros, público esse importante para as negras de

tabuleiro, ou aos brancos, qualquer gênero que seja, e quem não cumprisse a ordenança, seria

condenado a

[..] um mês de prisão na cadeira desta Vila e pagará cem oitavas de ouro, das quais

serão sessenta para a Real Fazenda, vinte para o aferido das quais pagará pelo novo

regimento aos oficiais de justiça as diligências que fizeram, e as outras vinte para a

câmara desta Vila, das quais darão dez ao denunciante se houver, isto se entende

enquanto pessoas brancas, porque sendo escravos serão sempre presos e seus

senhores pagaram as referidas condenações, como também sendo forros os quais não

serão soltos sem primeiro pagarem, e uns e outros assim forros como escravos,

cessam [afortados?] no alto da câmara [..]10. O bando também conta a nós sobre a possibilidade que se tinha em denunciar as práticas

clandestinas, sendo que o denunciante, quando se tratasse de um infrator enquadrado no

universo das pessoas brancas, ganharia dez oitavas de ouro por cada denunciação. No final da

ordenança, Dom Lourenço pede para que espalhem a notícia a todos, para que as pessoas não

pudessem alegar ignorância, mandando publicar nos morros e demais lugares da vila sua

ordem.11

8CMOP CX. 03 DOC. 22. Arquivo Público Mineiro, Câmara Municipal de Ouro Preto. 9CMOP CX. 03 DOC. 21. Arquivo Público Mineiro, Câmara Municipal de Ouro Preto. 10Ibid. 11Ibid.

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É instigante pensar na contradição que permeava essa tensão entre as pretas e os agentes

administrativos. Se por um lado essas mulheres incomodavam alguns setores da sociedade

como outros comerciantes, pela clientela disputada, e os mineradores, pelo desvio de oitavas de

ouro, já que os escravos das minas gastavam grande parte do ouro que roubavam na extração

com comidas e bebidas, e por isso justificamos aqui a proibição contida no bando, do comércio

perto dessas regiões. Por outro lado, sabemos que essas pequenas comerciantes ambulantes

abasteciam uma parte significativa daquela sociedade. Assim, proibir totalmente a atividade

desempenhada por elas seria arriscar a fome de muitos. O que se nota, principalmente pelos

trechos destacados dos bandos, é uma intenção de controle dessas mulheres. Vejamos:

[...] da ordem de respeito, faço saber as que este meu bando, virem que tendo respeito

os moradores do morro desta vila e de outros muitos lugares desse governo,

queixando-se das perturbações que continuamente tem pelas repetidas desordens e

desgraças sucedidas por causa das muitas vendas, que no dito morro e mais partes,

se as quais estando abertas de dia e de noite concorrem os jornais aos negros,

embebedando-se estes de que tem resultado a seus entre todos esses [cretinos?], em

grande danos e prejuízos dos senhores das ditas negras. Hei por bem ordenar que

esse meu bando, que no dito morro citado, os lugares do distrito dessa vila, em que

atualmente se anda tirando ouro, não se venda alguma de qualquer pessoa que seja,

principalmente vendas de negras, cativas ou forras, e quaisquer das sobre ditas

pessoas que se acharem nas tais vendas, e se tomará tudo o que se achar nelas. E

será presa, na cadeia desta vila por tempo de três meses, de onde pagará sendo forra

quarenta oitavas de ouro, e sendo cativas se pagará seus senhores, o que a câmara

desta vila cobrará para as despesas desta vila das obras públicas, e sem pagarem a

dita condenação não serão soltas pela câmara. A cuja ordem ficarão lá, que se

prenderem pelo que mandar a todos os oficiais de justiça, especialmente seu juiz

ordinário desta vila e mais oficiais subordinados da câmara dessa. Façam objetivos

envio desse meu bando em todas as vendas que se acharem dentro de cem passos dos

lugares referidos, onde se anda tirando ouro com serviço mineral, e para que venha

a notícia a todos se publicará este meu bando, assim de caixas e registrando-se nos

livros das instâncias deste governo e da câmara desta vila. [..]12 Esta peça é de um bando do governador das minas Conde das Galveas, André de Mello de

Castro, citado pelo escrivão Antônio Falcão Pereira no auto de infração da escrava de Manoel

de Oliveira, a preta Luísa, presa na paragem de Ouro Fino, vendendo com um tabuleiro com

três pães de trigo, e na mesma paragem várias outras negras do tabuleiro foram encontradas.

Na mesma ocasião, outros casos foram autuados. A preta escrava de Domingos Gonçalves foi

achada com um tabuleiro que continha doze broas e quatro pães de trigo, marcados na balança.

Uma preta forra moradora acima da ponte de Antônio Dias foi encontrada com um tabuleiro

com cinco pães de trigo e duas rosquinhas, e dois pedaços de queijo com uma balança com seu

marco de quarta. Joana, que dizia ser escrava de Henrique Gonçalves, morador do Córrego Seco,

12CMOP Cx 05 Doc 04. Arquivo Público Mineiro, Câmara Municipal de Ouro Preto.

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que teria lhe dado licença por dois meses para trabalhar no dito morro, escrito que foi achado

dentro do tabuleiro com seis broas e um lenço com laranjas, quando iria ser presa, fugiu para a

capoeira e não se pode realizar a prisão. Dentro da capoeira, foi achada outra negra, chamada

Rosa, escrava de Joseph Gonçalo Martinez, também morador do Córrego Seco, com outro

escrito, que dizia lhe dar licença para trabalhar onde quiser, mas por ter sido achada em partes

proibidas, por ser mato, se supôs que andava com “má efeito”. Outra negra, de nome Teresa,

escrava de Manoel Froez da Cruz foi achada com seu tabuleiro, e na paragem entre o morro

Ouro Fino e a casa do senhor Domingos de Abreu Lisboa, o escrivão relatou que mais uma

negra foi achada, chamada Antônica que era escrava de Luíza da Conceição, com um tabuleiro

com dezesseis pães de trigo e oito broas. Outras negras foram encontradas e relatadas pelo

escrivão

[..]E assim, mais uma negra por nome Maria, escrava de Manoel de Oliveira,

morador na rua nova [?], com quatro pães de trigo. E assim, mais uma negra por

nome Rosa, escrava de José da Costa, morador da cruz do Padre Faria, com um saco

com quatro bolos de resto, que diz andava vendendo para fazer jornal. E assim, mais

uma negra por nome Tereza, escrava de Domingos [?], morador no aldeado Padre

Faria, que a dita negra foi achada na dita paragem, com oito broas de milho em um

cesto. E assim, mais uma negra, por nome dizia Catharina, escrava de [?] [?], com

um tabuleiro com doze broas, [?] digo. E assim, mais uma negra por nome Josefa,

escrava de Domingos de Abreu Fontes, morador de São Bartolomeu, com um tacho

em que trazia um resto de angu de milho, que diz o ser o seu sustento, isto é o que se

achou em verdade. [..]13. A presença de várias negras autuadas, reafirma a intensa presença dessas mulheres no comércio

aligeirado no período. Luísa da Conceição, mulher preta forra, dona de Antônica, uma das

negras de tabuleiro autuada, justificou que ao trazer sua negra para vender na vila, pães de trigo

e algumas broas, por acaso se sucedeu subir com o tal tabuleiro ao Ouro Fino, entre o dia 5 ou

6 do dito mês (agosto), onde foi presa pelos oficiais de justiça, metida na cadeia e condenada,

com o pretexto de que a dita escrava Antônica teria incorrido contra o bando o governador,

bando esse que impedia as tais vendas no morro. Luísa continuava alegando que o bando se

expressava enquanto as vendas atuais, sabendo que um edital da câmara havia sido publicado

permitindo a venda de tabuleiro de pão, a preta dona de Antônica, completa que o dito juiz

ordinário não quer atender a justificativa e ainda mantém a escrava, negra de tabuleiro presa

por oito dias, e se assim continuasse, recorreria ao governador.

13Ibid.

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Também chamam a nossa atenção os alimentos comercializados, broas, pães e algumas

frutas, a base alimentar daquela sociedade sem tantos recursos. Mas, apesar da venda proibida

as várias negras autuadas, Domingos da Rocha Ferreira, o juiz ordinário e capitão mor da vila,

absolve todas as autuadas das penas impostas no bando, mandando que sejam soltas e paguem

às custas dos autos com as mais delinquências dos oficiais, para passarem alvará de soltura

depois de pagarem as ditas penas.

Nenhuma negra do tabuleiro autuada que analisamos até o momento permaneceu presa

no final do processo, o que nos leva a pensar que as escravas tiveram suas condenações pagas

pelos seus senhores e as forras pagaram também as multas às quais foram condenadas. É

possível supor também ter sido possível o pagamento das emancipadas pelo próprio comércio

de tabuleiro, que permitia algum acumulo de pecúlio.

Ana Maria, escrava que dizia ser do senhor Alexandre Correia, morador de Padre Faria,

autuada em uma paragem junto a uma capela, pelo mesmo escrivão do caso das várias negras

presas, Antônio Falcão Pereira, e o escrivão da Almotaçaria, com um tabuleiro que continha

poucas broas feitas de farinha de milho que vendia a vintém, uma espécie de pão de ló meio

torrado, e pela vendagem proibida, prenderam a dita negra, e a levaram para a cadeia da vila, o

escrivão justifica a prisão da negra citando o mesmo bando do governador André de Mello e

Castro, que a preta teria incorrido.14

O que merece destaque nessa autuação é que o senhor Alexandre Correia de Magalhães

teria ido pessoalmente até a Câmara alegar que a dita escrava autuada não era sua, e por isso

poderia ser condenada nas penas do bando do governador, sendo assim, passou seus direitos

para dois procuradores em sua defesa. Mas o que surpreende, pelo menos nessa primeira análise,

é que mesmo alegando não ser Ana Maria escrava de sua propriedade, e tendo nomeado dois

procuradores para sua defesa, valendo aqui ressaltar que quando uma escrava era presa quem

respondia pelo crime era seu senhor, Alexandre paga dezenove oitavas, atestados pelo escrivão

do processo. E sem demais dúvidas, a escrava é encaminhada para a casa de soltura sem mais

nenhum embargo.15

As negras de tabuleiro ofereciam riscos à ordem, elas incomodavam desde os oficiais da

justiça até os moradores. Apesar da nossa documentação ser produzida pelas instâncias que

14CMOP CX. 06 DOC. 21. Arquivo Público Mineiro. Câmara Municipal de Ouro Preto. 15Ibid.

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representavam o poder, ou seja, dessas fontes terem um objetivo específico, elas demonstram a

tensão travada entre as negras de tabuleiro e o mundo que as circundava. Toda essa

movimentação para impedir a atividade das negras de tabuleiro era consequência da agilidade

que essas mulheres tinham em romper com a estrutura social imposta. As pretas sobreviviam

às margens dos sistemas administrativo e judicial, e mesmo quando eram autuadas, alegavam

uma série de questões para o ofício realizado, sendo a extrema miséria o principal deles. Mas

também procuravam demonstrar, por vezes até com documentos, possuírem licença para tal

comércio. De fato, elas desenvolveram, ao menos, algumas estratégias para se esquivar da

justiça punitiva, e sobreviveram abastecendo, com alimentos básicos, diferentes trabalhadores

e outros moradores locais, contribuindo para tornar mais complexa aquele arranjo social que se

configurou na sociedade mineira setecentista.

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