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    O P r o c e s s o d e I n t e g r a o E u r o p e i a

    e a C o n s t i t u i o P o r t u g u e s a

    Armando Marques GuedesProfessor Associado da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

    Francisco Pereira Coutinho

    Doutorando da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

    Resumo

    O artigo olha de perto a Constituio Portu-

    guesa, pelo prisma das sete revises constitu-

    cionais que tiveram lugar desde 1976. Torna-se

    fcil verificar que todas as revises que tiveramlugar foram induzidas, na maior parte dos

    casos directamente, por processos associados

    com a integrao europeia em curso. Alguns

    deles fizeram-no em momentos constitu-

    cionais antecipatrios que tornaram possvela nossa entrada na Comunidade Europeia. A

    maioria seguiu os imperativos dos sucessivos

    Tratados. Um caso atpico foi o ligado criaode um Tribunal Penal Internacional. O artigo

    liga um ao outro estes dois processos paralelos

    o das revises constitucionais portuguesas e

    o da integrao europeia e encara o estabele-cimento desta ligao como um reflexo de uma

    nova comunidade poltica, mais abrangente,

    imaginada pelas elites polticas portuguesas.

    Abstract

    The Process of European Integration and the

    Portuguese Constitution

    The paper takes a close look at the Portuguese

    Constitution, through the prism of the seven revisions

    which it underwent since 1976. It is easy to note that

    all of the revisions which took place were induced, in

    most cases directly, by processes associated by the

    ongoing European integration. Some did so in

    anticipatory constitutional moments which renderedpossible our entry into the European Community.

    Most followed the successive Treaty imperatives. An

    atypical case was linked to the creation of the

    International Criminal Court. The paper connects

    these two parallel processes that of Portuguese

    constitutional revisions and that of European

    integration to each other and sees the establishment

    of this link as a reflection of a wider and new political

    community imagined by Portuguese political elites.

    Outono-Inverno 2006N. 115 - 3. Sriepp. 83-112

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    O Processo de Integrao Europeia e a Constituio Portuguesa

    Introduo

    Uma vintena de anos aps a entrada de Portugal na Unio Europeia (doravante

    UE), os impactos jurdicos da adeso continuam a ser objecto de um crescendo deinteresse e discusso. E decerto continuaro a s-lo por muito tempo. Neste artigoescolhemos como ponto focal da ateno dispensada os impactos poltico-constitucionaisque ela teve, j que nos pareceu til cartografar de maneira precisa alguns dos contornosda evoluo do processo portugus de integrao europeia, conjugados com aquelesoutros incorridos na progresso da nossa ordem constitucional1. Esperamos assimalimentar as discusses e o interesse suscitados, especificando-lhes um ponto de apli-cao delineado com uma clareza maior do que aquela que infelizmente tem sido

    habitual.A opo por uma anlise do mbito constitucional levou-nos a preterir, em larga

    medida, o estudo de outras questes relacionadas com a integrao europeia, tais como,por exemplo, a europeizao dos tribunais ou da administrao pblica nacionais.Ou, pelo menos, a secundariz-las. fcil explicar porqu. No h dvida que o es-miuar aturado de minudncias nos oferece sempre dividendos analticos a no des-prezar; uma anlise jurdica que se restrinja a nveis micro tem, por conseguinte,enormes vantagens. Um mnimo de ateno mostra-nos, contudo, que as implicaes

    jurdicas da adeso portuguesa UE so mais plenamente intelegveis se e quandoperspectivadas num quadro analtico maior, ou seja, tornam-se mais ntidas numplano macro. Isto significa que os investimentos heursticos que faamos se tornamto mais rentveis no sentido forte de que nos permitem interpretaes mais densas,ricas, e profcuas quanto maior for a abertura de ngulo que consigamos lograr2.No caso em anlise, a razo para tanto simples: o que est em causa naquilo queaqui abordamos o esboo de uma redefinio da comunidade poltica originria, o

    que forma o contexto patente para uma qualquer completude sistmica que possamosambicionar.

    1 No podemos deixar de agradecer os comentrios, quantas vezes da maior utilidade, que as primeirasverses deste texto receberam de Armando M. Marques Guedes, Miguel Poiares Maduro, Rui PintoDuarte, Nuno Piarra, Leonor Rossi, NGunu Tiny, Pedro Velez, Ravi Afonso Pereira, Gonalo AlmeidaRibeiro, e Jorge Azevedo Correia. A responsabilidade pelo texto final , no entanto, apenas dos doisautores.

    2 Por outras palavras: a juridicidade no pode explicar-se a ela prpria, ou seja sem recurso a enquadramentosmais amplos que nos permitam ver o encadeamento dos vrios formatos que, a par e passo, assume. Em

    poucos lugares tal to evidente como nos da juridicidade constitucional.

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    Armando Marques Guedes e Francisco Pereira Coutinho

    certo que a natureza singular da rpida evoluo da UE, que j em 1986 tinha,com nitidez, ultrapassado o estdio de mera organizao internacional, prenunciavaalteraes significativas no plano constitucional. Como iremos ter a oportunidade

    de verificar nalgum detalhe, os sucessivos aprofundamentos da Unio, e em especialaqueles que desencadearam alteraes tectnicas como o Tratado de Maastricht, re-flectiram-se de facto com presteza e em profundidade no texto constitucional gerandopor vezes, no processo, debates que se centraram em matrias to diferentes umasdas outras como a relao entre o Direito da UE3e a Constituio portuguesa, ou a pr-pria legitimidade democrtica do nosso processo de integrao. Mas era difcil prevera escala que efectivamente tiveram.

    Eloquentes, no que diz respeito a essa reflexo, so as duas ltimas revises cons-

    titucionais. A primeira (a de 2004) procurou esbater a possibilidade de conflito entrea afirmao do, por um lado, primado do Direito da UE feita pelo Tribunal de Justiadas Comunidades Europeias (daqui por diante TJCE) e, por outro, o primado da Consti-tuio nacional. A segunda reviso (a de 2005) teve como razo prxima a necessidadede ratificao do Tratado Constitucional Europeu, o que levou a uma alterao doregime do referendo nacional com vista a tornar mais fcil, de um ponto de vista

    jurdico-constitucional, o referendar daquele Tratado.Estes dois casos no so de modo nenhum, como iremos tornar patente, nicos,

    num processo que tem sido marcado por acomodaes4 desse tipo. A Constituioportuguesa tem-se sucessivamente adaptado pertena de Portugal Unio, verifi-cando-se que as constantes revises constitucionais entretanto ocorridas tiveramsempre como espectro a necessidade de uma harmonizao com o desenrolar doprocesso de integrao. Nisso, a cronologia no tem sido linear: como haver a opor-tunidade de verificar na primeira parte deste estudo, umas vezes tem-no tido a posteriori,outras por antecipao. Mas sempre essa necessidade se tem feito sentir e vindo a

    3 Uma palavra de salvaguarda. Por razes de simplicidade, ao longo do texto utilizaremos a expressodireito da UE, ainda que, em certos casos, fosse mais correcto utilizar a expresso Direito Comunitrio,uma vez que em determinadas situaes as normas da UE no beneficiam da autoridade normalmenteatribudas s normas comunitrias.

    4 Como bem nota Jorge Miranda (O direito constitucional portugus da integrao europeia. Algunsaspectos, Nos 25 anos da Constituio da Repblica Portuguesa de 1976 Evoluo Constitucional e PerspectivasFuturas, Associao Acadmica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 2001, p. 17), num artigo queabarca, embora sob uma perspectiva algo diferente da nossa, a temtica do presente estudo, seno aprpria pertena s Comunidades, pelo menos os sucessivos passos no sentido na Unio, para maior

    integrao, tm pressuposto sempre reviso constitucional ou mutao tcita da Constituio (itlico nosso).

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    O Processo de Integrao Europeia e a Constituio Portuguesa

    actuar como constrangimento formatador essencial na progresso diacrnica daConstituio portuguesa.

    O significado deste processo sistemtico de adaptaes, iremos argumentar,

    torna-se por demais evidente: e o de que a dinmica de constitucionalizao nacionalest longe de ser concebvel como um processo endgeno, constrangido por merasinternalidades expressivas de eventuais projectos c gizados para reconfiguraesdomsticas da comunidade poltica originria. Pelo contrrio e ser essa a linhade argumentao implcita que seguimos a dinmica de adaptao constitucionalportuguesa responde, em larga escala, actuao de externalidades que so depoisinternamente consentidas pelos actores poltico-jurdicos que, em Portugal, tm tidopoder para o fazer5.

    As implicaes de tal facto no podem ser menosprezadas, dada a amplitude dasua alada. Para tornar claras as traves mestras da linha de argumentao escolhida:talvez mais relevante, em termos prticos, do que as alteraes formais descritas, terosido as verdadeiras mutaes introduzidas na ordem constitucional portuguesa pelopoder efectivamente exercido pela UE no quadro das suas atribuies 6, que subverterama prpria dinmica do processo de reviso constitucional, tornando-o instrumental faceao processo de integrao europeia7. Ou seja, mais do que simples modificaes avulsas,as transformaes ocorridas devem ser encaradas enquanto reconfiguraes sistmicas de alcance

    maior. Como iremos tentar ilustrar, a influncia de efeitos informais sobre a prticaconstitucional acabou por ser responsvel pelo surgimento de vrias das revises cons-titucionais ocorridas nos ltimos vinte anos. Em nossa opinio, acomodaes do tipodas verificadas pautam o fluxo de evoluo conjunta dos dois processos que aqui

    5 Neste sentido, afirmando mesmo a existncia de uma verdadeira heterovinculao constitucional quedeterminaria o contedo das revises constitucionais, v. Paulo Otero, Legalidade e Administrao Pblica,

    Almedina, Coimbra, 2003, p. 607. No podemos deixar de aqui reconhecer a importncia dos trabalhos,inovadores em Portugal, de Isabel Jalles para um melhor enquadramento e uma melhor compreensodestas mutaes.

    6 Introduzimos aqui o conceito de mutao constitucionalpor oposio aos de reforma oureviso constitucionalna esteira da conceitualizao avanada no incio do sc. XX por Georg Jellinek (Reforma y mutacion de laConstitucin, Centro de Estudios Constitucionales, (trad. Christian Fster, LXXX, Madrid, 1991) que,recorde-se, identificava esta ltima com a modificao dos textos constitucionais por aco voluntria eintencional, enquanto a primeira se continha numa modificao lograda sem alterao formal do textoconstitucional, a qual poderia ocorrer pela prtica parlamentar, pela prtica constitucional, ou ainda pelodesuso.

    7 Paulo Otero (op. cit., p. 606) alude, a este propsito, a um processo informal dinamizador de uma

    normatividade no oficial que se foi impondo ao texto da Constituio oficial.

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    tentamos abordar em paralelo: por um lado, a dinmica de integrao europeia;e, por outro, a progresso da ordem constitucional portuguesa. Mais ainda, asacomodaes sucessivas demonstram a presena de uma progressiva, seno subordi-

    nao, pelo menos indexao genrica do segundo (o das mutaes constitucionaisinduzidas na nossa ordem constitucional) ao primeiro (aqueloutro processo que re-mete para a mecnica maior de construo europeia).

    Ou talvez melhor: o andamento dos dois processos por ns aqui arrolados e aferidospe em muito clara evidncia um enorme grau de porosidade na conceitualizaoformal, levada a cabo pelas elites polticas portuguesas, da nossa comunidade ima-ginada de pertena8. Embora seguramente este no tenha sido o nico caminho per-corrido, a sintonia, chame-se-lhe assim, com maior facilidade compreendida em

    sede da lgica de mutaes constitucionais que tem vindo a alargar, a par e passo masde maneira teimosa, os limites da comunidade poltica imaginada, fazendo-oscrescentemente coincidir com a mais geral dos europeus.

    O que acabmos de sugerir no deixa, naturalmente, de se ver projectado na estruturaorgnica que decidimos dar ao presente artigo. Assim, num primeiro passo do que sesegue, levamos a cabo um breve rastreio das sete revises constitucionais que emPortugal ocorreram desde 1976. Numa segunda parte, centrar-nos-emos, em conso-nncia com as finalidades que enuncimos, na procura da projeco que o poder detidopela UE tem tido na ordem constitucional portuguesa, especialmente nos mecanismosdo seu exerccio, o que nos permitir (pelo menos assim o esperamos) aferir o realimpacto da adeso UE sobre a ordem constitucional portuguesa. Em breves concluses,terminaremos com uma abordagem geral deste mesmo ponto, tecendo algumas consi-deraes sobre a textura e as consequncias do impacto verificado.

    1. Um Primeiro Rastreio do Impacto do Processo de Integrao Europeia nasRevises da Constituio Portuguesa

    I. A UE conheceu nos ltimos vinte anos alteraes substanciais que resultaram,muito embora em grau diferente, de mudanas exigidas no texto do Tratado de Maastricht

    8 Comunidade imaginada expresso que aqui utilizamos num sentido prximo do de Benedict Anderson(em Imagined Communities, Cambridge University Press, Cambridge, 1992), que diz respeito construo

    dos esquemas conceptuais organizadores da comunidade poltica de referncia de actores sociais.

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    O Processo de Integrao Europeia e a Constituio Portuguesa

    (1992), do Tratado de Amesterdo (1997) e do Tratado de Nice (2002). O mesmo podersuceder caso o Tratado Constitucional (cujo texto data de 2004) venha a entrar em vigor,algo que se afigura menos provvel face suspenso sine die do processo de ratificao,

    acordada no Conselho Europeu de Gotemburgo de Junho de 2005 na sequncia dosreferendos negativos ocorridos na Frana e na Holanda.O impacto das transformaes ocorridas a nvel europeu foi imediato no quadro

    das jurisdies nacionais9. A ordem jurdica portuguesa no foi excepo, verificando-seque as seis revises ocorridas nos ltimos vinte anos tiveram, em maior ou menorgrau, como causa prxima a necessidade sentida de acompanhar de perto o passo doprocesso da nossa integrao europeia.

    II.Comecemos por uma constatao. A verso originria da Constituio portuguesade 1976, apesar de no totalmente imune influncia de algumas declaraes e con-venes internacionais (v. g. o art. 16., n. 2), no continha nenhuma referncias Comunidades Europeias. De algum modo, at, contrapunha-se-lhes; ou, pelo menos,indicava uma direo alternativa em relao a ela. Numa altura em que o processo deintegrao estava ainda dominado pela vertente econmica, a opo da Constituioportuguesa, fruto de um imbricado compromisso entre foras polticas de pendormuito diverso, embrenhou-se no sentido da adopo de um sistema econmico misto,mas com forte pendor colectivizante (v.g. art. 92., n. 1, da CRP76), a que acresciamreivindicaes soberanistas (v.g. art. 7.) dificilmente harmonizveis com a adeso auma entidade de matriz supranacional10. Vivia-se uma fase de um curioso dualismo.

    9 Embora aqui no levemos a cabo um estudo comparativo, h que sublinhar o enorme interesse e alcanceanaltico que um trabalho desses poder vir a ter para um mais completo enquadramento das questes quesuscitamos neste trabalho. Comparaes sitemticas com o que tem tido lugar noutros Estados membrospermitir-nos-iam deslocar a ateno dos processos de adaptao centrados num Estado para o

    enquadramento maior em que cada uma e todas elas tm lugar: o constitudo pela Unio Europeiaenquanto nova comunidade poltica de referncia viabilizando, assim, um estudo fundamentado sobre ocomplexo e laborioso processo de construo desta.

    10 A questo da compatibilidade do texto da Constituio de 1976 com os Tratados de Roma foi objecto decandente debate na doutrina portuguesa nos anos que antecederam a adeso. As opinies dos intervenientes,geralmente centradas na necessidade de adaptao do regime econmico constitucional portugus ou nacompatibilidade da adeso a entidade supranacional com o princpio da independncia nacional postu-lado pela Constituio, chegariam, contudo, a resultados muito diferentes. Pugnando pela necessidade dereviso da Constituio, em particular do seu regime econmico, com vista a permitir a adeso C.E.E.,encontramos, entre outros, Paulo de Pitta e Cunha (A regulao constitucional da organizao econmicae a adeso C.E.E., Estudos sobre a Constituio, III Vol., Petrony, Lisboa, 1979, p. 455 e O sistema

    econmico portugus e a adeso ao mercado comum, Portugal e o Alargamento das Comunidades Europeias,

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    Embora a maioria das elites polticas nacionais fosse j ento porventura favorvel plena integrao portuguesa na Europa comunitria, a correlao de foras existenteno lhe permitia uma expresso conclusiva.

    A primeira reviso constitucional, ocorrida em 1982, viria, contudo, a prepararo caminho da adeso s Comunidades Europeias, afastando normas e princpios cons-titucionais que poderiam, eventualmente, constituir um obstculo integrao nasComunidades Europeias11 e aditando um n. 3 ao art. 8., referente em termos gerais aoDireito Internacional de origem convencional, nos termos do qual foi declarada avigncia automtica na ordem jurdica portuguesa das normas emanadas dos rgoscompetentes das organizaes internacionais de que Portugal seja parte, desde de quetal se encontre expressamente estabelecido nos respectivos tratados constitutivos.

    O preceito foi introduzido com o propsito de abarcar o chamado direito secundrio daUE12, o qual, desta forma, poderia vigorar sem necessidade de interposio, ou transfor-mao, legislativa.

    No vale decerto a pena perder muito tempo com o que diz respeito s coordenadasde uma transformao que to bem conhecida como a que ocorreu em 1982. Mas naleitura que aqui defendemos, note-se, a reviso de 1982 demonstrou uma marcadapermeabilidade ( este o termo) Europa: redundou numa antecipao das exigncias

    Inteuropa, Lisboa, 1981, p. 57) e Fausto Quadros, para quem a Constituio seria materialmente incompa-tvel com o esprito do Tratado de Roma (Problemas Polticos e Constitucionais do alargamento daComunidade, Revista de Poltica Externa, n. 2, Lisboa, 1978, p. 12). Em sentido contrrio, sustentando acompatibilidade entre a Constituio portuguesa e o Tratado de Roma, pronunciaram-se, entre outros,Jorge Miranda (A Constituio Portuguesa e o Ingresso nas Comunidades Europeias, Portugal e oAlargamento das Comunidades Europeias, Inteuropa, Lisboa, 1981, p. 94) e Marcelo Rebelo de Sousa(A adeso de Portugal C.E.E. e a Constituio de 1976, Estudos sobre a Constituio, III Vol., Petrony,Lisboa, 1979, pp. 457 e segs.). Para este ltimo autor, a eventual incompatibilidade do contedo de algunspreceitos constitucionais, particularmente no mbito do regime econmico, seria desmentida pela prticaconstitucional, o que seria suficiente para afastar eventuais obstculos adeso (Marcelo Rebelo de Sousa,

    Aspectos Institucionais da Adeso de Portugal, Portugal e o Alargamento das Comunidades Europeias ,Inteuropa, Lisboa, 1981, p. 149). Sobre este debate, v. ainda Jorge Miranda, O direito constitucionalportugus da integrao europeia. Alguns aspectos., cit., pp. 28 a 32.

    11 A este respeito, cumpre salientar a extino do Conselho da Revoluo, que poderia contender com oprincpio democrtico inerente ao processo de integrao (Antnio Vitorino, A adeso de Portugal sComunidades Europeias A problemtica da aplicabilidade directa e do primado do Direito comunitrioface ao nosso ordenamento jurdico, Estudos de Direito Pblico, Cognitio, 1984, p. 12, nota 2), ou o factode as alteraes introduzidas na Constituio econmica reflectirem um esbatimento da opo socialistade 1976, antecipando uma mudana de rumo no sentido de uma economia pluralista, consonante com ados demais Estados membros, que ocorreria somente em 1989.

    12 Jorge Miranda, O Tratado de Maastricht e a Constituio Portuguesa, A Unio Europeia Numa Encru-

    zilhada, obra colectiva, Almedina, Coimbra, 1996, p. 47.

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    O Processo de Integrao Europeia e a Constituio Portuguesa

    de a integrao plena de Portugal na Europa, que ento estava j a ser projectada e aconstituir objecto de preparao em fast tracksem inmeros planos. Invertendo a ordemcronolgica normal, operou por antecipao. Por outras palavras, e em termos se se

    quiser genealgicos: o verdadeiro momento constituinte da nossa primeira grandereviso constitucional do ps-25 de Abril teve lugar antes de 1982, e radicou na tomadacolectiva de uma deciso que levou as nossas elites polticas a procurar garantir aexequibilidade da adeso portuguesa Europa.

    III. A adeso de Portugal s Comunidades Europeias, que teve lugar em 1 de Janeirode 1986, ocorreu sem ter sido sentida a necessidade de uma qualquer reviso consti-tucional. Mas uma nova mutao formal no iria tardar. Pensar-se-ia que a reviso

    de 1982 teria afastado todas as normas ou princpios constitucionais que poderiamconstituir entraves adeso. Pouco tempo depois, contudo, sob presso de vastossectores da opinio pblica13, a segunda reviso constitucional, ocorrida em 1989, viria ademonstrar o contrrio ao reformular boa parte das matrias relativas organizaoeconmica, afastando-a definitivamente de uma lgica socialista, sobre o pano de fundode uma integrao europeia que preconizava uma unio econmica que se no com-padecia, a longo prazo, com princpios constitucionais como o da irreversibilidadedas nacionalizaes14.

    A reviso constitucional de 1989, muito embora estivesse centrada na organizaoeconmica, viria ainda a introduzir um conjunto de disposies de enorme relevnciacom incidncia mais directa no processo de integrao europeia. Em primeiro lugar,acrescentou um n. 5 ao art. 7., no qual se previa que Portugal se iria empenharno reforo da identidade europeia e no fortalecimento da aco dos Estados europeus afavor da paz, do progresso econmico e da justia nas relaes entre os povos. Por outrolado, desenvolvendo os laos de identificao com o processo de integrao, operou

    13 Vital Moreira argumenta, a este respeito, que a reviso de 1989 teve um salutar efeito de descarga depresso que se vinha acumulando sobre o texto constitucional em alguns domnios e que ameaava aprpria credibilidade e autoridade normativa da Lei Fundamental (A segunda reviso constitucional,Revista de Direito Pblico, Ano IV, n. 7, Janeiro/Junho 1990, p. 14).

    14 Art. 85. da CRP89 e 296. da CRP89 (actual art. 293.). No mesmo sentido, refira-se tambm a eliminaoda referncia a nacionalizaes entre as incumbncias do Estado (art. 81., alnea e) da CRP89), a restrioe o condicionamento de interveno administrativa na gesto de empresas privadas (art. 87., n. 2, CRP89,actual art. 86., n. 2) ou ainda a substituio, na clusula de limites materiais, do princpio da apropriaocolectiva dos principais meios de produo pelo da coexistncia de sectores pblico, privado e cooperativoe do princpio da planificao democrtica da economia pelo da existncia de planos no mbito da

    economia (art. 288., alneas f) e g)).

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    a constitucionalizao do Parlamento Europeu15, bem como a atribuio (ainda queno em exclusividade) aos cidados da ento CEE de capacidade eleitoral para aeleio dos titulares de rgos de autarquias locais 16. Por ltimo, merece especial

    meno a alterao cirrgica do art. 8., n. 3, do qual foi retirado o advrbio expres-samente com o claro objectivo de permitir a aplicao directa das directivas comuni-trias, porquanto apenas os regulamentos comunitrios esto contemplados no textodos Tratados como dotados de aplicabilidade directa17. A pretexto da economia, umnovo passo poltico de peso tinha sido dado.

    IV. Continuemos.A assinatura do Tratado de Maastricht, em 7 de Fevereiro de 1992,esteve na origem da terceira reviso da Constituio. semelhana do que sucederia

    com um vasto conjunto de Estados membros, a natureza e amplitude das matriasatribudas UE pelo referido Tratado, matrias essas que envolviam a partilha depoderes soberanos dos Estados, imps a necessidade de reformas de teor constitucional.Como observadores atentos no deixaram logo de sublinhar, o passo dado era de gigante.

    Os imperativos decorrentes de uma to imprescindvel quo rpida adequaoseguiram-se-lhe, naturalmente, a curto trecho. Com a reviso de 1992 pretendeu-seefectuar um controlo de constitucionalidade sistmico, empreendido com o fito deafastar preceitos constitucionais que pudessem contrariar este Tratado e possibilitando,dessa forma, no s a sua ratificao como tambm a preveno de conflitos entre aordem jurdica nacional e a europeia.

    Efectivamente, as mutaes induzidas pela crescente porosidade que se vinhaafirmando foram bastante amplas. No quadro das alteraes efectuadas, realce-se,no plano das relaes externas, a incorporao da integrao europeia nos objectivosconstitucionais de internacionalizao do Estado portugus, sugerindo o exerccioem comum de poderes soberanos (art. 7., n. 6, da CRP92) 18. Pela reviso foi tambm

    15 Nos arts. 136., alnea b) da CRP89, actual art. 133., alnea b) e 139., n. 3, alnea c) da CRP89, actual 136.,n. 3, alnea c). Como bem notou Jorge Miranda (O Tratado de Maastricht e a Constituio Portuguesa,op.cit., p. 48) est ter sido a primeira ocasio em que um rgo prprio de uma organizao internacionalganhou relevncia no interior de uma Constituio estadual.

    16 Art. 15., n. 4.17 Por esta razo, o Tribunal Constitucional, na primeira ocasio em que se pronunciou sobre o Direito da

    UE, parecia estar preparado para negar efeito directo s directivas comunitrias. Cfr. Acrdo n. 184/89,Dirio da Repblica I Srie,n. 57, de 9 de Maro de 1989, p. 1051.

    18 Seria, portanto, apenas em 1992 que se introduziria uma norma permitindo a atribuio de poderes para

    da esfera nacional para a da UE, o que levou Paulo Otero a questionar-se sobre qual o fundamento

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    constitucionalizada a atribuio a cidados de Estados membros da UE residentesem Portugal, em condies de reciprocidade, do direito de elegerem e de seremeleitos deputados para o Parlamento Europeu (art. 15., n. 5).

    No foi, no entanto, tudo. Ao mesmo tempo, e pela primeira vez, foram intro-duzidas na Constituio disposies relativas ao relacionamento da Assembleiada Repblica e do Governo com o processo de integrao, sendo atribuda quela apossibilidade de acompanhar e apreciar, nos termos da lei, a participao de Por-tugal no processo de construo da Unio Europeia (166. da CRP92 (actual art. 163.),alnea f)), cabendo ao Governo apresentar, em tempo til, Assembleia da Repblica[] informao referente ao processo de construo da Unio Europeia (art. 200.(actual 197.), n. 1, alnea i) da CRP92). Tratou-se pois, de assegurar o reconhecimento

    evidente da necessidade de uma partio relativamente clara das guas, uma vez tornadopatente o impacto potencial de uma crescente articulao normativa europeia.Finalmente, ao nvel da organizao econmica, refira-se ainda (a ttulo de mero

    exemplo suplementar) a reformulao, ento levada a cabo, do papel do Banco dePortugal, uma reformulao-emagrecimento que antecipou a emergncia de uma moedanica europeia e a criao de um Banco Central Europeu19.

    V. Mas prossigamos. A quarta reviso constitucional, ocorrida em 1997, no foi,

    ao contrrio da anterior, consequncia directa da participao de Portugal na UE 20.Tal no significa, contudo, que algumas das modificaes que introduziu na Consti-tuio no tenham sido o resultado da dinmica do processo de integrao europeia.Bem pelo contrrio.

    Entre estas cumpre destacar a alterao efectuada quanto ao regime do referendopoltico nacional, bem como a preocupao de atribuir Assembleia da Repblicae s regies autnomas papel mais proeminente na definio das posies de Portugalnas polticas europeias.

    constitucional para as transferncias ou delegaes de poderes ocorridas at aquele momento. A resposta,segundo o mesmo autor, dever-se-ia encontrar no desenvolvimento de uma normatividade no oficialque se foi impondo progressivamente com convico de obrigatoriedade e, por essa via, descaracterizandoa Constituio oficial (op. cit., p. 609).

    19 Art. 105. da CRP92. Este preceito viria a ser novamente alterado em 1997, no sentido de uma ainda maiordiminuio de contedo, dispondo o actual art. 102. que o Banco de Portugal o banco central nacionale exerce as suas funes nos termos da lei e das normas internacionais a que o Estado Portugus sevincule.

    20 A diversidade das modificaes introduzidas por esta reviso no permite, em todo o caso, encontrar um

    ncleo temtico principal.

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    Mapear consequncias a este nvel da maior utilidade. No obstante a sua con-sagrao constitucional em 1989, o instituto do referendo poltico nacional no pdeser utilizado em 1992, aquando da ratificao do Tratado de Maastricht visto o mesmo

    no permitir referendar a vinculao do Estado a tratados internacionais21

    . Iria serapenas em 1997 que o art. 118 (actual 115.) seria alvo de vrias alteraes, entre asquais se incluu a possibilidade de referendar questes de relevante interesse nacionalque devam ser objecto de conveno internacional (art. 115., n. 5).

    As implicaes polticas desta reviso foram, sem dvida, de alguma monta. E,apesar das cautelas que foram sendo erigidas, no deixaram de se fazer sentir. Noplano da modulao, designadamente, do sistema de governo, a reviso constitucionalde 1997 significou um aumento material muito concreto dos poderes parlamentares, o

    que, como bvio, exprimiu tambm uma conscincia cada vez maior das alteraesinternas sentidas no plano da correlao democrtica de foras (no sentido forte dalgica da separao de poderes), mais ou menos mecanicamente induzidas pelo processode integrao normativa na Europa. Uma das principais justificaes prendeu-se

    justamente com a preocupao de evitar fraudes constitucionais, levadas a cabo sombra do processo de integrao22, designadamente atravs da subverso dos prin-cpios constitucionais de reserva de lei e reserva da competncia parlamentarpela participao do Governo no seio das instituies europeias23.

    Tratava-se de uma conscincia e de um esforo correctivo que tinham vindopara ficar. E os seus pontos de aplicao foram significativos. Desenvolvendo as direc-trizes j inicialmente traadas pela reviso de 1992, a Assembleia da Repblica ganhouem 1997 mecanismos mais fortes, ainda que no vinculativos, de controlo do processodecisrio da UE, tendo-lhe sido facultada a possibilidade de se pronunciar sobreas matrias pendentes de deciso de rgos da UE que incidissem sobre a sua esferade competncia legislativa (art. 161., alnea n)), bem como com relao ao poder

    de decretar, em termos gerais, o regime de designao dos titulares de rgos da UE,com excepo dos da Comisso (art. 164., alnea p)).

    21 Aquando da reviso de 1992, foram apresentadas algumas propostas no sentido de submeter a referendoquestes relativas a tratados internacionais. No viriam, no entanto, a ser acolhidas. O mesmo sucedeuem 1994 mas, como se sabe, esta reviso no veio a realizar-se. Sobre este assunto, Francisco PereiraCoutinho, O referendo poltico nacional em Portugal, Estudos de Direito Pblico, ncora Editora, Lisboa,2005, p. 90.

    22 Neste sentido, Jorge Bacelar Gouveia, Manual de Direito Constitucional , Vol. I, Almedina, 2005, p. 517.

    23 Voltaremos a este ponto, com maior desenvolvimento, na segunda parte deste artigo.

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    Por outro lado, introduziram-se tambm no texto constitucional poderes de par-ticipao das regies autnomas na definio das posies portuguesas junto da UE,poderes de participao esses que incluam o direito de pronncia, por iniciativa prpria

    ou sob consulta dos rgos de soberania, relativamente a questes da competnciaque lhes dissessem respeito ou em matrias do seu interesse especfico (art. 227., n. 1,alnea v) 2 parte); o direito de participar no processo de construo europeia medianterepresentao nas respectivas instituies regionais (art. 227., n. 1, alnea x), 1 parte);o direito de participar nas delegaes envolvidas em processos de deciso da UE quandoestivessem em causa matrias do seu interesse especfico (art. 227., n. 1, alnea x),2 parte).

    Finalmente, no plano das relaes das fontes normativas internas com as fontes

    normativas da UE, saliente-se ainda a mudana que imps a transposio dos actosjurdicos da UE para a ordem jurdica nacional atravs de lei ou decreto-lei, con-forme a matria por elas abarcada inclua ou no no mbito da reserva da Assembleiada Repblica (art. 112., n. 9). Por esta via, a Constituio criou uma reserva de leino que concerne incorporao de normas jurdicas da UE no direito interno portu-gus.

    VI. Em termos cronolgicos, aproximava-se entretanto a quinta reviso consti-tucional (2001). Muito embora cirrgica e centrada, no essencial, na necessidadede compatibilizar o texto constitucional com o Estatuto do Tribunal Penal Internacional(assinado em Roma a 11 de Julho de 1998), esta reviso no deixaria tambm de envolvera modificao de preceitos relacionados com o processo de integrao europeia. Nombito do exerccio em comum ou em cooperao dos poderes necessrios construo da UE foi includo o espao de liberdade, segurana e justia (art. 7., n. 6),nova realidade ento emergente.

    interessante verificar como teve lugar a modificao operada. Um dos grandesestaleiros do actual processo de integrao24, a criao de um espao de liberdade,segurana e justia a nvel europeu, favoreceu a necessidade de compatibilizar aConstituio com algumas das suas concretizaes, nomeadamente atravs dadesconstitucionalizaode algumas garantias relativas expulso e extradio, no mbitodas normas de cooperao penal estabelecidas no mbito da Unio Europeia (art. 33.,

    24 Nuno Piarra,O espao de liberdade, segurana e justia no Tratado que estabelece uma Constituio

    para a Europa: unificao e aprofundamento, O Direito , IV-V, Almedina, 2005, p. 1009.

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    n. 5). O empenho do Estado portugus no processo de integrao dificilmente poderiaser mais ntido.

    VII. O tpico europeu voltaria, pouco tempo depois, a ser um dos grandes pro-tagonistas da reviso constitucional que se seguiu, a sexta, levada a efeito em 2004.Desta feita, o objecto da interveno constitucional versaria, sobretudo, a posiodo Direito da UE face Constituio Portuguesa.

    Esta questo, cujo debate constituiu uma rplica evidente do ocorrido em maiorou menor grau em todos (ou praticamente todos) os Estados membros, tem conhe-cido nos ltimos tempos enorme controvrsia na doutrina nacional 25. Subjacentes mesma esto posies entre si divergentes: por um lado, a assuno do primado

    do Direito da UE pelo TJCE26; e, por outro, a defesa do primado da Constituio na-cional que, para a maioria da doutrina constitucional portuguesa e para o TribunalConstitucional, continua a ocupar o topo da hierarquia normativa.

    No quadro genrico das constantes revises constitucionais que tm acompa-nhado o desenvolvimento do processo de integrao europeia, esta interveno cons-tituiu, na poca, novidade inusitada e foi decerto muitssimo significativa. O riscode conflito entre as duas diferentes narrativas, a que tais disparidades discursivasderam corpo, tinha at a vindo a ser esbatido de uma forma pragmtica, abstendo-seo Tribunal Constitucional de abordar directamente esta questo no quadro dassuas funes de fiscalizao constitucional. Conhecia agora uma resposta de carizsistmico, estabelecendo o novo n. 4 do art. 8.: As disposies dos tratados queregem a UE e as normas emanadas das suas instituies, no exerccio das respec-tivas competncias, so aplicveis na ordem interna, nos termos definidos pelo Direitoda Unio, com respeito pelos princpios fundamentais do Estado de Direito democr-tico.

    Por fora do novo preceito, a Constituio portuguesa passou ento, inovadora-mente, a reconhecer o primado efectivo do Direito da UE, ao determinar que a priori-

    25 Sobre o estado da arte da doutrina e da jurisprudncia constitucional sobre esta matria, v. MiguelPoiares Maduro, The State of Portuguese European constitutional discourse, FIDE, XX Congress,London, Vol. II, 2003, p. 387 e segs..

    26 O qual tem por fundamento a prpria necessidade existencial do Direito da UE, de forma a garantir asua aplicao uniforme em todos os Estados membros (cfr. Proc. n. 6/64, M. Flaminio Costa vs. E.N.E.L.,Colectnea de Jurisprudncia (CJ), 1964, pp. 549 a 563), e que , portanto, se projecta inclusivamente sobre asnormas constitucionais nacionais (cfr. Proc. n. 11/70,Internationale Handelsgesellschaft mbH v Einfuhr und

    Vorratsstelle fr Getreide und Futtermittel, CJ, 1970, pp. 625 a 634).

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    dade normativa deste Direito definida de acordo com os parmetros estabelecidosna ordem jurdica da Unio. Tal reconhecimento, asseverou-se, s valer, contudo,se e enquanto os ordenamentos jurdico portugus e europeu forem compatveis

    em termos sistmicos, sendo tal compatibilidade aferida com base no respeito peloDireito da UE dos princpios fundamentais do Estado de Direito democrtico: princpiosesses, tambm j acolhidos no quadro dos valores fundamentais sobre que se alicerama ordem constitucional portuguesa27.

    O empenho do Estado portugus no processo de integrao europeia ficava aindareforado pela nova redaco do n. 6 do art. 7., que passou a referir-se ao aprofun-damento da unio europeia e definio e execuo de um poltica externa, desegurana e de defesa comum, ressalvando-se sempre, mais uma vez, o respeito pelos

    princpios fundamentais do Estado de Direito democrtico.Por ltimo, a reviso constitucional de 2004 envolveu tambm um aumento assi-

    nalvel dos poderes das regies autnomas que naturalmente se refrangeria nasua posio face Unio, designadamente no plano legislativo, passando ambas asregies a poder transpor actos jurdicos da UE atravs de decreto legislativo regional(art. 112., n. 8, parte final e 227., n. 1, alnea x), parte final).

    VIII. A mais recente reviso constitucional, ocorrida em 2005, consubstanciou omais recente episdio da saga que tem rodeado a tentativa de referendar o TratadoConstitucional Europeu. Escusado ser por isso sublinhar o papel que nela tiveramas acomodaes a uma Europa em tentativa acelerada de construo. Apesar de, comose viu, em 1997 a quarta reviso constitucional ter vindo a alterar o regime do refe-rendo nacional, permitindo que o mesmo se reportasse a convenes internacionais,verificar-se-ia, na prtica, que condicionalismos relacionados com o seu regime

    27 Este reconhecimento do primado do Direito da UE mesmo sobre as normas constitucionais no implica,argumentam Miguel Poiares Maduro e Francisco Pereira Coutinho (A aplicao do Direito da UE naordem jurdica portuguesa, ICS, no prelo.), um postergar da soberania da Constituio, na medida emque se encontra subordinado ao respeito pelos mesmos valores fundamentais acolhidos pela ordemconstitucional portuguesa, sendo precisamente esta identificao axiolgica de base entre os doisordenamentos jurdicos que previne a existncia de eventuais conflitos de carcter normativo. Em sentidocontrrio, v. a forte crtica de Jorge Bacelar Gouveia (op. cit., p. 536) ao art. 8., n. 4, numa expresso doque Jrgen Habermas chamou patriotismo constitucional, para o qual adverte a possibilidade de umainterpretao abrogante por violar o princpio da constitucionalidade, do qual resultaria que a Consti-tuio deve prevalecer sobre todas as outras ordens normativas, internas e externas. Sobre este assunto,v. tambm Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituio Portuguesa Anotada, I, Coimbra Editora, 2005,

    pp. 93 e 94.

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    iriam efectivamente inviabilizar a sua realizao28. Foi ento aberto um procedimentode reviso extraordinrio da Constituio por parte da Assembleia da Repblicacom a finalidade de permitir a realizao de referendo nacional sobre o texto do

    Tratado Constitucional, e no apenas sobre questes acerca do mesmo.A suspenso do procedimento de ratificao do Tratado Constitucional pelosEstados membros viria, no entanto, a impossibilitar a efectivao do referendo previsto.Mas e este ponto do maior interesse para o argumento a este propsito porns adiantado a vontade poltica das elites poltico-jurdicas portuguesas no deixou,por isso, de se manifestar alto e bom som: a referida suspenso, com efeito, noprejudicou a aprovao pela Assembleia da Repblica de uma alterao constitucionalno sentido de possibilitar que, da para o futuro, novos Tratados Europeus, ou as suas

    revises, pudessem ser sujeitas directamente a referendo nacional.O gesto foi to significativo quo expressivo da ratio implcita na reviso que

    teve lugar. Passou a admitir-se uma excepo ao regime geral do Direito ReferendrioPortugus que possibilitar a submisso a sufrgio dos cidados de articulados jur-dicos, que ficaria consagrada no art. 295.: O disposto no n. 3 do artigo 115. noprejudica a possibilidade de convocao e efectivao de referendo sobre a aprovaode tratado que vise a construo e aprofundamento da Unio Europeia.

    2. Algumas Mutaes Introduzidas pelo Processo de Integrao Europeia na

    Constituio Portuguesa

    I. Se, na parte inicial do presente artigo, o intuito foi o de conseguir uma boa re-construo racional de um processo poltico-constitucional complexo, composto pordois desenvolvimentos paralelos de um lado, a dinmica de integrao europeia e,

    28 Em causa estava a exigncia de que as questes a colocar aos cidados fossem objectivas, claras e precisas,no devendo sugerir, de forma directa ou indirecta, o sentido das respostas (cfr. art. 7. da Lei Orgnicado Regime do Referendo). Este requisito mostrou-se inultrapassvel quer aquando do pedido de referendoao Tratado de Amesterdo em 1997, quer no pedido de referendo do Tratado Constitucional em 2005, umavez que em ambas as ocasies o Tribunal Constitucional consideraria que as propostas pela Assembleiada Repblica no respeitava as referidas exigncias de objectividade, clareza e preciso (cfr., respectiva-mente, Acrdo n. 531/98, de 29 de Julho, in Dirio da Repblica, I-A Srie, Suplemento, pp. 3660 (2) a3660 (12), cuja relatora foi Maria Helena Brito), do Tribunal Constitucional, publicado no Dirio daRepblica, 1 Srie-A, de 30 de Julho, p. 3660 e Acrdo n. 704/2004, de 17 de Dezembro de 2004, do

    Tribunal Constitucional, publicado no Dirio da Repblica, 1 Srie-A, de 30 de Dezembro, p. 304.

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    de outro, a progresso da ordem constitucional portuguesa, asseverado logo partida importa decerto, num segundo segmento da nossa exposio, lograr uma mudanade patamar analtico, uma mudana s vivel atravs de um recuo que viabilize

    uma perspectivao mais macro do que tudo aquilo a que foi referido; olhar para aconfigurao da floresta, uma vez identificadas as rvores, a sua distribuio genealgica,e a arrumao arquitectnica que lhes foi reservada.

    H vantagens em encetar este recuo por excluso de partes. A medida do real im-pacto que a adeso UE teve sobre o texto constitucional no pode ser avaliada apenaspela mera enunciao, por muito pormenorizada que possa ser, das revises constitu-cionais que sobre ela se debruaram. Com excepo dos momentos de harmonizaodo texto constitucional contemporneos ratificao dos Tratados europeus, como

    sucedeu com o de Maastricht em 1992, as demais revises constitucionais so explicveispela projeco que a evoluo gradual do processo de integrao teve sobre o prpriosubstrato constitucional. Como se ir tentar demonstrar, as mutaes induzidas peloprocesso de integrao geraram presses (talvez constrangimentos seja aqui ummais adequado termo) que determinaram a necessidade de alterar o texto constitucionalde forma a procurar corrigir o desfasamento entretanto verificado perante a realidadenua e crua dos factos.

    Como? Dois exemplos podem, estamos em crer, seno explicar, pelo menos ilustrar,de maneira bastante esclarecedora, este fenmeno: em primeiro lugar, as mutaesintroduzidas no princpio da separao de poderes; e, em segundo, as provocadas pelaorganizao econmica da Constituio. Sobre este par de exemplos nos debruaremosantes de mais.

    II. Esmiucemo-los pela ordem por que os arrolmos. A atribuio de competncias UE, inter alia de algumas das anteriormente detidas pelos Estados membros, teve

    consequncias imediatas sobre o princpio da separao de poderes previsto a nvelinterno nos textos constitucionais. Na verdade, a circunstncia de o exerccio do pro-cesso decisrio da UE estar concentrado no Conselho29, o que significa que a repre-sentao dos Estados membros est a cargo dos respectivos governos.

    As implicaes, logo partida, so assim incontornveis. ocasio de sublinharas mais importantes. Ao nvel legislativo, a natureza intergovernamental dos centros

    29 A outra instituio com poderes de deciso, o Parlamento Europeu, , como se sabe, directamente eleita

    pelos cidados atravs de sufrgio directo.

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    de deciso da UE redunda na diminuio dos poderes dos Parlamentos nacionais faceaos respectivos Governos, pois as competncias que pertencem reserva parlamentar,ao serem transferidas para a esfera de deciso europeia, passam a ser controladas pelos

    executivos nacionais. Esta situao desde logo colocou (e coloca ainda, apesar dasmanobras correctivas a que de incio foi feita aluso) directamente em causa o primadolegislativo de que os Parlamentos tradicionalmente gozam, gerando igualmente pre-ocupaes relativamente ao dfice democrtico daqui decorrente30. No plano do proce-dimento legislativo portugus, a grande vtima deste fenmeno foi a Assembleia daRepblica, que viu matrias compreendidas no mbito da reserva que lhe cabia seremaprovadas sem a sua interveno a nvel europeu, perdendo tambm a possibilidadede requerer a apreciao parlamentar dos decretos-lei nessas reas elaborados pelo

    Governo, mesmo em domnios que no pertenam rea reservada. Em paralelo,as competncias do Presidente da Repblica foram tambm comprimidas, pois estedeixou de poder exercer o direito de veto e promulgao sobre diplomas da Assembleiada Repblica e do Governo nessas reas, com excepo das leis ou decretos-lei queprocedam transposio de directivas (art. 112., n. 8).

    No quadro da direco poltica, no caso portugus, o desequilbrio nas funesde representao externa ainda mais notrio, quanto mais no seja porque o Presidenteda Repblica, a quem compete representar a Repblica Portuguesa (art. 120.), notem acesso ao Conselho, assegurando o Primeiro-Ministro a representao de Portugalnas reunies do Conselho ao nvel de Chefes de Estado e de Governo31.

    30 Neste sentido, v. por todos, Grard Laprat (Reforme des Traits: le Risque du Double Dficit Dmocratique Les Parlements nationaux et llaboration de la Norme Communautaire,Revue do Marche Commun, 351,1991, pp. 710 e segs.) que, a este respeito, alude existncia na UE de um duplo dfice democrtico quese consubstancia no esvaziamento dos poderes dos Parlamentos nacionais, a que acresce o dficedemocrtico das prprias instituies da UE.

    31 Esta situao, contrria existente em Frana, onde o Presidente da Repblica participa no ConselhoEuropeu, por ao mesmo tempo ser o Chefe de Estado e o Chefe do Executivo, significava para FranciscoLucas Pires (A Experincia Comunitria do Sistema de Governo da Constituio Portuguesa, Perspec-tivas Constitucionais Nos 20 Anos Da Constituio De 1976 , Jorge Miranda (org.), Vol. II,Coimbra Editora,Coimbra, 1997, p. 642), um reforo da imagem e da realidade do poder do Governo e do seu lder, valori-zando-os ainda mais na balana constitucional de poderes. Aps a adeso, os poderes do Presidente da Re-pblica, no quadro da sua funo de representao externa, adquiriram uma importncia diferenteconsoante se tratava da UE ou do resto do mundo (op. cit., p. 644). No plano da UE, pouco mais resta aoPresidente da Repblica do que o direito de ser informado acerca dos assuntos respeitantes conduoda poltica externa (art. 201., n.1), onde se inclui a poltica da UE. A este respeito, nota Jorge Miranda (Odireito constitucional portugus da integrao europeia. Alguns aspectos, cit., p. 52) ser omisso no textoconstitucional, um preceito anlogo ao introduzido para a Assembleia da Repblica em 1992 e 1997, quepossibilitasse um direito de participao mais forte por parte do Presidente da Repblica pelo menos no

    que concerne designao de membros portugueses da Comisso e do TJCE.

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    Acrescentemos outros dados, antes de nos abalanarmos a uma ponderao deconjunto neste novo patamar analtico. A governamentalizao do sistema polticoportugus resultante da transferncia de competncias da esfera nacional para a eu-

    ropeia no foi, para alm do mais, acompanhada por efectivos mecanismos deresponsabilizao poltica. No plano formal, em todo o caso, Portugal no foi o nicoEstado da Unio em que isso aconteceu. O exerccio dos poderes dos Governos nacionaisno seio do Conselho no geralmente controlado pelos Parlamentos nacionais; o que,um pouco por toda a parte, permitiu aos executivos transferir os custos de determi-nadas decises polticas para uma entidade supranacional que no responsvelperante ningum32.

    Um pouco por toda a parte, tambm, a reaco dos Parlamentos nacionais no

    deixou de se fazer esperar33

    . Em Portugal, como vimos na primeira parte deste estudo,a reviso constitucional de 1992 introduziu medidas compensatrias, embora otenha feito num quadro genrico que apelidou de acompanhamento, obrigandoformalmente o Governo a informar a Assembleia da Repblica da sua partici-pao nas instituies da UE34. O grande impulso seria dado, todavia, to-somenteem 1997. E s-lo-ia com a obrigao de a Assembleia da Repblica se dever pronunciar,nos termos da lei, sobre as matrias pendentes de deciso em rgos da UE cuja com-petncia incida sobre a sua esfera prpria de competncia legislativa (art. 161., alnea n).

    Estas medidas, cuja aplicao prtica tem sido muito deficitria 35, se por um lado

    32 O Tratado Constitucional contm, a este propsito, uma disposio que atribui aos Parlamentos nacionaisum poder de interveno de manifesto relevo. Nos termos do artigo 5 do Protocolo Relativo Aplicaodo Princpio da Subsidiariedade, anexo ao Tratado, os Parlamentos nacionais podem, no prazo de seis se-manas a contar do envio das propostas legislativas por parte da Comisso Europeia, dirigir s instituiescomunitrias queixa fundamentada de violao do princpio da subsidiariedade por essas propostas.Quando forem apresentadas queixas por um tero dos Parlamentos Nacionais, a Comisso Europeiadever reanalisar a sua proposta.

    33 Sobre as vrias solues encontradas em vrios Estados membros de organizar a participao parlamentarno processo decisrio da UE, v., por todos, Ana Frada, Os Parlamentos Nacionais e a Legitimidade daConstruo Europeia, Edies Cosmos, Lisboa, 2001, pp. 72 a 102.

    34 Antes disso, tinham sido j vrias, no plano legal, as tentativas para atribuir carcter reforado participao do Parlamento nas decises europeias, destacando-se a Lei n. 28/87, de 29 de Junho, sobrea participao da Assembleia da Repblica na definio das polticas comunitrias, e a Lei n. 111/88,de 15 de Dezembro, que revogou a anterior. Ambos os diplomas legislativos, contudo, viriam a ter umaaplicao residual (Lus S, O Lugar da Assembleia da Repblica no Sistema Poltico , Caminho, Lisboa, 1994,pp. 418 a 422). O mesmo fenmeno aconteceria com a Lei n. 20/94, de 15 de Junho, que revogou a Lein. 111/88, de 15 de Dezembro, aprovada na sequncia da reviso de 1992 e dita de acompanhamentoe apreciao pela Assembleia da Repblica no processo de construo da Unio Europeia.

    35 A lei que concretizaria o direito de pronncia da Assembleia da Repblica ainda no foi aprovada pelaAssembleia da Repblica, o que, passado nove anos desde a reviso de 1997, sintomtico do manifesto

    insucesso em que se tem consubstanciado o acompanhamento pela AR do processo de integrao. A este

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    no obviaram possibilidade de violao de competncias parlamentares pois o direitode pronncia atribudo Assembleia da Repblica no tem carcter vinculativo 36 tambm no ajudaram, por outro, a resolver a questo de fundo, que continua a

    traduzir-se num dfice de responsabilizao poltica do Governo pela sua actuaojunto da UE.Podemos, por conseguinte, comear por enunciar uma primeira grande coorde-

    nada do novo patamar de inteligibilidade-balano atingido. A influncia do processode integrao europeia sobre o sistema de governo portugus resulta evidente: introduzmutaes no sentido de um crescente pendor governamental que as sucessivas revisesconstitucionais tm procurado mitigar37.

    III.No custa nada ir mais longe, sem em boa verdade com isso pretender constituirum exemplo distinto. Ainda no quadro do princpio da separao de poderes, importaverificar qual a influncia da integrao europeia sobre o poder judicial e o adminis-trativo; o que nos permitir alargar lateralmente, por assim dizer, o ponto focal dobalano geral que aqui esboamos.

    Comecemos por uma simples constatao. O ordenamento jurdico da UE estorganizado de uma forma descentralizada, funcionando os tribunais e as administraesnacionais simultaneamente como entidades europeias. O papel do TJCE tem sido, nestembito, de importncia capital, ao repetidamente afirmar que os Estados membrospodem ser responsabilizados pelos prejuzos causados aos particulares pelas violaes

    respeito, saliente-se o facto de, finalmente, estarem a ser discutidos na Assembleia da Repblica vriosprojectos de lei que pretendem concretizar as diversas competncias parlamentares neste mbito,designadamente as de acompanhamento, pronuncia e escolha de membros de rgos da UE, revogandoa actual Lei n. 20/94 (cfr. Projecto de Lei n. 250/X (PSD) Projecto de Lei n. 245/X (PCP); na legislaturaanterior, v. Projecto de Lei 323/IX (CDS), Projecto de Lei n. 444/IX (PCP)), que viriam a ser aprovadosna generalidade pelo Plenrio da Assembleia da Repblica, mas entretanto caducaram por fora de

    interrupo da Legislatura).36 Neste sentido, Jorge Miranda (O direito constitucional portugus da integrao europeia. Alguns as-pectos., cit., p. 55), para quem estas medidas tm uma natureza de poderes de fiscalizao e no de de-ciso, situando-se no mbito da funo poltica stricto sensu.

    37 A este propsito, Francisco Lucas Pires (op. cit., p. 644) mencionava a existncia de uma espcie de ocultareviso deslizantedo sistema de governo, ao passo que Jorge Miranda (Manual de Direito Constitucional, V,2 Ed., Coimbra, p. 181), adverte para a existncia de uma verdadeira evaso legislativa que beneficia oGoverno, da qual resultaria uma modificao tcita ou indirecta dos arts. 161, 164 e 165 da Consti-tuio. Por seu turno, Marcelo Rebelo de Sousa (A integrao europeia ps Maastricht e o sistema de go-vernos do Estados membros, Anlise Social , 118/119, Vol. XXVII, 1992, pp. 798 e 799) j em 1992 alertavapara que o parlamento, sem uma profunda reforma orgnica e procedimental, no conseguir enfrentar

    os desafios de mais intensa integrao europeia.

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    do direito comunitrio que lhes so imputveis38. Este princpio da responsabi-lidade estadual compreende qualquer violao do Direito da UE independentementeda entidade do Estado membro cuja aco ou omisso esteja na sua origem39. Tal

    significa que engloba tanto a actuao da Administrao, como inclusivamente dosTribunais40.As consequncias no tm, por isso, sido de somenos. A nova misso atribuda

    aos Tribunais e s Administraes nacionais produziu uma mutao na prpriaidiossincrasia destas entidades, que passaram, doravante, a estar investidas numa vestenacional e numa veste europeia. Este duplo papel garantiu-lhes uma maior indepen-dncia face ao seu Estado de origem, o que se reflectiu nos seus comportamentos mesmoem relao ao exerccio de competncias anteriormente apenas destinadas ao foro

    interno41.Os tribunais constituem, neste mbito, uma boa ilustrao da eficcia do processo

    de integrao europeia. Com decises judiciais sucessivas e bem entrosadas umasnas outras, os juzes ganharam a possibilidade de afastar normas nacionais queconflituassem com normas europeias, aplicando estas directamente ou apelando parao TJCE por via do art. 234. do Tratado das Comunidades Europeias, o que se traduziunum impacto muito significativo sobre o princpio da separao de poderes, ao atribuir--lhes poderes de fiscalizao da actividade parlamentar perante o Direito da UE.

    H no entanto que mitigar um pouco o alcance deste ponto, por evidente e enxutoque, em abstracto, ele possa parecer. No caso portugus, por exemplo, a circunstnciade os juzes nacionais serem responsveis pela fiscalizao concreta da Constituio(art. 204.), ao contrrio da generalidade dos seus congneres nos demais Estadosmembros, levou a que a faceta de juiz europeu no significasse uma mudana assina-lvel na sua funo. Em todo o caso, o simples facto de um juiz portugus poderlegitimar a sua actuao directamente perante o Direito da UE, afastando qualquer

    espcie de dever ou lealdade face s normas nacionais, atribui-lhe uma ainda maior

    38 Acrdo Francovitch et Bonifaci, de 19 de Novembro de 1991, Proc. C-6/90 e C-9/90, CJ, 1991, p. I-5357.39 Acrdo Brasserie du Pcheur SA, Proc. C-46/93 e C-48/98, CJ, 1996, p. I-102940 Acrdo Kbler, de 30 de Setembro de 2003, Proc. C-224/04, CJ, 2001, p. I-10239.41 Como bem notou Francisco Lucas Pires (op. cit., p. 847), a integrao comunitria ao mesmo tempo que

    reduz a discricionariedade poltica das funes soberanas do Estado, como que alarga a discriciona-riedade administrativa e jurdica das funes secundrias de intermediao. A razo estar em que amaior distncia entre as normas comunitrias e os mecanismos da Justia e da Administrao nacionaisquando actuam como agncias executivas daquelas , por si s, um factor de ampliao das faculdades de

    adaptao e das medidas de proporcionalidade a ter em conta.

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    independncia face ao poder legislativo nacional e, inclusivamente, dentro da hierar-quia judicial interna, em relao jurisprudncia dos tribunais superiores.

    Para nos atermos a apenas um dos aspectos, ainda que porventura o mais bvio,

    desta questo: o reduzidssimo nmero de questes prejudiciais colocadas ao TJCE porjuzes portugueses , todavia, sintomtico do reduzido impacto que o processo de inte-grao europeia parece estar a ter sobre os tribunais portugueses42. Mas o potencial destemecanismo enorme, e em muitos outros Estados membros tem tido grande eficcia.

    IV.Ainda neste novo patamar analtico, includo neste segundo segmento do nossotrabalho, passemos ento a um outro ponto, o relativo s mutaes induzidas peloprocesso de integrao europeia na organizao econmica da Constituio portuguesa.

    Como j tivemos oportunidade de referir, a Constituio econmica, gizadapelo texto original da Constituio de 1976, tinha adoptado um projecto econmicodificilmente harmonizvel com o Tratado de Roma, que tinha como pedra de toquea consagrao de um conjunto de liberdade econmicas que pressupunham a adopode um modelo de economia de mercado concorrencial43.

    Os efeitos da integrao far-se-iam sentir ainda antes da prpria adeso, que tevelugar em 1986, no faltando vozes que se pronunciaram no sentido da necessidade econvenincia de uma reviso constitucional por causa da integrao europeia 44. Asalteraes introduzidas pela reviso de 1982, contudo, no reconfiguraram a estruturada Constituio econmica definida em 1976, permanecendo a inteno socialista (art. 2.CRP82) e o princpio da apropriao colectiva dos principais meios de produo(art. 80., alnea c), CRP82)45.

    42 Sobre este assunto, com nmeros actualizados relativamente s questes prejudiciais colocadas por juzesportugueses, Miguel Poiares Maduro e Francisco Pereira Coutinho, A aplicao do Direito da UE naordem jurdica portuguesa, ICS, 2005, no prelo.

    43 Apesar de, em princpio, competir ao foro da Constituio econmica de cada Estado membro a dimensodo sector pblico da economia, integrao na UE pressupe a integrao num espao econmico comumque, a par proibio do favorecimento de empresas pblicas ou privadas nacionais face s suas congnereseuropeus, implica a criao de condies de acesso ao mercado nacional que apenas ganham sentido no quadrode uma economia de mercado concorrencial (v.g. regras relativas concorrncia e aos auxlios de Estado).

    44 Neste sentido, a opinio de Jorge Miranda (A Constituio e o ingresso nas Comunidades Europeias,cit., p. 100), curiosamente um dos autores que, como vimos (cfr. supra), sempre sustentaram a compatibi-lidade do Tratado de Roma com a Constituio portuguesa.

    45 Como bem notam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, as alteraes introduzidas em 1982 noalcanaram a dimenso de uma alterao radical ou global da constituio econmica. A estrutura dassuas componentes originrias adquiriu um novo equilbrio, mas persistiu a mesma em aspectos essen-

    ciais (Fundamentos da Constituio, Coimbra Editora, 1991, p. 155).

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    A adeso formal de Portugal em 1986 acarretou definitivamente a adopo deum modelo de economia de mercado concorrencial, o que, consequentemente, veiolimitar ainda mais a liberdade de conformao poltica que a Constituio atribua

    orientao governativa, introduzindo uma verdadeira mutao constitucional numtexto que sufragava ainda a opo por um modelo econmico de matriz socialista.Esta circunstncia viria a projectar-se sobre as interpretaes dadas s normas daConstituio econmica e redundaria, um pouco mais tarde, na prpria reviso desteregime. Na verdade, seria em 1989 que a Constituio econmica, no quadro deuma ampla reviso do seu contedo, deixaria definitivamente de se reger pelo princpiode transformao de sentido socialista (art. 2.). Os efeitos constitucionais da inte-grao far-se-iam ainda sentir mais cabalmente em 1997, foi estabelecido como princpio

    fundamental a liberdade de iniciativa e de organizao empresarial (art. 80., alnea c)),afastando-se definitivamente a ideia de apropriao colectiva de meios de produoe solos46.

    Sem que seja grande o risco, pode por conseguinte afirmar-se que as mutaesinduzidas pelo processo de integrao europeia na ordem constitucional econmicaportuguesa foram de enorme alcance, tendo sido um dos factores determinantes paraa transformao dos seus princpios orientadores no sentido de uma crescente europei-zao do Direito Constitucional dos Estados membros em matrias de ndole econ-mica, segundo um modelo de economia de mercado e de livre concorrncia47.

    V. possvel agora e, para alm do mais, desejvel ensaiar um primeiro grandebalano das revises que tiveram lugar, das suas origens e dos respectivos pontosde aplicao. Comecemos pelo topo, por assim dizer. A descrio, ainda que breve, dospontos de contacto entre, por um lado, as sete revises constitucionais e, por outro,o processo de integrao europeia bem ilustrativo da influncia que este tem

    tido sobre a Constituio. Ou, se se preferir, a porosidade manifesta na progressoconstitucional portuguesa face ao processo de integrao na Europa. Em boa verdade,verifica-se que a permeabilidade patente perante factores exgenos ordem jurdica

    46 O art. 80., alnea d), faz hoje apenas referncia propriedade pblica dos recursos naturais e de meiosde produo, de acordo com o interesse colectivo.

    47 A prpria leitura e interpretao dos preceitos da Constituio econmica portuguesa no podem,doravante, ser efectuada sem atender ao prescrito pelo direito da UE, devendo mesmo orientar-se por umprincpio de interpretao da Constituio em conformidade com o direito da UE. Neste sentido, Paulo

    Otero, op. cit., p. 580.

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    nacional comum a todas as revises efectuadas, sendo o factor europeu omnipresente,em maior ou menor grau, em todas elas.

    Revisitemos de forma sucinta a sequncia. Se em 1982 se alterou a Constituio

    com vista a prepar-la para uma futura adeso, as revises de 1989, 1992, 2001 e 2004tiveram como propsito promover um verdadeiro controlo de constitucionalidadesistmica com o objectivo de prevenir riscos de coliso entre normas de fonte europeiae nacional, o que foi efectuado quer atravs da supresso de normas nacionais con-trrias a normas europeias (1989, 1992 e 2001), quer pelo reconhecimento (ainda quelimitado) do primado do Direito da UE (2004). As revises de 1997 e 2005, por seuturno, justificaram-se tambm pela vontade de legitimar o processo de integraoatravs da realizao de um referendo nacional (1997 e 2005), bem como pela necessi-

    dade de modelar o funcionamento dos rgos de soberania em funo da participaonos rgos da UE (1992 e 1997). Sem a presso que a dinmica do processo deintegrao europeia tem exercido sobre a ordem constitucional portuguesa no teriasido sentida qualquer necessidade de rever extraordinariamente a Constituio em1992, ou em 2005, sendo tambm pouco provvel que a reviso de 1989 ou (emboraporventura mais limitadamente) a de 2001 e 2004, tivessem o mesmo alcance.

    Uma leitura diacrnica do andar da carruagem, por assim dizer, agora tambmpossvel e muitssimo esclarecedora. A estreita ligao e abertura da Constituioao processo de integrao europeia tem conhecido, como bom de ver, um claroincremento que tem vindo a cristalizar-se no texto constitucional por intermdio desucessivas revises constitucionais. Melhor: pode mesmo afirmar-se que o compromissode Portugal para com o ambicioso projecto europeu no passou ao lado da Constituio,que tem sido mantida sempre na sua vanguarda. Mais ainda: este processo tem vindoa acelerar o passo, tanto no tocante ao seu ritmo como no que diz respeito sua densi-dade normativa.

    Questo diversa, mas conexa, consiste em saber se este fenmeno constitui umaconsequncia da circunstncia da evoluo do direito da UE, na perspectiva do cons-titucionalismo nacional, depender de correces sistmicas na constituio nacional48,ou se de facto, pelo contrrio, a prpria constituio nacional que se deve adaptar

    48 Esta a opinio de Jorge Miranda (A Constituio Europeia e a ordem jurdica portuguesa, ColquioIbrico: Constituio Europeia Homenagem ao Doutor Francisco Lucas Pires , Studia Ivridica 84, Universidadede Coimbra, Coimbra Editora, 2005, p. 553 e 554), para quem os sucessivos aprofundamentos da UEredundariam apenas num impulso legiferante constitucional e no numa imposio de modificao das

    Constituies nacionais.

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    ao direito da UE. Neste ltimo sentido encontramos vrios autores portugueses 49, ha-vendo mesmo quem sustente que a evoluo do processo de integrao europeia,aprofundando a associao constitucional dos Estados membros, representaria ela

    prpria um processo constituinte de reviso das constituies nacionais50

    , ou que at,ainda mais extremadamente, sufraga a existncia de um poder constituinte informalde fonte europeia a qual, apesar de ainda assentar numa base autovinculativa, deter-minaria a prevalncia deste elemento externo na determinao do contedo das revisesconstitucionais51.

    Por outro lado, assaz interessante verificar que a internacionalizao crescenteda Constituio sugere um ancorar do processo portugus de reviso constitucional,de modo progressivo mas indubitvel, nos processos de transformao global da

    ordem poltico-jurdica europeia. A sugesto parece desta forma ser a de que a cada vezmaior porosidade ou permeabilidade do processo portugus de constitucionalizaose torna mais inteligvel no quadro amplo da globalizao, o que, com os benefciosda retrospeco, no especialmente surpreendente. Porventura menos trivial asugesto, ancilar, de que no quadro dessa globalizao que a integrao europeia (pelomenos no plano constitucional e naquilo que a Portugal diz respeito) melhor faz sentido.

    Regressaremos a este ponto no quadro de um esboo de um alargamento do mbitoda nossa anlise para domnios mais metajurdicos. O que ocupar um ltimo segmentodo presente artigo.

    3. Algumas Breves Concluses

    De acordo com a ordem de exposio que propusemos no incio deste artigo, cabe-nosagora tentar, num terceiro e ltimo segmento deste breve estudo, proceder aferio

    genrica do real impacto jurdico-poltico da adeso UE sobre a ordem constitucionalportuguesa e ensaiar um balano de conjunto. F-lo-emos lanando a rede analtica num

    49 Francisco Lucas Pires, Competncia das Competncias: Competente mas sem Competncias?, Revista deLegislao e Jurisprudncia, n. 3885, 1998, p. 356 e Miguel Poiares Maduro, A Constituio Plural , Principia,Cascais, 2006, p. 22.

    50 J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituio, 6 Edio, Coimbra, 2002, p. 822.51 Paulo Otero (op. cit., p. 581 e, especialmente, 607), inclusivamente sustenta dever ser a Constituio que

    tem de ficar conforme com o Direito Comunitrio e no este ltimo que elaborado em conformidade com

    as opes constitucionais (p. 579).

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    arco bem mais amplo, embora o levemos a cabo de forma muito rpida, sucinta, emeramente indicativa.

    Uma palavra prvia de salvaguarda e preciso. Muitos exemplos poderiam ter

    sido aduzidos, com a finalidade de retratar, com fidelidade, os impactos jurdicosassociados ao processo de integrao portuguesa no processo de sedimentao europeiaem curso. Poder-se-ia, designadamente, ter focado a ateno na forma como a incor-porao do direito da EU tem ocorrido nos tribunais, ou na Administrao pblica,ou ainda em termos de transposio do direito da UE para a legislao portuguesa(quando tal exigido), tal como tambm teria sido possvel, para aventar uma outrahiptese, ter apontado, como outros o tm feito, as nossas baterias analticas paradescortinar o impacto da integrao europeia no que toca s mutaes registadas

    nos processos de produo normativa. Ao nos decidirmos por uma perspectivaopoltico-constitucional, preferimos tentar um balano geral mais macro e de muitssimomaior fundo.

    Insistimos j no cariz meramente indicativo deste estudo. Sem embargo de eventuaisestudos posteriores, o que faremos no ultrapassar esta meta a que nos propusmos.Indicaremos to-s trs grandes frentes, ou trincheiras, se se preferir, em que tal aqui ensaiado. Uma primeira diz respeito reperspectivao que a anlise que levmosa cabo implica para a polmica que entre ns grassou quanto ao primado do Direito daUE, como se sabe afirmado peremptoriamente pelo Tratado Constitucional, polmicaessa que toma diferentes contornos quando se torna conscincia da crescentepermeabilizao poltico-jurdico portuguesa em geral, relativamente Europa. Se certoque a questo jurdica do eventual primado do Tratado Constitucional europeu sobrea Constituio nacional se pode ver sujeita a interpretaes alternativas, tambmparece evidente o ascendente poltico que o processo de integrao tem tido sobre aevoluo e progresso constitucionais portuguesas, que significou um verdadeiro

    subverter da tradicional mecnica do processo de reviso constitucional. Fazem poucosentido, por conseguinte, leituras que no tenham este facto em devida conta.Uma segunda frente de aferio genrica versa o que, para todos os efeitos, pode ser

    tomado como uma generalizao da primeira, e a de que pela via de procedimentossucessivos de acomodao e harmonizao, claros processos de policy transfer tmcorrido da Europa para Portugal, muitos deles pela via jurdico-constitucional. Nestesentido, aquilo que tem acontecido por efeito de convergncias interessantes queimporta saber pesar se se quiser vir a compreender o processo de integrao-construo

    da Europa como um todo. Tal como importa saber ponder-las, caso se queira melhor

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    perceber as vrias facetas da disponibilidade portuguesa em aderir a este processode construo, sobretudo no que diz respeito sua dimenso supranacional52. Maisdo que meras transposies e adequaes em srie, aquilo que se tem vindo a viver tem-se

    consolidado numa profunda reconfigurao no que toca prpria definio jurdico-polticada comunidade poltica que constitumos.

    Uma terceira e ltima concluso-balano situa-se num outro mbito. Pe em jogouma questo que porventura podemos apelidar de cognitiva. Trata-se da questo quenos parece mais fcil enunciar como uma pergunta: porque que a generalidadeda comunidade cientfica53 no assumiu ainda com a clareza e frontalidade que seriamde esperar regularidades como aquelas sobre as quais aqui nos debrumos, e que setornam to evidentes e fceis de apurar mediante um simples esforo de seriao

    comparativa?A resposta que propomos para tanto, simples: na enorme maioria dos casos, as

    presses externas de que tramos um rastreio no so encaradas como constrangi-mentos impostos de fora para dentro. Pelo contrrio, j que so foras amplamenteconsentidas e mesmo desejadas, conceptualmente arrumadas como resultados de actosinternos da vontade soberana nacional. As suas caractersticas fundamentais no so,por isso, espontaneamente visveis, por efeito do que, no fundo, podemos considerarcomo uma iluso de ptica ou, talvez melhor, um erro de paralaxe. bem mais difcil,efectivamente, identificar padres em processos que dependem de interaces dinmicasdo que naqueles que resultam da simples actuao de mecanismos causais unvocos.E nem sempre as tentaes normativistas de que padecemos nos permitem o recuoanaltico necessrio para entrever as regularidades que emergem de processos tocomplexos como tm sido os da integrao de Portugal na Europa.

    52 No queramos deixar passar a oportunidade de alargar ainda mais o foco da nossa anlise, o que alisindicmos iramos fazer: um leitor menos precavido pode ficar com a ideia de que sugerimos que agovernamentalizao da deciso poltica, chame-se-lhe isso, teria em nossa opinio lugar como consequncianica do processo de integrao europeia. Em grande parte tal verdade, mas em parte no. bvio queuma qualquer estrutura supranacional desloca ( o termo) o epicentro da deciso poltica para fora dasestruturas do Estado. Mas isso acontece tambm por fora da inevitvel interdependncia crescente entreos Estados, patente designadamente na regulamentao de vrios sectores da actividade econmicaatravs da abolio de entraves nas trocas entre Estados. A deslocao verificada pelo processo de inte-grao tem sido potenciada com a liberalizao das trocas ao nvel internacional. Ou seja, a globalizaotem tambm potenciado a deslocalizao da deciso poltica, pela proibio de quaisquer restries aocomrcio que impe. Agradecemos ao Ravi Afonso Pereira o ter-nos chamado a ateno para este ponto,que efectivamente recontextualiza toda a argumentao num crculo concntrico maior.

    53 Como referimos, vrios autores sugeriram j interpretaes potenciais que parecem ir na direco geral

    daquela que aqui propomos. Mas nunca de maneira explcita nem de forma exaustiva.

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    Ao perspectivar de maneira espontnea como interno algo que releva tantodo endgeno como do exgeno, e bem assim da interaco entre estes dois planos,condenamo-nos, em simultneo, a uma miopia e a um estigmatismo conceituais,

    cujas consequncias so sempre nefastas porque transtornam, impedindo-a,a avaliao de pormenor de questes de fundo essenciais para o nosso bemcomum.

    O futuro nos dir se estamos aqui perante um passo robusto e irreversvel no sen-tido de um alargamento coerente de pertenas que a globalizao veio acelerar ou,to-somente, de mais uma tentativa titubeante por tanto condenada ao insucesso.Em todo o caso h que manter sempre em mente que, se o projecto europeu temconstitudo uma vanguarda cosmopolita, ele tem decerto tambm funcionado como

    uma barreira eficaz s foras centrpetas em que formas mais amplas de integraose consubstanciam. No plano das transformaes globais seria, por isso mesmo, porven-tura exagerado supor uma interveno inexorvel e linear de uma nova regra dereconhecimento alargada.

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