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0 Ministério da saúde FIOCRUZ Fundação Oswaldo Cruz Instituto Fernandes Figueira Pós-Graduação em Saúde da Criança e da Mulher NECESSIDADES EM REGULAÇÃO DA FECUNDIDADE E CONTROLE DA VIDA REPRODUTIVA NA PERSPECTIVA DE MULHERES ATENDIDAS PELA ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO Andreza Rodrigues Nakano Rio de Janeiro Julho / 2010

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Ministério da saúde

FIOCRUZ

Fundação Oswaldo Cruz

Instituto Fernandes Figueira

Pós-Graduação em Saúde da Criança e da Mulher

NECESSIDADES EM REGULAÇÃO DA FECUNDIDADE E

CONTROLE DA VIDA REPRODUTIVA NA PERSPECTIVA

DE MULHERES ATENDIDAS PELA ESTRATÉGIA SAÚDE

DA FAMÍLIA NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

Andreza Rodrigues Nakano

Rio de Janeiro

Julho / 2010

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Ministério da saúde

FIOCRUZ

Fundação Oswaldo Cruz

Instituto Fernandes Figueira

Pós-Graduação em Saúde da Criança e da Mulher

NECESSIDADES EM REGULAÇÃO DA FECUNDIDADE E

CONTROLE DA VIDA REPRODUTIVA NA PERSPECTIVA DE

MULHERES ATENDIDAS PELA ESTRATÉGIA SAÚDE DA

FAMÍLIA NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

Andreza Rodrigues Nakano

Dissertação de Mestrado

apresentada à Pós-Graduação em

Saúde da Criança e da Mulher

como parte dos requisitos para a

obtenção do título de Mestre em

Saúde da Criança e da Mulher.

Orientadora: Profª. Drª. Claudia Bonan Jannotti.

Rio de Janeiro

Julho / 2010

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Dedico este trabalho às principais

mulheres de minha vida:

minha mãe, Ducarmo, e

minha filha, Iasmim.

A sabedoria de uma e

o desabrochar da outra

me impulsionam

a cada dia.

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Agradecimentos

À Claudia Bonan, por compreender minha teia de necessidades e por ter orientado

muito mais que a pesquisa de mestrado. A nossa convivência foi a melhor parte.

À coordenação da Estratégia Saúde da Família da SMS do Rio de Janeiro, por aceitar

minha proposta de estudo, especialmente à Aparecida por colaborar também na fase de

seleção das unidades.

Às equipes das unidades onde realizei entrevistas, pelo acolhimento e apoio durante

meu trabalho de campo.

Às mulheres que compartilharam suas histórias e tornaram este trabalho possível.

Aos professores do Curso de PGSCM, por tornarem a maratona de disciplinas

agradável.

À Professora Kátia Silveira da Silva pelo carinho e incentivo em todos os momentos.

Às colegas de curso, pelo companheirismo na fase intensiva de disciplinas. Em especial

à Aurea, Andréia e Simoni por compartilharem as angústias, alegrias e conquistas nesta

trajetória.

Aos profissionais da Secretaria Acadêmica, especialmente à Euzeni, que pacientemente

ouvia e resolvia as dúvidas acerca da parte burocrática do mestrado.

Aos profissionais da Biblioteca de Saúde da Criança e da Mulher do IFF, pelo apoio e

zelo em meus infindáveis dias de estudos.

Aos professores Ruben Mattos, Luzinete Minella e Martha Moreira pelo pronto aceite

em participar da banca examinadora e por suas ricas considerações.

Ao Fábio, pela motivação, paciência, amor e compreensão desde o sonho até às

ausências para realizá-lo.

À minha família, especialmente ao meu pai, Afrânio, por cultivar e acreditar em meus

objetivos, e mesmo à distância me oferecia carinho e apoio incondicionais.

À Iasmim, por ser companheira (desde a barriga) e por compreender minha dedicação

aos estudos.

À minha rede de apoio na maternagem da Iasmim: mãe (Ducarmo), tia Júlia, Fumie e

Cléa, por compartilharem comigo o meu maior bem e estarem presentes sempre que

precisei de ajuda.

Ao CNPQ pelo apoio financeiro durante o mestrado.

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Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,

desses que tocam trombeta, anunciou:

Vai carregar bandeira.

Cargo muito pesado pra mulher,

esta espécie ainda envergonhada.

Aceito os subterfúgios que me cabem,

sem precisar mentir.

Não sou tão feia que não possa casar,

acho o Rio de Janeiro uma beleza e

ora sim, ora não, creio em parto sem dor.

Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.

Inauguro linhagens, fundo reinos

- dor não é amargura.

Minha tristeza não tem pedigree,

já a minha alegria vai ao meu mil avô.

Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.

Mulher é desdobrável. Eu sou.

Adélia Prado

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Resumo

As necessidades das mulheres vêm sendo pautadas como referência para a formulação

de políticas de saúde desde a criação do PAISM, que introduziu conceitos e demandas

formuladas por movimentos sociais, destacadamente integralidade na assistência,

direitos na esfera reprodutiva e equidade de gênero. Apesar de avanços nos últimos

anos, a efetivação desses direitos é tarefa ainda não concluída, como mostram estudos e

estatísticas de saúde. A partir de contribuições de Eduardo Stotz decidimos lançar um

novo olhar sobre essas necessidades; para isso montamos um arcabouço teórico com

autores das ciências sociais, como Agnes Heller, Nancy Fraser, Len Doyal e Ian Gough,

Amartya Sen, Rosalind Petchesky. Objeto: Necessidades em regulação da fecundidade e

controle da vida reprodutiva na perspectiva de mulheres atendidas pela Estratégia Saúde

da Família (ESF) na cidade do Rio de Janeiro. Objetivos: Compreender mediações

sócio-políticas, econômicas e culturais envolvidas na criação, percepção, distribuição e

satisfação das necessidades referentes à regulação da fecundidade e ao controle da vida

reprodutiva dessas mulheres. Sujeitos e métodos: Foi realizado estudo de relatos de

vida, com coleta de dados através de entrevistas em profundidade com 63 mulheres de

idade entre dezoito e quarenta e nove anos, atendidas pela ESF na cidade do Rio de

Janeiro. Análise contou com abordagem hermenêutica-dialética, buscando inter-relações

entre as experiências relatadas e os contextos de vida com suas contradições e conflitos.

Resultados: O estudo nos permitiu conhecer as vivências do corpo, da sexualidade e dos

afetos; o plano de filhos e as mediações da vida reprodutiva; o controle reprodutivo:

contracepção e aborto induzido; as vivências de gravidez, aborto espontâneo e parto; as

vivências da maternidade e maternagem e as tramas da vida. Conclusões: Sob o olhar do

quadro teórico construído pudemos interpretar aquelas vivências e considerar que: as

necessidades da vida reprodutiva fazem parte de uma imbricada teia de necessidades,

onde a reprodução está longe de ser o fio principal; a criação, a percepção, a

distribuição e a satisfação das necessidades têm influências de determinações estruturais

e normativas e são vivenciadas a partir das interações com as pessoas de seu circuito

íntimo de sociabilidade e com as instituições; há uma preocupação das políticas e

instituições em atender as necessidades enquanto carências, mas é a necessidade

enquanto valor, principalmente a autodeterminação, que os sujeitos paradoxalmente

reivindicam satisfazerem e demonstram estar satisfeitos diante das vivências em torno

da vida reprodutiva.

Palavras chave: Determinação das necessidades de saúde, Reprodução, Mulheres

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Abstract

Since the founding of the Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher -

PAISM (Program for Integrated Women's Health Care) – which championed multi-

level, integrated assistance; reproductive rights; and gender equality – remarkably,

women‟s necessities have been setting the health care policy formulation agenda. As

health studies and statistics bear out, in spite of progress made in recent years, the full

measure of these rights has not yet been realized. Based upon the contributions of

Eduardo Stotz, we decided to take a new look at these necessities and structured a

theoretical framework using the works of social science authors, including Agnes

Heller; Nancy Fraser; Len Doyal and Ian Gough; Amartya Sen; as well as Rosalind

Petchesky.

Focus: To analyze feedback provided by women attending the Estratégia de Saúde da

Família - ESF (Family Health Strategy) clinics in the city of Rio de Janeiro, we seek to

comprehend their necessities in relation to how they access fertility and birth control

programs.

Objective: To understand the intersections between socio-economic, political, and

cultural factors; the creation of fertility and birth control programs; and how these are

perceived by the women attending the ESF to determine if the distribution of services is

satisfactorily fulfilling the reproductive needs of these individuals.

Subjects and methods: The study was carried out study by using data collected from

life report interviews conducted with sixty-three (63) women who attended the ESF,

aged eighteen (18) to forty-nine (49) years old. The Hermeneutic-Dialectic analytical

approach was used, which looks for the interrelationship between reported experiences

and life contexts, with contradictions and conflicts taken into consideration.

Results: This study allowed to us to understand women‟s experiences with their bodies,

their sexuality, their affections, family planning, and how these intersect with their

reproductive life – birth control, contraception, induced abortion, pregnancy,

miscarriage, labor, maternity and maternal bonding – and their life stories.

Conclusions: From the perspective of the theoretical framework, we can interpret the

data collected from the life reports and consider that, a) reproductive life necessities are

part of an interwoven web, in which reproduction is far from being the principal thread;

b) in fulfilling these necessities, their creation, perception, distribution, and satisfaction

provided by them have influences of structural and normative determination, and are

experienced through interactions with persons within their intimate social circles and

institutions; and c) there is a concern being expressed about institutions and policy

makers that only see women‟s needs as “lacks” (i.e. what tangible deliverables do they

require) as opposed to “values” (i.e. addressing needs from a more holistic assessment

of life circumstances). Although the women attending the ESF appear to believe that

their reproductive health needs are being satisfied, paradoxically absent are information

and options, which would empower them to make more self-determined choices.

Key words: Needs Assessment, Reproduction, Women

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Lista de tabelas

Título da Tabela Página

Tabela 1 Quantitativo de artigos encontrados em busca na base de

dados LILACS, em 11 de março de 2010, considerando a

década de 2000

20

Tabela 2 Características sócio-demográficas das mulheres entrevistadas

segundo registros da Ficha de Identificação da Participante

(n=63)

62

Tabela 3 Características reprodutivas das mulheres entrevistadas

segundo registros da Ficha de Identificação da Participante

(n=63)

63

Tabela 4 Uso atual de contraceptivo segundo registros da Ficha de

Identificação da Participante e ajuste com informações

coletadas durante a entrevista (n=63).

64

Tabela 5 Participação em Grupo de Planejamento Familiar (GPF)

segundo registros da Ficha de Identificação da Participante

(n=63).

64

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Sumário

Capítulo 1 – Introdução

09

Capítulo 2 - Revisão da Literatura 13

Capítulo 3 – Quadro teórico 23

Capítulo 4 - Sujeitos e Métodos 38

Capítulo 5 – Lançando sementes: apontamentos etnográficos do campo 41

56

57

60

66

68

101

133

173

191

218

Capítulo 6 – Resultados

Parte Um – A participação das mulheres na pesquisa

Parte Dois – Conhecendo as mulheres...

Parte Três - ... e suas vivências

I. Vivências do corpo, da sexualidade e dos afetos

II. Plano de filhos e mediações da vida reprodutiva

III. Controle reprodutivo: contracepção e aborto induzido

IV. Vivências de gravidez, aborto espontâneo e parto

V. Vivências de maternidade e maternagem

VI. Tramas da vida

Capítulo 7 – À guisa de conclusão 238

Referências 248

Apêndices 252

Anexos 275

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Capítulo 1 - Introdução

Esta pesquisa se propõe a uma reflexão sobre as necessidades que envolvem

a regulação da fecundidade e o controle da vida reprodutiva na perspectiva de mulheres

atendidas pela Estratégia Saúde da Família na cidade do Rio de Janeiro.

As necessidades das mulheres vêm sendo pautadas como referência para a

formulação de políticas de saúde, principalmente desde a criação do Programa de

Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM) no início da década de 1980. O

programa incorporou os conceitos e demandas formuladas por movimentos sociais,

destacadamente os movimentos de mulheres e o da Reforma Sanitária, e preconizou o

direito universal à saúde, a integralidade na assistência e os direitos na esfera

reprodutiva. O PAISM representou uma inovação nessa área de políticas, uma vez que

anteriormente a compreensão das necessidades de saúde das mulheres se restringia ao

binômio mãe-bebê, nos moldes do modelo tradicional de assistência à saúde materno-

infantil. Nas duas décadas seguintes, foram construídos outros instrumentos normativos

e políticos que ampliaram e aprofundaram esses novos marcos – em destaque a

Constituição Federal (1988), a Lei do Planejamento Familiar (1996) e a Política

Nacional de Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos (2005).

Apesar dos avanços desses últimos 20 anos, a efetivação dos direitos

previstos nesses instrumentos é tarefa ainda não concluída e acompanha os desafios de

construção do Sistema Único de Saúde (SUS) e da promoção de seus princípios

fundamentais: universalidade, eqüidade e integralidade. Inúmeros estudos, diagnósticos

e estatísticas produzidas na década de 2000 demonstram que há muito que se fazer para

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avançarmos na implementação dessas políticas, de modo a garantir o acesso e a

qualidade dos serviços.

A passagem dos macroprocessos políticos de desenho das políticas públicas

para os processos mais locais de desenvolvimento e de oferta de bens e serviços é um

desafio delicado. Nos microprocessos de interação que se dão nos serviços de saúde há

outros sujeitos participantes, outras disputas políticas, conflitos e negociação, ou seja, a

passagem de um nível a outro não é somente uma transposição de idéias, debates e

diretrizes que foram acordadas no plano mais central da discussão política (onde, muitas

vezes, os movimentos sociais tem influenciado). Além disso, são nesses pontos distais

do sistema que os sujeitos da saúde e da reprodução trazem as suas necessidades e

podem (ou não) exercer seus direitos e fortalecer sua autonomia. No nosso entender, um

problema que merece reflexão e investigação, é que na prática da gestão dos sistemas e

serviços e da assistência, ainda prevalece uma visão estreita dos sujeitos e das

necessidades na esfera da reprodução. Podemos destacar alguns aspectos que

contribuem para a persistência desse quadro: os discursos dominantes sobre as

necessidades de saúde ainda são muito marcados pelas lógicas biomédica, tecnicista e

epidemiológica; muitas vezes, as necessidades são diagnosticadas por autoridades e

técnicos com pouca participação dos sujeitos da saúde, e, por esse motivo, a eleição e a

interpretação dos problemas sociais sobre os quais intervir são etnocentradas e resvalam

no autoritarismo social; e a presença ainda importante das visões disciplinadoras do

higienismo e do controle demográfico, das representações biomédicas sobre a mulher,

das ideologias de classe e gênero e da cultura de consumo, marcando a experiência

reprodutiva de homens e mulheres.

A intenção de contribuir para uma renovação do debate das necessidades em

saúde e das necessidades que circundam a vida reprodutiva das mulheres foi o que

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motivou o desenvolvimento da pesquisa. Partimos com as seguintes questões: Como as

mulheres percebem e representam suas necessidades no que diz respeito à regulação da

fecundidade e controle da vida reprodutiva? Que dinâmicas do contexto sócio-cultural

em que vivem influenciam a criação, a percepção e a satisfação dessas necessidades?

Que atitudes são tomadas pelas mulheres na busca de satisfazer essas necessidades?

Existem meios socialmente designados para atender a essas necessidades? Eles são

acessíveis a todas as mulheres?

Com base nessas questões, revisamos a literatura em busca de trabalhos que

abordassem o tema das necessidades em saúde, em geral, e as necessidades específicas

relacionadas às vivências da sexualidade e da reprodução. Percebemos que o uso do

termo necessidades é bastante comum nessa produção, muitas vezes associados ao

debate sobre integralidade na assistência à saúde e ao debate sobre direitos sexuais e

reprodutivos. Há muitos estudos que, nesse intuito, foram baseados em entrevistas com

os próprios sujeitos da saúde. Em que pese a importância e a qualidade dessa literatura,

na revisão que fizemos, sentimos falta de uma articulação teórica mais consistente em

torno da noção de necessidades. A tese Necessidades de saúde: mediações de um

conceito (contribuição das Ciências Sociais para a fundamentação teórico-

metodológica de conceitos operacionais na área de Planejamento em Saúde) de

Eduardo Stotz era freqüentemente citada nos estudos encontrados, o que nos fez partir

para a busca e leitura deste trabalho. Esse estudo se destaca na literatura brasileira pela

abrangência e profundidade teórica que o autor tratou a noção de necessidade em saúde.

Ele nos proporcionou reflexões e suscitou intuições que estimularam a buscar novas

perspectivas para discutir as necessidades que envolvem a vida reprodutiva das

mulheres e, também, ofereceu os primeiros direcionamentos de onde deveríamos

procurar subsídios para nosso estudo. Encontramos na literatura das ciências sociais

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formulações teóricas sobre as necessidades humanas que nos ajudaram a desenvolver o

quadro teórico-analítico desta pesquisa, principalmente nos trabalhos de Agnes Heller,

Nancy Fraser, Doyal e Gough, Amartya Sen e Rosalind Petchesky.

O objeto de estudo desta pesquisa são as necessidades em regulação da

fecundidade e controle da vida reprodutiva e suas mediações na perspectiva de um

grupo de mulheres atendidas pela Estratégia Saúde da Família na cidade do Rio de

Janeiro. O objetivo geral foi compreender mediações sócio-políticas, econômicas e

culturais envolvidas na criação, percepção, distribuição e satisfação das necessidades

referentes à regulação da fecundidade e ao controle da vida reprodutiva de um grupo de

mulheres atendidas pela ESF na cidade do Rio de Janeiro. Os objetivos específicos

visavam reconstruir trajetórias sociais das participantes da pesquisa, com ênfase nos

eventos da vida afetivo-conjugal, sexual e reprodutiva; compreender como as mulheres

percebem e vivenciam suas necessidades e os modos de satisfazê-las e investigar os

processos e mediações que influenciam a criação das necessidades e potencializam ou

obstaculizam sua satisfação.

Esta dissertação está divida em sete capítulos. No segundo capítulo é

apresentada uma Revisão da literatura, e no terceiro, o arcabouço teórico deste estudo.

O quarto capítulo esclarece os aspectos metodológicos da pesquisa, seguidos pelos

apontamentos etnográficos registrados ao longo do trabalho de campo, no quinto

capítulo. Os resultados são apresentados no sexto capítulo, que está divido em três

partes. O sétimo capítulo expõe as considerações finais deste estudo. As referências,

apêndices e anexos, vem respectivamente após o sétimo capítulo.

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Capítulo 2 - Revisão da literatura

No Brasil, o planejamento familiar tem estado em pauta na agenda política

há pelo menos meio século, tendo sido introduzido aqui em meados de 1960, por

entidades ligadas à International Planned Parenthood Federation (IPPF). Seus

antecedentes remetem aos anos de 1950, quando o crescimento demográfico mundial

passou a ser alvo de preocupações políticas de governos e elites dos países ricos e de

intervenções de uma rede de entidades por eles financiadas com o objetivo de promover

programas de controle do aumento populacional, principalmente nos países menos

desenvolvidos, com o objetivo último de enfrentar a “crise demográfica”.

Na década de 1980, houve uma inflexão do debate sobre planejamento

familiar impulsionada por novos atores e movimentos sociais, com destaque para os

movimentos de mulheres e o da reforma sanitária. Nesse novo debate, a perspectiva dos

direitos e do bem-estar dos sujeitos na esfera da vivência sexual e reprodutiva foi

introduzida, abrindo espaço para a ressignificação do planejamento familiar e

transcendência das perspectivas puramente biomédicas e demográficas. A mais

emblemática tradução dessas conquistas foi a criação do Programa de Assistência

Integral à Saúde da Mulher (PAISM), em 1984. Com o aprofundamento dos processos

de redemocratização e de reconhecimento de direitos, novas institucionalidades

ampliaram a legitimidade da perspectiva dos direitos reprodutivos como fundamento do

planejamento familiar, especialmente a Constituição Federal de 1988 e a Lei de

Planejamento Familiar de 1996. No plano internacional, as Conferências do Ciclo

Social das Organizações das Nações Unidas (ONU), com destaque para as conferências

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de Cairo (1994) e de Beijing (1995), contribuíram para a consolidação do debate do

planejamento familiar na perspectiva dos direitos humanos.

No novo milênio os desafios da efetivação dos direitos sexuais e

reprodutivos ainda permanecem e o governo brasileiro reafirma a prioridade desse tema

com a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM) (Ministério

da Saúde, 2004), a Política Nacional de Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos

(PNDSDR) (Ministério da Saúde, 2005), o Pacto pela Saúde (Ministério da Saúde,

2006) e o Programa Mais Saúde (Ministério da Saúde, 2007). Esse conjunto de políticas

governamentais reforça o reconhecimento da diversidade dos sujeitos dos direitos

sexuais e reprodutivos e de suas múltiplas necessidades. Todas essas políticas foram

elaboradas com intensa cooperação de distintos setores governamentais e diversos

atores e instituições da sociedade civil.

Apesar dos importantes avanços desses últimos vinte anos, é necessário

continuar investindo na transformação das práticas assistenciais e das interações que se

dão nos sistemas e nos serviços de saúde no sentido de efetivar uma cultura de respeito

e promoção aos direitos reprodutivos. Estudos acadêmicos, diagnósticos institucionais e

indicadores de saúde revelam que persistem desigualdades de acesso e problemas de

qualidade na prestação de assistência à saúde sexual e reprodutiva e ao planejamento

familiar, assim como elementos discriminatórios e autoritários nas relações que ali se

dão.

A Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde 2006 (PNDS 2006) (Ministério

da Saúde, 2008 a) mostra uma taxa de fecundidade total de 1,8 filhos/mulher no Brasil,

na primeira metade da década de 2000, taxa inferior àquela aferida pela PNDS 1996

(2,5) (BEMFAM, 1997). Revela também um aumento da proporção de mulheres em

idade reprodutiva que utilizam métodos contraceptivos. Entretanto, tanto no que diz

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respeito às taxas de fecundidade como a utilização de métodos, há significativas

diferenças segundo regiões do país, anos de estudo e cor das mulheres, que

provavelmente refletem desigualdades de acesso a recursos de saúde, educação, renda e

outros, já bastante demonstradas em vários estudos (Ministério da Saúde, 2008 b).

Quando se analisa o perfil dos métodos utilizados e o modo de obtenção dos mesmos

pode-se interrogar o quanto o sistema de saúde dá conta de atender de modo abrangente

às necessidades das mulheres. A pílula e o preservativo masculino são predominantes e

a grande fonte de obtenção desses métodos são as farmácias, apesar das mulheres serem

em grande parte usuárias do SUS. Outros métodos, como o dispositivo intra-uterino

(DIU) e a esterilização cirúrgica feminina, são providos principalmente pelo SUS. No

que diz respeito à laqueadura tubária, houve uma diminuição proporcional de sua

representação entre o conjunto dos métodos, o que a principio pode ser considerado um

dado positivo, tendo em conta a sua super-representação na pesquisa anterior.

Entretanto, há que se considerar outros estudos onde a dificuldade de acesso a este

método no SUS ainda é realidade (Osis et al, 2006). Quanto ao DIU – para o qual

grande parte das mulheres depende do SUS – há uma utilização bem reduzida do

método, em comparação com outros países mais desenvolvidos (Molina, 1999). Para a

esterilização cirúrgica masculina, cuja representação entre os métodos aumentou,

recorre-se principalmente ao serviço privado. Todos esses achados nos sugerem que

ainda há muitos fatores que limitam o leque de escolha anticoncepcional e,

provavelmente, condicionam a satisfação das necessidades de regulação da fecundidade

dos sujeitos.

A revisão de estudos realizados na última década sobre práticas

contraceptivas e assistência ao planejamento familiar no Brasil revelou alguns dos

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obstáculos a serem enfrentados no campo da saúde, no sentido de ampliar o direito dos

sujeitos no controle de sua vida reprodutiva.

Costa et al (2006) desenvolveram pesquisa de abrangência nacional para o

Ministério da Saúde sobre a oferta de ações de assistência ao planejamento familiar no

SUS, através de questionários auto-aplicados com gestores das secretarias municipais de

saúde, e uma maioria expressiva declarou que o planejamento familiar é uma prioridade

na atenção às mulheres. Apesar de possíveis vieses pelo fato de ser esse um estudo

institucional – como reconhecem as próprias autoras -, a pesquisa foi capaz de ressaltar

problemas comuns ao cotidiano dessa assistência. A oferta de práticas educativas é

realizada por 89,2% dos municípios, sendo que entre aqueles que não ofertam essa

assistência há maior concentração de municípios de menor dimensão populacional. No

que diz respeito à assistência contraceptiva com métodos modernos, não estão

disponíveis todas as alternativas tecnológicas cientificamente seguras para a escolha das

mulheres. Prevalece a oferta de pílula e preservativo masculino, sendo que o DIU e o

diafragma não estão disponíveis na maior parte dos municípios, e a laqueadura tubária

em um pouco mais da metade deles. Dessa forma, mesmo que a oferta de informação

seja um meio de proporcionar autonomia às mulheres na escolha de seus métodos, esta é

comprometida em uma etapa seguinte quando suas escolhas são conduzidas pela falta de

opção. Outro achado importante é a baixa oferta de assistência às queixas de

infertilidade – 73% dos municípios declararam não oferecer esse serviço -, evidenciando

que certas necessidades na esfera da vida reprodutiva não estão sendo abordadas pelos

serviços de saúde. O estudo também confirmou a presença de diferenças regionais na

oferta de ações de assistência ao planejamento reprodutivo e de recursos tecnológicos

que o apóiem.

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Outro estudo que nos oferece um panorama abrangente sobre a assistência ao

planejamento familiar no Brasil é o de Osis et al (2006) – estudo desenvolvido para o

Ministério da Saúde, na primeira metade da década de 2000. Seu objetivo foi avaliar a

estratégia ministerial de distribuição de métodos contraceptivos aos municípios, a real

disponibilidade desses métodos nas unidades de saúde e os possíveis obstáculos para

que os métodos cheguem aos usuários. Combinando métodos quantitativos e

qualitativos, a pesquisa envolveu uma amostra representativa de secretarias municipais

de saúde e unidades básicas de saúde. Grande maioria dos municípios confirmou o

recebimento de kits com métodos contraceptivos, porém muitos disseram não haver

recebido todos os métodos previstos e, principalmente, referiram um quantitativo abaixo

do necessário para atenderem às suas demandas. Os gestores entrevistados referiram

dificuldades de comunicação com os técnicos do Ministério da Saúde, o que dificultava

a suplementação de insumos; a provisão de métodos era vista como responsabilidade

ministerial, sendo comprados pelos municípios somente nos casos de demora,

irregularidade e insuficiência dos insumos. Nos aspectos estruturais, foi identificado que

aqueles municípios onde se tinha implementado a Estratégia de Saúde da Família (ESF),

os serviços de planejamento familiar tinham melhor organização e efetividade, apesar

de ocuparem um plano secundário à atenção ao ciclo gravídico-puerperal. Além disso,

nas entrevistas, muitos profissionais disseram que não se consideravam capacitados a

atuar em planejamento familiar e não viam caráter preventivo ao trabalharem nessas

ações. No plano operacional, nas entrevistas com gestores e equipes de saúde foram

identificados problemas como: ausência de uma rotina uniforme para o fornecimento e

indisponibilidade ou disponibilidade irregular dos métodos; pouca participação dos

homens no planejamento familiar; pouca procura dos serviços por parte dos

adolescentes, apesar de não haver restrição a essa população; ausência ou fragilidade

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das referências para a realização da esterilização cirúrgica voluntária; quanto à

anticoncepção de emergência, muitos profissionais das unidades de saúde desconhecem

que as secretarias de saúde disponibilizam o método, há interpretações errôneas dos

critérios médicos e legais para prescrevê-lo, é pouco divulgada à população e há pouca

demanda espontânea. Esse estudo também demonstra que as atividades de planejamento

familiar não incluem a infertilidade, que marginal à assistência não tem protocolos nem

sistema de referência.

Apesar de diferentes abordagens e abrangência, outros estudos tiveram

achados semelhantes, problematizando aspectos como a organização dos serviços e

processos de trabalho de assistência ao planejamento reprodutivo (Ribeiro e Barbieri,

2002; Moura e Silva, 2005; Moura et al, 2007; Berquó e Cavenagui, 2003; Moura e

Silva, 2006), a oferta e a qualidade das práticas educativas (Moura e Silva, 2006; Moura

e Silva, 2004), a capacitação dos profissionais para essa assistência (Ribeiro e Barbieri,

2002; Moura e Silva, 2005; Moura et al, 2007), as condições da oferta dos métodos

contraceptivos (Moura e Silva, 2006; Silva et al, 2008), e dificuldades relacionadas ao

acesso à esterilização cirúrgica voluntária (Moura e Silva, 2005; Moura et al, 2007;

Berquó e Cavenagui, 2003). Um estudo demonstra que as necessidades para limitar a

prole ainda encontram-se insatisfeitas em todas as regiões do Brasil, diminuindo

conforme o aumento da escolaridade, mas prevalecendo desigualdades regionais

relacionadas à satisfação das necessidades por métodos anticoncepcionais (Tavares et

al, 2007).

Essa breve revisão de estudos sobre planejamento familiar no Brasil mostra

que há lacunas importantes entre o que se construiu no plano normativo e do desenho

das políticas, por um lado, e a realidade da assistência, por outro, com repercussões para

as práticas experienciadas pelos sujeitos. Os desafios para superação desse quadro são

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de várias ordens, passando pelo aprimoramento das atividades de planejamento e gestão

nessa área da atenção em saúde, sensibilização e capacitação dos recursos humanos,

alocação financeira, reorganização dos serviços com melhoria do acesso e qualidade e

ampliação da utilização dos mesmos, entre outros. Porém, talvez somente o

enfrentamento dessas questões não seja suficiente para que mudanças efetivas

aconteçam nas vivências reprodutivas dos sujeitos. Acreditamos que a contínua

reflexão e produção de conhecimento, no que diz respeito às necessidades de saúde e

necessidades de controle da vida reprodutiva, e sua tradução em tecnologias do cuidado

em saúde, são cruciais para a imagem-objetivo dos direitos reprodutivos.

No campo da saúde, a atenção aos indivíduos acontece em serviços que se

estruturam de acordo com definições técnicas, derivadas de lógicas biomédicas e

epidemiológicas e de interpretações dominantes sobre quais são os problemas sociais

prioritários e o modo de intervir sobre eles (Mattos, 2007). Nesse sentido, muitas vezes,

as necessidades que os serviços buscam atender são estabelecidas de modo hierárquico;

elas geram demandas que se travestem de necessidades, mas não obrigatoriamente vêm

de encontro a necessidades mais abrangentes dos sujeitos (Teixeira, 2007). Claro está

que o campo da saúde não pode pretender dar conta de atender a todas as necessidades

de um ser humano, sob o risco de um controle sem precedentes sobre os sujeitos,

comprometendo sua autonomia (Camargo Jr, 2007). Entretanto, compreender essas

necessidades com suas múltiplas facetas é um passo para que as necessidades

relacionadas à saúde possam ser efetivamente satisfeitas (Cecílio, 2006). Para isso, é

fundamental incluir a voz e lógica dos sujeitos do direito à saúde, em todos os níveis do

debate político e dos processos de interação. As necessidades humanas são dinâmicas,

variam no tempo, no espaço e de sujeito para sujeito. Criar espaços de escuta e diálogo é

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essencial para que as necessidades se revelem moral e legalmente e a autodeterminação

desses sujeitos seja promovida.

Em busca de conhecer a produção acadêmica sobre as necessidades dos sujeitos

no âmbito das vivências reprodutivas realizamos uma revisão bibliográfica

considerando a literatura produzida na década de 2000. Uma consulta à base de dados

Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), através da

Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), utilizando os descritores “planejamento familiar” e

“direitos reprodutivos” e combinando-os com as palavras “necessidade”,

“necessidades”, “necessidade de saúde” e “necessidades de saúde”, trouxe como

resultado o que pode ser observado na tabela a seguir.

Tabela 1 - Quantitativo de artigos encontrados em busca na base de dados

LILACS, em 11 de março de 2010, considerando a década de 2000.

Termos combinados Número de

artigos

encontrados

Número de artigos

diretamente

relacionados ao tema

Planejamento Familiar e Necessidade 35 10

Planejamento Familiar e Necessidades 39 05

Planejamento Familiar e Necessidade de Saúde 26 06

Planejamento Familiar e Necessidades de Saúde 35 04

Direitos Reprodutivos e Necessidade 09 03

Direitos Reprodutivos e Necessidades 05 02

Direitos Reprodutivos e Necessidade de Saúde 08 02

Direitos Reprodutivos e Necessidades de Saúde 05 03

162 35

Fonte: Dados obtidos em busca na BVS, em 11/03/2010.

A separação em “número de artigos encontrados” e “número de artigos

relacionado ao tema” surgiu através da leitura dos títulos e resumos, buscando

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selecionar aqueles estudos cujos objetos e reflexões eram mais diretamente relacionados

ao assunto deste projeto. Contamos, portanto, com o total de dezesseis trabalhos

diferentes. Quatro artigos enfocavam questões relacionadas à assistência ao

planejamento reprodutivo (Moura e Silva, 2005; Moura e Silva, 2006; Moura e Silva,

2004; Osis et al, 2009). Seis artigos abordavam temas diversos como: discursos e

concepções sobre planejamento familiar entre a enfermagem (Coelho, 2005); motivos

para a escolha de esterilização entre mulheres (Carvalho, 2003); arrependimento

relacionados a esse procedimento (Barbosa et al, 2009); visões masculinas sobre

métodos contraceptivos (Espírito-Santo e Tavares-Neto, 2004); participação social nas

políticas de saúde para mulheres (Costa, 2009) e sexualidade juvenil (Knauth et al,

2006). Outros cinco artigos são estudos de base populacional e abordam o uso de

métodos contraceptivos (Carreno et al, 2006) e a satisfação da necessidade de

contracepção (Tavares et al, 2007; Calle et al, 2006; Tavares, 2006; Lacerda et al,

2005). Um último estudo (Oliveira, 2003) discute demandas das pessoas vivendo com

HIV/Aids em serviços de saúde e refere para análise uma perspectiva teórica dos

processos de trabalho em saúde, das necessidades de saúde e dos direitos reprodutivos.

Dentre os dezesseis artigos resultantes da busca, este último é o que traz questões

teóricas com base nas ciências sociais e o que mais se aproxima da discussão que nos

propomos a fazer neste projeto.

Campos e Bataiero (2007), ao realizarem uma revisão de artigos entre 1990 e

2004 sobre necessidades de saúde, encontraram que os estudos em geral não

apresentavam um referencial teórico que subsidiasse uma compreensão reflexiva sobre

essas necessidades. Dentre os estudos encontrados (setenta e três), as poucas pesquisas

(nove) que tinham como objeto um evento específico numa fase da vida da mulher –

gravidez, parto ou puerpério – estavam centrados na oferta e/ou demanda de ações nos

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serviços de saúde. Os achados das autoras reforçam o resultado que obtivemos em

nossa busca: há uma lacuna no que se refere às necessidades no campo das vivências

reprodutivas. Isso confirma o quão fundamental é problematizarmos esta questão.

Ao recuperarmos a perspectiva sócio-antropológica na busca por

compreender as necessidades em regulação da fecundidade e controle da vida

reprodutiva esperamos contribuir para o fortalecimento dos debates em torno dessas

necessidades das mulheres, inclusive no campo da saúde.

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Capítulo 3 - Quadro teórico

O termo necessidade é usualmente empregado no senso comum quando se

pretende falar de algo que falta a um indivíduo ou grupo de pessoas. Especialmente no

campo da saúde, há uma quase saturação e proliferação de discursos sobre necessidades

e um sem número de formas de utilização deste termo. Isso coloca a proposta de

investigação acerca deste tema sob questionamentos. Pode-se argumentar,

principalmente, que ele já está bastante explorado em discussões teóricos, políticas e

analíticas, e que as necessidades em torno da fecundidade e controle da vida reprodutiva

de mulheres tem sido pensadas há algumas décadas - principalmente a partir das

discussões em torno dos direitos reprodutivos e da assistência integral à saúde da

mulher. Lançamo-nos, portanto, em um desafio ao desenvolvermos mais um estudo

nesse campo.

É necessário que façamos alguns esclarecimentos prévios sobre os

pressupostos que levaram ao desenvolvimento do quadro teórico antes de apresentar os

autores que contribuem em nossa empreitada. O primeiro deles diz respeito à

indeterminação das necessidades. Um mesmo indivíduo pode ter necessidades

diferentes em momentos diferentes de sua vida, assim como um grupo de pessoas tem

necessidades diferentes entre si, mesmo que existam necessidades semelhantes que

possam ser satisfeitas da mesma maneira. Dessa forma, não faria sentido embarcar em

uma investigação que buscasse simplesmente enumerar e/ou definir a substância das

necessidades da vida reprodutiva das mulheres. Um segundo esclarecimento é que não

adotamos um conceito de necessidades em nosso trabalho. Uma tal pretensão suscitaria

dois tipos de problemas: poderíamos ter uma conotação tão ampla e genérica, que

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dificultaria identificar os conteúdos, contornos e particularidades desse conceito; ou,

outras vezes, ser concebido e trabalhado de forma tão subjetiva e arbitrária, que

comprometeria qualquer tipo de análise que se fizesse a partir desses conceitos (Doyal e

Gough, 1991). Posto isso, fica claro que nossa proposta não é definir o que vem a ser

nem quais são as necessidades na esfera reprodutiva. Um terceiro esclarecimento diz

respeito à dinâmica da categoria necessidade no campo da saúde. Através de processos

de luta política, onde alguns grupos têm mais poder de impor suas visões do que outros,

certas necessidades de saúde são eleitas para receberem intervenções, se

institucionalizam e geram políticas. As prescrições normativas em torno das

necessidades das pessoas têm sido ditadas pelo olhar técnico e a perspectiva dos sujeitos

geralmente está ausente ou silenciada. Além disso, há uma tendência complicada a

setorizar e hierarquizar as necessidades, e mesmo as necessidades de saúde revelam a

fragmentação e reducionismo diante das necessidades dos sujeitos (Mattos, 2005). Um

último esclarecimento: é preciso entender que, sejam quais forem as necessidades sobre

as quais se fala, elas são produzidas na imensa teia das relações humanas e estão

entrelaçadas num grande conjunto de necessidades de indissociáveis.

Estamos diante de um termo complexo, e tanto as definições políticas como

acadêmicas podem veicular uma visão naturalizada das necessidades e sugerir “aquilo

que elas realmente são”. Para dar conta do desafio de analisar uma realidade à luz

desses pressupostos foi preciso buscar consistência teórica em autores que escapam da

tendência de criar conceitos substantivos ou setorizar as necessidades e fazem teorias

mais abrangentes em torno da produção das necessidades. Construímos um arcabouço

teórico conceitual amparado em autores das Ciências Sociais e da Saúde Coletiva que

nos auxilie na compreensão das necessidades em torno da vida reprodutiva por uma

perspectiva sócio-histórica, e nos ajude a pensar as necessidades – sua criação,

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percepção, distribuição e satisfação – a partir dos sujeitos das necessidades e seus

contextos.

No Brasil, Eduardo Stotz (1991) é um marco nos debates acerca das

necessidades de saúde. Ele desenvolveu um trabalho singular na área de Planejamento

em Saúde com o qual introduziu uma teorização sobre os contextos de vida e sua

relação com a produção das necessidades de saúde. A leitura desse trabalho nos

despertou para um olhar diferente sobre as necessidades em regulação da fecundidade e

controle da vida reprodutiva e nos fez perceber o quanto os debates nessa área sobre

necessidades estão impregnados de lentes normativas e prescritivas. De maneira crucial,

o trabalho de Stotz (1991) nos levou a pensar se seria possível desenvolver um estudo

despido dessas lentes, além de também ter servido como apoio para discutir

necessidades a partir de outros autores.

As principais contribuições teóricas para esse estudo foram buscadas nas

ciências sociais, destacadamente em Agnes Heller (1986; 1996 e 2002), Nancy Fraser

(1997; 2000; 2002 e 2007), Len Doyal e Ian Gough (1991), Amartya Sen (2000) e

Rosalind Petchesky (2000). A primeira autora colabora em nosso empreendimento com

uma perspectiva histórico-sociológica das maneiras específicas de criar, perceber,

distribuir e satisfazer as necessidades na modernidade. Fraser traz reflexões acerca da

teoria de justiça em uma era pós-socialista que contribuem para expandir as maneiras de

pensar as necessidades. Doyal e Gough colaboram com sua teoria sobre as necessidades

humanas que destaca como básico a todos os seres humanos a necessidade de tornar-se

sujeito. O enfoque de expansão da liberdade como meio e fim para o desenvolvimento,

discutido por Amartya Sen, colabora de maneira importante para entendermos a

capacidade dos sujeitos para criar e satisfazer suas necessidades diante de suas

possibilidades. E, por fim, Rosalind Petchesky nos ajuda a alinhavar as contribuições

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desses autores ao discutir as conexões entre direitos e necessidades nos debates sobre

direitos sexuais e reprodutivos.

A teoria das necessidades humanas de Heller tem como ponto de partida

uma declaração bastante simples: a necessidade como a falta de algo (Heller, 1986).

Para ela, sentir, perceber ou afirmar a falta de alguma coisa para si mesmo ou para

alguém é um processo mediado por correlações de forças políticas, sociais e culturais;

por isso, o pressuposto básico é que as necessidades são constructos sociais (Heller,

1996). As sociedades reconhecem certas necessidades de homens e mulheres enquanto

atores e criaturas sócio-políticas, entretanto, suas necessidades têm também uma

irredutível dimensão individual e os objetos de satisfação serão diferentes para cada

pessoa. Os objetos das necessidades e os satisfatores estão em correlação, e devem ser

analisados a partir da dinâmica do corpo social e do processo histórico onde acontecem,

uma vez que são as pessoas que tem necessidades e os objetos assim como os

satisfatores são produzidos socialmente (Heller, 1986).

A autora teoriza as necessidades em um sistema com quatro dimensões

analíticas inter-relacionadas: a criação, a percepção, a distribuição e a satisfação,

mediado pelas relações sócio-políticas, econômicas e culturais. A primeira dimensão

compreende as maneiras como são geradas as necessidades, a sua origem. A segunda

diz respeito à como elas são percebidas pelos sujeitos que sentem as necessidades. A

terceira está relacionada à atribuição social de necessidades entre as pessoas ou grupos.

E, a quarta dimensão, diz respeito aos modos como são satisfeitas as necessidades.

Para Heller, a modernidade se diferencia bastante de outras formas de

sociedade no que diz respeito aos modos como é produzido o sistema de necessidades.

(Heller, 1986)

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A modernidade é caracterizada por um intenso dinamismo e todas as suas

instituições são marcadas por taxas de renovação e mudanças aceleradas. Isso faz com

que as necessidades estejam sempre em renovação e diferenciação, assim como a

produção de satisfatores para elas1. A matriz sócio-cultural moderna é marcada pela

consciência da contingência e pela idéia de que os seres humanos nascem livres e

dotados de um conjunto de possibilidades. O fado – determinações prévias ao

nascimento - dá lugar à idéia de que o destino está nas mãos dos sujeitos, o que põe em

perspectiva a mobilidade social. Com base nessas idéias fundadoras as sociedades

modernas desenvolveram um regime de distribuição das necessidades diferenciado de

outras sociedades, onde a contingência do nascimento (classe, casta, lugar) era

considerada determinante do destino individual e, portanto das necessidades dos grupos

eram qualitativamente diferentes. No discurso moderno, considera-se que os indivíduos

podem ter as mesmas necessidades, ou seja, elas seriam qualitativamente iguais. Nesse

sentido, a distribuição das necessidades seriam mais quantitativa do que qualitativa,

entretanto o acesso às condições que satisfazem às necessidades são muito variáveis –

isso introduz a discussão de estruturas de desigualdades. A sociedade moderna, para a

autora, é um tipo ideal para a distribuição das necessidades, pois homens e mulheres

nascem livres e desnudos e somente as necessidades biológicas (e não as sociais) podem

ser distribuídas previamente (Heller, 1996). Essa liberdade, portanto, não assigna nem

necessidades nem satisfatores. A determinação de um passado coletivo tradicional dá

lugar ao componente humano para agir sobre o próprio destino para perseguir seus

objetivos percebidos como necessidades. Para Heller, mesmo que as sociedades

modernas pensem as necessidades em termos de quantidade, é preciso não esquecer que

1 Heller comenta que a modernidade está presente em quase o todo o mundo, e em cada lugar

ela chegou com características diferentes, assim como foi modificada pelas culturas dos locais

que a receberam. Entretanto, a dinâmica da modernidade ainda está ausente em muitos lugares.

(Heller, 1996)

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toda quantidade é transformada em qualidade e cada um decide o que e como fazer com

os recursos a que tem acesso. A qualidade se reintroduz, pois as oportunidades são

diferentes para as pessoas em contextos diferentes A consciência da contingência e a

indeterminação das necessidades colocam para os sujeitos um infinito de possibilidades

e cabe a cada um ser fazedor de sua vida (Heller, 1996).

As necessidades, enquanto “disposições de sentimentos” que indicam a falta

de algo, diante da inquietude da sociedade moderna, revelam mudanças aceleradas em

todos os planos, inclusive no das relações. Preencher esta falta pode ser uma força

motriz para indivíduos e grupos se envolverem ativamente na construção de seu destino

individual e coletivo. As pessoas são consideradas portadoras de necessidades

ilimitadas, mas tanto suas escolhas como seu contexto podem reduzir o leque de

possibilidades que de fato vão torná-las realidade. O abismo que há entre a expectativa e

a experiência traz o sentimento de necessidade insatisfeita, expressão comumente usada

por Heller e Fehér (2002). Para os autores, a falta por si mesma não caracteriza uma

insatisfação, mas sua persistência e intensificação sim, que pode ocorrer de três

maneiras: (a) quando existem meios para satisfação das necessidades, eles estão

atribuídos a determinadas pessoas ou grupos, mas esses meios não estão ao alcance

dessas pessoas ou grupos; (b) existem os meios para a satisfação das necessidades, estão

em princípio ao seu alcance, mas não estão socialmente atribuídos a ele(s) e nem

sempre poderão adquiri-los ou (c) quando não existem meios para a satisfação das

necessidades ou a falta é sentida, mas não se consegue expressar o que falta.

Segundo Heller e Féher (2002), as necessidades podem ser analiticamente

consideradas como carências ou valores. Se carências estão relacionadas ao poder

social, riqueza/bens materiais ou fama. Aquelas que derivam de valores referem-se às

relações humanas baseadas na igualdade e mútuo reconhecimento das pessoas e

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compreendem também a autodeterminação dos sujeitos. A satisfação para as carências e

os valores também diferem. Para as carências, a satisfação diz respeito a recursos – que

não são ilimitados e devem ser repartidos. A satisfação dos valores depende de pactos

éticos, cívicos, comunitários e da qualidade das relações interpessoais e afetivo-

emocionais. A satisfação das necessidades, tanto como carências quanto como valores,

pode promover justiça ou injustiça dependendo da fora como os meios de satisfação

serão distribuídos.

Heller apresenta três aspectos diferenciados sobre as necessidades, são eles:

a relação subjetivo-psicológica com as necessidades (desejos) e a relação social

atributiva com as necessidades (necessidades sócio-políticas) e as necessidades das

pessoas enquanto tais (Heller, 1996). Os desejos são pessoais e idiossincráticos, não

podem ser completamente verbalizados, a não ser aproximadamente, e manifestam

(direta ou indiretamente) nossa relação psicológica-emocional e subjetiva com as

necessidades. O segundo aspecto descreve um tipo ou classe de necessidades que a

sociedade atribui ou assigna a seus membros (ou alguns deles); essas necessidades

sócio-políticas são distribuídas socialmente assim como os objetos de sua satisfação e

essa distribuição é feita pelo Estado, mercado ou sociedade civil. O aspecto das

necessidades das pessoas enquanto tais podem ser interpretadas ao mesmo tempo como

desejos e sócio-políticas; demonstram a experiência concreta das pessoas com seu

sistema de necessidades, no plano da das vivências pessoais como os indivíduos

reconhecem suas necessidades e organizam suas vidas de maneira a satisfazê-las.

Para Heller (1996), a expansão de necessidades na modernidade -

qualitativamente iguais, mas com distribuição quantitativamente diferente de

satisfatores – faz com que tenhamos insatisfações, mas também motivação para

satisfazê-las. Isso é chamado por Heller e Féher (2002) de reivindicação: “uma tradução

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da insatisfação pessoal numa linguagem pública, a da justiça e equidade” (Heller e

Féher, 2002. p.40); essas reivindicações visam “transpor o abismo entre aspirações e

experiências” e estão mais centradas na satisfação de carências. No âmbito do

reconhecimento, os autores estabelecem distinções para as necessidades de acordo com

a realidade, a legitimidade e a racionalidade. Todas as necessidades devem ser

reconhecidas como reais, pois assim elas o são para os indivíduos que as percebem.

Entretanto, somente devem ser reconhecidas como legítimas “se a sua satisfação não

inclui o uso de outra pessoa como um simples meio” (Heller e Féher, 2002. p. 43).

Apenas serão racionais aquelas necessidades reais que “se generalizam e podem ser

justificadas por valores e traduzidas na linguagem das reivindicações” (Heller e Féher,

2002. p. 42). As manifestações individuais das necessidades não as tornam e nem

garantem que elas poderão vir a ser racionais, mas quando são reconhecidas

publicamente por algumas pessoas ou grupos elas se tornam racionais e subsidiam a luta

para que novos meios de satisfação sejam atribuídos. Nem sempre as necessidades

irracionais se tornarão racionais (e nem podem), contudo todas elas devem ser

reconhecidas como reais quando forem assim referidas por homens e mulheres, pois são

eles que têm as necessidades enquanto tais, entretanto reconhecê-las como reais não

subentende o seu reconhecimento como legítimas.

O reconhecimento e a satisfação das necessidades devem advir de um debate

público democrático e considerar a realidade/contexto no qual a necessidade e o sujeito

estão inseridos, para que as classificações dessas necessidades não caiam em um falso

debate (onde prevalecem a retórica e uma relação assimétrica entre os participantes) e

isso conduza a uma nova ditadura das necessidades (Heller e Féher, 2002). As

reivindicações são, portanto, maneiras de transpor o abismo entre aquilo que se espera e

o que de fato se vivencia. Esse ciclo sem fim de reivindicações e surgimento de novas

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necessidades é reconhecido por Heller e Féher (2002) como “forças motivacionais do

progresso” (p. 41) e o que se busca nessa luta é distribuir mais eqüitativamente os meios

disponíveis de gerar satisfação.

Com a modernidade sugiram grupos de interesse, movimentos e corporações

para reclamar a redistribuição das necessidades e se auto-atribuindo algumas delas. A

autorização legal para se ter uma necessidade, dita como “direito a algo”, gera tensão,

pois elas serão reconhecidas, mas não terão garantia de que serão satisfeitas (Heller,

1996). Além disso, reivindicar o reconhecimento de uma necessidade requer o

reconhecimento da necessidade de um outro grupo, caso contrário configuraria em

privilégio. Nesse processo reivindicativo e assignativo das necessidades se reconhece as

necessidades das pessoas individualmente a partir de sua pertença a grupos. É comum

que necessidades parecidas de um mesmo grupo sejam colocadas juntas, criando uma

identidade do grupo independente de diferenças, o que homogeiniza tanto as

necessidades quanto as pessoas. Podemos reivindicar maior quantidade das

necessidades como carências ou daquelas que não são carências, ou até mesmo das

duas, mas há predominância de preocupação com as carências ou com os meios de

satisfazê-las pela modernidade ocidental. Entretanto, é a satisfação das necessidades de

valor, principalmente de autodeterminação, e não de simples carências, que melhor nos

permite transformar nossa contingência em destino. A satisfação da autodeterminação

acontece quando o indivíduo apropria-se de sua própria liberdade para agir, fazer-se

alguém e construir seu destino. Ela pode ser alcançada direta ou indiretamente. A

autodeterminação por via indireta é alcançada através da satisfação de carências e indica

uma escolha que não parte do próprio indivíduo, uma vez que em grande parte as

carências “são determinadas de fora e não de dentro” (Heller e Féher, 2002. p. 46). A

autodeterminação é o que nos faz satisfeitos mesmo quando não podemos satisfazer

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todas as nossas necessidades. Heller nos conduz à conclusão de que a melhor maneira

de transformar nossa contingência em autodeterminação é alcançá-la diretamente, sem

renunciar à satisfação de nossas carências, o que também exige que enfrentemos nosso

contexto, agindo sobre ele.

O tema que reúne necessidades e reivindicações estabelece um elo entre

Heller e Fraser (1997), em sua teoria da justiça em um mundo pós-socialista. Para

Fraser, ao longo do século XX, contexto dos movimentos políticos e crítica social, os

discursos sobre justiça tinham dois pólos separados de reivindicações: a redistribuição e

o reconhecimento. A redistribuição, vinculada à injustiça econômica, exigia soluções de

reestruturação político-social e econômica; enquanto o reconhecimento, relacionado à

injustiça cultural demandavam solução no plano de mudanças culturais ou simbólicas.

Para Fraser, essas injustiças se entrecruzam, não há como eleger uma ou outra como

origem das desigualdades. Elas são indissociáveis e atender às reivindicações de cada

um dos pólos seria negar o atendimento de algumas das necessidades das pessoas.

Então, como sair desse dilema? Fraser (2007) comenta que é “apenas olhando para

abordagens integrativas que unem redistribuição e reconhecimento, [que] nós podemos

alcançar as exigências de justiça para todos” e para isso, propõe uma solução que dê

conta das duas faces, sem negar que elas sejam diferentes: a paridade participativa. Para

alcançar a paridade de participação, a autora estabelece duas condições. A primeira,

denominada condição objetiva, diz respeito à distribuição de recursos materiais como

meio de assegurar a independência e voz dos participantes – aqui há um paralelismo

com as carências de Heller-, e a segunda, condição intersubjetiva, “requer que os

padrões institucionalizados de valoração cultural expressem igual respeito a todos os

participantes e assegurem igual oportunidade para alcançar estima social” (Fraser, 2007.

p. 119) – análogo ao que Heller chamou valores. Para ela a paridade participativa é

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constituída tanto por uma norma universalista, pois inclui todos os parceiros ao mesmo

tempo em que pressupõe igual valor moral para os seres humanos, como por uma norma

da especificidade, ao reconhecer aquilo que é distintivo de alguns; e deve ser exercida

nos níveis entre grupos e intragrupos. A paridade participativa, portanto, atende as

reivindicações dos dois pólos e coloca em destaque o sujeito para participar das

decisões acerca das necessidades.

Doyal e Gough (1991) lançam outra perspectiva sobre as necessidades

humanas. Para eles existem dois conjuntos de necessidades básicas universais que

devem ser concomitantemente satisfeitas: sobrevivência (physical survival) e autonomia

(personal autonomy). O primeiro conjunto está relacionado à maneira como se assume

atitudes que favoreçam a expectativa de vida, assim como evitem o adoecimento; se esta

necessidade não for satisfeita as pessoas estarão impedidas inclusive de viver. O outro

conjunto, a autonomia, reforça que as pessoas são algo além da dimensão biológica,

mais do que os seus genes determinam; essa necessidade pode ser entendida como a

capacidade do indivíduo de eleger os objetivos e crenças, de valorá-los com

discernimento e de colocá-los em prática sem opressões. A necessidade de autonomia,

portanto, tem o sentido de agência e participação, uma condição elementar para

considerar a si mesmo – ou ser considerado por qualquer outro – como capaz de fazer

algo de ser responsável por suas ações. O ótimo da participação, segundo os autores, é

alcançado quando a autonomia atinge níveis em que os sujeitos conseguem agir

criticamente e, se necessário, mudar as regras e práticas da cultura a que pertencem.

As necessidades concretas de sujeitos e grupos tem uma variabilidade

enorme no tempo e no espaço, entretanto, a sobrevivência e a autonomia são

necessidades básicas, porque independem de preferências individuais, e universais, por

que sua não satisfação adequada indica sérios prejuízos para todos os seres humanos,

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em qualquer cultura, inclusive comprometendo a atuação destes como sujeitos

(informados e críticos). Além de a satisfação dessas necessidades ser fundamental

(mesmo que em níveis diferenciados), isso é precondição para que indivíduos e

coletividades possam participar da sociedade e alcançar outras conquistas valorizadas

socialmente.

Assim como em Heller, Fraser e Doyal e Gough, encontramos em Sen

(2000) alguns esclarecimentos importantes que contribuem para avançarmos na

compreensão das necessidades. Para ele, apesar de vivermos em um mundo de

opulências, vivemos igualmente em um mundo de privação, destituição e opressão

extraordinárias e superar esses problemas é crucial. Para isso, como fim primordial e

principal meio do desenvolvimento, o autor apresenta a expansão da liberdade dos

indivíduos. A liberdade, segundo Sen, tem um duplo papel: constitutivo, que equivale às

liberdades substantivas, inclui as capacidades elementares dos indivíduos, como ter

condições de evitar privações, ter participação política e liberdade de expressão; e

instrumental, onde através de liberdade global as pessoas podem viver do modo como

desejarem. Esses papéis se assemelham, respectivamente, ao que Heller apresenta como

carências ou valores. Para Sen (2000), o processo de desenvolvimento deve contar

principalmente com a capacidade de agência dos indivíduos para lidar as privações.

Entretanto, há que se considerar a complementaridade entre a condição de agente

individual e as condições sociais: a agência de cada um é inescapavelmente restrita e

limitada pelas oportunidades sociais, políticas e econômicas de que dispõem.

Pensar as necessidades a partir dos construtos de Heller, Fraser, Doyal e

Gough e Sen, ampliou nosso campo de visão, além de servir de lente, quando voltamos

nosso olhar às necessidades das pessoas nos campos sexual e reprodutivo. As

trajetórias, as escolhas e as oportunidades em torno da vida reprodutiva são construídas

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a partir do sistema de necessidades que passa por planos coletivo e individual. Os

recursos e meios distribuídos para satisfazer as necessidades assignadas socialmente

revelam o diferencial qualitativo quando cada um decide o que e como fazer com aquilo

que a ele foi destinado. Os autores colaboram ainda para pensarmos o sistema de

necessidades, suas mediações sócio-culturais e agência do próprio sujeito.

Em um interessante exercício de análise dos debates acerca dos direitos

sexuais e reprodutivos, Petchesky (2000) explora as conexões existentes entre direitos e

necessidades. O ponto chave de sua reflexão é exposto quando identifica como um erro

a dicotomia entre as necessidades humanas básicas – aquelas que legitimam as

exigências dos direitos sociais - e os direitos civis e políticos, uma vez que significam

dois lados de uma mesma moeda. Aqui, mais uma vez, o sentido é de uma nova síntese

teórica o fazem também Heller (carências x valores), Fraser (redistribuição e

reconhecimento), Doyal e Gough (sobrevivência e autonomia) e Sen (liberdade

constitutiva e liberdade instrumental).

Dentro da discussão sobre a interconexão entre direitos e necessidades,

Petchesky (2000) destaca como falsa a questão das necessidades humanas básicas como

prioridade, uma vez que não faz sentido a priorização de uma necessidade sobre a outra,

assim como de um direito sobre o outro. Refletindo sobre o status dos direitos sexuais e

reprodutivos no campo dos direitos humanos, a autora fez uma rica defesa da

indissociabilidade destes direitos e de como os direitos sexuais e reprodutivos estão

interpenetrados por outros direitos. Encontramos no direito de todas as pessoas e

indivíduos a “decidir livre e responsavelmente o número, o espaço e em que tempo

desejam ter filhos e ter informações e meios para fazê-lo”, como o mais genérico (e

controverso) dos direitos reprodutivos. Ele envolve outras questões para além do que

está ali delimitado, como nutrição, maternidade segura, acesso a métodos contraceptivos

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e serviços, transporte, estar livre de violência doméstica, entre outros. Para a autora,

esses aspectos são círculos concêntricos em torno dos direitos reprodutivos que

demonstram a íntima relação entre “todos esses direitos [que] são igualmente

importantes, todos estão interconectados, e todos expressam necessidades essenciais

para a saúde” (Petchesky, 2000. p. 25). Não há como separá-los. Então direitos “sociais

e econômicos” não são mais ou menos importantes que aqueles mais obviamente

relatados para reprodução, sexualidade e saúde; juntos eles formam uma única

constituição de direitos que estão interdependentes e indivisíveis, pois todos cresceram

a partir das necessidades humanas básicas.

Para Petchesky (2000) os direitos não devem impor normas às necessidades

e sim criar meios para satisfazê-las, e uma das maneiras disso ser alcançado é atender à

necessidade primária de participar/empoderar aqueles que são portadores das

necessidades para que possam falar por si mesmos, pois sem princípios de

personalidade ou de agência moral, a determinação dos direitos passariam

exclusivamente pelo crivo das grandes instituições, como a religião, o estado e o saber

médico. Isso corrobora o que os outros autores apresentaram quando valorizam a

participação dos sujeitos do direito nos processos de criação, percepção, distribuição e,

principalmente, satisfação das necessidades.

A autodeterminação (Heller), a paridade participativa (Fraser), a autonomia

pessoal (Doyal e Gough) e a expansão da liberdade/capacidade de agência (Sen) e o

participar/ empoderar (Petchesky) reforça que, mesmo em diferentes perspectivas essa

dimensão responde à mesma necessidade: a de tornar-se sujeito diante de sua vida.

As contribuições dos autores citados acima foram muito úteis a este estudo

em sua busca de uma maior compreensão das dinâmicas envolvidas na criação,

percepção, distribuição e satisfação das necessidades das pessoas em termos de

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regulação da fecundidade e controle da vida reprodutiva, e, principalmente, por

entendermos que o tema envolve dimensões que ultrapassam a saúde e a vida

reprodutiva.

Ávila (2003) coloca como um dos desafios para as políticas de saúde pensar

a relação entre saúde e direitos reprodutivos e sexuais com base nas necessidades

geradas pela vivência reprodutiva e pelo exercício da sexualidade. Como vimos, essas

necessidades integram um sistema de necessidades humanas, e a construção de um

diálogo entre necessidades e direitos reprodutivos pode ser muito profícuo do ponto de

vista do conhecimento e do desenvolvimento das políticas de saúde. Para pensar essas

políticas no âmbito dos direitos reprodutivos e, ao mesmo tempo, atender às

necessidades dos sujeitos, a autora diz que é necessário uma transformação.

“Para o exercício efetivo desses direitos, torna-se necessário uma transformação da lógica na qual está baseado o sentido das leis que dizem respeito ao exercício da reprodução e das relações amorosas e sexuais. Uma transformação que vai no sentido de deslocar o princípio lógico da prescrição e controle, para o princípio da ética e da liberdade.” (Ávila, 2003. p. 468)

Em conclusão, os debates em torno desses direitos estão permeados por

declarações sobre as necessidades das pessoas na esfera reprodutiva – necessidades

autodeclaradas e declaradas externamente – que expressam visões e anseios de

autoridades públicas, técnicos, pesquisadores, pensadores e ativistas. Entretanto, para ir

contra essa “apreensão alienada”, como colocou Stotz (1991. p. 268), é que devemos

recuperar, no “processo de determinação das necessidades, uma lógica ou discurso

capaz de „dar voz‟ aos sujeitos”.

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Capítulo 4 - Sujeitos e Métodos

Foi desenvolvida uma pesquisa qualitativa, utilizando abordagem

compreensiva das ciências sociais (Minayo, 2007). A estratégia metodológica adotada

foi o estudo de relatos de vida. Este método permite ao pesquisador captar padrões

socioculturais e dinâmicas das interações da coletividade a partir do relato dos sujeitos

sobre os acontecimentos que vivenciou e as experiências que adquiriu ao longo do

tempo (Queiroz, 1988). Através dos relatos de vida com enfoque na experiência

reprodutiva pretendíamos captar as mediações relacionadas à criação, percepção,

distribuição e satisfação das necessidades em regulação da fecundidade e controle da

vida reprodutiva da coletividade onde estão inseridos os sujeitos.

O estudo foi realizado no município do Rio de Janeiro, com população

atendida por três unidades com Estratégia Saúde da Família (ESF). A intenção era

desenvolver a pesquisa em locais que permitissem estar próximo ao cotidiano e onde

vivem os sujeitos. Foram então ponderadas as limitações da pesquisadora recém

chegada à cidade e as estratégias de captação dos sujeitos, assim como o acesso a suas

residências. A decisão de realizar a pesquisa em unidades com ESF surgiu como

alternativa por estas estarem localizadas próximas a onde mora a população cadastrada

para o atendimento e por se diferenciarem bastante de outras modalidades de

assistência. O próprio acesso a serviços com modalidades diferentes, como centros de

saúde ou maternidade, já poderia ser seletivo do grupo a ser pesquisado. Apesar de estar

dentro de um serviço de saúde, o tipo de assistência da ESF e a proximidade da rotina

dos sujeitos permitiram uma diversidade maior ente eles.

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A região da cidade e as unidades de saúde da família onde foi realizado o

trabalho de campo foram definidas após contato com a Coordenação de Saúde da

Família da Secretaria Municipal de Saúde e estão apresentados no Capítulo 5.

Os sujeitos do estudo foram mulheres com idade entre dezoito e quarenta e

nove anos que por qualquer motivo compareciam nas unidades de ESF. As mulheres

com menos de 18 anos de idade foram excluídas, pois, além da exigência de obter

autorização dos pais ou responsável e o quanto isso poderia ser trabalhoso, um estudo

sobre necessidades na esfera da vida reprodutiva que incluísse essa população

demandaria um desenho metodológico e procedimentos de análise mais específicos para

captar as dinâmicas geracionais.

Após identificar que cumpriam o critério de inclusão, ler e concordar com o

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Apêndice I), a entrevista foi realizada na

própria unidade ou em suas imediações, seguindo as diretrizes da participação

voluntária, livre e informada, do respeito à privacidade, da garantia de anonimato e do

sigilo das informações.

A coleta de dados foi realizada através de entrevista aberta com pauta

temática onde os eventos da vida sexual e reprodutiva e fatos que interferem nessa

vivência são o eixo central. A pauta temática traz os tópicos abordados pelo pesquisador

durante a entrevista de acordo com as experiências relatadas pelas mulheres. Uma vez

que nem todas as experiências que estão na pauta são compartilhadas por todas as

mulheres, esteve claro ao pesquisador que somente seriam abordados aqueles que se

relacionavam às experiências vividas pelas mulheres. Esta pauta pode ser encontrada no

Apêndice II. A entrevista foi gravada em áudio digital e realizado apontamentos em

diário de campo. A transcrição foi feita pela própria pesquisadora ou por profissional

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qualificado para tal atividade, garantindo o sigilo das informações coletadas. A etapa

seguinte foi a conferência entre áudio e texto realizado pela própria pesquisadora.

Para a análise das entrevistas, utilizamos uma abordagem hermenêutica-

dialética que nos convida a pensar as inter-relações entre, por um lado, o texto (os

sentidos comuns da linguagem e os consensos construídos social e culturalmente), e,

por outro lado, o contexto (relações de produção e de reprodução e as estruturas de

poder) com suas contradições e conflitos (Minayo, 2007). Essa perspectiva favorece a

interpretação e compreensão dos sentidos das experiências relatadas e a análise crítica

do contexto histórico e das estruturas de poder e conflito que emolduram as trajetórias

sociais e condicionam a criação, distribuição, percepção e satisfação das necessidades

das mulheres em regular sua fecundidade e controlar sua vida reprodutiva.

Esta pesquisa seguiu as regulamentações da Resolução 196/96 do Conselho

Nacional de Saúde/ Ministério da Saúde, que contém as diretrizes e normas

regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. O projeto foi submetido ao

Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro que

ofereceu parecer favorável ao desenvolvimento da pesquisa, como pode ser visto no

Anexo I.

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Capítulo 5 - Lançando sementes: apontamentos etnográficos do campo

Após o registro do projeto de pesquisa no Comitê de Ética em Pesquisa da

Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, foi iniciada a etapa de seleção de

unidades. Com a ajuda de técnicos ligados à coordenação da Estratégia Saúde da

Família escolhemos inicialmente uma unidade na zona sul e outra na zona norte da

cidade, ponderando questões como o acesso, a distância, a localização da unidade

dentro da comunidade e a violência. O passo seguinte foi o contato com as

Coordenações de Área Programática (CAP) para agendamento de visita às unidades.

Nas duas unidades fui bem recebida pelos profissionais, porém, algumas

questões logísticas dificultaram a realização do estudo na unidade da zona sul,

principalmente as relacionadas ao trânsito e meio de transporte. Seria necessário depois

de chegar à região de ônibus, utilizar kombi ou moto-táxi para chegar à unidade

localizada no meio do morro, o que me deixou desconfortável em relação ao acesso ao

campo. Já na unidade da zona norte, na área da Grande Tijuca, o acesso foi mais

facilitado, inclusive para a utilização de transporte público. Isso garantiu que o trabalho

de campo nesta unidade fosse iniciado na semana seguinte à visita de apresentação.

Enquanto desenvolvia o trabalho na unidade da zona norte fiz novo contato

com os profissionais da SMS e duas outras unidades foram escolhidas para o estudo:

uma na zona da Leopoldina e outra na zona portuária. A pesquisa não foi desenvolvida

concomitantemente nas três unidades; somente quando concluído o trabalho em uma

unidade é que seguia para a outra, permitindo imersão em cada uma delas.

O trabalho de campo foi realizado às terças, quartas e quintas-feiras. Esses

dias foram escolhidos por uma vivência pessoal. Quando trabalhei em ESF em Minas

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Gerais. Era comum encontrarmos as unidades muito cheias na segunda-feira e uma

redução gradual até sexta-feira, salvo em casos excepcionais. As unidades de saúde da

família do Rio de Janeiro acabaram por confirmar uma dinâmica similar entre as

unidades, apesar das diferenças de serviços ofertados ou do número de equipes de

atendimento. A chegada na unidade era em torno das oito horas e a saída por volta das

quatorze horas, mas esse horário era flexível, pois dependia de ter mulheres para serem

entrevistadas ou da saturação com as entrevistas realizadas a cada dia.

A organização do material a ser utilizado também fez parte do preparo para

entrar no campo. As fichas de identificação da participante e TCLE deveriam ter

reprodução em número suficiente para um dia de entrevistas. O equipamento de

gravação, deveria ter espaço e carga para os registros diários. Apesar de todo o cuidado

fui um dia surpreendida por um full na tela do gravador que me desconcertou, mas não

impediu a continuidade da entrevista e registro imediato no diário de campo.

Desde a fase preparatória decidi adotar um diário de campo, que foi

utilizado já no primeiro contato com as CAP e serviu para anotar informações obtidas

por meio de observação dos locais e as relações entre as pessoas. Os apontamentos do

diário de campo não davam conta de registrar minhas impressões, lembranças e

primeiras interpretações, levando-me a estabelecer como rotina escrever notas

expandidas a cada dia quando voltava das unidades. Esses registros somaram 110

páginas que também servem de base à redação dos resultados da pesquisa.

Com a finalidade de evitar uma identificação direta das unidades estudadas,

elas serão denominadas Margaridas (zona norte), Gérberas (zona portuária) e Lírios

(zona da Leopoldina).

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E floriu um campo de margaridas...

A unidade da zona norte, na área da Grande Tijuca, está localizada na rua

principal de um bairro de comunidade carente. A unidade foi recém-reformada é limpa,

clara, arejada e com aspecto de nova. As três equipes de saúde da família que atuam ali

estavam em reunião no dia de minha primeira visita, possibilitando que todos os

profissionais ouvissem a proposta da pesquisa. Fui muito bem recebida e desde esse

momento eles deram contribuições ao trabalho, em especial os agentes comunitários de

saúde (ACS) que demonstraram interesse e algumas até se ofereceram para serem

entrevistadas.

O grupo sugeriu que o convite às mulheres para a entrevista fosse feito no

“acolhimento” ou nos dias de grupo de planejamento familiar. O momento de

acolhimento é aquele da recepção do usuário pelos ACS e direcionamento para o

atendimento. Ele acontece em uma sala de entrada, relativamente espaçosa, que dá

acesso às outras dependências da unidade, como consultórios, corredor, sala de vacinas,

sala de curativos e outros. Naquele espaço as pessoas aguardam todos os tipos de

atendimentos, tanto os agendados como os de demanda espontânea e os de dispensação

de medicamentos. Com isso pude captar mulheres que compareciam à unidade por

diversos motivos.

Nesse primeiro dia, ao sair da unidade fui levada ao ponto de ônibus pela

auxiliar de serviços gerais que gentilmente havia se oferecido para me mostrar como

tomar condução. Ao percorrer esse caminho percebi que aquela rua servia de passagem

para outros bairros da região, e tinha grande fluxo de pessoas e carros. Meu olhar era

curioso, mas discreto, pois mesmo desejando conhecer o local da pesquisa e um pouco

do andar da comunidade receava a forma minha presença seria interpretada. Em uma

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passarela próxima avistei alguns rapazes com armas em punho, falavam entre si e

comunicavam por gestos com outros em lajes e janelas espalhados pelo morro. A

violência velada pôde ser percebida pela furtividade nos olhares dos moradores diante

de uma estranha ao seu grupo. Em nenhum dos dias de entrevista fui surpreendida por

surtos de violência, mas cheguei a ouvir relatos sobre conflitos acontecidos em horários

e dias diferentes ao longo do mês de pesquisa.

O primeiro dia de entrevistas me trazia um pouco de ansiedade, afinal há

muito tempo não me aproximava de um campo de pesquisa e retomar esta prática era

um tanto desafiador. A viagem de minha casa até a unidade realçou minhas

inseguranças sobre como convidar e se conseguiria alguma entrevista no primeiro dia.

Ao chegar, cumprimentei as pessoas que estavam na recepção e me identifiquei aos

ACS. Fui encaminhada à sala da dentista, onde ficam os armários para os funcionários,

e as auxiliares de consultório dentário cederam-me um lugar entre seus pertences para

deixar minha bolsa. Seguindo recomendações das coordenadoras da CAP, deveria usar

jaleco branco durante meu trabalho de campo, para que fosse distinguida como

profissional de saúde. Então, estabeleceu-se como rotina guardar minha bolsa em algum

dos armários, vestir meu jaleco e com meu material ir ao encontro das mulheres.

No acolhimento, as mulheres eram abordadas individualmente ou em

pequenos grupos já reunidos, e a minha apresentação pessoal era seguida por

esclarecimentos sobre a pesquisa. Nesse contato elas decidiam se fariam ou não a

entrevista. Por várias vezes entre os grupos havia alguma mulher menor de 18 anos ou

maior de 49 anos que demonstrava interesse em ser entrevistada, mas que por não

cumprirem ao requisito de idade lamentavam por não poderem participar. Houve boa

participação das mulheres, o que fez com que ainda na primeira meia hora em campo

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conseguisse minha primeira entrevista e um número expressivo delas ao encerramento

do campo.

De uma maneira geral, houve boa aceitação das mulheres em participar da

pesquisa, porém surgiram alguns complicadores, que tiveram que ser contornados. O

primeiro deles era o fato das mulheres estarem aguardando atendimento e havia

preocupação sobre como fariam se fossem chamadas e perdessem a vez. Algumas delas

se dispuseram a voltar em outro dia, mas essa foi uma estratégia inválida já que de mais

de dez agendamentos na primeira semana, nenhuma delas compareceu. Essa questão foi

resolvida na segunda semana, com a colaboração dos ACS que se comprometeram a nos

avisar se a chamada para o atendimento ocorresse durante a entrevista, que então seria

interrompida e retomada em outro momento. Um segundo fator complicador estava no

fato das mulheres empregadas se preocuparem com o horário de retorno ao trabalho, já

que dispunham de pouco tempo para permanecer na unidade. Percebi que as mulheres

que estavam com os filhos aceitavam mais facilmente participar e sempre eram

receptivas ao convite. Por último, tive que contornar outro problema: a falta do

documento para registro no TCLE no momento da entrevista. Contei com a

disponibilidade das mulheres em permitir que fizesse um contato telefônico em horário

agendado para que me informassem o número do documento. Apesar dos sucessos

dessa estratégia, as falhas tiveram de ser supridas por números de CPF ou de

prontuários obtidos nos livros de registro de atendimento na unidade. As recusas em

participar se associavam, portanto a compromissos com trabalho ou familiares ou à

espera pelo atendimento.

Convite aceito, critérios conferidos e um desafio operacional: um local para

entrevistar. Ficou acordado inicialmente com a gerente da unidade que eu faria a

entrevista em qualquer local desde que respeitada a privacidade das mulheres. Então

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diariamente e ao início de cada entrevista checava na recepção qual das salas eu poderia

usar. Tomava o cuidado de avisar sobre o uso e que deixaria a porta destrancada, pois,

como se tratava de ambientes de uso dos profissionais, continha materiais e documentos

que talvez eles não pudessem esperar para acessá-los. Por algumas vezes fui

interrompida para a retirada de medicamentos, aparelhos e papéis e nessas ocasiões a

entrevista era suspensa e somente retomada quando voltávamos a ficar a sós na sala.

O procedimento inicial da entrevista era de apresentação detalhada sobre a

pesquisa e a leitura do TCLE. Por preferência das mulheres, na maioria das vezes era eu

quem lia em voz alta, explicava cada tópico e ia esclarecendo as dúvidas. Após o

consentimento, eu iniciava o preenchimento da ficha de identificação da participante,

para em seguida começar propriamente a entrevista com a pauta temática e a gravação.

Entretanto, muitas vezes, já na identificação, as mulheres começavam a relatar

experiências de interesse para a pesquisa, e então, após algumas entrevistas, optei por

ligar o gravador logo após a assinatura do TCLE.

Algumas vezes, as entrevistas foram interrompidas para a mulher

acompanhar o filho ao banheiro ou ir ao atendimento médico; outras vezes, a suspensão

da gravação ocorria quando ela desejava falar algo que não gostaria que fosse gravado.

Duas vezes as mulheres decidiram pela finalização da entrevista, por motivos bem

diferentes: uma delas preferiu encerrar quando aos prantos contava de experiências que

lhe foram dolorosas e a outra quando fora chamada pelo marido que a obrigou a ir

embora com ele, uma vez que terminara seu atendimento. Neste último caso a mulher

disse que voltaria um outro dia, mas não nos vimos mais. Três mulheres chegaram a

cumprir o procedimento inicial de leitura e assinatura do TCLE, mas tiveram que sair

para o atendimento, e depois não tiveram como voltar para a entrevista, seja por eu já ter

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iniciado uma outra e ela não poder esperar ou ela ter sido encaminhada para outros

cuidados.

Ao término de cada entrevista agradecia à mulher sua participação e voltava

à recepção para novos convites e repetia os mesmos procedimentos. Sempre ao fim do

dia de trabalho, recolhia meu material e despedia dos profissionais da unidade,

indicando minha saída.

Como fora convidada a participar do grupo de planejamento familiar, fiz

uma visita em uma segunda-feira para conhecer o trabalho e aproveitar para fazer

alguma entrevista. Nesses grupos, os participantes freqüentam três encontros para

ganharem o certificado e solicitar o método contraceptivo. A sala de reuniões era a

mesma utilizada para a guarda de prontuários e caminho para a cozinha, o que por

várias vezes interrompeu a reunião, mas não deixou que ela perdesse o seu foco. As

coordenadoras tinham uma proposta de trabalhar com uma metodologia participativa e

descontraída, mas percebi constrangimentos em certos momentos, principalmente

quando insistiram para que o único homem entre os seis integrantes colocasse o

preservativo no modelo plástico, como afirmação de sua masculinidade. Os métodos

contraceptivos foram abordados separadamente com suas vantagens e desvantagens e a

variação do tom de voz deixava evidente a mensagem principal sobre cada um deles.

Permeando as orientações sobre corpo, métodos e sexualidade apareceram as normas

sexuais a serem seguidas pelos participantes para que se alcance vivências sexuais sem

riscos e danos. Convidei uma mulher que teve participação ativa no grupo a ser

entrevistada. Seu desejo era engravidar e não utilizar método contraceptivo, como a

maioria. Ela esclareceu que, embora o grupo tenha foco na contracepção, freqüentar as

reuniões é um requisito para que seja encaminhada a um especialista que respondesse se

ela poderia ter ou não filhos.

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Um fato curioso marcou o trabalho de campo. Nas duas primeiras semanas

eu cumpri a recomendação das coordenadoras da CAP em relação ao uso do jaleco e o

trabalho transcorria satisfatoriamente. Na terceira semana, ao ver que não levara meu

jaleco, imaginei que isso interferiria na aceitação das mulheres para serem entrevistadas.

Entretanto, nesse dia (e nos outros) pude perceber que as entrevistas já não iniciavam

pelas questões referentes aos serviços ou aos atendimentos e as mulheres narravam mais

livremente suas trajetórias de concepção, contracepção, maternidade ou aborto. Se por

um lado as mulheres deixaram de lado os discursos que diriam a um profissional, por

outro, eu também era despida e colocada somente como pesquisadora. O jaleco levou

com ele os filtros que existiam em meus ouvidos e eu sequer sabia que eles existiam.

Isso permitiu meu crescimento e o refinamento de minha atitude no campo, além da

mudança na dinâmica da entrevista que podia ser percebida pela fluidez com que ela

acontecia. Optei por ter comigo o jaleco nas visitas subseqüentes, mas não mais vesti-lo

para as entrevistas.

A interação com as mulheres aconteceu mais facilmente que eu previa e foi

muito gratificante. Apesar das recusas e dos complicadores, várias vezes eu fui

surpreendida pelo aceno de alguma mulher dizendo “estou aqui”, após o término do

atendimento, ou pela procura espontânea de alguma mulher que minutos antes recusara

o convite e mudou de idéia ao perceber que não perderia o atendimento. Havia também

o incentivo entre as próprias mulheres que logo após serem entrevistadas, diziam para a

outra que estava sendo convidada “vai sim, é legal”. Além disso, os profissionais,

principalmente os ACS, contribuíram diretamente convidando mulheres para serem

entrevistadas ou até mesmo levando-as até mim para que eu fizesse o convite.

A relação crescente que tive com os profissionais das equipes de saúde da

família do campo das margaridas me fez pensar que certas tradições vão se criando e

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mesmo em locais diferentes elas se repetem. A convivência com eles me trouxe

lembranças da época em que trabalhei no mesmo programa em Minas Gerais, onde uma

ACS dizia sempre que “as equipes de Saúde da Família tornam-se famílias cuidando de

famílias”. Senti-me um membro da família quando uma das técnicas de enfermagem

colocara na porta, sobre a placa de identificação “sala de curativos”, um papel escrito à

mão “em atendimento”, sabendo que eu estava ali fazendo entrevistas, a fim de evitar

que me interrompessem. Em outra ocasião, retornei à unidade após uma semana de

ausência (devidamente comunicada à gerente da unidade), e vários profissionais

disseram ter sentido minha falta. Apesar de meu trabalho ter feito parte da rotina e sido

por eles reconhecido, em nenhum momento eu fui solicitada a desempenhar atividades

como enfermeira. Foi gratificante conhecer e trabalhar com aquelas pessoas, e

comuniquei isso a grande parte delas na ocasião de encerramento do campo, agradecida

pela participação que tiveram para meu trabalho.

Com todas essas colaborações e as relações de confiança e diálogo para as

quais contribuíram todas as partes envolvidas, o trabalho de campo rendeu trinta e oito

boas entrevistas, com narrativas substanciais e uma diversidade de perfis de mulheres

em uma mesma comunidade.

A florada de gérberas

A unidade da zona da Leopoldina está dentro de uma instituição de ensino e

pesquisa e conta com oito equipes de saúde da família, alguns especialistas, como

ginecologista e geriatra, e estudantes da residência em Saúde da Família. Há três blocos

de salas de atendimento das equipes de saúde da família, e um outro para especialistas e

consultório dentário. A recepção se assemelha a uma varanda, é única para todos os

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atendimentos e tem várias fileiras de cadeiras para os usuários. Há também uma área

descoberta compartilhada por usuários à espera de curativos, imunização e outros

procedimentos.

Fui recebida por uma das coordenadoras da unidade que atenciosamente

ouviu sobre a pesquisa, e fez sugestões sobre onde captar as mulheres para a entrevista e

indicou a sala que poderia usar. O acesso a essa sala não era simples, pois deveria passar

dentro do consultório da geriatria; o profissional que ali atende já havia sido

comunicado e estava de acordo. A coordenadora tinha suspeitas sobre a disponibilidade

de participação das mulheres, principalmente tendo que se deslocar para aquela sala,

uma vez que por ser afastada concorreria com o chamado para a consulta.

Na véspera do primeiro dia de entrevistas, havia ocorrido um tiroteio na

região e a principal rua de acesso ficara fechada por quase quatro horas. Esse

acontecimento me gerou angústia e durante o trajeto para a unidade revivi as

inseguranças sentidas desde a seleção das unidades.

Meus contatos com as equipes dali não foram tão estreitos como aqueles da

unidade anterior e se resumiam a cumprimentos cordiais pelas áreas de circulação. Por

se tratar de uma unidade que, além da assistência, também oferece ensino, nenhum dos

profissionais se inquietou com minha presença, talvez por ser rotineiro o convívio com

outros pesquisadores naquele campo.

Algumas rotinas que facilitaram o trabalho na primeira unidade tiveram de

ser modificadas aqui. Sem ter onde guardar minha bolsa decidi levar a campo em uma

pasta plástica somente o essencial para as entrevistas, pois imaginei ser constrangedor

ficar com bolsa naquele momento. Aboli definitivamente o jaleco do vestuário, com

base na experiência anterior, além de ele não ter sido solicitado. Meu aviso de chegada e

saída era somente para a coordenadora, sem precisar me referenciar aos profissionais.

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Fiz contato com as mulheres na área coberta e na descoberta procurando ir

em todas as direções, já que as pessoas tendem a se sentar próximas das portas por onde

passarão para o atendimento. Com essa estratégia garantia maior diversidade de

mulheres segundo os motivos para a visita à unidade.

Alguns fatores complicadores para a participação das mulheres na pesquisa,

como falta de documento e medo de perder a consulta, se repetiram aqui. Quanto ao

primeiro o problema foi contornado através de contatos telefônicos. Para que as

mulheres não perdessem o atendimento, optei por realizar a entrevista em local aberto

escolhido por elas para que ouvissem o chamado da consulta. Nessa unidade tive mais

recusas por motivos como não querer assinar o TCLE, não querer fornecer um número

de documento ou não permitir que a entrevista fosse gravada. Uma das recusas foi

diferente das demais: a mulher questionou que benefício teria se fosse entrevistada,

como ter seu atendimento agilizado ou o agendamento que precisava. Após explicar que

não havia valor ou serviço como troca ela decidiu não ser entrevistada.

Após o aceite, íamos para a sala ou sentávamos em um banco mais isolado

para realizar os procedimentos iniciais da entrevista adotados desde a primeira unidade,

como leitura do TCLE e preenchimento da ficha de identificação da participante. Ao

terminar o dia de trabalho, tinha o compromisso de fechar a sala e deixar a chave na

recepção com os porteiros e comunicar minha saída à coordenadora.

Apesar da interação com a equipe e o espaço para as entrevistas ter sido

diferente da primeira unidade, houve boa participação das mulheres e consegui quatorze

entrevistas.

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O campo de lírios

Eu não havia visitado a unidade da zona portuária antes de iniciar o

trabalho, pois os contatos com os responsáveis pela unidade haviam sido por telefone,

assim, meu primeiro dia ali foi de reconhecimento do local e início das entrevistas.

A unidade está localizada junto à praça na principal rua do bairro e o

trânsito é intenso naquela região. Diferentemente das outras localidades (e também do

que eu esperava), o bairro é uma grande baixada e não se vê morros ao redor. A unidade

é de latão em forma de um grande túnel com duas entradas (ou saídas). De um lado

funciona uma recepção para as “demandas” e de outro a recepção dos “marcados”

(sempre mais vazia). Em ambos existem cadeiras para os usuários, mas dá a impressão

de um longo caminho a percorrer desde que se entra na unidade até o atendimento. Os

consultórios e salas de atendimento (imunização, curativos, etc.) funcionam entre essas

duas recepções e não são visualizados por quem aguarda nesses espaços. O acesso ao

corredor se limita aos pacientes autorizados para o atendimento e é controlado por

agentes comunitários de saúde e seguranças que ficam nas recepções. Tive a sensação

de que existe uma seqüência de barreiras até que se alcance o atendimento pretendido

pelos usuários.

Fui recebida por uma das pessoas com quem falei ao telefone, e foi ela que

me apresentou a unidade e alguns dos profissionais das sete equipes que ali atendem.

Eles foram atenciosos, mas nossa interação se resumiu àquele momento e a

cumprimentos nos outros dias.

Minha rotina em campo foi a mesma adotada no campo de gérberas: sem

bolsa, sem jaleco e somente dois profissionais como referência para indicar chegada e

saída do campo.

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Os consultórios da unidade pertenciam a cada uma das equipes e sempre

estavam ocupados, e, portanto, indisponíveis para a realização de entrevistas. Tinha

acesso livre nos três principais ambientes - duas recepções e corredor interno - e neles

abordava e convidava as mulheres para a pesquisa. Para a realização das entrevistas

optei pelas recepções, mas não pelo corredor interno, pois além de atrapalhar o

atendimento a conversa seria inevitavelmente ouvida por outros. Entrevistar nesse local

tinha limites, principalmente no que se refere às condições de privacidade, e pode ter

comprometido a expressividade da mulher, expondo seus gestos, emoções e falas, e

impedido que ela revelasse parte de sua história. Além disso, a qualidade da gravação

foi afetada, dado os ruídos externos e a tendência de falar mais baixo assuntos pessoais

quando não há barreiras para evitar a escuta de outras pessoas. Eu precisava encontrar

estratégias para intervir sobre essas questões. Busquei fazer as entrevistas em cantos

mais vazios nas recepções, e algumas vezes inovei, deixei a unidade e sentamos, eu e a

mulher, na beira da calçada ou na praça. Apesar de ter aumentado os ruídos na

gravação, não nego que a entrevista soava como uma conversa de conhecidas... talvez

porque estivéssemos na praça!

Os motivos de recusa para a participação eram muito similares ao campo de

margaridas. Nenhuma delas fez objeção à gravação, mas uma delas impôs condições.

Ela daria a entrevista e se ao final estivesse satisfeita e não se sentisse constrangida, aí

sim assinaria o TCLE. Se não, eu deveria excluir sua gravação e desconsiderar sua

entrevista. Aceitei o acordo e após a entrevista ela consentiu que fosse incluída na

pesquisa. Os mesmos procedimentos iniciais para a entrevista adotados nos outros

campos foram utilizados nas abordagens no campo de lírios.

Certo dia a unidade estava com baixo movimento e quase não havia

usuários; os poucos que surgiam eram prontamente atendidos e por isso tive

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oportunidade de conversar com uma médica. Ela comentou que era estranho estar tão

vazia, principalmente em uma terça-feira, podendo ser presságio de toque de recolher

dos traficantes ou alguma invasão iminente de policiais. Marcados pela violência

constante, ela contou que a unidade estivera fechada por três dias na semana anterior,

pois nos momentos de crise e tiroteio os profissionais não têm como agir. Nessas

ocasiões todos que ali estão se abrigam no único cômodo de tijolo da unidade e, assim

que conseguem, deixam o bairro. Ela contou como a violência interfere tanto nas

queixas dos pacientes como nas maneiras de resolvê-las, pois em momentos de crise há

dificuldade de prestar assistência ou encaminhar para atendimento em outro local, já

que passar pelas áreas de conflito os expõem ainda mais a riscos.

Neste campo eu havia sido apresentada a poucos profissionais, mas minha

permanência ali despertou curiosidade. Em certo dia, fui interrompida por três vezes por

um médico enquanto entrevistava as mulheres, solicitando que explicasse a ele a

pesquisa. Combinei que conversaríamos quando terminasse o trabalho. Mais tarde

quando conversamos, ele discorreu suas idéias sobre aborto e comentou que as mulheres

pobres “só sabem ter ou tirar, mas evitar elas não sabem”. Ouvi educadamente, até que

fui surpreendida quando ele se dirigiu ao dentista que passava por nós e falou “Aí, já

podemos abrir aqui uma clínica, e vai chamar „aborto para mulher pobre‟. Fiquei

constrangida com tal colocação, pois uma das mulheres que eu entrevistara estava por

ali, na dispensação de medicamentos. Percebi que ele não entendeu minha proposta e

expôs suas premissas com base em uma visão normativa e discriminatória, além de

postura ética inconveniente. Procurei encerrar o assunto e despedi-me das pessoas que

ali estavam.

No último dia fui me despedir do profissional que me recebera e comentei

como fora bom fazer entrevistas ali, apesar das limitações de espaço. Foram onze

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mulheres entrevistadas e com narrativas que darão um toque especial à minha cesta de

flores. Agradeci a colaboração e fui embora.

Deixei o campo com a sensação de que as entrevistas realizadas já eram

suficientes para ousar uma reflexão sobre as necessidades das mulheres em suas vidas

reprodutivas. Mas como saber? Será que seria diferente escutar mulheres de outros

lugares e em outros momentos? Sempre terá algo não dito, sempre haverá uma

experiência trazida pelo silêncio ou pelo grito das mulheres, mas sinto-me satisfeita com

o caminho que percorri nas três unidades.

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Capítulo 6 – Resultados

Neste capítulo serão apresentados os resultados desta pesquisa. Ele está

divido em três partes. A primeira, “A participação das mulheres na pesquisa”, vem

apresentar a dinâmica da participação das mulheres ao longo do trabalho de campo. A

parte dois, “Conhecendo as mulheres...”, nos proporciona uma aproximação às

entrevistadas ao conhecermos os perfis sócio-econômico e reprodutivo daquelas

mulheres. Enquanto a parte três, “... e suas vivências”, nos permite conhecer suas

vivências.

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Parte Um – A participação das mulheres na pesquisa

Apesar de dificuldades, limitações e recusas, houve grande aceitação de

participação na pesquisa e consegui somar sessenta e três entrevistas em dois meses de

trabalho, totalizando mais de vinte e três horas e meia de gravação. Tive uma grande

surpresa ao olhar para dentro das cestas, pois, apesar da colheita ter sido em campos de

margaridas, gérberas e lírios, havia flores das mais variadas espécies. O que fez com

que conseguisse tantas entrevistas nesse curto tempo? Fiquei intrigada sobre motivos

para uma mulher decidir participar de uma pesquisa falando de sua vida, sua

privacidade, sua intimidade.

Inicialmente, interpretei que o pacto de sigilo e confidência era o que

motivava as mulheres a contribuírem com a pesquisa, afinal, era eu quem precisava de

mulheres para contarem suas histórias. Em seguida, um outro aspecto parecia responder

ao questionamento. Muitas das mulheres se emocionavam durante as entrevistas. Eram

choros, intercalados por sorrisos, tímidos ou declarados, mas sempre acompanhado de

frases como “eu não tenho com quem falar”, “você me desculpa, é que quando eu falo,

eu choro”, “não liga pro choro não”. Eram mulheres remexendo os mais valiosos

sentimentos revividos em cada uma das histórias narradas. A sensação que tive era que

participar das entrevistas para elas representava um espaço onde é permitido dizer tudo,

ou mais do que isso, que serão ouvidas, falem sobre o que falarem. Isso me conduziu a

inferir que as mulheres tinham necessidade de falar de suas histórias e a entrevista

representava um espaço de escuta para as mulheres. Entretanto, nenhuma dessas

interpretações bastavam como resposta à inquietação, e foi então que percebi um outro

aspecto para a participação das mulheres. Durante a entrevista, cada uma delas se

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apropriava de sua história e se posicionava como sujeito no enredo de sua vida, e ter um

espaço para contar sua trajetória a valorizava e tornava importante. A reivindicação pelo

reconhecimento era o sentido real pelo qual tantas mulheres narraram sobre suas vidas,

e entre lágrimas e sorrisos, alegrias e desventuras, eram elas mesmas.

Se para elas era o momento de serem protagonistas, para mim era o

momento de deixar de ser roteirista. A mim cabia o exercício do ouvir, que foi apurando

à medida que me desencapava do papel normalizador adquirido como profissional. Não

eram somente seus discursos que iam se tornando cada vez mais consistentes aos meus

ouvidos, mas sim a minha transformação, despindo-me (e sendo despida) dos rótulos e

estigmas a cada dia em campo. Isso fica claro quando olho para a lista de entrevistadas

em ordem cronológica e enxergo o quanto fui avançando no exercício, e à medida que

mais me abria, mais conseguia perceber os conteúdos das entrevistas. A leitura diária no

percurso até à unidade, principalmente de Emily Martin (2006), contribuiu diretamente

para esta evolução e proporcionou uma interação entre as questões teóricas que eu

investigava e o campo de maneira plena e de imensa satisfação.

A necessidade de colocar-se e ser reconhecida como sujeito, aliada à escuta

livre de julgamentos, permitiu às mulheres tecerem sua própria teia de fatos e vivências.

Foi ouvindo e relendo as entrevistas que percebi as entusiasmadas descrições sobre seus

sucessos e situações onde eram protagonistas e em tom mais baixo e tímido quando

eram vítimas de parceiros, de família ou de sua carência de recursos. As narrativas dão

elementos suficientes para que possamos enxergar suas vulnerabilidades econômicas e

de gênero, mas também a luta que fazem para exercer-se como sujeitos participativos,

reconhecidos e com autonomia.

Apesar de não ter estabelecido que entrevistaria profissionais das unidades,

este não era um critério para que excluísse essas mulheres da pesquisa. Uma

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profissional de enfermagem, quatro agentes comunitárias de saúde e duas auxiliares de

serviços gerais de duas das unidades onde desenvolvi a pesquisa se voluntariaram para

participar da pesquisa. Geralmente havia uma articulação entre elas para que pudessem

ser entrevistadas, como render a outra no desempenho da função ou deixar de desfrutar

do horário de almoço. Uma das funcionárias sempre falava comigo, até que ao convidá-

la recebi entre sorrisos: “era isso que eu queria”. E outra que deixou claro que seria

entrevistada para “ver qual é”. Depois se tornou uma grande propagandista em prol da

minha pesquisa e recomendava a partipação a outras mulheres, profissionais e usuárias.

Isso ocorreu principalmente no campo das margaridas e revelou para mim o quanto a

interação com a equipe e com as mulheres foi fundamental para alcançar minhas metas

de pesquisa.

Assim como Emily Martin (2006), percebi que as entrevistas transformam

as mulheres, mas também a pesquisadora, revelando que é uma via de mão dupla que se

estabelece naquele curto período de tempo. Histórias de sofrimento, desassistência e

violência que me derrubavam, e outras de superação e alegria que me deixavam

extasiadas. A cada dia que deixava o campo, eram emoções diferentes que se

confundiam à sensação de conquista pelo trabalho realizado em busca de conhecer as

dinâmicas que constroem as necessidades em torno da vida reprodutiva.

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Parte dois - Conhecendo as mulheres...

As informações registradas na ficha de identificação das participantes,

preenchidas antes da entrevista propriamente dita, estão sistematizadas nas tabelas 2, 3 e

4 e permitem esboçar um perfil sócio-demográfico e reprodutivo dessas mulheres.

Entretanto, as informações da ficha nem sempre coincidiram com aquelas fornecidas

nas entrevistas, conforme apontaremos ao longo deste tópico.

A média da idade das mulheres entrevistadas foi de 30,3 anos, próximo da

mediana de 31, sendo dezenove anos e quarenta e oito anos os limites mínimo e

máximo encontrados. Houve uma distribuição homogênea na escolaridade entre ensino

fundamental e médio. Poucas delas (4) estavam cursando ou tinham cursado ensino

superior e três sabiam somente assinar seu nome (Tabela 2). Sete delas estavam

freqüentando a escola. Trinta e uma das participantes disseram inicialmente viver com

parceiro, casadas ou amasiadas. Entretanto, ao revermos o conteúdo das entrevistas

encontramos que quarenta e cinco delas viviam em união, sendo duas delas com

parceiras.

A expressão utilizada pelas mulheres para declarar a cor de sua pele denota

que a maioria delas (43) se considera mestiça ou afro-descendentes; três disseram ser

amarelas apesar de não terem ascendência oriental. As mulheres reagiam com surpresa,

espanto ou sorrisos quando eu pedia para que declarassem a própria cor. Algumas vezes

me surpreendia comparando a cor declarada com aquela que meu olhar definiria.

A maioria das mulheres se declarou católica (27), seguidas por outras

religiões cristãs (20), enquanto quase um quinto (13) não tinha religião. Entretanto, as

afiliações confessionais não eram cristalizadas. Ao longo das entrevistas, muitas

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mulheres contaram que já haviam freqüentado religiões diversas em busca daquela que

melhor atendesse aos seus anseios em determinados momentos.

Quanto à ocupação, trinta e cinco delas estavam empregadas em atividades

como, domésticas, auxiliar de serviços gerais, técnicas de enfermagem, faxineiras,

manicures, depiladoras, cabeleireira, lactarista, entre outras. Aquelas que se

consideravam do lar totalizavam dezoito. Vinte e cinco mulheres não tinham renda

própria, mas cinco delas administravam renda de membros da família (pensão do avô,

auxílio doença da filha, pensão de filho e Bolsa Família). As que possuem o benefício

Bolsa Família dizem que apesar de pouco, às vezes, é tudo o que tem para as despesas;

outras mulheres entrevistadas estão tentando conseguir esse auxílio. A renda própria das

mulheres que trabalham fora distribui-se homogeneamente entre “até 500” e “até 1000

reais”. Definir a renda familiar foi um desafio para muitas mulheres, uma vez que nem

sempre sabem quanto o parceiro recebe. Às vezes a renda é variável podendo ir de “zero

a oitocentos reais” dependendo de o parceiro conseguir trabalho. A insuficiência de

dados impede esboçar a renda da família.

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Tabela 2 - Características sócio-demográficas das mulheres entrevistadas

segundo registros da Ficha de Identificação da Participante (n=63)

N Percentual

Escolaridade (anos de estudo)

Nenhum 03 4,76

1-4 08 12,89

5-8 19 30,15

8-11 29 46,03

Mais de 11 04 6,35

Estado Civil Amasiada 11 17,46

Casada 20 31,74

Em divórcio 01 1,58

Separada 03 4,76

Solteira 27 42,85

Viúva 01 1,58

Cor * Amarela 03 4,76

Branca 11 17,46

Morena 05 7,93

Morena Clara 01 1,58

Mulata 01 1,58

Negra 13 20,63

Parda 22 34,92

Preta 07 11,11

Religião * Budista 01 1,58

Católica 27 42,85

Crente, Cristã ou evangélica 20 31,74

Eclética 01 1,58

Kardecista 01 1,58

Não tem 13 20,63

Ocupação Aposentada 01 1,58

Com emprego 35 55,55

Desempregada 05 7,93

Do lar 18 28,57

Estudante 04 6,35

Renda Pessoal Não tem 25 39,68

Até 500 reais 18 28,57

De 501 a 1000 reais 17 26,98

Mais de 1000 reais 03 4,76

63 100

Fonte: Ficha de Identificação da Participante (* indica declarações literais das mulheres)

No que diz respeito às características reprodutivas das mulheres, grande

maioria já viveu a experiência de gravidez (55; 87,3%) e sete estavam grávidas no

momento da entrevista. Entre aquelas que já estiveram grávidas, há um número

expressivo de mulheres (38,18%) com uma ou mais experiências de aborto, e elas

discorreram sobre suas vivências durante a entrevista; 56,36% delas tiveram de um a

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dois filhos e 7,27% não tem filhos vivos (Tabela 3). Na amostra entrevistada, a média é

de 2 filhos tidos por mulher.

Tabela 3 - Características reprodutivas das mulheres entrevistadas segundo

registros da Ficha de Identificação da Participante (n=63)

N Percentual

Gestações

0 08 12,70

01-02 25 39,68

03-05 25 39,68

06 ou mais 05 7,93

Aborto* 0 34 61,19

01-02 15 27,27

03 ou mais 06 10,91

Paridade * 0 03 5,45

01-02 32 58,18

03-05 18 32,73

06 ou mais 02 3,64

Filhos * 0 04 7,27

01-02 31 56,36

03-05 18 32,73

06 ou mais 02 3,64

100

Fonte: Ficha de Identificação da Participante (* indica n=55)

O uso atual de contraceptivo é referido por vinte e quatro mulheres,

entretanto ajustando-se esta informação com os dados coletados pela entrevista temos

que quarenta e uma delas estão em uso de algum método anticoncepcional (Tabela 4).

Elas deixaram de referir o uso de diversos tipos de métodos, destacadamente a

laqueadura tubária. Aquelas que nunca usaram (02) um método contraceptivo têm

motivos bem diferentes para essas vivências. Uma ainda não iniciou a vida sexual e

pretende lançar mão desse recurso para programar quando engravidar e a outra

desconhece o assunto e diz nunca ter conseguido engravidar, apesar de ter o desejo.

Mesmo nas consultas de preventivo ela nunca foi perguntada e nem questionou sobre o

assunto. Uma necessidade silenciada por outras e ter tido hanseníase e ter seqüelas da

doença pode ter ocultado outras necessidades dessa mulher.

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Tabela 4 – Uso atual de contraceptivo segundo registros da Ficha de

Identificação da Participante e ajuste com informações coletadas durante a

entrevista (n=63).

Uso atual de contraceptivo

Sim

Tipo de método Ficha de Identificação

24

Ajustada após a entrevista

41

AME 01 01

Coito interrompido 01 02

DIU 01 01

Injetável 04 05

Laqueadura tubária 03 10

Pílula 11 12

Preservativo masculino 03 06

Tabelinha 0 03

Vasectomia 0 01

Não 39 Já usaram alguma vez 29

Nunca usaram 02

Grávida 07

Menopausada 01

63

Fonte: Ficha de Identificação da Participante e ajuste com informações coletadas durante a entrevista.

A participação em grupos de planejamento familiar foi referido por trinta

das mulheres entrevistadas e seis delas os freqüentaram por duas ou mais vezes (Tabela

5).

Tabela 5 – Participação em Grupo de Planejamento Familiar (GPF) segundo

registros da Ficha de Identificação da Participante (n=63).

Participação em GPF Número de vezes que participaram N

Sim 30 Uma vez 24

Duas vezes 03

Três ou mais vezes 03

Não 33

63

Fonte: Ficha de Identificação da Participante

As flores encontradas são mulheres sem filhos, que querem ter filhos, que

não querem ter filhos, que querem ter muitos filhos, que tem muitos filhos, casadas,

solteiras, amasiadas, viúva, homossexual, do lar, operárias, trabalhadoras informais,

aposentada, mães, de seus filhos e de outros, cuidadoras, dos outros e às vezes de si.

Mas acima de tudo: mulheres com histórias que precisam ser contadas a quem se

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dispuser a ouvir. A montagem do arranjo com essas flores não permite destaque a todas,

mas um pouco de cada uma delas pode ser conhecido no Apêndice IV.

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Parte Três – ... e as vivências.

Nesta parte do trabalho apresentamos os resultados da análise das

entrevistas. Leituras e releituras do material coletado foram aproximando os discursos

das mulheres e criando diálogos entre eles. Alguns eixos afloraram já na fase de leituras

livres do material: ser mãe, ser filha; planejamento da família, da reprodução e da vida;

“tem que”, a ordem médica sobre a mulher; os métodos e as representações do corpo;

ter ou não ter filhos; laqueadura tubária, um caso a parte na escolha contraceptiva;

maternidade; o controle da vida reprodutiva; o homem para a mulher; os serviços de

saúde; o mundo do trabalho; a mulher e o corpo; aborto.

Com a imersão nas leituras, matizes de aromas e cores foram sendo

individualizados e organizados em dezoito núcleos temáticos: aborto; condições

materiais; cuidados com a saúde; escola; família nuclear de origem; a gravidez, a

maternidade, a paternidade e a contracepção dos outros; gravidez e parto; maternidade e

maternagem; métodos anticonceptivos; parceiros; percepção do corpo e seus

fenômenos; plano de filhos; projetos pessoais; sexualidade; trabalho; violência

doméstica; violência e pobreza; tem que, a ordem profissional.

Finalmente, com o aprofundamento do exercício analítico um conjunto de

mediações e sentidos envolvidos nas dinâmicas de produção e satisfação das

necessidades em regulação da fecundidade e controle da vida reprodutiva dessas

mulheres foi aflorando e os resultados foram, finalmente organizados em seis

dimensões e assim serão apresentadas no restante desse capítulo: “As vivências do

corpo, da sexualidade e dos afetos”, “Plano de filhos e mediações da vida reprodutiva”,

“Controle reprodutivo: contracepção e aborto induzido”, “As vivências de gravidez,

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aborto espontâneo e parto”, “Vivências de maternidade e maternagem” e “Tramas da

vida”.

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I. Vivências do corpo, da sexualidade e dos afetos

Pra mim eu procuro dar pra elas o que eu não recebi, não é? Então eu sempre orientei. Elas quando completaram sete anos eu orientei em relação ao beijo, e gradativamente também. Então eu tirei assim o modo de mim mesmo. O que acontecia comigo devido a cada idade eu fui achando que aconteceria com elas. Então eu achei que elas despertariam pra negócio de certa atraçãozinha por um coleguinha na escola, alguma coisa, por um vizinho que está ali. Então eu coloquei elas assim pra se prepararem pra isso, porque de uma hora pra outra podia acontecer isso, ter um menino que elas podiam olhar e olhar de uma forma diferente, elas sentiriam alguma coisa diferente... E até que ponto era perigoso a intimidade ou não, até aonde elas poderiam chegar sem problema nenhum. E também sempre aceitar elas dividirem comigo, sempre quis tomar conhecimento do que acontecia com elas. Então a menstruação... Tanto que para elas sempre foi festa: “Ah, fiquei menstruada.” Foi uma festa. Quando aconteceu o primeiro beijo também. “Mas mãe, aconteceu com fulano. Ah, eu dei...”. Eu: “Ah ta! E aí depois do primeiro beijo vai ficar como? Como é que vai ser isso? Vocês conversaram o quê?” Então eu sempre tive essa participação com elas assim, não é? Nice, 38 anos

Os relatos das vivências na esfera da sexualidade e da reprodução

apresentam a percepção que as mulheres tem sobre seus corpos e os fenômenos que lhes

acontecem, como a menarca, o primeiro envolvimento afetivo e a primeira relação

sexual. Esses discursos deixam transparecer algumas idéias padronizadas de

normalidade, construídas a partir de um universo multifacetado de relações, que servem

de baliza às próprias experiências.

As normas fazem com que os acontecimentos da vida sexual e reprodutiva

sejam apresentados como uma seqüência natural na trajetória das mulheres e estão

permeadas pelo saber biomédico e pelo papel social a ser desempenhado pelas mulheres

quando destacam a reprodução como caminho principal a ser seguido. Esses

acontecimentos evidenciam teias de relações onde as mulheres interagem com seus

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pares e o mundo e marcam a cadência de pertencimentos a diferentes coletivos ao longo

de suas trajetórias. O primeiro dos eventos corporais referidos é a menarca. Apesar de

ser uma novidade para as mulheres ela é apresentada como normal de acontecer na

trajetória reprodutiva de todas as mulheres.

Ah, uma novidade, uma coisa diferente. (...) Menstruação eu acho que todo mundo acha normal. Fernanda, 26 anos

A menarca é percebida pela perspectiva biomédica e está associada a idéias

de funcionalidade e amadurecimento do corpo, mas também pela ótica da norma

reprodutiva onde representa um marco inaugural na trajetória que deverá ser cumprida

pelas mulheres.

Quando eu tive a minha primeira menstruação... a primeira coisa que eu sabia é que eu estava pronta... Pronta não, já podia engravidar, a partir daí. E foi isso. Que eu ia menstruar todo mês. (rindo) (...) Na minha cabeça, eu acho que uma coisa muito... Acontece com a mulher uma coisa muito louca, muito estranha. Um sentimento, de repente um sentimento estranho entra dentro de você, que eu não sei definir muito bem, né? Luana, 27 anos

A descrição de Edna sobre a primeira menstruação da filha é de um rito de

passagem de menina para moça. Como em qualquer rito de passagem, o sujeito recebe

destaque com a celebração e inaugura explicitamente a trajetória reprodutiva.

Quando ela ficou menstruada pela primeira vez ela veio e falou comigo. Ela: “Mãe...” (...) “Mãe, eu acho que minha menstruação veio”. Falei: “Minha filha, que coisa maravilhosa!” Aí tudo pra mim era motivo de inaugurar. (...) Eu falei: “Minha filha! Agora você já é uma moça. Olha, você não é mais uma criança! Agora você é uma moça, uma adolescente muito linda da mãe. Muito bonita. Agora você é uma moça, você menstrua”. Aí conversei com ela. Aí falei: “Agora qualquer coisa você pode engravidar. Quando for namorar... namora… Procura namorar perto da gente... Não que você é obrigada, mas procura namorar sempre perto da gente... de onde a gente está vendo. Eu e teu pai esta vendo”. Aí ela... Ela: “É mesmo né

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mãe, aonde meu pai está ele está me vendo né mãe?” Eu falei: “Está, ele está te vendo. Aonde teu pai está ele está com a maior alegria agora contigo. Todo contente. Ele está todo feliz com você, que você está menstruando”. Aí ensinei ela. Aí fui e falei. Eu disse: “Olha, não precisa nem eu te ensinar, né?” “Não mãe, não precisa não. vou ter muito cuidado”. Já tinha comprado absorvente pra ela. Quando ela fez 9 anos eu já tinha comprado absorvente pra ela. (...) Aí chamei minha mãe pra ir lá pra casa, chamei meu irmão, chamei todo mundo pra ir lá pra casa pra gente poder inaugurar (rindo) a coisa da Alessandra. Aí. Aí tudo bem. Pegou e se formou, ficou moça. Edna, 39 anos

Segundo a idéia de normalidade compartilhada pelas mulheres, a menarca

deve acontecer antes dos quatorze anos. O atraso na primeira menstruação provoca

preocupação e o sentimento de que estão fora da norma, levando a questionamentos por

não estarem ingressando no mundo das mulheres formadas. Lúcia, Bárbara, e Amanda

ilustram bem as inquietações com a demora em menstruar em suas falas.

Porque assim, quando a gente é mocinha sempre tem novidade. Né? Umas contas de namoro, uma conta disso: “Ah, hoje eu estou menstruada”, “porque meu peito está dolorido”, “não sei o que...” “Ah, eu estou com TPM”. Todo mundo tinha uma novidade, então cada uma tinha a sua novidade pra contar, e eu nunca tinha nada. (...) E as minhas coleguinhas sempre tinham coisa. Falavam: “Ih, estou suja”. Brincadeira, sabe? “Estou suja. Você tem absorvente?” Chegava pra mim: “Você tem absorvente?” (...) Sempre todo mundo menstruou na família, menos eu. Aí eu me achava um ET. Aí minha mãe falava: “Não, isso é coisa de tempo, cada um tem a sua estrutura, cada um tem o seu tempo”. Acontece que as minhas duas primas mais novas já tinham, e eu que era a primeira não tinha. Passou um tempo aí que eu fui vendo, eu fui ficando mais velha e nada, 15 anos, 16 anos nada, 17 anos, aí eu já fiquei preocupada. Porque todo mundo na escola falava: “Ah, não sei o que...” “A minha regra desceu, não sei o que...” Aí eu: “Nossa senhora! Todo mundo tem”. Eu nem falava, ficava assim... me sentindo um ET. Aí fui com a minha mãe de novo. Aí ela achou melhor: “Pô, realmente ela já está com a idade muito avançada e não menstrua, isso não é normal”. (...) Aí a minha mãe falava assim: “Não precisa ficar assim não”. Eu tinha vergonha. (...) De não ser igual as outras pessoas. Lúcia, 31 anos Eu fiquei menstruada com 17 anos. Demorei muito a menstruar. (...) E eu achava estranho porque todas as meninas menstruaram com 13,

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14... aí eu fiz 15, 16, fiz 17, quando eu já estava... Depois de 2, ou 3 meses depois dos 17 é que eu vim menstruar. Então eu já tinha noção do que era, já sabia mais ou menos, mas falar mesmo eu falei com a minha irmã. (...) (de onde vinha essa noção) Ah... de onde! De onde? De algumas amiguinhas que eu tinha que já eram mais peraltas, mais danadas. Eu sempre fui muito boba. (risos) Aí as meninas falavam, né? “Por que você ainda não menstruou?!” E falava: “Você ainda não ficou mocinha?” Porque é assim que falam? “Você ainda não ficou mocinha?” Eu falava: “Não”. “Oh, você é doente!” Sabe aquelas coisas? Aí começa a curiosidade: “Mãe, eu sou doente?” Minha mãe: “Não, minha filha. Cada caso é um caso. Você vai demorar um pouquinho”. Mas falava só assim: “Pra que você tem pressa, porque você quer ficar menstruada?” Bárbara, 38 anos Com 16. (...) Fui a última da família. (rindo) (...) Ah! Uma vergonha. (...) Claro! Minhas primas tudo com 11, 12 anos. Eu já estava com 15 e nada. (...) Fiquei (preocupada), mas a minha avó falava que era normal. (...) Não (procurou serviço). (...) Falavam que era normal, pra mim era normal. (rindo). Minha tia também ficou bem tarde... Pra mim era normal. Pra mim era normal. Minha tia explicou também. Eu comecei tarde, mas pra mim era normal. Amanda, 22 anos

O circuito social íntimo, compreendido por familiares e amigas, influencia a

percepção e satisfação das necessidades tanto na ocasião da menarca quanto para outros

eventos da trajetória reprodutiva das mulheres. Nessa rede são distribuídas informações,

conforto e consolo e socializados os medos, as expectativas e as dúvidas das mulheres.

É importante enfatizar que a partilha dessas vivências acontece principalmente entre

pares femininos, uma vez que pais, irmãos ou amigos não fizeram parte dos discursos.

Para aquelas que tiveram experiência de ter a mãe como interlocutoras os discursos

revelam mais segurança e tranqüilidade ao passarem pela menarca.

Como eu já tinha essa questão na minha vida... assim... já formada... porque minha mãe sempre foi muito aberta... isso foi muito tranqüilo... eu sempre conversei de tudo... eu nunca tive vergonha de... eu nunca tive nenhum tabu em conversar... (...) É... porque às vezes... ah... minha mãe me falou sobre isso... então é bem mais tranqüilo, né? Marilene, 25 anos

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Não que a minha mãe não falasse, a minha mãe... Sei lá! Não era que a minha mãe fosse... A minha mãe era até bem aberta, mas eu conversei com a minha irmã porque eu me senti mais a vontade de falar com a minha irmã. Entendeu? Aí a minha irmã foi que... Eu já tinha noção, não é? Porque mesmo naquele tempo atrás a gente já tinha uma noção do que era... (...) Então quando eu ia falar alguma coisa com mamãe, ela falava: “Ah, minha filha, tenha paciência. Por que você está com essa pressa?” Não sei o que, não sei o que lá... “A sua hora vai chegar!” me dava uma engambelada, e me deixava pra lá. Já a minha irmã não. A minha irmã não: “Olha, é assim: cada menina é assim, é assado...” Assim, me explicava tudo direitinho. Do jeito dela, que ela também não sabia muito, mas que me passava alguma coisa. E aí eu aprendi as coisas. Bárbara, 38 anos

Mesmo quando percebida a carência ou ausência de referências no núcleo

familiar estas se relacionam à figura feminina, destacadamente as mães. Nos discursos

daquelas cujas mães foram um referente ausente percebe-se mais sensações de

desamparo, susto e medo quando vivenciaram a primeira menstruação.

Aí eu estava doente, aí eu nem percebi, não tinha nem peito, não era formada nem nada. Aí a primeira vez que eu fiquei menstruada foi com 11 anos. Aí eu estava internada no hospital da Ordem, aí eu levantei para ir no banheiro para fazer xixi quando eu levantei da cama, quando eu olhei a cama, o lençol estava todo vermelho. Eu fiquei apavorada! Aí eu pensava um monte de besteira. Eu pensava que alguém fez alguma coisa errada comigo. (...) Não. Minha mãe não conversava isso comigo não. Depois que eu fiquei sabendo. Ela foi me explicando como que era. (...)Aí comecei a ficar em pânico, tudo... chorava. Aí ela foi e me explicou. Começou a me explicar o que era menstruação. Beatriz, 31 anos A minha primeira menstruação eu tinha 9 anos. Não sabia nada. Fiquei até meio assustada na hora, fiquei bem assustada, aí perguntei até a professora. “Você está menstruada, não sei o que...” Aí falei com a minha mãe quando cheguei em casa. (...) Foi na Escola. (...) Ah! Minha mãe nem conversou comigo assim, “menstruação, que não sei o que”, nunca tive esses contatos assim de minha mãe falar. Porque a minha mãe trabalhava muito, então minha mãe nunca falou. (com os olhos cheios de lágrimas) (...) Ah, eu conversava com as minhas colegas. Fernanda, 26 anos Levei um susto! (...) Ah, eu chamei minha mãe! Minha mãe que me explicou. (rindo) (...) Não tava acostumada... Aí todo mês vinha... assim... Fiquei assustada, no começo era chato. Manuela, 23 anos

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Ah! Eu falei com a minha mãe e... Porque no primeiro dia eu fiquei com medo. (...) Fiquei cheia de medo e eu falei com a minha mãe e ela falou que era normal, que era pra usar paninho. Iris, 41 anos

O depoimento de Edna é bastante ilustrativo de como a possibilidade ou não

de socializar as vivências do corpo e da vida reprodutiva nesses circuitos de relações

mais íntimos molda de maneira distinta suas necessidades e as possibilidades de

satisfazê-las. Edna viveu em condições pobreza durante a infância, os pais eram

separados mas conviviam na mesma casa, e ela chegou a morar na rua durante a

adolescência. Ela somente foi compreender o significado da menstruação quando

engravidou pela primeira vez aos treze anos. Uma seqüência de silêncios marcou sua

trajetória reprodutiva, desde a menarca até às experiências de gravidez e parto, como

poderemos ver mais adiante. Ao fazer um balanço da própria história, ela traça uma

conduta diferente como mãe e intencionalmente tenta estabelecer com seus filhos uma

relação mais aberta e mostrando-se disponível para o diálogo.

Aí com 12 anos... Com 13 anos eu engravidei. Mas ali eu não sabia, eu não sabia o que era uma menstruação, não sabia os cuidados que tinha, não sabia de nada. Porque minha mãe nunca foi dessas mães de sentar e conversar. Que hoje... Eu faço com meus filhos hoje o que minha mãe não fazia comigo. Edna, 39 anos

Muitas das entrevistadas têm uma percepção de que é importante para a

mulher, desde a infância, compartilhar informações e defendem de modo eloqüente uma

relação aberta com suas filhas para falar sobre o assunto e ensinar os cuidados. É

importante a forma como essa troca privilegia o aspecto geracional e mantém somente

mulheres nessa rede, onde a presença da mãe favorece a criação e satisfação das

necessidades e legitima o rito de passagem representado na menarca.

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Ah, foi estranho, porque a minha mãe assim não conversa sobre isso com a gente. Sobre isso não, é muito rígida assim. Então pra mim foi estranho, eu não sabia como que fazia, como que era, como usar absorvente, qual o tamanho do absorvente certo. Então pra mim foi meio estranho. Já pras minhas irmãs agora não, porque eu já passei isso para elas, então para elas isso é muito mais fácil, mas pra mim... Como das meninas eu sou a mais velha, então foi muito difícil. Valquíria, 21 anos Eu não tinha irmã... minha mãe era até aberta para certas coisas... mas pra essas coisas... assim sobre relação sexual... ela não falava não... Até quando eu tive minha primeira menstruação, eu não falei pra minha mãe... Eu fiquei quieta. Eu mesma comprava o meu absorvente... e depois ela foi descobrindo assim... (...) De mulher com mulher, minha mãe nunca foi de conversar muito comigo sobre isso não. O que eu aprendi, eu aprendi mesmo sozinha... Hoje em dia eu sou até diferente com minha filha. Que eu tenho uma filha adolescente de treze anos. Mônica, 37 anos Hoje eu já falo tudo para ela (apontando para a filha de 12 anos). Como que é a vida, né? Muito legal! Bárbara, 38 anos Quando as mulheres falam de seus filhos homens elas demonstram tentar

estabelecer uma relação tão aberta quanto com as meninas, entretanto nesses casos o

parceiro tem um destaque maior que o dela. Esses parceiros nas relações com as filhas

sequer são lembrados o que reforça as figuras femininas na socialização com mulheres

sobre as vivências com seu corpo.

Ah! Eu estou sempre conversando. Que ontem mesmo eu peguei ele dentro do quarto com a menina lá. (...) Mas eu sempre boto o pai. “Oh, você fala pra ele...” Aí ele que ensina pra ele como que é. Aí ele pergunta. Ele também... Ele fala: “Pai, como é que usa camisinha, e tal...” Então sobre isso aí a gente não tem problema não, a gente está sempre conversando. (...) Eu estou sempre falando com ele: “Tem que se prevenir, tem que usar. Até mesmo porque você é novo pra ter filho agora. A camisinha ela...” Eu sempre falo pra ele: “Ela protege da doença e protege de você engravidar alguma menina, né?” Clara, 34 anos

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A menarca é o marco inaugural de um novo conjunto de práticas que serão

desenvolvidas ao longo de suas vidas como adultas, que se caracterizam pelos cuidados

com o próprio corpo. A necessidade de controle sobre o corpo e a provisão de seus

cuidados introduzem regras que passam a fazer parte de suas vidas e que suscitam

rotinas corporais com repercussões no comportamento e relações. A partir daqui é

necessário compulsoriamente controlar a data da menstruação, preocupar-se com o uso

de absorventes e prevenir-se contra a cólica. O aprender a cuidar começa a ser tecido

aqui: primeiro de si mesmas e dos eventos da vida reprodutiva; não muito mais tarde,

cuidar também dos outros: filhos, maridos, pessoas mais velhas, doentes, etc. Essa

autonomia conquistada de fora para dentro – para usar uma expressão de Heller e

Féher (2002) - reflete de maneira importante em como as mulheres lidarão com os

eventos seguintes da vida reprodutiva.

E aí pra diante foi normal, tirando as cólicas, né? (rindo) Aí foi normal. Até então eu tinha cuidado que aquele tal dia do mês seguinte viria a menstruação, então eu já me prevenia, né? Sempre com um absorvente pertinho, cuidado pra não... Pra não sentir tanta cólica, né? Na época a minha mãe ficava muito: “Oh, não pode comer isso que faz mal” “Não pode comer aquilo que faz mal”. Coisa de mãe, né? (...) Às vezes eu obedecia, às vezes não. (rindo) (...) Pra mim era a mesma coisa. (...) A minha avó era uma que falava muito: “Não anda descalço”. “Não senta no chão, faz mal”. “comer coisa azeda, ovo... E manga nem pensar”. Então sempre tinha umas coisas que elas inventavam. Né? Minhas tias também falavam muito. Às vezes eu ouvia, às vezes entrava por um ouvido e saía pelo outro. (rindo) Joana, 27 anos

Embora a descida da menstruação seja bem-vinda e remeta ao crescimento

da mulher, com suas potencialidades sociais e reprodutivas, ela é vivenciada com

ambigüidades, podendo também estar associada a experiências negativas, descritas

como desconfortos, TPM (tensão pré-menstrual), cólica e sujeira. É interessante

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observar que tanto os aspectos positivos quanto negativos são enquadrados na mesma

idéia de normalidade que as mulheres assumem para a menstruação. Entretanto, apesar

de considerarem normal, esses desconfortos acabam limitando a satisfação de outras

necessidades, e muitas vezes as mulheres precisam traçar estratégias para agir contra a

natureza. Nesses casos, é comum lançar mão de outros circuitos além daquele das

relações íntimas, e destacadamente, são acionados os agentes e serviços de saúde. No

caso de Lúcia, a solução para escapar da dor foi infringir a norma de menstruar

mensalmente, com auxílio de recursos médicos. Ela se sentiu incapacitada para o

trabalho devido à TPM e por várias vezes teve atestado médico negado por fazer

referência à síndrome pré-menstrual. Por sugestão da profissional que a assistia ela

começou a tomar direto um anticoncepcional e hoje se considera como uma pessoa

normal apesar de fugir à regra de menstruar – ou seja, a norma não sai do horizonte.

Era menstruar, parou o remédio, começava a menstruação era a morte pra mim. (...) Eu ficava mal, mal, mal mesmo, não levantava da cama. (...) Ah! Eu acho magnífico. Porque, assim, tem gente que fala que a gente não menstrua, que fica com TPM, essas coisas. E eu não sinto nada. Não sinto mais dor de cabeça, que eu sentia náuseas horríveis, dor de cabeça, enxaqueca. Não fico mais. (...) Então assim, eu acho que muitas mulheres menstruam porque não sabe. Todo mundo fica com aquela criação de pequeno, porque eu também tive. (...) “Ah, se você não menstruar você vai ficar maluca”. Pode perguntar para qualquer senhora aí da antiga que ela vai te dizer: “Você vai ficar louca. Não pode, tem que menstruar. Tem que ter a regra.” E, assim, eu não vejo nada. Eu sou como uma pessoa normal. Lúcia, 31 anos

Outra forma de fugir à regra de ter regra, porém sem ir contra a natureza,

esteve presente no discurso de Manuela. Já que a reprodução faz parte da seqüência

natural dos acontecimentos, as colegas de Manuela preferiam engravidar e ficar livre

por alguns meses da menstruação.

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Tem gente que prefere pegar filho do que ficar assim (menstruada)... Eu tenho colegas que é assim... prefere pegar filho do que ficar assim... (...) Porque é muito chato. (rindo) Manuela, 23 anos

Em geral, o parceiro e outros homens do círculo de relações mais íntimo

têm pouca presença nos discursos relacionados à menstruação e não fazem parte da

socialização dessas vivências. Uma exceção é o relato de Lúcia que descreve a

participação do parceiro em vários momentos de cuidados com ela e sua família, o que

incluiu o amparo ao seu sofrimento e colaboração nos cuidados decorrentes da TPM.

Ele via que eu sofria muito. Muito, muito, muito. Às vezes ele tinha que pegar bolsa de água quente pra botar na minha barriga de madrugada, porque eu não suportava. Aí eu não deixava ele dormir, eu já estava de atestado, ele tinha que trabalhar no dia seguinte, como que ia? Aí ele levantava da cama e ficava comigo me acompanhando a noite. Lúcia, 31 anos

No caso de Vanessa, a menstruação afeta negativamente a relação com o

parceiro. Ela conta que vinha usando o DIU há três anos e tinha um sangramento

menstrual fora do normal, o que interferia na vida sexual com o marido.

O maior motivo mesmo foi o tempo que eu ficava menstruada, e o meu marido, né? (...) Ah, ficava lá querendo sexo (rindo) e eu menstruada. (...) Aí ele: “Poxa, muda de método, você fica muito tempo. Até porque você fica quase 10 dias menstruada, é muita coisa”. Aí... Vanessa, 38 anos

A partir da primeira menstruação, o horizonte se abre para novas

experiências corporais, afetivas, eróticas e sexuais. Diferentemente da menarca, para

socialização dessas experiências (e mesmo da expectativa de vivê-las) se dá mais

privilégio aos pares de idades próximas e do mesmo sexo e, mesmo que tenha

importância, a mãe já não tem a mesma centralidade.

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Na verdade eu não buscava, né? Assim, era natural. Eu acho que foi um procedimento assim... Um processo, né? Natural de assim, da adolescência, quando você começa a ter amizades assim, você passa pra adolescência a gente começa a falar sobre essas coisas naturalmente, né? (...) entre amigas, aquela coisa da curiosidade mesmo. Ingrid, 40 anos

A vivência da primeira relação sexual evidencia o parceiro nos discursos

como uma fonte para ponderações em torno da decisão de experimentá-la. Ingrid relata

que sua primeira vez ocorrera após o parceiro dizer que precisava satisfazer suas

necessidades de homem, e esta chantagem fez com que consentisse a relação sexual no

intuito de impedir que ele buscasse sexo com outra mulher.

A gente é sempre deixada levar pelo homem, né? (...) Foi assim, foi tipo uma chantagem do meu atual.(...) E com seis meses... Aí ele me contou várias histórias... Aquelas coisinhas de homens: “Ah! Porque o homem tem suas necessidades”. Aquele papinho bobo? (rindo) “Homem tem as suas necessidades, eu já estou há seis meses sem ter uma mulher...” (...) Aí ele falou: “Puxa, homem tem suas necessidades, eu preciso estar com uma mulher, e aí hoje eu não vou poder ir na sua casa porque eu vou sair com alguém pra ter relação, porque eu preciso, porque eu sou homem...” Aí a idiota aqui caiu, né? (rindo) Aí eu sabia a hora que ele ia sair, fui pra casa dele antes pra tentar impedir. Só que eu não fui com a intenção de ter relação com ele, mas eu achava que eu lá que ele não fosse, né? Ingrid, 40 anos

As normas sexuais são aprendidas nas interações estabelecidas pelas

mulheres com familiares, comunidade e pares e outros circuitos de informação como a

mídia, mesmo antes de experimentarem a primeira relação sexual.

O discurso de Alícia destaca que as normas sexuais estiveram presentes

desde a infância, quando começava a perceber o próprio corpo, assim como as

diferenças entre os sexos. Ela apresenta que a experiência sexual com parceiro fez parte

da trajetória natural, entretanto, ao lembrar suas vivências, ela percebe que

silenciosamente infringia às normas por desejar alguém do mesmo sexo. Hoje ela

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assume sua opção sexual e, mesmo se enxergando como fora da norma, se sente aceita

por seus familiares.

Então agora eu fui vendo. (...) Porque eu me vestia toda estranha um pouco. Às vezes a minha família queria me vestir toda assim, toda enfeitada de usar sainha, de usar aquelas roupas assim... Desde pequena eu usava o tênis, eu usava roupas bem coisas. Desde pequena assim eu usava... Brincava com as coisas, assim... E foi assim que eu comecei ver. Foi bem lá no tempo que quando eu tinha mais ou menos... Quando eu fui ver, sentir alguma coisa assim, na faixa mais ou menos de 7 pra 8 anos. (...) Eu lembro que nas fotos (...) eu fiquei assim em pé, uma vizinha... e eu olhando de banda assim. Eu fiquei olhando... (...) Eu olhei uma foto assim: “Meu Deus do céu!” (...) Eu fiquei assim: “não tem jeito não”. (...) Porque já via...(...) Eu ficar assim, olhando de banda. Eu estava olhando de banda que significa que eu sentia alguma coisa... que sentia vendo uma pessoa. Aí pronto, fui vendo. Aí depois comecei a ter mais idade... Aí eu conheci essa pessoa, aí já estava namorando com o cara, namorei bastante com rapaz. Então depois eu conheci a primeira, chegando aos 15 anos eu comecei gostar de uma mulher. Aí depois ela me mostrou uma parte e eu comecei. Depois quando eu estava começando a namorar com... Eu estava com o meu namorado ainda... Que eu estava com ele e ficava com ela, que eu estava tentando ver a diferença, alguma coisa. Aí que eu tive coragem de falar pra ele. (...) Eu falei pra ele: “Oh, eu gosto de ficar com uma pessoa. Eu estou conhecendo uma pessoa mulher”. E eu não imaginava que ia fazer isso. (...) aí eu falei: “Pô, eu não posso fazer nada”. Porque eu não sentia... Nunca senti nada com homem. Porque eu não sentia mais nada por ele. Então... (...) Minha mãe sabe, minha avó, minhas tias, minhas sobrinhas... Três tias sabem que eu gosto de ficar com mulher, minha mãe. Então eu pensava. Isso daí eu pensava que minha família ia me deixar de lado. “Pô, como é que eu conviver com uma sobrinha que gosta de mulher?” Eu pensava que minha mãe e minha família ia ser preconceituosa. Então eu fiquei com medo. Eu aceitei, mas fiquei com medo. Depois eu vi a imagem todinha, aí eu vi que minha família me ama de verdade. Alícia, 28 anos

As idéias sobre a idade ou as circunstâncias certas de iniciação sexual com o

sexo oposto reforçam os princípios compartilhados. Entretanto, a decisão no que se

refere à primeira relação sexual - como onde, por que, com quem - implica interpretação

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das normas e adequação das mesmas à luz de suas experiências pessoais, desejos e

pertencimentos, o que demonstra agência no fluxo das vivências sexuais.

Foi com dezessete anos. (...) Eu saía com um menino da escola. E eu era apaixonada por ele... (risos) Aí eu falei assim: ta na hora também, porque eu já... Não é porque as minhas amigas já tinham feito que eu também deveria fazer. Eu falei assim: não vou fazer porque eu to com vontade. Aí eu tomei a decisão e acabei me perdendo com ele. Gabriela, 19 anos (...) Minhas colegas falavam como que era, que era bom. Eu falei: “Ah! Eu já estou com 19 anos... É difícil ver uma garota com 19 anos ser virgem”. (...) Aí elas me incentivavam eu falei: “Está bom! Vou fazer”. Aí não gostei não . (...)acho que não mudou nada. (...) Aí eu fiquei um bom tempo sem namorar. (...) Aí fiquei 1 ano e 7 meses sem ter namorado. Beatriz, 31 anos (a primeira relação sexual) Foi. Eu que quis. (rindo) (...) As minhas amigas. (...) Que elas eram mulheres... Eu fui mais pela cabeça dos outros, não por... Mas eu também queria. (...) Aí que eram já mais velhas que eu, eram mais experientes. Aí eu também quis, foi um pouco de curiosidade também. Valquíria, 21 anos

No processo de vivência e socialização dos novos acontecimentos da vida

sexual são mobilizados também valores compartilhados por grupos de pertencimento,

como comunidades religiosas, que ajudam as mulheres a pensar e ponderar suas

escolhas na vida sexual e reprodutiva.

Porque desde pequena sempre tive o sonho de casar virgem... que antes era véu e grinalda, eu sempre tive vontade de casar de véu e grinalda. (risos) Hoje também não tem mais nisso, né? Falam que é até brega. Mas eu sempre tive... (...) Tenho, tenho essa vontade. Tenho. Sempre quis, e sempre fiz de tudo para manter assim... meu sonho e até porque é o sonho da minha mãe também... eu, a minha irmã, esse tempo todo... (...) Converso. (rindo) Demais! (...)(o parceiro) Respeita... (...) mas por causa também da nossa religião, né? porque a gente segue muito a religião, essa coisa toda... e a gente conversa sobre isso... e espera o casamento pra isso. Viviane, 19 anos

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Olha é muito engraçado. (rindo) Até os 31 anos eu fui totalmente virgem. Eu era virgem até os 31 anos, não tinha nunca namorado ninguém. Fiz a minha faculdade intacta, toda a vida. Porque eu queria realmente me preservar para a pessoa que eu achasse que era ideal para minha vida. Tinha esse sonho ainda, não me arrependo. (...) Eu achava que ainda... Essa coisa do príncipe encantado? Eu achava, eu acreditava mesmo, realmente sempre busquei isso minha vida inteira, eu quando conheci ele, achei: “Nossa, encontrei a minha metade da laranja”. Pensei que fosse pra minha vida toda. Então quando acabou eu me senti sem chão, fiquei muito mau. Cássia, 36 anos

As informações obtidas através dos meios de comunicação são agregadas

àquelas recebidas nos outros circuitos de relacionamento, mas todas essas precisam ser

processadas ativamente no processo de decisão e escolhas em busca de encontrar

satisfação para suas necessidades.

(...) Aquela coisa da curiosidade mesmo... E aí ela fala: “Ah! Você viu na revista?” Na minha época tinha muita Carícia, né? Aquelas revistas Carícia que vinham falando alguma coisa sobre isso, sobre sexo. Enfim... (...) Não, era uma coisa sem noção. Assim de... Não era uma busca da confiança, da certeza que as opiniões delas, nem o que estava escrito nas revistas eram coisas certas. Ingrid, 40 anos Ah... eu sabia acho que tudo! Porque via televisão, revista, amizade. Tudo que é falado, então você tem uma noção, não é? Não tem nada inocente. Eunice, 31 anos

Uma das normas que envolve o exercício da sexualidade, que novamente

aparece de modo proeminente nos discursos das mulheres, é aquela que invoca a

natureza. A primeira relação sexual se dá dentro da seqüência de eventos que acontecem

naturalmente em suas vidas. As mulheres descrevem o destino de viver a primeira

relação sexual entre o se perder e se achar.

É uma coisa que acontece naturalmente com todas pessoas, né? Independente de sexo. Fui levando também da maneira mais simples possível, a princípio não contei nem pra minha mãe, nem pra o meu pai. E fiquei só pra mim. Joana, 27 anos

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Porque essas coisas acontecem, você sabe, né? Ingrid, 40 anos Eu fui namorar mesmo com 19 anos, e foi com esse mesmo rapaz que eu me achei, né? Bárbara, 38 anos Eu me perdi com ele. Melissa, 24 anos

As imagens de se perder e se achar associadas à primeira relação sexual

pode ser menos paradoxal do que parece em um primeiro momento. Elas atualizam

normas biomédicas acerca da natureza da mulher e normas culturais de raiz judaico-

cristã e ambas pilares da ordem social de gênero da modernidade. Perder-se é romper

com a pureza e o sagrado, perder seu lugar no paraíso, enquanto achar-se é cumprir um

destino social e biológico da sexualidade voltada para a reprodução.

O discurso das mulheres acerca da experiência vivida com a primeira

relação sexual geralmente se prende ao corpo e suas sensações, como a dor e o

desconforto, sendo esta própria à natureza do evento, e esta normalidade responde pela

incoerência entre a expectativa que tinham e o que vivenciaram, chegando a descrevê-la

como horrível em alguns casos.

Olha, a primeira nunca... Eu pelo menos posso falar de mim. Eu não posso falar: “Nossa! Que experiência!” Doloroso, com certeza. Né? Mas a gente... Joana, 27 anos A primeira vez foi horrível! (...) Não foi nada daquilo que eu esperava. Valquíria, 21 anos Foi péssimo! (rindo) (...) (risos) É ruim, a primeira vez sempre é ruim. Não é boa, foi desagradável. Amanda, 22 anos

No campo das emoções, as mulheres expressam o medo de engravidar,

associado ao agir da biologia (outra vez a natureza) como se ter relação sexual fosse

não condição, mas determinação de gravidez para a mulher, como ilustra Eunice.

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Eu resolvi casar... eu estava dentro da casa da minha mãe... a minha mãe era muito rigorosa... eu ia acabar engravidando, ia ser complicado, então eu resolvi sair da minha mãe antes de engravidar. Passei a morar na casa do meu marido. Um ano depois eu tive meu filho mais velho. Eunice, 31 anos

Além disso, as emoções revelam também a representação social do pudor e

da pureza feminina, baseada nas normas de gênero que tornam a vivência motivo de

vergonha, uma coisa errada ou impedimento para que relações estáveis com parceiro se

estabeleçam no futuro.

Eu morria de medo, que eu ia ficar grávida, que ninguém ia casar comigo. Aquelas bobeiras. Mas então eu não era não. (...) E fiquei com ele durante um tempo, depois não casei. E fui viver a vida. Aquele negócio que não ia casar... era bobagem minha.Bárbara, 38 anos Ah! Foi uma coisa chata, que eu não gostei da primeira vez. (...) Ah! Foi muito esquisito. (...) Aí eu não queria mais ver ele, eu fiquei com vergonha. Fiquei, passei um bom tempo sem olhar para cara dele. (...) Era coisa dentro de mim... que eu queria saber como que era, depois que eu... A primeira vez que eu fiz eu não gostei. Beatriz, 31 anos (...) Pensava como é que eu ia contar para minha mãe depois, sabe eu tava pensando que a minha mãe ia brigar comigo, ia dar uma coça, uma surra... Mas até que foi tranqüilo, minha mãe não brigou, só conversou. Gabriela, 19 anos

O conjunto das experiências das mulheres faz com que a expectativa em

torno da relação sexual seja modificada após a primeira vez e a dor e os medos dão

lugar ao protagonismo do sujeito. As vivências mais prazerosas e que vieram atender

mais às suas necessidades são conquistadas num percurso que passam a ser mais ativas

em suas escolhas nas relações subseqüentes.

No começo eu não gostei muito não... (ainda sob risos), mas depois... Foi indo...depois eu conheci outras pessoas... Mônica, 37 anos

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Porque também eu sou muito de conversar com o parceiro, entendeu? (...) Sou... Converso muito assim, antes de começar um namoro sério eu gosto de conversar, explicar o que eu gosto, o que eu não gosto, essas coisas. Letícia, 36 anos

O início da vida sexual intensifica a necessidade de observar, cuidar e

controlar o corpo, já introduzidas com a menarca, dando um novo impulso à

individualização e autonomização.

Aí eu sempre tive cuidado de me cuidar. Sempre, sempre. Antes mesmo d’eu perder a minha virgindade, antes mesmo d’eu menstruar a minha mãe sempre levava a gente no posto. E depois eu comecei a me virar sozinha. Porque ela tinha as outras coisas dela, tinha também a minha irmã mais nova, então ela tinha meio que dividir, tinha trabalho fora de casa. Então eu sempre fui cuidadosa em relação a isso. Sempre andei em posto de saúde, e é verdade, sempre. E procurei a primeira consulta normal, a médica me explicou como que tinha que usar, como que tinha que ser feito, como tinha que tomar e fui, na medida que a médica me explicou eu fui usando. (...) Eu fui me cuidando pra que justamente não viesse uma gravidez. (...) Não veio a gravidez. Joana, 27 anos

A expectativa de se relacionar intimamente com o outro proporciona uma

busca intencional de se conhecer e experimentar o próprio corpo.

Assim, eu acho que é aquela questão, né? Do beijo que a gente fica sempre achando “será que eu estou beijando direito?” (rindo) “Será que eu sei beijar?” Fica aquela coisa de - Como que fala? Ficar testando no braço, na mão... (rindo) (...) Beijei muito. Ih! Quando eu cheguei na... Justamente por isso que eu falo que é marcante... Cheguei na escola nessa época, na adolescência, estava muito assim à flor da juventude... (se ajeitando e apontando para seu corpo). E, assim, eu era uma pessoa que nem eu sabia, fui descobrir lá, né? Que eu atraia muito os garotos, né? As pessoas diziam que eu tinha o corpo muito bonito. Então inevitavelmente eu acabei me tornando uma... (rindo) naquela época chamava-se vassourinha. Né? Beijava um, beijava outro, mas não passava disso, sabe? Era só pra questão de beijo. Até por questão de competitividade, né? Dessa idade. Ah! O garoto mais bonito. “Ah é o mais bonito?” “Todo mundo quer? Então eu quero também”. Ingrid, 40 anos

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A necessidade de não adoecer por motivos do exercício da atividade sexual

e o medo de engravidar gera novas responsabilidades e muitas vezes implica

cumprimento de rotinas médicas.

A responsabilização da mulher com o controle da fecundidade revela duas

faces que merecem ser confrontadas. De um lado, ela sugere um encargo considerando a

pouca participação dos parceiros no uso do método contraceptivo e de outro ela

demonstra um reforço à sua autonomia nas experiências de sua vida reprodutiva. Elas

têm expectativa de uma prole pequena e, portanto, necessidade de controle da própria

fecundidade, entretanto não aspiram uma participação eqüitativa dos parceiros na busca

de satisfação dessa necessidade. Assumem que essa necessidade – e interesse, talvez – é

principalmente delas. A participação masculina aparece como forma de colaboração ou

de um bônus.

Eu acredito assim, não, eu não vou falar isso declaradamente pra ele porque eu não sou boba, mas eu acho que a mulher tem uma obrigação maior de se cuidar. (...) Principalmente quando ela não quer, quando ela não quer um filho então a preocupação maior é dela. Não é? “Não quero, então eu vou me cuidar”. Se deixar só na responsabilidade do homem ele não vai querer se cuidar. (...) Então se eu não quero uma coisa eu prefiro que eu tome a iniciativa de me cuidar, entendeu? Joana, 27 anos Porque a gente que tem que se cuidar, porque se depender de homem, o homem é muito machista não liga pra essa coisa. Juliana, 19 anos

Em que pese a centralidade auto-atribuída pelas mulheres no controle dos

processos reprodutivos, compartilhar vivências com os parceiros, como a escolha e a

rotina de uso de método anticoncepcional e conversar sobre o número ideal de filhos

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favorece de maneira importante a apropriação pela mulher de sua trajetória e fortalece a

assertividade em suas escolhas, como referem Amanda, Eunice e Viviane.

Ele sabia que eu estava de alguma maneira cuidando... (usando irregularmente a pílula) Porque se não uma hora podia acontecer uma coisa indesejável... (...) Ah, mas eu falei pra ele que eu estava esquecendo. Ele já sabia que... Assim, quando eu falei que eu estava esquecendo... Ele já sabia de tudo. Com certeza ele sabia que eu ia engravidar. Amanda, 22 anos E assim, eu estou menstruada e ele... Falo pra ele: “Olha, o remédio... Está acabando a menstruação”... e ele já traz o remédio. E ele sempre comprou... Eu nunca lembrei de ter entrado na farmácia para comprar anticoncepcional. (...) Ele me apóia. Assim... é a vida que a gente vive... o mundo que a gente vive. (...) E assim, ele me lembra : “Já tomou o remédio?” A responsabilidade é dos dois entendeu? Aí as vezes a gente está brincando: “Ah, vamos ter mais uma menina...” que não sei o que...” Aí ele: “Você está louca de ter filho?” Não faz isso comigo não, hein!” Aí quando eu fico quieta ele fala: “Vamos ter um neném: Já escolhi até o nome”. Mas é tudo na brincadeira... Mas eu não tenho mais, porque não há condições... Não há condições. Graças a Deus até hoje conseguimos criar os três. E o casal... graças a Deus eu estou trabalhando, ele também. Eunice, 31 anos Porque a gente conversa muito... E também a gente já namora há seis anos... aí a gente conversa. Eu acho que não tem nada que a gente nunca tenha conversado. Sobre esse negócio de casamento, relacionamento, filhos... A gente já conversou bastante sobre isso. Viviane, 19 anos

Ao contrário, quando os parceiros colocam obstáculos para que a mulher

acesse um método contraceptivo, negam-se a usar o preservativo ou impõem uma

gravidez, elas deixam transparecer o exercício de poder dos homens sobre elas, como

relataram Rita e Cassiana.

Pra não ficar sempre engravidando... Eu... Procurei um dia lá no posto... (...) Que eu queria aceitar usar DIU... Aquele negócio que bota assim... Sabe? Pra evitar... Mas eu fiquei assim... Não tinha quase paradeiro em casa... Tinha que ficar indo lá todo dia... Meu marido reclamava muito que eu tava saindo muito de casa... só que meu esposo foi e... (...) Ele ficava falando já desconfiado: “Toda

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semana você tem que ir no posto... toda semana?” Eu falei... “pra colocar esse negócio... não sei o que... não sei o que” (...) Não deixou... Rita, 35 anos Ele que falou para mim tomar remédio... porque esse negócio de camisinha não é com ele não... ele não gosta... Nenhum homem gosta de camisinha, né? Helena, 22 anos E meu esposo não gosta de usar camisinha... (...) meu esposo não gostava muito... (...) Mas aí o que eu poderia fazer com ele? (...) Aí... fazia, né? Beth, 25 anos Ele tinha (planejado engravidar), eu não. Porque ele sabe que eu tenho problema com anticoncepcional aí ele fez a besteira sozinho, porque eu não sabia. (...) ...ele furou a camisinha. Porque ele queria ter um filho comigo, eu falei: “Espera mais um pouco, espera mais um pouco”. Fiquei enrolando. (...) Naquele momento não, eu era muito nova. (...) Eu fiquei chateada, fiquei triste, briguei com ele todo dia, mas só que depois ficamos de bem. Porque eu já estou, né? O que eu posso fazer. (...) Eu nem sabia. Aí quando eu vim fazer exame eu estava grávida mesmo... Cassiana, 21 anos

Para cumprirem as responsabilidades de cuidados com o corpo e a vida

sexual e reprodutiva, as mulheres buscam informações inicialmente no circuito social

íntimo, principalmente mulheres familiares e amigas, onde comumente recebem

indicação de métodos anticoncepcionais, como a pílula, informações sobre contra-

indicações e outras.

Foi uma amiga minha que me indicou ele e aí eu fiquei tomando. E até hoje não peguei gravidez nenhuma. (...) Tomo um 11 horas da noite. (...) Todo santo dia, todo dia. Tereza, 26 anos Aí esse DIU diz que a mulher que menstrua muito não pode botar, dizendo que... Diz que a mulher que menstrua muito não pode usar... que dá muita cólica, aí sai do lugar. Aí eu fiquei com medo de botar. Beatriz, 31 anos

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Entretanto, as instituições de saúde geralmente são acionadas para

avalizarem as escolhas que as mulheres fizeram a partir de seu núcleo íntimo e assim

passam a pertencer às suas referências na modelagem de suas necessidades.

Bem, uma colega minha me indicou (pílula). Aí eu vim aqui na Fundação, fui no doutor Alan, conversei com ele, e ele me receitou o remédio. Amanda, 22 anos

Se a interlocução com as mulheres dos círculos íntimos de relação e os

serviços de saúde são cruciais nos processos de percepção e satisfação das necessidades,

as interações com os parceiros estão em um primeiro plano na geração das necessidades

– embora como vimos, a participação deles nos modos de satisfazê-las é pequena.

Cuidar da própria saúde revela distintas justificativas, entre elas porque tem

marido ou por querer provar ao parceiro que está livre de doença. Qualquer uma dessas

justificativas condiciona o cuidado à existência do parceiro em suas vidas. A

preocupação com infecções nos órgãos genitais femininos que possam vir a afetar seus

parceiros, determina a todas aquelas que tem marido cuidarem de seus corpos em prol

do parceiro.

Mas em compensação é bom. A gente que tem marido, né? É bom. Tereza, 26 anos Entendeu? Principalmente, porque se ele tem é por minha causa, então eu tenho que me cuidar. Eu acho que é essencial, independentemente disso. Emília, 27 anos Claro. Eu me cuido, mesmo eu sabendo assim que com mulher é difícil pegar doença, mesmo assim eu me cuido. Eu vou no ginecologista, vou fazer HIV, então eu me cuido sim, porque eu não vou, eu não ficar: “Ah, com certeza com mulher eu não vou pegar doença”. Com certeza pega doença sim, porque principalmente mulher tem que ter muita higiene. Tem que ter higiene pra... Principalmente pra parte do corpo, cuidar a parte do corpo. (...) Só que não é uma coisa assim, principalmente infecção. Então se a pessoa tiver uma infecção vaginária, vai ter uma doença... Se manter

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e passar pra outra pessoa, se eu tiver assim uma doença por dentro e tiver um pouquinho de líquido de bactéria e outra pessoa está limpo e eu estou com a bactéria eu vou poder passar pra ela. Então se ela puder cuidar da doença, e eu me cuidando vai ser difícil. Então eu tenho que me cuidar que eu agora vou chegar pra... Se eu estiver com uma pessoa vou chegar e falar com ela: “Olha eu estou me cuidando. Estou com uma relação limpa... Com uma relação limpa não, estou com o corpo limpo, estou com tudo limpo, não tenho doença nenhuma, então você mantém essa... sua vida...” Alícia, 28 anos Eu vou fazer exame porque aí eu vou te mostrar que eu estou sem nenhuma doença. Aí se calhar um dia eu pegar, vai ser você que me colocou porque eu não saio com ninguém, não deito com ninguém. É tipo assim. (...) Aí depois, calha d’eu pegar, eu pego, eu sei... Eu tenho minha consciência que eu só estou deitando com ele. Calha d’eu pegar, aí eu pego e... Aí eu mostro pra ele: “Oh, estou. E aí?” Aí ele fala: “De mim é que não foi”. Eu vou dizer: “Impossível, só deito com você.” Letícia, 36 anos

As mulheres demonstram que o fato de terem um parceiro exige que

algumas regras sejam estabelecidas, principalmente em relação às doenças sexualmente

transmissíveis, por exemplo, determinando o uso do preservativo nas relações

estabelecidas fora de casa para proteger o casal e evitar que doenças sejam trazidas ao

núcleo familiar, como refere Marli.

Ah! Eu nunca tive outro homem na minha vida, sempre tive meu marido, mas eu sempre converso com ele assim de “Oh, se um dia acontecer de sair com outra pessoa...” porque ninguém está livre disso... “... você pelo amor de Deus! Você usa camisinha, você se cuida. (...) Porque, olha, doença pega em você, você bota em mim...” Aí eu fico falando com ele. A gente sempre conversa sobre isso. (...) já trouxe ele pra doutora, a gente já pediu exames de doenças todas, juntos, fizemos. (...) Ah, porque ele andou pulando a cerca, né? Aí eu fiquei com certo medo. Aí eu descobri que ele estava saindo com uma pessoa lá do trabalho dele, aí eu fiquei com medo, fiquei brigando: “Eu quero, eu quero, eu quero”. E aí ele veio e fez comigo, mas graças a Deus não deu nada. Porque você se é casada, não está livre de... Ou você, pode acontecer de você sair com outra pessoa né? Ou ele sair com outra pessoa, então eu acho que a pessoa tem que lidar com isso normalmente. (...) Tem que conversar sobre isso. Clara, 34 anos

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Porque se for andar por aí e eu pegar e eu souber eu vou ficar puta, né? Com certeza porque eu não vou querer passar pra pessoa e a pessoa anda com outra pessoa e querer passar pra mim. Alícia, 28 anos

A idéia de consultas de rotina circula entre as mulheres como aquelas em

que vão realizar o exame preventivo e tratar possíveis doenças em seus órgãos genitais,

assim como também adquirirem um meio de controlar sua fecundidade. O circuito

social da mulher é que define quais são as rotinas, sua periodicidade e o que precisa ser

feito. Entretanto, são os serviços de saúde, com seus agentes, processos, estrutura e

recursos, que irão satisfazer a estas necessidades.

(não sabia) Nada. Só que tinha que usar camisinha. (...) Minha mãe (falava). Amanda, 22 anos Entendeu? (...) Tem que se cuidar, né? (...) É... Tipo procurar um ginecologista, conversar primeiro. (...) Aí procurei, conversei. Ele me passou... Eu pedi um remédio, ele me passou a injeção. Letícia, 36 anos Fui levando também da maneira mais simples possível, a princípio não contei nem pra minha mãe, nem pra o meu pai. E fiquei só pra mim. (...) Depois eu... Logo depois eu procurei um posto médico, aí comecei a usar o método anticoncepcional. Joana, 27 anos

A periodicidade dessas consultas é relativizada pelas experiências de outras

mulheres do seu círculo de convivência, o que revela que as mulheres não são

seguidoras cegas das normas dos serviços.

Ah! Às vezes faz um ano, um ano, um ano, né? E às vezes tipo assim de 6 em 6 meses, ou menos de 6 meses. Alícia, 28 anos Eu vou vir aqui e vou marcar. Tem que ser de seis meses, né? (...) É porque eu tenho uma amiga que faz de seis em seis, e eu tenho uma amiga que faz de ano em ano. Tereza, 26 anos

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(falou que descobriu a gravidez numa consulta de rotina) Ah! Sempre fazia, de seis em seis meses, sempre fui certinho sobre o preventivo. Luíza, 22 anos Porque tem pessoas, igual no último grupo, tem uma moça que já tinha quase 50 anos, ela nunca tinha feito preventivo. (...) Entendeu? Isso eu acho impossível. Emília, 27 anos Elas estabelecem uma escala de prioridades onde cuidar dos filhos pode

postergar que cuidem de si mesmas e de sua saúde, o que envolve também sua não

participação em grupos de planejamento reprodutivo. Acompanhar filhos, parceiros,

vizinhos ou familiares em atendimentos as aproxima dos serviços e apesar

preocuparem-se com freqüentar o pré-natal, realizar o exame preventivo periodicamente

ou prevenir doença, nem sempre revela uma prática consistente com o discurso.

(sobre exame preventivo de câncer ginecológico) Ainda não, mas tenho que fazer. (...) Eu ia fazer, mas eu estou menstruada, eu ia marcar para fazer, entendeu? Mas eu ainda vou fazer. (...) Eu vou vir aqui e vou marcar. Tereza, 26 anos

Saber que determinado cuidado precisa ser tomado nem sempre é suficiente

para que ele se efetive, é preciso mais que saber para agir, é preciso vivenciar. Tereza

posterga a realização de seu preventivo por inúmeras razões, como trabalho, prioridade

em cuidar da saúde do marido e outras, mesmo reconhecendo que as mulheres que tem

marido devem se cuidar, entretanto esta atitude mudaria por completo se tivesse algum

sintoma que a incomodasse.

Eu nunca fiz. Não fiz porque... Eu não sinto nada. (...) Mas eu não sinto nada não, nem uma dor. Porque quando a gente sente dor é inflamação, né? Por enquanto não sinto não. (E se você sentisse alguma coisa você acha que você viria mais rápido para fazer esse exame?) Correndo. (risos) É minha filha... Quem que não quer a vida? Eu sim. Tereza, 26 anos

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Algumas mulheres entendem que viver algumas doenças foram para elas

aprendizado, já que antes não pensavam sobre o assunto, como foi o caso de Magali que

transformou sua prática e seu agir em seu meio de convivência quanto ao uso do

preservativo desde que descobrira ser portadora do HIV e de Cleonice que decidiu

cuidar de si após um derrame.

Eu pego camisinha para eles e falo: “Olha o que aconteceu com a mamãe!” “Olha o que aconteceu comigo. Então vocês se cuidem”. Vocês cuidem...” Essas expressões mesmo. Mesmo sem falar pra ninguém que eu sou... eu falo: “Olha aí, olha a doença...” Eu falo isso... Magali, 41 anos Eu... com a saúde agora depois que eu tive derrame... Que agora que eu comecei a me cuidar, sempre ia, mas sempre pra levar os meus filhos, pra mim mesmo... Porque quase não tinha tempo. Tinha que trabalhar essas coisas. Mas agora depois que eu tive... Depois de 3 anos que eu tive um AVC... aí que eu comecei a procurar médico para mim mesma. Sou muito relaxada com negócio de ir em médico. Pros.. tomar... pros meus filhos eu vou, para mim eu não procuro mesmo. Cleonice, 48 anos

Decidir cuidar de sua própria saúde é o primeiro passo para que ele se

efetive, entretanto revela que são necessárias outras superações e o acesso aos serviços é

um deles.

Então o que acontece, eu vou no Heitor Beltrão, eles dizem que aqui tem um programa de saúde da família, aí venho aqui... Já é a terceira vez em dois anos que eu tento marcar um preventivo, e aproveitar pra tirar o DIU, acontece que não tem enfermeira, aí quando tem, a enfermeira está de licença... (...) Aí sem o programa saúde da família como é que eu vou ter saúde com hemorragia? Eu posso ter um câncer de colo de útero, que minha mãe morreu há um ano de câncer. Se é um programa de prevenção está prevenindo a minha saúde aonde? E o pior, quando você vai falar, ignora. Vanessa, 38 anos

Outra questão que obstaculiza a busca por cuidados é a exposição de seus

corpos, principalmente para a realização do exame ginecológico. Uma rotina para as

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mulheres que compõem o padrão de normalidade que mesmo estando associado a

vergonha e incômodo elas não podem deixar de cumprir a norma da limpeza sexual,

mesmo que isso lhe cause desconfortos. Se ser examinada corresponde a um cuidado

com ela, mas que reflete também em seu parceiro, não quer dizer que sua presença seja

permitida e chega a ser vista como constrangedora pela mulher.

Ah, foi bom! Eu fiquei meio assim incomodada, mas foi bom. (...) Ah, porque eu me senti envergonhada. Assim eu tenho vergonha. (risos) Eu sou muito envergonhada. Marli, 32 anos (sobre o exame preventivo) Eu faço preventivo desde 20 anos. (...) Pra mim é normal. (...) Aí teve uma mulher que falou assim: “Você não fica com vergonha de mostrar a tua perereca?” Eu falei: “Não, pra mim já é normal”. “Tanto pra homem e pra mulher?” eu falei assim: “Olha, ele é capacitado pra aquela função, então por que eu teria vergonha? (rindo) Eu teria vergonha se meu marido estivesse junto comigo”. (...) Como ele ficaria me olhando? Me olhando naquela... Com aquela cara: “Ah, que coisa horrorosa, mostrando a perereca pra...” (...) Entendeu? (rindo) Então eu prefiro sempre estar sozinha. Emília, 27 anos

Se por um lado as consultas de rotina causam vergonha, por outro elas

podem ser vistas como oportunidades para esclarecerem dúvidas. Nesse sentido, o

tempo dispendido para o atendimento é colocado em questão e o atendimento particular

é relatado como uma preferência quando tem condições de arcar com tal custo.

Eu sempre estou indo na ginecologista, eu sou muito enxerida, eu pergunto tudo. (rindo) (...)eu vou na 13 de Maio. (...) Ou particular, quando eu posso eu vou em Copacabana. Às vezes eu gosto de ir... Eu gosto mais de ir no particular porque o atendimento é melhor entendeu? Sei lá, eu acho que ela tem mais tempo pra explicar as coisas pra você, e aí o que eu aprendo eu passo pra ele. Clara, 34 anos

Somado às superações anteriores, de acesso, vergonha e estabelecimento de

periodicidade, estão os trâmites necessários para se concluir todo o ciclo dessa

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assistência, como marcar o exame, comparecer, buscar resultado e agendar nova

consulta. Essas idas e vindas deve estar conciliada com os outros compromissos e ser

confrontada com outras necessidades, mas esse cansaço vale a pena, pois mantém a

saúde a salvo e oferece segurança de que estes problemas não a separarão de seus entes.

Outro dia eu marquei um preventivo e vim fazer. Aí outra vez eu vim fazer assim também que eles pediram, aí graças a Deus que estou bem. Exame de rotina mesmo. (...) Aí volta, aí depois venho no dia da consulta, aí depois venho de volta para pegar o resultado do exame, tem que marcar para pegar o exame. Aí vou indo e vindo. (...) É cansativo, né? Porque cuida da casa, trabalha fora e tem que cuidar da saúde também, não pode descuidar, mas tem que vir... (...) Se não meus filhos vão precisar de mim eu vou faltar, né? (...) Tem que cuidar da saúde. Natália, 32 anos

Um outro desafio é lançado, porém agora aos serviços. A diversidade que

existe entre as mulheres não permite que os serviços e profissionais homogeneízem os

atendimentos, estabelecendo perguntas e regras que devem ser seguidas por todas elas.

Para a mulher, ela cumpriu sua parte, decidiu se cuidar e procurou o serviço, mas foi

enquadrada em uma mesma categoria que ocultou a heterogeneidade e deixou o vazio

para suas dúvidas como pode ser visto no relato de Alícia.

Eu falo porque principalmente faz a pergunta: “Ah, você está usando camisinha? Não sei o que...” (rindo) Eu falo: “Minha filha eu não uso camisinha, como eu vou usar?” (...) Oh, esse tipo de relação agora principalmente que a mulher tem relação de outra pessoa fica difícil falar sobre isso, né? (...) Nunca chegou a falar assim: “Oh...” Como é que faz... Isso nunca chegou a falar isso não. Porque sempre eles falam quando tem marido né? Fala: “Oh, tu sabe muito bem, quando tiver relação usa camisinha. Usa o anticoncepcional, o remédio, o comprimido, né? Pra você não ter essas doenças e pra não engravidar”. Isso aí eles falam... Mas quando eu falo pra eles: “E como que eu vou fazer? (rindo) (...) Não dá resposta, não tem como responder. Então minha filha... Você sabe porque, né? (risos) (...) Eu fico na dúvida. Alícia, 28 anos

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As necessidades das mulheres são muito heterogêneas e os serviços podem

não estar prontos para atender às necessidades de algumas delas. Entre as mulheres que

optaram por casar virgem os relatos sobre a primeira relação sexual foram tímidos

quanto à sensações que tiveram, mas foram prolixas no que se refere às rotinas que elas

e seus parceiros se submeteram antes de terem o envolvimento sexual. Luana ao falar

dos exames pré-nupciais, assim como Cecília, deixam transparecer o quanto a presença

do homem determina que cuidados sejam estabelecidos e encontram satisfação para

suas necessidades nos serviços de saúde, que parecem estar mais preparados para

atenderem mulheres com este perfil de planejar sua vida sexual e reprodutiva.

Então, minha primeira relação sexual foi com o meu esposo mesmo. Depois que eu casei. E, (rindo) não sei! Foi engraçado porque a gente imagina um monte de coisa... e quando a gente... E é outra coisa. Eu não sei. Não sei te dizer muito. (...) Assim... eu fiz... nós fizemos os exames pré-nupcial... eu fiz... ele fez... pra ver se estava tudo bem com a gente. Sabe? Antes de casar... de ter a primeira relação. Tudo direitinho. Passamos pelo médico, ele foi no médico, eu fui no médico, fizemos alguns exames, comecei a tomar o anticoncepcional... e tudo para não engravidar logo assim, né? Luana, 27 anos Que pra casar a gente faz, tem que fazer o pré-nupcial, né? Alguma coisa assim, aí ele me indicou esse pra eu tomar, não lembro se foi um mês antes, não me lembro direito, aí comecei tomar. Cecília, 32 anos

Essas mulheres acima, ao que parece, são as que melhor se encaixaram nas

propostas do serviço de auxiliar no planejamento de sua vida reprodutiva e nas rotinas

médicas estabelecidas que visam assegurar uma vida sexual e reprodutiva saudável.

Entretanto, para grande parte das mulheres não houve tal planejamento de suas relações,

e o plano de filhos e cuidados com a saúde se deixa permear por um conjunto maior de

mediações que não aquelas da norma médica e higiênica.

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Os cuidados referidos pelas mulheres revelam múltiplas nuances que

transcendem a existência do parceiro, a vida reprodutiva e estabelece uma relação

íntima com o próprio corpo e seu auto-cuidado.

Cuidar de mim... cuidar do meu corpo... da mente também... tudo. Ah... pô... para mim é tudo... É uma coisa assim... Sei lá! É como se eu estivesse me amando. (...) É como se eu estivesse amando... amando o meu corpo, me amando, me cuidando, amando meu útero, o meu corpo, o meu peito, a minha mente... tudo. Tô me amando... tô me cuidando...Marina, 25 anos

O parceiro, que até aqui estava no fundo da geração das necessidades e

pouco na satisfação, assume no plano afetivo um lugar de destaque na satisfação das

necessidades, como aquelas relacionadas a ter uma família e um lar. O avanço na

seqüência natural de eventos na trajetória reprodutiva das mulheres inseriu o parceiro

no ciclo das necessidades. As expectativas em relação à primeira relação sexual e a

vivência dela nem sempre está atrelada a uma união estável e menos ainda que ocorra

por ocasião do casamento. Entretanto, elas esboçam em seus discursos que tem projetos

para que seus relacionamentos sejam únicos e duradouros.

Eu esperava que aquilo fosse pra vida toda. Eu estruturei, planejei (...) que nem aquela coisa dos sonhos, né? Olhe, eu tinha muito medo, medo de me envolver. Então eu me guardei por dois motivos: porque eu queria uma pessoa que fosse única, que fosse uma pessoa só, ao mesmo tempo que eu tinha muito medo. Pela criação que eu tive, meu irmão mais velho que é militar. Então eu fui criada com muita rigidez. Cássia, 36 anos Não sei. Assim... Porque a gente fica com esses meninos que... Assim... Eu fico por ficar... Eu me apaixonar é muito raro. Então eu tenho que encontrar aquela pessoa que goste de mim, eu goste daquela pessoa, entendeu? Que seja sincera, verdadeira... E o resto a gente corre atrás... (risos) Gabriela, 19 anos Até que eu quis morar (com o pai do filho) porque eu sempre valorizei esse negócio de família. (...) Até porque eu sempre tive princípios, eu nunca quis passar na mão de muito homem não. Aí

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eu... Também não aceitei isso pra mim, ficar pra lá, ficar pra cá, ou me queria ou não me queria, né? Vanessa, 38 anos Bem, ela pensa assim... em ficar velhinhas juntas. Eu ainda não pensei nesse lance assim... (...) Vitória, 41 anos

Se a expectativa de permanecer em um único relacionamento não pôde ser

alcançada, as mulheres apresentam a possibilidade de mobilidade nas relações para

alcançar êxito em sua busca de encontrar um parceiro, entretanto elas estabelecem

algumas regras para que não se torne alvo de críticas.

Eu nunca gostei de homem dos outros. (...) eu nunca fui de andar com marido de ninguém... (...) Eu sempre respeitei isso. Eu procuro... Às vezes até o marido delas diz coisas assim que eu vejo que estava... Que mexeu comigo assim, eu nunca dei confiança. E nessa minha trajetória, embora eu tenha essa penca de filho. Eu tive esses 4 homens que eu fui pra cama. E assim, namorado foi pouco, porque eu não gosto. Não gostava porque eu ficava com medo dos outros falar que eu estava saindo com um e com outro. Camila, 35 anos

Esses relacionamentos se estabelecem casualmente e por vezes contam com

a participação de familiares, e a necessidade de morar junto é ainda mais reforçada se

ocorre uma gravidez.

Aí eu conheci ele, que eu conheci ele num baile. (...) Aí a gente foi dormir no hotel e está até hoje. (rindo) Conceição, 32 anos Aí logo depois terminei o namoro, aí fiquei um tempo sozinha. Depois conheci meu atual marido. E foi a época que a minha mãe descobriu que eu já não era mais moça e queria porque queria que eu casasse com o meu marido achando que tinha sido ele. (rindo) por obrigação, e não por merecer, sei lá! Aí eu falei pra ela que não, que realmente não tinha sido ele, mas que eu não queria casar naquele momento. Que achava que casamento era quando me desse na vontade e não por obrigação. E aí foi quando a gente... Foi passando um tempo ela meio que querendo que a gente se separasse me mandou embora pra Brasília. Me mandou não, me levou embora pra Brasília, pra separar nós dois. E eu fiquei lá seis meses e voltei pra São Luiz. E a gente se comunicava todo dia. E ele foi e falou: “O dia que você

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voltar a gente vai casar.” Eu falei: “Então vai preparando que a gente vai casar”. Aí sim, deu a vontade de casar, nós casamos, e logo imediato veio a nossa primeira filha. Entendeu? Joana, 27 anos A gente se conheceu, se gostou. Meu pai é do norte, tinha que pedir. Aí a gente ficou namorando em casa, aí depois de 5 meses a gente resolveu morar junto. Marli, 32 anos Aí minha mãe arranjou outro namorado para mim. Que eu entrei em depressão, fiquei muito presa dentro de casa, que na época eu não trabalhava, trabalho agora. Só vivia presa dentro de casa. Minha mãe foi e chamou meu namorado que eu namorei com meus 15 anos de idade para cá, vir almoçar, vir jantar, e ficava aí direto, aí a gente acabou namorando de novo. Aí agora estou com ele. Cassiana, 21 anos Ele tinha 20 anos. (...) Aí eu falei para ele. Aí ele foi e falou: “Então vamos alugar um quarto, vamos morar junto, vamos tentar”. Né? Eu falei: “É.” Aí eu fiquei morando com ele. Natália, 32 anos

A relação com parceiro não se resume a compartilhar a vida reprodutiva o

que é percebido pelo afeto e cuidado relatados pelas mulheres. As experiências afetivas

são reveladas como transformadoras para as vivências da mulher e mesmo aquelas que

causaram sofrimento são vistas como chance de aprendizado.

A gente se... Uma entende a outra, tem o carinho, companheirismo, entendeu? Combina em tudo. Somos amigas, independente de ter o nosso relacionamento somos amigas. Vitória, 41 anos Estou com ele... E ele não é portador. Porque... depois que eu sai daqui... eu sentei com ele, e falei... expliquei a minha realidade... eu abri o jogo para ele e falei: “Eu sou soro positivo... Se você não sabe eu vou te explicar o que é. Você tem toda liberdade de ir embora”. Ele falou: “Já estou no barco. Como é que eu vou saber que eu não estou também? Então como é que eu vou te abandonar com o meu filho na barriga?” “Eu não quero que você saía da minha vida”... que tava com um filho dele. Não me deixou... super companheiro... E os testes que ele fez os dois deu não reagente. Então a gente se previne... se cuida. Depois... a partir desse momento. Magali, 41 anos Ele queria até ficar comigo, eu não queria ficar com ele... Eu não queria ficar com ele... porque eu era do mundo, eu gostava de farra... então eu não queria ficar com ele. Mas aí depois ele falou comigo.

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Que se eu não ficasse com ele assim firme ele ia terminar comigo, aí eu... fiquei com ele. Beth, 25 anos Eu conheci uma pessoa na minha vida que é o pai do meu filho hoje. Entendeu? Eu fui me envolvendo com ele. Ele foi... Praticamente ele foi uma faculdade para mim, ele foi uma faculdade, ele me ensinou muita coisa. Pra mim serviu de experiência. Foi muito ruim o que eu passei (foi morar na rua com ele), mas serviu de experiência... Fernanda, 26 anos

As vivências com o corpo, a sexualidade e os afetos demonstram ser

influenciadas por distintos fatores e atores. A socialização de experiências, assim como

a participação de homens e mulheres são fundamentais para que as escolhas possam ser

tomadas pelas mulheres em sua vida reprodutiva.

E por falar em cuidados...

O aprender a cuidar foi iniciado com os cuidados com o próprio corpo a

partir da menarca e reforçado com a primeira relação sexual e com a perspectiva de ser

cuidadora de outros. Ao experimentar o mundo a mulher está diante de inúmeras

possibilidades de vivências e a trajetória de cuidados é colocada como um limitante às

oportunidades de exercê-las. Os cuidados com as atividades domésticas, com o controle

da fecundidade, com a preservação da saúde, lembram a todo momento que as vivências

do corpo, da sexualidade e dos afetos devem ser domesticadas para que no universo das

possibilidades as mulheres se mantenham dentro da norma de gênero. Um caso

exemplar está no relato de Edna que preservava a pureza da filha virgem poupando-a

das atividades de limpeza doméstica, mas ao saber que a jovem tinha se tornado mulher

impôs a ela essas tarefas como se fosse uma forma de reencontrar a purificação.

Aí ela foi me chamou. Eu fui lá falei com ela: “O que foi filha?” Aí ela começou a chorar. Eu falei: “Ih, já sei. Já sei. Tu não é mais moça, né

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Alessandra?” Ela: “Ah, mãe!” Eu falei: “Ah, meu Deus do céu!” Falei: “Ai, Jesus! O que eu vou fazer agora meu Deus?!” (rindo) (...) “Agora eu vou... Muito o contrário, agora eu vou tratar você como mulher, como mulher pra mulher. Você é mulher, eu sou mulher, então vou tratar você como mulher pra mulher. Porque agora a responsabilidade que eu tinha eu não vou poder, eu não vou poder ter mais. Por exemplo, aquilo assim, você vai lavar uma louça... Ela odeia lavar louça, ela não gosta de lavar louça nem limpar banheiro. “Você vai lavar a louça...” Aí eu pegava, ficava aquela calcinha lá, deixava pra lá, ia lá e lavava. O banheiro eu ia lá e limpava pra você. Agora não vou mais poder fazer isso, porque agora você é uma mulher. Desde o momento que conheceu aquilo, então já é uma mulher. Então... E eu vou suspender tudo. Sinto muito minha filha...” Comecei a chorar junto com ela... “Mas eu não posso fazer mais nada, porque você já é. Não vou botar você pra fora, você vai ser tratada do mesmo jeito que você é tratada, não vou te negar nada. Não vou fazer nada disso com você, mas simplesmente eu só vou passar a tratar você como mulher. Edna, 39 anos

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II. Plano de filhos e mediações da vida reprodutiva

Eu sempre... Assim, eu sempre pensei assim ter um casal. (...) Eu pensava em ter filhos, me casar. Mas, tipo assim, não casar de novo, ter assim uma família, mas só com um marido. (...) Não deu certo. Eu, o meu... Assim, o primeiro namorado que eu falei, pra mim a minha família ia ser com ele, assim só com ele. (...) Tudo certinho. Mas sendo que ele usava droga, aí eu ficava com medo de engravidar dele. Entendeu? (...) Mas eu gostava dele muito. (...) Aí eu ficava com medo que ele usava droga. Eu conversava com ele, falava: “Eu vou te deixar, porque assim não dá. Imagina eu pegar um filho seu!” Entendeu? Aquele negócio, eu tenho muito medo assim. Que o pai faz o filho também vai querer... vai querer fazer. Sei lá! Essas coisas. (...) Aí eu conheci um cara... (...) Aí eu peguei e larguei por causa disso, porque ele não largava as drogas, então saí fora. Mas gostando dele. Aí eu conheci o pai do meu filho. Mas aí não deu certo, a história que eu contei, e conheci o pai dela. Aí o pai dela... tava indo tudo bem que ele... Ele pegou... Ele sabia que eu tinha um filho, meu filho estava com uns três anos de idade, aí conversamos, conversamos. Aí sentava... A gente se dava muito bem saindo... Saía eu, ele, meu filho. Isso até que um certo dia a gente conversando, já estava com dois anos de namoro, conversamos. Aí ele que me... Entendeu? Chegou e falou: “Vamos ter um filho?” Nisso eu já estava usando minha injeção de novo, meu remédio, voltei a usar quando estava com ele. Aí: “Vamos ter um filho?” Eu disse assim... Aí eu disse: “Não, agora não. Eu quero... Eu queria ter minha casa. Eu já estou com esse aqui, eu estou morando no teto da minha mãe, ela fica falando...” Aí ele: “Não, mas assim, eu vou dar jeito, a gente compra uma... Vou comprar uma casa e a gente vai morar junto”. Aí, entendeu? Aí ta. Eu também disse: “Por que não?” Que o Arthur também já estava se sentindo sozinho. Disse: “Não, por que não?” Eu doida pra ter uma menina. Aí peguei. E está aqui. Aí veio a menina, do jeito que eu queria, achei super legal, gostei pra caramba! Letícia, 36 anos

As representações que as mulheres têm sobre seus corpos e sua capacidade

de pegar filho revela algumas das nuances que conduzem suas projeções reprodutivas e

práticas contraceptivas. Os discursos deixam transparecer que percebem a reprodução

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em suas trajetórias de vida como parte de um caminho natural traçado para seus corpos

e esse imperativo da natureza começou a se manifestar desde a menarca. As mulheres

falam da função reprodutora com gradientes que as fazem se reconhecer como fácil ou

difícil de pegar filho. Na sua visão, isso está escrito em seus corpos pela natureza, mas

não significa que o plano de filhos não possa ser racionalizado e construído com a

agência delas.

A maternidade como parte da norma reprodutiva nem sempre é desejada

por todas as mulheres e não faz parte das vivências de algumas delas. O fato de não ter

filhos diferencia essas mulheres entre os pares femininos e evidencia sua escolha como

diferente do esperado. A escolha de não-reprodução é experimentada com conflitos,

críticas e questionamentos entre seus conviventes, mais do que com elas mesmas. Entre

as mulheres entrevistadas este é um grupo minoritário. Elas são homossexuais e em suas

falas podemos perceber que sua escolha não está vinculada à sua opção sexual e sim a

questões que envolvem a maternidade e maternagem. Vitória vive com sua parceira há

oito anos, teve relacionamentos hetero e homossexuais anteriores e se sente

compreendida pela família no que se refere às suas eleições sexuais. Entretanto com o

fato de não ter filhos percebe uma cobrança para que não fique na solidão. Situação

semelhante é relatada por Alícia.

“Pô, você não tem filho... Vai ficar velha”. (rindo) Eles falam assim mesmo: “Vai ficar velha”. Porque eu tenho 45 anos. “Você vai ficar velha, daqui a pouco vai ficar sozinha. Tuas irmãs tudo casadas, tudo com filhos, você vai ficar sozinha, vai ficar na solidão”. Eu não me abalo com isso. Vitória, 41 anos As minhas tias sabem que eu moro com a sua menina: “E aí como que você está com sua menina?” (...) E eu sempre conto minha vida pra minha família, minha família me apóia às vezes. (...)Minha família está doida pra eu engravidar: “Quero ter sobrinha”, “eu quero sobrinho”. (...) “Ah, não, não, não”. “Quando vai me dar um

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sobrinho?” (...) A minha família quer que eu engravido, mas eu nem morta. Alícia, 28 anos

A concepção como parte do fluxo natural das coisas pode ser, entretanto,

um desejo nem sempre fácil de ser realizado. Entre as entrevistadas, nenhuma delas se

definiu como infértil, mas algumas desejavam ter mais um filho após terem agido contra

a natureza cortando as trompas e outras referiram dificuldade de engravidar em algum

momento da vida.

Conversei informalmente com uma mulher que aguardava atendimento em

uma das unidades que me contou o desejo de engravidar de seu atual companheiro, mas

fizera contracepção cirúrgica ainda muito jovem. Ela sugere que o Sistema Único de

Saúde deveria fazer a reversão dessa cirurgia para as mulheres que ligaram ainda muito

cedo. Sandra vive situação parecida e, assim como a outra mulher, destaca as

tecnologias reprodutivas como condição para atenderem aos seus desejos e que as

possibilidades de acesso a elas estão limitadas pelos recursos que dispõem.

Hoje eu vivo com uma pessoa que não tem filhos, eu já estou com ele há 4 anos, e não tem filho nenhum, nem eu posso fazer isso mais. Então é muito complicado. (...) (A laqueadura) Ah! Mudou muito. (...) Assim, em relação a outros relacionamentos como está acontecendo comigo hoje, que eu estou com outra pessoa há 4 anos... Entendeu?... Que não tem filho. E assim, até se sente diminuído por eu já ter uma história com outra pessoa... Entendeu? E é um ciclo que nunca vai se completar. Ele é filho único, único filho, único neto, foi a última criança dessa família e não tem... Se continuar comigo não vai vir mais, Entendeu? (...) É a última... É o fim mesmo... Entendeu? Não tem, não tem como. E hoje você tem métodos, você tem como evitar, não precisa ir tão a risca assim. Porque é uma coisa que não tem como você voltar atrás. Entendeu? Até pra quem tem um poder aquisitivo bom pode fazer uma inseminação, essas coisas, ainda vai. E quem não pode? (rindo) Sandra, 28 anos

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Ser difícil de pegar filho evidencia os corpos em sua função reprodutora e os

coloca sob suspeita quando limitam a possibilidade de gravidez ou até mesmo quando

não a sustentam.

Porque quando a gente tentava e eu não pegava. (...) Aí quando eu parei de tentar... aí que eu fui... e peguei. (...) é que uma vez foi e... aconteceu, mas eu pensei que ia ficar grávida... mas não fiquei não. (...) Foi no susto... Aconteceu... Eu não peguei não... pensei que ia ficar... não fiquei não. Pra mim pegar ela... eu fiquei 3 anos... depois de três anos que eu peguei ela. Manuela, 23 anos

Nesses casos, era comum as mulheres acrescentarem aos relatos

justificativas para a falha de seus corpos em se reproduzir, o que mais parecia uma

tentativa de silenciar possíveis questionamentos acerca do problema.

Eu achava que eu nunca ia engravidar porque quando eu era pequena eu queimei a barriga, todo mundo falava que eu não podia engravidar. Margarida, 25 anos Não sei se porque eu era muito magrinha. (...) Eu e ele também pensava... Ele nesse tempo era do quartel... até os homens lá... falou que não era ele não... achava que era eu. Manuela, 23 anos

A reprodução, em suas representações, revelaria potencialidades e

dificuldades do corpo das mulheres na função de conceber, gestar e parir. A força da

norma de gênero é apreendida por elas ao falarem dos parceiros como um participante

secundário, mas não responsável por esta capacidade, como encontrado nos relatos de

Manuela e Ione.

Ele nesse tempo era do quartel... até os homens lá... falou que não era ele não... [ a responsabilidade pela dificuldade do casal ter filhos] achava que era eu. Manuela, 23 anos Porque nesse meu antigo casamento, né? A gente ficou casado dois anos, durante dois anos e durante esse tempo nunca usei remédio, nunca usei nenhum contraceptivo, né? Então não engravidava de

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jeito nenhum. Eu achei até que fosse problema meu. Mas conforme a gente separou... Conforme a gente se separou ele já se tornou pai primeiro do que eu, com a outra que ele se juntou. Aí que eu tive mais certeza que era problema meu. Aí a enfermeira aqui, a Elisângela, ela conseguiu encaminhamento pra poder fazer tratamento, mas assim que... Nem peguei os papeis em mãos, antes d’eu pegar esse papel eu já tinha descoberto que eu estava grávida, entendeu? Aí não precisei fazer tratamento mais... Ione, 28 anos

Quando a maternidade não acontece de maneira tão natural quanto deveria

as mulheres buscam caminhos que as conduzam de volta à normalidade. Emília

procurou auxílio para ajudar a natureza e realizar o desejo de ter um filho, após ter

vivido uma seqüência de abortos espontâneos. Ela, como as outras que tiveram

dificuldade de engravidar, assumia para si a falha em manter as gravidezes, e é no

discurso médico que encontra justificativa para seu problema.

Aí o médico, falou pra mim: “Ah, você tem... O seu cólo do útero é muito baixo, aí a placenta...” Eu tenho muito sangramento. Então eu não menstruo, é sangramento. Ele falou: “Sua placenta descola antes de completar um mês”. Então, não sei. (...) Porque meu sangue é negativo. (...) Então aí eu não entendo. Emília, 27 anos

Emília havia participado do grupo de planejamento familiar na unidade no

dia da entrevista e foi encaminhada para atendimento especializado, tinha grande

expectativa quanto ao parecer do profissional para sua (não) capacidade reprodutiva.

Porque eu quero saber, porque eu já tenho problema de não engravidar. (...) Eu quero saber. Por isso que eu comecei fazer o planejamento pra saber o que eu tenho. Se pode realmente engravidar ou se não pode engravidar. Emília, 27 anos

Perceber-se difícil de pegar filho faz com que as práticas contraceptivas

dessas mulheres sejam muitas vezes inconsistentes já que naturalmente elas teriam

dificuldade de engravidar, como apresenta Marli em sua fala.

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Porque diz que o meu útero é meio infantil, entendeu? Por isso que eu não sou fácil de engravidar. (...) Não tomei mais, estou até hoje sem tomar remédio nenhum. (...) E a minha dificuldade de engravidar também eu não... (...) (prefere) Nem tomar. Eu passo mal também quando eu tomo remédio. (...) Não engravido de jeito nenhum. Marli, 32 anos

O grupo de mulheres que se apresentam como fáceis de pegar filho ou muito

férteis indicam o quanto consideram seus corpos bons para reproduzir, gestar e parir.

Meu Deus! 7 gravidez. Porque eu sou fértil... você viu aí né, sou fértil demais. Tive um filho com 20, com 30 e com 40. Senão com 50 vou engravidar (risos) de novo. Só dou um tempo. Rosa, 42 anos O meu útero ele é... Eu não sei, dizem que é muito forte, que é bom. Cleonice, 48 anos

O imperativo de forças imponderáveis, naturais ou divinas, sobre os corpos

é percebido pelas mulheres como limitantes do controle sobre a sua fecundidade,

deixando sua trajetória reprodutiva sujeita a determinações que ultrapassam suas

vontades e decisões.

Aí eu achava que eu não engravidava. Aí eu cheguei com ele aqui também, aí eu falei: “Eu acho que eu não vou engravidar não. Eu acho que eu não vou ser mãe. Eu acho que Deus não é bom comigo”. Até isso eu falava. Aí, depois de um ano eu falei: “Eu falei tanto de Deus que ele me deu um atrás do outro.” (rindo) Aí eu fiquei: “Vou criar”. E assim foi. E não me arrependo não. Deus quando quer Deus dá, quando Deus não quer Deus não dá. Aline, 27 anos Eu acho assim, se veio... Tem duas hipóteses para vir - Uma: Falha minha. Tudo bem! Então eu tenho que arcar com as conseqüências dos meus atos; e a outra porque Deus permitiu. (...)Eu acredito muito nisso (em Deus). Então eu peguei e tive ela. Não era bem o que a gente planejava, nem o que a gente queria, mas tivemos. Nice, 38 anos Eu pensava que sabia, mas não sabia nada. Eu era tão idiota que me falavam que... Olha como eu era burra, eu achava que se fizesse xixi

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depois de ter relação sexual a gente não engravidava. (...) Na verdade eu nem sei com quem aprendi, mas eu acho que deve ser com alguma colega, né? (...) Que a gente: “Ah, toma chá disso, chá daquilo que desce” E a gente ia contando com a sorte. Né? Vanessa, 38 anos

As mulheres fáceis de pegar filho demonstram que a escolha e utilização de

um método contraceptivo não as impediria de engravidar novamente, já que seus corpos

são bons para isso. Nesses casos quase sempre elegem a laqueadura tubária como única

alternativa para por fim à sua condição reprodutora, desacreditando que quaisquer um

dos demais métodos possam ter efeitos sobre ela. Elas delegam ao próprio corpo a

responsabilidade de definir quando seria o momento certo de engravidar e muitas vezes

negam que os métodos anticonceptivos possam ser eficazes em regular sua fecundidade.

(vai fazer a laqueadura) Porque eu sou muito fácil de pegar gravidez. Beatriz, 31 anos É a ligadura... Porque eu sou muito assim... fácil de pegar filho, entendeu? Beth, 25 anos

Independente da representação que as mulheres têm sobre seus corpos, se

fáceis ou difíceis de engravidar, ser mãe faz parte da norma geral na trajetória de vida

de grande parte das mulheres entrevistadas. Entretanto, se as forças da natureza e supra-

humanas agem sobre as suas facilidades reprodutivas, isso não exclui a capacidade das

mulheres de agir nessa esfera. Conciliando aquelas forças com sua agência, as mulheres

vão construindo seu plano de filhos. Ele tem uma lógica em grande parte diversa da

racionalidade normativo-institucional embutida no discurso do “planejamento familiar”,

e é vivenciado conciliando um conjunto de idéias, de informações, acesso a serviços e

recursos, além de condições de vida e expectativas pessoais.

Fiquei pensando: “Poxa, já tenho já esses filhos, né? Sei lá o que pode acontecer depois, ou amanhã... (...) Aí eu falei assim... Eu falei: “Não,

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a gente nunca sabe o amanhã”. Então esses filhos que eu já tenho já está bom, está ótimo! Que também era o meu sonho ter esses filhos. Pra que eu ia querer mais filho, né? (...) E a coisa do jeito que está, tão difícil! A vida do jeito que está tão difícil. Não. Aí fui e me operei. Edna, 39 anos

Deixar que o plano de filhos se crie sozinho é também uma forma de lidar

com as possibilidades de ter controle sobre ele como contou Nice.

Você cria essa expectativa de quantos filhos eu vou ter, no tempo que eu quero ter e tudo o que eu quero fazer por eles. Então no meu caso eu não tive isso, eu não tive essa opção da minha forma que eu queria. (...) Não estava planejado nem nada e quando eu me dei conta já tinha pego... Nice, 38 anos

Ingrid não planejou nenhuma de suas gravidezes, e até chegou pensar em

abortar na segunda gravidez por rejeitar a idéia de viver a maternidade pela segunda

vez. Foi somente após o nascimento do filho que decidiu agir para o controle de sua

fecundidade. Ela fala do plano de filhos como coisas que acontecem a partir das

experiências que as pessoas compartilham nos meios onde vivem.

As coisas acontecem. O que eu tenho visto é que as coisas acontecem. São raríssimas as pessoas que assim eu já ouvi falando assim: “Ah, eu não quero ter filho.” (...)Eu não vejo as pessoas com critérios pra assim: “Ah, eu vou ter filho que tal idade, porque eu vou estar mais bem estruturada, porque eu quero dar uma boa escola, porque hoje em dia eu tenho um plano de saúde pra que meu filho possa numa coisa ter um hospital legal, vou poder pelo menos vou poder pagar um plano de saúde pra meu filho.” Eu não vejo as pessoas se planejarem nesse meio que eu convivo. Entendeu? Eu sei que isso acontece em outras classes sociais, mais freqüentemente, mas assim infelizmente na favela as pessoas não têm essa... são raríssimas as pessoas que se planejam criteriosamente. Ingrid, 40 anos

O dinamismo de suas vidas parece não permitir que elas sempre e de forma

alguma se encaixem no roteiro do planejamento familiar com todos os pressupostos

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implicados e expectativa de cumprir normas médicas e institucionais. O plano de filhos

está num acontecer de eventos que são transformados dinamicamente pelas vivências

diárias das mulheres na relação com familiares, amigos, seus pares, trabalho, serviços de

saúde e muitos outros. Enquanto o planejamento familiar institucional absolutiza a

necessidae de controle da fecundidade e subordina a ele todas as outras facetas da vida

da mulher, elas demonstram que o seu plano de filhos deve ser equacionado à luz de

outras necessidades, prioridades, escolhas e estratégias.

Primeiro eu quero terminar os estudos... quando terminar tudo... aí eu vejo... Mas também não é agora... assim... (...)Ele? (rindo) Ele...(rindo) Ele concorda, mas por ele fazia outro já. Ele já fica falando que queria mais um. Só mais um. Aí eu não quero agora não. (...)ele entende. (...)Ele falou: “É melhor terminar mesmo os estudo”. Manuela, 23 anos Arrumar um serviço, estabelecer minha vida, e quem sabe eu tenho um filho, mas ainda não está nos meus planos, agora não. (...) Minha casa, eu tenho que mobiliar minha casa, eu e meu marido terminamos de fazer agora. Tem algumas obras pra fazer. Então tem outras prioridades, além do filho agora, que não está nem nos meus planos ainda. Nadir, 31 anos Estou planejando ainda. Porque eu pago aluguel. Aluguel para ter filho... O dinheiro do aluguel já é uma fralda, um remédio. A coisa está preta, minha filha! (...) Depois que sair do aluguel. Se Deus quiser. (...)Porque eu não quero pegar agora. Eu quero ter logo a minha casinha. A gente está juntando no banco pra comprar o nosso barraco. (...) Eu estou doida para ser mãe, mas fazer o que? (...) Primeiro tem que vir outras coisas. Primeiro tem que vir logo o meu barraco. Tereza, 26 anos

O mundo moderno traz questões que as mulheres consideram relevantes

para traçar seu plano de filhos e conseqüentemente a vivência da maternidade e

maternagem, como a violência, a segurança pública, a educação, e a inserção da mulher

no mundo do trabalho.

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Não está dando para ter muito filho não. (...) Dá pra ter um filho só. (...) Ah! Onde eu moro não tem condições nem de criar um, se tem muito filho é sem condições. (...) Porque é muito perigosa (a comunidade). Ontem mesmo, pra ir pra escola. (...) Tive que ir a pé porque o ônibus não estava passando porque havia um tiroteio. (...) Então pra ficar assim, está bom um só. Amanda, 22 anos Eu quero ter um filho quando eu estiver com a minha vida estabilizada, que eu possa dar atenção. Porque o meu filho eu não tenho, não posso dar a atenção que uma mãe dá pra um filho, porque eu trabalho o dia todo. Então por isso que eu não quero ter agora. Só quero ter lá pros 28, 29. Porque até então eu estou morando na minha casa lá, mas eu estou comprando minhas coisas. (...) Eu não tenho, entendeu? ... Tempo de ter filho agora, nem posso. Juliana, 19 anos

O plano de filhos como surge nos discursos está mais aberto às mudanças da

vida e da contingência e por definição é flexível e relacional e não individualizado. Elas

apresentam uma negociação com seus parceiros no refazer de seus planos quando são

cobradas a engravidar ou assumem um novo relacionamento sem que essas

modificações sejam uma obrigação.

Porque ele falava... Eu ia começar, ele: “Não, eu não quero. Eu quero um filho, eu quero filho, eu quero filho. Eu já vou ficar velho, daqui a pouco eu vou ter filho... e aí vai ser meu neto”. Não sei o que... Porque a mãe dele só tem um neto. (...) Que é da filha mais nova, a Paula. Aí ele: “Não, já está na hora. Eu sou o mais velho, eu tenho que dar neto pra minha mãe...” – não sei o que, “... e eu quero filho”. Mas, realmente, lá em casa precisa de uma criança. Somos só nós dois. Uma casa imensa pra nós dois. Emília, 27 anos Eu estou com vontade de engravidar. Porque ele não é pai dos meus filhos, a gente já tem quase 10 anos juntos. Aí a gente tem vontade de ter um filho, e como eu já estou com quase 40 anos já está passando do tempo, né? (...) Porque eu tenho um casal e ele tem vontade de ter um filho comigo, né? Ele: “Poxa, a mulher que eu amo... Poxa, eu amo os filhos dela e ela não quer me dar um filho?”. Vanessa, 38 anos Eu não planejei, mas também por eu gostar muito dele, eu gostei. Ainda mais que era um menino que era o meu sonho. Porque eu e o meu primeiro a gente sonhava muito ter um filho homem, só vinha

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menina. (...) eu queria um menino, meu sonho era ter um filho homem. Camila, 35 anos

Há grande variedade quando vamos investigar a gênese e as circunstâncias

onde o plano de filhos começa a ser pensado. A menarca faz aparecer no horizonte a

vida reprodutiva e é ritualizada como tal, mas o plano de filhos somente vai emergir

mais tarde. Para uma minoria, é antes da primeira relação sexual que o plano de filhos

surge, como foi para Cássia.

Até os nomes de filhos eu já tinha isso na cabeça. Acho que toda menina tem isso... Eu sempre tive. Nunca tive na minha cabeça casar, até hoje não me imagino entrando em igreja... Casando, de véu e grinalda, eu nunca tive. Agora ter filho sempre pensei nisso. (...) Ainda penso. (...) Planejo, assim... quero ter 2 filhos na minha cabeça. Beatriz e Davi, como eu brinco. Mas com uma família. Porque minha irmã ela tem um filho, mas ela é mãe solteira, ela não tem companheiro, e eu ajudei no início. Então é muito difícil você criar um filho sozinha. (...) Eu não sei como essas mulheres conseguem lidar com 4, 5, 6 filhos sozinha. E tem o marido mais pra enfeite. Então eu não conseguiria. Eu quero ter assim, mas eu quero ter com um marido, com uma pessoa que me ajude. Cássia, 36 anos Eu queria assim, o meu sonho era ter um casal de filho... Assim, um menino e uma menina. Que eu até falava assim: “Se for menino vai ser Bruno, se for menina vai ser Bruna”. E no fim eu já botei os três com “b”. Aline, 27 anos Eu sempre falei pra minha mãe: “Mãe, com 21 anos eu vou ter neném, casada ou não”. Entendeu? Tanto é que aos 17 estava muito cedo. (fez um aborto aos 17 anos) (...) Né? E eu vi que o pai não ia... Mas com 20 anos eu já estava decidida. Com 20, eu tive ela com 18, 19... 19. Aí eu fui decidida. Eu falei: “Não, não vou estragar meu sonho de novo não”. Rosa, 42 anos

Algumas mulheres revelam que o desejo de ter os próprios filhos surgiu

quando ainda aprendiam os próprios cuidados e cuidavam de irmãos ou sobrinhos,

como foi para Rosa.

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Você fica naquela, sua mãe teve 6, aí você cuidou deles todas, aí você fica com vontade de ter um pra você. Né? Eu cuidei das minhas irmãs todas. (...) Minha mãe sempre cuidou muito bem dos filhos, alimentou bastante. Deu o que podia: educação, alimento e saúde. Aí eu tive vontade. Cuidei das minhas 4 irmãs, os meus 2 irmãos são mais velhos que eu. Tive vontade de ter um pra mim. Rosa, 42 anos

Mas em geral, é com a descoberta da primeira gravidez que muitas das

mulheres começam suas projeções de filhos e também a problematização com a

regulação da fecundidade.

As barrigas que eu tive depois do meu mais velho já foi eu que quis mesmo ter, eu queria uma menina. Aí fiquei grávida da menina, e perdi com 6 meses. (...) Quando eu tive a minha mais nova... (...) Aí pronto. Aí parei, liguei. Clara, 34 anos

Em geral, o plano de filhos vislumbrado pelas mulheres da pesquisa prevê

uma prole pequena, mais comumente dois filhos.

Ah, eu queria 2. (...) É o ideal. (...) Eu queria 2 só e mais... Mas veio 2 de uma vez, né? Então é quem nem falam: “Deus manda, a gente não escolhe”. Então eu tenho 4. (...) Se fosse uma menina eu teria ligado. (...) Porque muito filho não é bom não. Sabe? (...) Porque assim, quem tem um, não tem nenhum né? E que tem dois, tem um. Então eu queria dois filhos. (...) Eu falei: “Eu vou...” Sempre pensei: “O dia que eu casar eu quero ter 2 filhos. 2 filhos”. Mas aí veio os dois, aí eu fiquei. Mas não me arrependo não. Clara, 34 anos

Entretanto há condições que faz com que elas extrapolem o número ideal de

filhos: deve ser um casal de filhos, associando o anseio dos homens por um filho

homem e da mulher por uma menina. A busca pelo sexo que falta serve de justificativa

para as mulheres que, aos olhos de sua comunidade, extrapolaram sua cota de filhos,

uma vez que a problematização do plano de filhos acontece na rede de interação

comunitária, parceiros e serviços.

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Mas pretendo sim, tenho um menino de quatro anos, pretendo ter uma menina. Futuramente ter uma menina e ligar, e fechar. Juliana, 19 anos Eu queria tanto uma menina... e veio uma menina... depois veio o Jorge... e agora eu e meu esposo está feliz. Helena, 22 anos Só um casal. Uma menina agora, se vier uma menina. (...) Bem mais pra frente. (...) Tenho. Deixa curtir esse primeiro, fazer o que eu tenho que fazer... Né? Começar a engatinhar com o meu sonho que é a faculdade. (rindo) Eliana, 21 anos Se fosse um casalzinho era só dois, se de repente viesse dois meninos ou duas meninas a gente tentaria o terceiro. Mas como já veio o menino aí... (...) Completou. Cecília, 32 anos

A lente do senso comum de que o normal é ter dois filhos fez com que os

relatos deslizassem das próprias experiências para a de outras mulheres.

Porque se elas pensassem como mim muitas delas não tinham filho. Tinha uma menina aqui... Ela também... Ela estudou comigo, agora ela entrou pro tráfico. Ela tava com 19 anos e com três filhos e está indo pro quarto... Se todas pensassem igual a mim nenhuma delas estava com filho... Essa que eu estou falando que estava com 19, é da minha idade, já está no terceiro filho. Ela já teve, e já está no terceiro ou quarto. Por isso que eu falo, ali não tem condições de ter mais de um filho. Amanda, 22 anos O que eu observo na comunidade... eu não vejo planejamento... eu não vejo mesmo, até porque você vê mulheres que tem três filhos... e um de cada homem. Eu acredito que ali mesmo já fica difícil ter um planejamento... a nível de família. Eu não vejo... Assim... eu vejo as meninas novas engravidando também assim... por acidente... pelo menos é o que a gente escuta dizer: “Ah, foi um acidente!” Aquela coisa toda. Sinceramente eu não vejo o planejamento... Não que não seja oferecido. Hoje isso é oferecido... hoje tem. É o que eu falo, hoje você tem. Se você não tem condições de comprar... você tem... remédio que o posto fornece, a pílula, o anticoncepcional. Você tem como se precaver, né? Até o preservativo. Mas eu não sei. Eu não sei se... Assim, história de vida... Eu não sei, é muito complicado. Eu não vejo planejamento não. Luana, 27 anos Bom, sempre eu queria ter 4. (...) Era. Eu sempre falava que eu ia ter 4, dois casal. (...) Eh, ta maluco?! Vou arrumar uma creche... a gente já tem um time, já tem um vôlei?! Eu sempre brincava com o pessoal

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quando falava assim... “Calma que eu vou montar um time de futebol”. Aí agora eu falo: “Olha, a palavra tem poder, porque de tanto falar que ia montar um time, pra mim montar um time falta três, já tô com nove. Então vamos parar por aqui mesmo porque senão vai acabar se concretizando o que eu falei”. Então eu costumo falar isso. (...) Também eu acho que o que mais me abateu foi: “O que os outros vai falar”. (...) Aí ele falou: Deixa o que os outros fala... mas o que os outros fala me magoa muito. (...) A mim incomoda. Ele fala que não: “Você vive na porta dos outros? Você pede as coisas aos outros? Pelo contrário, eles que vem aqui te pedir”. Aí também de raiva ele falou que não quer que saia mais nada lá de entro de casa. Porque eu sou muito boba, os outros fala, aí vai lá em casa me pede as coisas eu vou dou.(...) Aí ele fala isso. “Eles falam tanto de você, e vem aqui pedir as coisas. Então eu não quero que você dê”. Porque eles fica falando. Camila, 35 anos

Para Ingrid, é com base nas experiências trocadas entre as mulheres de uma

mesma rede comunitária que os papéis de ser mulher e ter muitos filhos se reproduzem

sem muita reflexão.

Não, não é a questão da cultura ser de ter muito filho, mas é que você vê todo mundo tendo muito filho. (...) “Ah... a cultura é essa”.” Não, a cultura não é essa, simplesmente é isso que eu vejo”. Entendeu? Então, vamos deixando levar. Se acontecer comigo também é normal, estou dentro do meu meio. Eu penso que seja isso. Ingrid, 40 anos

Marilene é agente comunitária de saúde na Estratégia Saúde da Família de

uma das unidades e lida diretamente com os planos de filhos das mulheres de sua

microárea. Ela demonstra uma interação contínua entre sua própria vivência e as das

outras mulheres e reconhece os limites de agir sobre os planos de outras pessoas, uma

vez que cada um tem maneiras diferentes de buscar o que deseja para sua vida.

Eu tenho um caso (...) de uma paciente minha... ela vai agora para o terceiro filho (...) e eu conversava sempre com ela (...) “olha, você tem que usar preservativo...” E ela também... primeiro filho... morando com os pais... (...) e aí eu começava: “não engravida...” levava preservativo pra ela... sempre... vamos no planejamento familiar... ela não vinha... e eu ia no dia de manhã... “olha, o

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planejamento é de tarde”... “pode deixar eu vou”... e não vinha... aí ela engravidou da segunda filha... a menina tem um ano agora... mas quando ela engravidou eu continuei batendo... batendo na tecla... “poxa, você deu mole”... (...) e eu falava pra ela... “vê se não engravida mais”... ainda no primeiro... (...) “quando você tiver... agora, se esforça... volta a estudar... dá uma estabilidade melhor pra seus filhos, cuida da sua vida... pra depois você pensar de novo em ter um filho... porque é muito difícil”... e ela sempre reclamando... (...) “Eu sempre te trago preservativo, você também pode ir lá no posto, vai lá no posto, vai lá no planejamento familiar... escolher um método... pra você prevenir... porque você está vendo que não é fácil”... aí ela foi e... sempre na mesma tecla... mas aí engravidou de novo... ta com mais uma filha agora... e aí... a filha dela... ela ta morando ainda com os pais dela... a coisa ficou muito mais complicada, ela não consegue emprego... e eu... continuando o processo... e ela sempre muito resistente... porque eu ia de manhã... “olha, o planejamento é hoje à tarde...” e ela “ah... eu vou”... e não vem... e aí agora ela ta grávida do terceiro filho... e ela tem o companheiro... os filhos estão na mãe... e ela com o companheiro longe... então, assim... eu vejo que é muito complicado... mas não foi falta de informação... foi falta de... de... (...) Não... eu sei que ela não queria... mas não faz por onde de prevenir... (...) Não é? Porque é uma falta... porque tem coisas que não dependem de mim... nem dependem de você... depende de cada um... (...) Porque eu sei que o ato sexual é bom... mas tem que lembrar... como eu lembro lá na hora com meu marido (rindo)... no ato sexual... porque não tem como não usar o preservativo... que é o que eu tenho feito com o meu marido... porque eu sei as conseqüências que vão ter e que eu não quero... não posso... não estou em condições no momento... por eu estar estudando... estar buscando coisas maiores... e não quero ter um filho agora... (...) é difícil, mas de vez em quando eu falo isso com ela... “viu não quer fechar a perna... nisso que dá”... (rindo) (...) eu sei que nem todas as pessoas são assim... e eu não posso querer que todos sejam... mas eu acho que quando são os meus interesses eu corro atrás... se não tem aqui... eu vou pra qualquer outro lugar... eu vou buscar... porque é meu interesse... sou eu a... sou eu que estou precisando... não é a outra pessoa do lado da fila ali... então eu vou buscar... (...) É uma coisa dela (...) não cabe a mim... Marilene, 25 anos

O número de filhos das outras mulheres, geralmente quando são muitos,

incita intervenções diferenciadas para que não excedam ainda mais à normalidade e

exige um empenho diferenciado dos profissionais que trabalham na ESF em fazer com

que as mulheres usem um método contraceptivo, como contou Cássia.

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Tinha uma mulher aqui que tem 8 filhos, e está grávida do nono. Então assim eu falava para ela: “Vamos fazer laqueadura”. “Vamos fazer laqueadura”, não quer fazer... O marido não queria que ela fizesse e o marido não quer fazer vasectomia. Eu falei: “Não, que loucura é essa?” Mandei chamar o esposo dela aqui, me tranquei na sala com ele e com ela: “Ah, eu não posso vir para o grupo porque eu trabalho, faço meus bicos”. Eu: “Não tem problema gatinho”. Peguei lá o álbum seriado, peguei a prótese peniana. Tirei pra ele duas horas, me tranquei no consultório com ele... Me gritavam no corredor, e eu: “Estou ocupada”. Passei para ele todo o conteúdo do que é vasectomia. Já encaminhei ele. Vai fazer vasectomia. Eu falei: “Pelo amor de Deus! Você não permite que ela use nenhum método...” Ele não deixa ela usar nem preservativo nem nada, exigia ter relação... Vigia o uso de pílula, não deixa ela usar. E não quer fazer nada. Eu falei: “Vocês vão ter quantos filhos? Vai deixar que ela se maltrate e ponhas mais crianças no mundo até quando?” Eu dei essa chamada, aí... Então isso me afeta. Não tem como... criar um filho sozinha. (...)Tem uma que está com 4 e quer ter o 5º porque quer tentar uma menina. 4 homens, elas vão tentando até conseguir para agradar o marido. A maioria aqui é isso, pode contar, a maioria quer agradar o marido com um do sexo masculino ou do sexo feminino. A Joana é uma, que até atendi ela ontem, ela vem aqui hoje à tarde. Se ela vier eu vou até de encaminhar. A Joana. Ela tem vários meninos, quer tentar uma menina. Acabou de parir, e já falou que: “Ano que vem estou aí de novo”. Eu falei: “Joana, pelo amor de Deus!” “Não eu quero. Tá planejado, eu quero ter outro, para tentar uma menina”. (...) Desejo de agradar o marido e de querer dar esse presente para o marido, né? De tê-lo com ela. Elas acham que aquilo vai deixar com que eles fiquem com elas, se tiver um filho homem, se der uma filha mulher para o marido. Cássia, 36 anos

Sejam quem forem as mulheres, elas deixam claro que o número de filhos

está encoberto por uma questão principal: as condições de cada um para ter, sustentar e

criar seus filhos, o que será discutido no tópico seguinte, mas pode ser observado desde

agora com a fala de Vitória.

A questão de muitos filhos eu acho errado. Porque hoje em dia não pode ter muito filho... A crise que está, a sobrevivência está muito difícil. Eu tenho uma minha irmã, ela tem cinco filhos, eu acho isso uma burrice, ter cinco filhos. Às vezes você deixa de dar pra um, que você pode dar o melhor para aquele, aí você tem que dividir pra cinco? (...) Com a crise que nós estamos? Fica difícil. Aí não vivem

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bem. (...) Mas eu acho que no caso os culpados são os pais, porque tem muitos meios... Hoje em dia tem muitos meios de se evitar filhos, não precisa ter tantos filhos assim. Eu acho que dois ou três é o suficiente. Vitória, 41 anos

As opiniões que circundam o número excedente de filhos e estão nos

discursos explicitam ser absurdo que as mulheres ainda tenham tantos filhos com tantas

informações disponíveis.

Por que elas não previnem? Não vai me dizer que não sabia como prevenir. Só chegar para médica e falar: “Doutora, não quero ter filho, o que eu posso fazer?” A doutora vai dizer para você o que pode e o que não pode fazer. (...) Tem injeção, tem remédio. Então hoje se a pessoa falar pra mim: “Ah, eu engravidei porque não sabia.” “Mentira. Por que você não foi na doutora? Agora você está indo porque está grávida, né? Não, está errado. Vai. Pensa nisso. Vai ver quanto é que está uma lata de leite primeiro, vai ver quanto é que está uma fralda, vai dar valor ao dinheiro que você tem. Se você não tem, por que você vai ter filho então? Lúcia, 31 anos

Nesse sentido, os serviços de saúde, apesar de ajudar bastante na área da

reprodução, são responsabilizados por permitirem que as mulheres tenham muitos filhos

e as próprias mulheres cobram que a participação dele seja mais ativa na prática

reprodutiva de outras mulheres, já que não basta somente informar.

Ah, eu acho que sim. Por exemplo, eles estão aí: as pílulas as camisinhas, os DIU. Muitas adolescentes não querem vir. Falam, não dão importância. Ou vem aqui, pegam a camisinha e usa para brincar; pega pílula e deixa na gaveta, não toma. Entendeu? Então eu acredito que sim. Na minha opinião o Sistema Único de Saúde inclusive está muito precário sim, mas ele está... No sentido da reprodução está ajudando bastante. Está ajudando bastante sim, porque eles nessa área eles estão sempre aí. (...) É igual à vasectomia, está mais fácil que a laqueadura. Mas os homens cismam que vai perder a potência. (rindo) Nice, 38 anos Quer dizer... eu acho que o SUS deveria apoiar mais as mulheres assim... Porque tem as que são loucas que querem ter, 6, 10, eu sei que tem. Mas que pelo menos orientasse assim... sei lá... falar, que –

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poxa – não dá! Não dá... A pessoa tem que parar para pensar. Dois está bom, três é demais! Fechou... (...) Olha, ela tinha que parar e pensar que está ruim com um, imagina com um monte! (...) É mais uma boca... mais uma pessoa para sustentar. Mas infelizmente as pessoas não pensam, sabe? Eu acho que isso é um absurdo... Eu tenho uma vizinha que tem 6 filhos... uma escadinha... 6 filhos escadinha. A mais velha agora teve um bebê. Moram todos dentro da mesma casa, uma casa que sabe? Eu olho assim: “Gente, vocês não param? Vocês não pensam? Fecha a perna. Pelo amor de Deus toma um remédio” “Mas o meu marido não gosta”. Quer dizer... as pessoas não têm responsabilidade... As pessoas não têm responsabilidade... Eunice, 31 anos

A época em que nascem os filhos é outro ponto de questionamento na fala

das mulheres. Não existe um discurso da idade ideal para ter filhos, apesar de ser mal

visto que isso aconteça na fase inicial da adolescência, como doze, treze ou quatorze

anos.

Você sabe que... assim... sempre, na minha família todo mundo teve filho um pouquinho tarde, ninguém foi assim, as meninas, as três meninas. (...) A que está lá foi a que teve mais cedo entre nós três, teve com 22... mas ninguém começou assim com 13, 14. (...) Mas ninguém que teve filho muito cedo, com 13, 14, 12. É normal na comunidade? É normal. Não é normal, mas eles acham que é. Bárbara, 38 anos

Ser adolescente, mas ter responsabilidade para assumir uma nova fase

acoberta a questão da idade. Para viver a maternidade, principalmente na fase da

adolescência, é importante que tenha sido provada no campo dos cuidados, com

sobrinhos ou irmãos, e abra mão de algumas atividades comuns à idade, como ir a

bailes, mas incompatíveis com o exercício da maternidade.

Eu era nova, mas eu tinha responsabilidade... que eu sempre cuidei da casa da minha mãe... dos meus irmãos. E foi muito bom! Eunice, 31 anos Não sei se é porque eu já tenho sobrinhos... Já cuidei... Aí ter filho logo... É melhor. (...) Eu não queria ter filho antes de 18 anos. Antes

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eu não queria não. (...)Eu estaria indo pro baile, pra rua... (...) Agora eu posso curtir tempo com meu filho. Parar de pensar em zoeira e pensar mais no meu filho. Amanda, 22 anos Porque eu não sei um adolescente do mundo rico, mas do mundo pobre a menina ela já cresce tomando conta dos irmãos, então lá pensa em ter logo a casa dela, a vida dela, e começa a fantasiar. A adolescente pobre ela é muito boba. Eu era muito boba. Fantasiava, pensava em “homem da minha vida”. A minha casa, o meu filho, fazer a comida do “meu marido”. (...) Como dona de casa. (...) De uma dia ter a minha casa. Vanessa, 38 anos

Os discursos revelam que há uma diferença substancial entre as projeções

iniciais do número de filhos ou quando tê-los e aquilo que elas realmente vivenciaram,

como contam Eunice, Cassiana e Eliana.

Eu não morava em casa própria. E eu também estava muito nova não queria ter filho não... mas aí a minha cunhada deu a maior força... não sei o que. Aí eu acabei tendo o filho... Que é uma benção, né? Eunice, 31 anos É. Porque tem hora para tudo. Aquela hora não era hora d’eu ter filho, era hora d’eu terminar minha vida... Cassiana, 21 anos Eu pretendia ter quando terminasse a faculdade, que eu queria fazer administração, queria não, quero fazer administração. Aí os meus planos todos era pra depois, sempre depois, não agora, mas veio agora, então... Eliana, 21 anos

São as contingências e vicissitudes em torno do plano de filhos que fazem

com que ele assuma o mesmo fluxo do câmbio das coisas. As mulheres vão

contrapondo expectativas tidas em alguns momentos com as situações por elas

experimentadas e se apropriam da história de sua vida colocando-se positivamente

diante das vivências reprodutivas. O plano de filhos é, portanto produto de agências e

contingências revelado pelas mulheres como caminhos que escolheram para si mesmas.

Eu sempre conversei muito com a minha mãe, né? Inclusive ela falou: “Não tenha filho... não tenha filho... não tenha filho”. E eu tive 3. Mas ter filhos foi uma decisão minha. Eunice, 31 anos

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Agora está bom... Mas pensando bem pra mim não está sendo ruim ficar grávida não. Amanda, 22 anos

O plano de filhos começa a ser pensado desde a menarca e a cada evento ele

vai sendo desenhado e construído contínua e dinamicamente. Em oposição à lógica do

plano de filhos assumido pelas mulheres está o planejamento familiar encontrado nos

serviços de saúde. Este é prescritivo e tem toda uma regra médica, cultural, estatal e até

do direito que o define em quantos e quando ter os filhos que a mulher desejar. Com

perspectivas bastante diferentes, uma vez que o plano de filhos não é decidido em uma

única vez nem de maneira transparente, o planejamento familiar não dá conta da

dinâmica que circunda o plano de filhos das mulheres. Essas divergências instigam a

pensar até que ponto o plano de filhos se encaixa no discurso do planejamento familiar

nos serviços de saúde para que as necessidades das mulheres sejam satisfeitas. A

vivência do plano de filhos motiva a busca de saberes e recursos, tanto para vivências

contraceptivas quanto reprodutivas, ao mesmo tempo em que se criam projeções do que

vai ser o futuro, e tudo isso vai sendo equacionado dinamicamente.

Algumas idéias apresentadas nos discursos revelam mediações presentes na

criação, percepção, distribuição e satisfação das necessidades em torno das vivências

contraceptivas e reprodutivas. Quatro conjuntos de dinâmicas de interação

interconectados se destacam nesse processo contínuo de construção do plano de filhos e

a regulação da reprodução, representando as diferentes relações estabelecidas pela

mulher com a natureza (mais uma vez), as pessoas, o mundo e elas mesmas.

A reprodução é percebida como um caminho natural - como dito em vários

momentos – levando à definição de seus corpos com função e fim reprodutivo reforçado

pela condição de ter parceiro e conseqüentemente engravidar. Esse conjunto de

interações atua de maneira importante na criação de necessidades tanto reprodutivas

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quanto em seu controle. As percepções de serem fáceis ou difíceis de engravidar

influenciam as ponderações sobre suas possibilidades para o controle reprodutivo. Ter

um corpo que reproduz exige cuidados, seja para cumprir esse imperativo da natureza

ou para paradoxalmente detê-la, limitando o número de filhos, porque a mulher tem

outras necessidades que precisam ser conciliadas, como comenta Cleonice.

Aí para mim foi uma benção ter ligado, porque aí eu comecei a trabalhar. Agora que eu tô parada, porque praticamente eu criei meus filhos... Eu sou pai e mãe, tenho meu marido em casa, mas sou pai e mãe. Cleonice, 48 anos

A vida reprodutiva é sinalizada com a menarca e tem um caminho extenso a

ser percorrido até seu fim natural com a menopausa. As mulheres buscam outros meios

que não o natural para por fim à sua tarefa reprodutiva, como fazer a laqueadura

tubária, por exemplo, e assim expressam que cumpriram sua função e se libertam para

outras experiências.

Foram três cesáreas e no fim a laqueadura. Mônica, 37 anos [grifo do pesquisador]

No círculo de sociabilidade mais íntimo e nos serviços de saúde estão as

principais pessoas com quem as mulheres interagem face a face e eles compõem o

segundo conjunto de interações que influenciam de maneira importante as necessidades

criadas no campo reprodutivo. Nas relações com familiares, amigos, parceiros e

profissionais de saúde são construídas, introjetadas e reproduzidas certas normas e

regras, mais ou menos explícitas, que vão atuar em seu ciclo de necessidades. A norma

de que as mulheres devem ter filhos é acompanhada da idéia de fase da vida mais

adequada (nem muito jovem, nem muito velha), do ideal de uma prole reduzida (ideal

de dois filhos) e da idéia de condição suficiente para cuidar de todos os filhos – regras

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que medeiam a percepção da necessidade conceptiva das mulheres e criam outras

relacionadas ao controle reprodutivo.

Eu estava a fim de ter um filho. Eu já tinha uns 28 anos... Não, 28 anos não, 25 pra 26 anos. Letícia, 36 anos Porque tem gente que tem um monte de filho e as crianças estudam em qualquer colégio, vive para comer, e a criança não faz mais nada para vida. Gláucia, 23 anos Porque tem as que são loucas que querem ter, 6, 10, eu sei que tem. Mas que pelo menos orientasse assim... sei lá... falar, que – poxa – não dá! Não dá... A pessoa tem que parar para pensar. Dois está bom, três é demais! Fechou... (...) Olha, ela tinha que parar e pensar que está ruim com um, imagina com um monte! Eu vejo assim, situações... de a pessoa estar passando necessidade... necessidade mesmo, sabe? Fome... Eu vejo passar fome... Pra comprar um cigarro... comprar uma bebida... Engravida. Tá difícil. Reclama. “Ah, hoje eu não tinha nada para comer...”. Mas está ali... está bebendo... está fumando... Será que não pensa? É mais uma boca... mais uma pessoa para sustentar. Mas infelizmente as pessoas não pensam, sabe? Eu acho que isso é um absurdo... Eu tenho uma vizinha que tem 6 filhos... uma escadinha... 6 filhos escadinha. A mais velha agora teve um bebê. Moram todos dentro da mesma casa, uma casa que sabe? Eu olho assim: “Gente, vocês não param? Vocês não pensam? Fecha a perna. Pelo amor de Deus toma um remédio” “Mas o meu marido não gosta”. Quer dizer... as pessoas não têm responsabilidade... As pessoas não têm responsabilidade... Eunice, 31 anos

Entre as relações mais íntimas, é privilegiada a participação de mulheres

como a mãe, tias e amigas, enquanto a de homens se restringe a parceiros e profissionais

de saúde, e cada um influencia de maneira diferente nas decisões reprodutivas. Essas

mulheres que falam com mulheres constroem uma rede de informação e apoio para

essas vivências que colabora na criação das necessidades, mas também nas maneiras de

satisfazê-las. Uma prática comum é a indicação entre amigas de métodos

contraceptivos, em especial a pílula.

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(risos) Foi uma amiga minha que me indicou ele e aí eu fiquei tomando. E até hoje não peguei gravidez nenhuma. Tereza, 26 anos Porque tinha uma amiga minha que tomava, né? Aí eu perguntei pra ela: “Você toma há muito tempo?” “Como que é?” “Te faz mal?” Ela: “Não, não faz nada. Você toma pela cartela. E na cartela vem os dias certos, você toma pela cartela e tal”. Aí eu fui lá comprei e tomei. Aí me dei com ele, fui e tomei. Clara, 34 anos

Para Clara esta rede foi valiosa para conhecer meios de agir sobre a natureza

e atender aos seus desejos de uma prole menor através do controle reprodutivo.

Mulher... Elas conversam em geral sobre tudo, né? Sobre sexo, sobre tudo. (rindo) (...) Pelo menos as minhas amigas sempre a gente conversa, sobre filho, gravidez, essas coisas. Sempre está comentando uma com a outra. (...) Porque se uma não sabe ensina pra outra, né? Às vezes tem a mãe que não sabia. Fica grávida, não sabe como que é. Aí já tem uma pessoa que já ficou, já passou, aí já passa pra aquela que... Né? Não sabe. Aí toma o remédio, sabe. Aquela que sabe passa pra aquela que não sabe. Eu acho legal. (...) Porque tem mulheres que não tem assim coragem de conversar com uma mãe, né? De chegar. Ou a mãe não tem coragem de conversar com a filha: “Oh, filha, é assim, assim, e assim”. A minha mesmo nunca... Morria de vergonha, não podia nem falar nada. Você sabe, as pessoas do norte é meio assim... Reservada, recatada, não fala de certas coisas. Então eu acho que é legal sim que a gente que não sabe vai aprendendo. (...) Ah! Eu não sei te dizer não... (se não tivesse usado o método que a colega indicou) (...) Eu acho que eu estaria bem com uns 20 aí já, né? (rindo) Porque tem mulher no norte que tem 12, 15, né? Clara, 34 anos

Esse relato traz uma nuance da participação da mãe na trajetória

contraceptiva. Para ela a mãe não trouxe informações nem direcionou onde poderia

buscá-las. Muitas mulheres, como Clara, quando relatam a falta da mãe nas conversas

sobre contracepção procuram maneiras diferenciadas de se relacionar com as filhas.

Nice e Vanessa, desde que souberam sobre a atividade sexual das filhas, decidiram que

as jovens deveriam usar um método contraceptivo. Nice levou a filha a um

ginecologista para definir um método contraceptivo, mas a filha burlou o uso da pílula e

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engravidou. Nice acredita que fez sua parte ao orientar a filha, mas as razões da filha

para engravidar falaram mais alto, compreendido por ela como sendo o amor que ela

tinha por ele levou ela a dar certa continuidade de ter com ela sempre alguma coisa

que lembrasse ele na vida dela.

Então já tinha toda aquela preparação. Então quando ela resolveu se entregar fiquei surpresa até demais, não era o que eu esperava, mas aconteceu. Eu respeitei a posição dela de uma certa forma, mas mostrei para ela as conseqüências que eu acho que ela ia ter depois. Ou arrependimento da pessoa escolhida, até o ponto dela não permanecer só com aquela pessoa, não é? Com aquele menino, aquele rapaz, que depois ia mudar, como realmente aconteceu. E trouxe no ginecologista também. Eu trouxe ela para fazer a primeira consulta dela, falei com ela. Só que ela recebeu os comprimidos. Perguntei se estava tudo o.k. Ela falou que estava, só que não estava. (...) Não, não estava tomando. Ela pegava os comprimidos e botava dentro de um potinho, um cofrinho que ela tinha. (...) O que me leva a entender. Ela diz que não, dizia que o remédio dava dor de cabeça, mas aparentemente já o uso para gente era tão simples que pra mim é difícil acreditar nisso. Mas é o argumento que ela deu. Nice, 38 anos

Vanessa traz a relação vivida com sua mãe para definir sua maneira de agir

com a filha. Aos dezesseis anos ela engravidou pela primeira vez e comenta que uma

participação mais ativa da mãe, controlando o uso de um método, por exemplo, poderia

ter modificado sua experiência. Hoje, como mãe, ela diz reconhecer as necessidades da

filha em ter relação sexual, mas faz valer suas próprias necessidades quando diz que ela

não precisa engravidar e controla rigorosamente a prática contraceptiva da jovem. O

relato de Vanessa já revela dificuldades na relação com os serviços associadas à

assistência contraceptiva e que serão discutidas adiante.

Minha mãe quando sabia que a gente não era virgem minha mãe falava assim: “Olha, vocês não vão transar”. Você vai falar para uma garota que tem relação sexual pra ela não transar? Minha mãe falava assim: “Você está tomando remédio?” Eu achava... Hoje em dia eu penso: minha mãe, tadinha, ou ela não prestava atenção, ou devia

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ser idiota. Porque será que... Ela perguntar? Ela tinha que ver que eu não estava tomando remédio. Então... (...) Mas se ela fizesse talvez eu não tivesse tido o meu primeiro filho com 16 anos. (...) Porque eu controlo isso da minha filha. Eu: “Olha, você está tomando remédio? Você não está tomando, porque eu não estou vendo. Aí ela está tomando injeção, está engordando muito... Tanto que está marcado pra ela, porque eu estava dando injeção anticoncepcional pra minha filha por minha conta porque eu não consigo marcar pra ela. Vanessa, 38 anos

Iniciar a vida sexual não basta para ser inserida na rede de mulheres que

trocam experiências sobre controle reprodutivo: é necessário tornar conhecida a

vivência da primeira relação sexual nesse círculo mais íntimo. Nos casos onde não se

compartilha a informação da primeira relação sexual com essa rede, pode ser

complicado falar das necessidades de controle reprodutivo e também das experiências

de gravidez e aborto. O aborto mantém silêncio sobre as vivências sexuais e

reprodutivas, uma vez que não deixa uma prova concreta de que ela está na trajetória

reprodutiva, como relatou Ingrid sobre o aborto que fizera ainda na adolescência.

Fomos de manhã, fui no horário de escola pra ninguém desconfiar de nada. Ingrid, 40 anos

A partir do momento que se inicia a vida sexual, estar ou não com um

parceiro, assim como a qualidade e atributos dessa relação são influências centrais nessa

dinâmica de criação, distribuição, percepção e satisfação das necessidades.

Por isso que hoje eu não tomo... porque eu gasto dinheiro... Uma que eu não tenho, porque é muito complicado. Lógico, se fosse necessário... lógico... comprava o anticoncepcional, mas como eu não estou namorando ninguém sério. Como não é uma coisa... Quando rola de assim acontecer alguma coisa, aí eu prefiro usar o preservativo. E uso mesmo, não tem esse negócio comigo... porque eu tenho muito medo de ficar doente, tenho muito medo d’eu morrer e deixar minha filha. É bobeira, coisa boba, mas é assim que eu penso. Por isso que eu não estou usando nenhum

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anticoncepcional. Mas durante muito tempo eu usei. Bárbara, 38 anos Porque eu não tinha relação com ninguém, por isso eu não tomava. Beatriz, 31 anos

Nos relatos, a participação do parceiro nas práticas de regulação da

fecundidade vai em um espectro que abrange aqueles mais colaboradores até aqueles

que são obstáculos para atenderem necessidades. Mesmo que em proporções menores

que outras mediações, eles aparecem contribuindo na busca, acesso e uso de um método

contraceptivo, colocando-se contrariamente ou negociando o uso desses métodos pela

mulher.

Quem compra é meu marido. Eu não compro não. (...) E assim, eu estou menstruada e ele... Falo pra ele: “Olha, o remédio... Está acabando a menstruação”... e ele já traz o remédio. E ele sempre comprou... Eu nunca lembrei de ter entrado na farmácia para comprar anticoncepcional. (...) Ele me apóia. (...) E assim, ele me lembra : “Já tomou o remédio?” A responsabilidade é dos dois entendeu? Eunice, 31 anos Não, eu assim, eu não tinha condições talvez de ter filho naquela idade que pra mim era uma menina, e meu namorado também era uma pessoa bem consciente. (...) E ele disse: “Vamos tomar remédio pra evitar filho”. Clarice, 36 anos Meu marido reclamava muito que eu tava saindo muito de casa... “vem tal dia colocar o DIU”, “não sei o que, não sei o que...” só que meu esposo foi e... (...) Ele ficava falando já desconfiado (...) Não deixou... Rita, 35 anos (usar camisinha) Mas aí... o pai não gostava. (...) Aí ficava nesse negócio de jogar fora. Nesse negócio de jogar fora... eu peguei ela. (...) Eu falei com ela (a médica) que meu esposo não gostava muito... Aí ela falou que era a melhor coisa que eu podia fazer... ou tomar o remédio ou usar a camisinha. E seu não pudesse usar... se eu não conseguisse... se não pudesse usar... se ele não gostasse de usar... eu ia ficar jogando fora, mas era muito arriscado eu pegar filho... que isso não é lá... certo. Mas aí o que eu poderia fazer com ele? (...) Aí... fazia, né? Beth, 25 anos

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A decisão do parceiro de se submeter à vasectomia é destacada pelas

mulheres como algo positivo, tanto para sinalizar boa qualidade na relação do casal

quanto por vir a atender uma necessidade que para ela é concreta. Apesar de

considerarem essa atitude do homem um cuidado para com elas, as mulheres

demonstram que eles estão desempenhando uma função em seu lugar e não

compartilhando a responsabilidade no controle reprodutivo.

Ele mesmo decidiu. (...) Assim, eu passei a ver... Eu gostei, como mulher eu gostei porque eu vi nele uma preocupação... um carinho... um cuidado comigo. Entendeu? De querer me preservar e ele ir fazer. Luana, 27 anos

A qualidade da relação com o parceiro estabelece também critérios para a

escolha de métodos contraceptivos pelas mulheres. Como bem apresenta Amanda o

início do relacionamento institui o preservativo como método a ser utilizado e à medida

que se torna estável e de confiança serve de impulso para que busquem outros métodos

contraceptivos.

Porque também eu passei a conhecer ele, estava dando tudo certo, estava com ele há um tempão... Eu perguntava se queria usar, mas ele não queria... (...) Eu mudei pra tomar remédio. Amanda, 22 anos

As interações com os agentes dos serviços de saúde - sejam médicos,

enfermeiros, agentes de saúde ou outros - se diferenciam das demais citadas até agora

pela forma como se estabelecem. Enquanto com familiares e parceiros as mulheres

estão em relação diária, compartilhando as vivências, o contato com os profissionais se

dá em momentos específicos, como em consultas ou visitas domiciliares, e mesmo as

informações e orientações dadas possam perdurar por um longo tempo, esse

distanciamento temporo-espacial e o nucleamento social dessas interações permite

resistências e até mesmo desistência dos acordos firmados em relação ao uso de algum

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método contraceptivo. Desistir de usar a pílula indicada pelo profissional por acreditar

ou sentir efeitos negativos, como engordar, por exemplo, tem associação com o

imaginário criado em seu grupo de convívio sobre os métodos contraceptivos, como

abordaremos adiante. Entretanto, as resistências e desistências também estão associadas

à qualidade das relações estabelecidas nos serviços de saúde. O espaço de interação com

os profissionais nem sempre está aberto para escutas livres de julgamentos e sensíveis a

um conjunto de outras necessidades que podem limitar ou facilitar o uso de

determinados métodos. As relações estabelecidas com os profissionais de saúde muitas

vezes são marcadas por diferenciais de poder: decisões e condutas, tomadas ou não, são

equacionadas segundo aquilo que médicos e enfermeiros disseram que tem que ser feito,

não raramente reproduzindo esterótipos de gênero e discriminações pelas condições

sócio-econômicas e outras. Essas características acabam por descaracterizar a multi_

dimensionalidade da vida das pessoas e estão distantes de uma compreensão da

complexidade dessas vivências. Aliada a todas essas questões, há ainda um diferencial

importante nessas interações: as mulheres têm menos agência nessas relações que

naquelas estabelecidas com os parceiros.

A representação dos profissionais e das instituições como detentores de

verdades faz com que elas assumam a oferta de métodos, seja por ocasião do

nascimento do primeiro filho ou especificamente da laqueadura quando completam três

ou mais filhos, como oportunidades que dispensam reflexões a respeito.

Foi logo depois que eu perdi o neném que o meu médico passou... Foi o médico... Mônica, 37 anos Porque eu acho assim... que não tem mais condição... assim... de ter mais filhos... está muito difícil hoje em dia... e... a oportunidade que o governo deu... eu não posso largar... tenho que pegar... porque depois... Beth, 25 anos

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Os projetos pessoais das mulheres, mesmo quase sempre passando pela

vivência da maternidade, não se resume a ela. Eles se expandem para outros domínios e

geram outras necessidades entre os quais o estudo, o trabalho e o consumo, o que exige

conciliação (ainda que tensa) entre os campos doméstico e extra-doméstico. Esse

terceiro conjunto de mediações faz exacerbar as necessidades de controle reprodutivo,

assim como reforçam aquelas relacionadas à maternidade e maternagem, como veremos

adiante.

Porque eu só quero ter mais um filho, então por enquanto eu vou botar DIU para ajeitar minha vida, depois eu vou ligar. Cassiana, 21 anos

A referência a este outro mundo está presente nos discursos daquelas que

diariamente vivem os conflitos de ser economicamente ativa e estar em idade

reprodutiva e precisam encontrar harmonia nesse terreno movediço.

Tanto que na empresa que eu trabalho eles já deixaram bem claro, tem um ofício lá, que eles não vão contratar mais mulher. Porque a mulher tem filho, a mulher tem casa, mulher sempre... Eles dizem que mulher tem sempre um argumento pra que saia mais cedo, chegue mais tarde, ou saia do trabalho, ou pegue um atestado. Lúcia, 31 anos Porque o meu filho eu não tenho, não posso dar a atenção que uma mãe dá pra um filho, porque eu trabalho o dia todo. Então por isso que eu não quero ter agora. Só quero ter lá pros 28, 29. (...) Juliana, 19 anos

Apesar de contínuas tensões na relação entre ser mulher e ser trabalhadora,

as conquistas com a renda própria garante o pertencimento ao mundo do consumo. Se

por um lado há conflitos, por outro há soluções, uma vez que o trabalho é um meio de

pertencer a outro mundo, o que significa até mesmo sua independência, como

comentam Juliana e Aline.

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Ah, eu adoro trabalhar. Nossa! Gosto muito. (...) Eu tenho pavor só de pensar ficar desempregada. (...) Eu gosto muito de trabalhar, gosto de ter minhas coisas. Eu gosto de... Eu tenho orgulho quando eu vou no mercado eu faço compra, quando eu compro uma roupa pro meu filho, quando eu dou um presente pro meu filho, quando eu compro uma coisa pra mim. Eu sinto orgulho porque eu sei que fui eu que trabalhei, eu que lutei pra ter aquilo. Entendeu? Então eu gosto muito de trabalhar. Nossa! Tem dia que eu chego desesperada, eu choro: “Aí, que raiva desse gerente! Que isso?! Estou cansada desse trabalho”, mas ao mesmo tempo eu peço perdão a Deus, porque eu agradeço todo dia por ter esse trabalho. Porque eu acho muito importante você trabalhar, não ficar dependendo das pessoas, ficar pedindo. Porque assim, você tem mão, tem braços, tem pernas então eu acho que você tem que correr atrás. Juliana, 19 anos Eu acho que sim... Se eu tenho um trabalho eu acho que eu vou mudar a minha vida. (...) Depois que eu trabalhar eu acho que vai mudar tudo pra mim. (...) Porque eu vou viver a minha vida. Vou comprar o que eu quero. Vou sair a hora que eu quiser com os meus filhos, eu posso gastar o que eu quiser gastar, porque eu estou trabalhando. Aline, 27 anos

A escola, citada como lugar comum durante a infância e adolescência,

assume outro sentido quando passam a ser condição para integrar o mercado de

trabalho.

Ia pra escola ficava brincando, ficava com as meninas na porta da escola, não estudava. E hoje eu falo, esse ano eu estou estudando, aos trancos e barrancos, falto mais do que vou, mas... (...) Eu trabalho 12 horas por dia, tem dia que eu não agüento de sono. Eu pego de 8 as 8 da manhã – de 8 da manhã às 8 da noite. (...) De segunda a sábado, tem dias que o corpo não agüenta, aí eu fico em casa. (...) Eu quero terminar meus estudos. Eu não quero ficar minha vida toda ralando. Podendo trabalhar num lugar melhor. Entendeu? Estou trabalhando num lugar que eu trabalho 12 horas por dia pra ganhar um salário mínimo. Porque não vale a pena. Não vale a pena. Se... Com estudo já está difícil, imagina sem. (rindo) Sueli, 23 anos

A necessidade de existir além das fronteiras da reprodução estabelece

mediações importantes na criação e percepção das necessidades de controle reprodutivo.

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Algumas mulheres chegam a expressar incompatibilidades entre esses mundos e assim é

preciso encerrar um para que o outro se abra.

Eu pretendo, depois que eu tiver esse neném vou botar na creche e eu vou voltar a trabalhar de novo. Beatriz, 31 anos E a princípio quando eu tive meus dois filhos eu não trabalhava, eu comecei trabalhar esse ano passado. (...) Ficava dentro de casa cuidando deles. (...) Agora eles já estão grandes, a menina vai fazer 11 e o menino com 7. (...) Aí agora fica assim mais complicado, eu ter que parar de novo, que agora eu já peguei o ritmo de trabalho, já complica mais um pouco. Aí a gente tem que pensar pra ver se vai ter. Paula, 25 anos

Vimos até agora que as necessidades de controle reprodutivo são mediadas

pelas relações da mulher com a natureza, as pessoas e o mundo. A interação dessas

mediações se junta ao quarto conjunto caracterizado pela relação das mulheres com elas

mesmas. Esse conjunto destaca a capacidade de agência das mulheres diante dos

recursos – culturais, simbólicos e materiais – na dinâmica das necessidades no campo

reprodutivo. A busca pelo que desejam revela que as vivências são idiossincráticas,

mesmo que estejam sobredeterminadas.

Tem muita gente que fala: “Ah, eu sei!” A gente nunca sabe. Cada dia pra gente é um dia de experiência, é um dia de sabedoria. Então cada dia que a gente vive, cada minuto que a gente vive é uma coisa nova que a gente aprende, é uma experiência de vida. Então eu sou o tipo de pessoa que tudo que eu aprendo pra mim é válido. (...) Mais cedo ou mais tarde aquilo pra mim vai ser útil. (...) Quando a gente quer uma coisa, a gente não corre atrás? (...) Eu acho que a gente tem que ter força de vontade. Entendeu? E tomar o remédio... Sei lá! Ou se tiver que botar um DIU, fazer alguma coisa, é só a gente querer. Quando a gente quer uma coisa, quando a gente quer uma roupa pra ir num baile, a gente pega e consegue... Então porque quando a gente diz que não quer ter um filho a gente não vai conseguir? Sueli, 23 anos

Eu tenho dois filhos... e eu quero me cuidar pra mim não ter mais filhos... (...) Eu uso o método da injeção, mas também... eu uso

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camisinha. Aí assim eu evito filho... e com a camisinha evito doença. Por isso que eu... vim não só para fazer... mas também pra me cuidar, né? Cuidar de mim... cuidar do meu corpo... da mente também... tudo. (...) Vai da cabeça de cada um também... buscar aquilo que é melhor. Hoje eu tenho isso na minha mente... procuro buscar aquilo que é bom para mim... (...) porque buscando o melhor para mim eu estou buscando o melhor para os meus filhos também. Marina, 25 anos

As mediações em torno da vida reprodutiva, aqui representadas pelas

relações das mulheres com a natureza, as pessoas, o mundo e elas mesmas, estarão

presentes daqui em diante quando forem apresentados os tópicos sobre controle

reprodutivo, vivências de gravidez, parto e aborto espontâneo e de maternidade e

maternagem.

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III. Controle reprodutivo: contracepção e aborto induzido

Mas até então não estava nos meus planos engravidar, mas sendo também que eu não tomava nada. Aí infelizmente eu engravidei. Infelizmente assim, né? Porque eu não estava a fim. Engravidei, eu não quis, e tive que fazer esses abortos todos. (...) Eu não sou obrigada a ter um filho sem a minha vontade. Nadir, 31 anos

O controle reprodutivo surge no horizonte das mulheres a partir de duas

vivências distintas, mas complementares: a vivência sexual e a necessidade de regulação

da reprodução. As experiências sexuais com parceiro inauguram a trajetória

contraceptiva da maioria das mulheres e o ato sexual é bom... é gostoso, para usar as

palavras de Marilene, e até natural, como diz Marina, mas impõem alguns cuidados às

mulheres. A outra corresponde à vivência do plano de filhos, que mais associado ao

desejo de limitar o número de filhos do que a espaçar ou planejar quando tê-los, formata

o controle reprodutivo tanto para evitar a concepção quanto para regular a quantidade de

filhos.

Nos discursos das mulheres, o controle reprodutivo pode ser alcançado de

duas maneiras principais: através do uso de métodos contraceptivos (reversíveis e

irreversíveis) e/ou da prática de aborto. Apesar de parecer simples seguir uma ou as

duas estratégias possíveis para atender à necessidade de controlar a reprodução há ainda

um longo caminho percorrer. A caminhada é mediada pelas relações discutidas

anteriormente (natureza, pessoas, mundo e elas mesmas) e cada mulher de maneira

dinâmica e distinta vai desbravando o próprio percurso nos mais diversos momentos de

sua vida.

Então eu tive aquela escolha: ou você tem, ou você faz um aborto. Nice, 38 anos

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Porque depois que eu tive ela eu pensei em me cuidar pra não ter outro logo em seguida. E eu procurei um posto de saúde mais próximo da minha casa... (...) E logo me integrei nele, né? (...) Aí comecei assistir as palestras, recebi o remédio no posto de saúde mesmo, mas eu sempre tive complicações com remédio, então eu sempre trocava de remédio. (...) Tomei comprimido, injeção mensal, trimestral, tudo tentativa pra não ter outro filho. (...) Já, já usei. (preservativo masculino e feminino) (...) (como conheceu) Tudo pelas orientações do planejamento familiar. Joana, 27 anos Por enquanto eu não estou fazendo nada, por isso que eu vim aqui já pra ver o método certo, no tempo certo que tiver que tomar pra não acontecer de novo, né? (aborto) (...) Estou correndo atrás. Juliana, 19 anos

As experiências, tanto de contracepção quanto de aborto, são reveladas com

obstáculos de diversas ordens, entre eles: as dificuldades que encontram nos serviços de

saúde, o dilema que têm em compartilhar a prática contraceptiva com o parceiro, a falta

de recursos próprios para a obtenção de métodos anticoncepcionais, o fato de muitas

vezes se sujeitarem ao uso de alguns métodos que lhe são mais acessíveis, mas não são

os que mais se adéquam às suas rotinas ou estilos de vida, e os conflitos morais na

decisão e prática do aborto.

No campo da contracepção, as dinâmicas das necessidades passam pelos

serviços e pelas representações que as mulheres têm de cada método contraceptivo. A

participação de pessoas de seu circuito íntimo é relembrada nessa vivência, e os serviços

de saúde, públicos, em maior escala, e também os privados, ganham destaque

principalmente nas maneiras de satisfazer essas necessidades. As organizações não-

governamentais, os favores políticos e a utilização de contatos pessoais para agilizar

atendimento nos serviços aparecem em poucos discursos sobre a busca por satisfação

dessas necessidades, mas estes revelam um caminho paralelo ao que tem sido

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conquistado com o avanço das discussões acerca de direitos reprodutivos e assistência

contraceptiva.

Os serviços públicos de saúde são alvo de interesse e expectativa para as

mulheres quando o assunto é contracepção. Apesar de serem vistos como fontes

importantes de satisfação das necessidades, existe a idéia de que tudo que é público é

mais complicado, como fala Nadir, confirmada pela seqüência de regras dos serviços –

acesso, rotinas e disponibilidade dos métodos – e dos profissionais, fazendo com que

exista uma lacuna entre o desejo e a satisfação propriamente dita.

Os principais momentos referidos pelas mulheres onde esses contatos são

estabelecidos são as consultas individuais e os grupos onde se discute especificamente

os métodos contraceptivos, como os chamados grupos de planejamento familiar ou

simplesmente planejamento.

As regras de acesso aos serviços não são muito claras para mulheres e os

discursos transitam entre o que ouviram dizer de quem já esteve no serviço e aquilo que

cada um dos profissionais informa em cada serviço que vão.

Quando eu trabalhava até eu tinha que comprar, porque não tinha tempo de estar vindo aqui, senão ia me atrapalhar mais e eu não ia faltar para vir aqui por causa do meu horário. Eu pegava de 10 as quatro e aqui as 2 horas que ele dão... Que a gente tem que vir para poder pegar. Aí eu comecei a comprar. Quando eu sai de lá que eu passei a vir, que você tem que fazer o planejamento pra pegar de graça no posto. Nilza, 24 anos

A principal rotina é estar presente em determinado número de reuniões

(geralmente três) do grupo de planejamento familiar. O desafio de ter cumprido as

regras estabelecidas pelos serviços é somente um dos passos para o acesso ao método

escolhido. Por vezes, cumprir as exigências do serviço não demonstra a garantia de

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obter o método em uma rede integrada, com referência e contra-referência, o que leva a

uma busca em outro serviço e ao cumprimento de novas exigências.

Continuei persistindo. Fiz planejamento familiar até no hospital de Bonsucesso eu fiz. (...) E fiz outras vezes. Nadir, 31 anos

O chamado grupo de planejamento familiar é referido como principal porta

de entrada na assistência contraceptiva. Os relatos das mulheres sobre o acesso a esses

grupos nas unidades pesquisadas apresentam que uma delas dispõe de reunião

continuamente e exige a participação por três vezes, consecutivas ou não; na outra, as

mulheres devem se inscrever e participar de três reuniões seguidas; e na terceira, elas

não tem este serviço disponível na unidade, mas são encaminhadas para uma unidade de

referência, devendo elas mesmas agendar sua participação por telefone. Outras unidades

que oferecem o planejamento também aparecem nos relatos das mulheres quando falam

de suas estratégias para acessar o método contraceptivo desejado, algumas em

localidades próximas à sua moradia, mas outras bem distantes, revelando uma

verdadeira peregrinação na busca do controle reprodutivo. A participação nos grupos na

maioria das vezes está vinculada ao acesso aos métodos contraceptivos, o que

determinava a busca pelo grupo em um e outro serviço para satisfazer a necessidade de

ter o método.

Através de planejamento familiar. (...) No posto de saúde lá de perto da minha casa. (...)Já queria colocar o DIU. Eu já fui com o objetivo de pôr o DIU. (...) O meu objetivo era sempre por o DIU. Nadir, 31 anos Não, eu fiz agora. Fiz agora, eu terminei... Terminei tem pouco tempo. Que eu já tinha feito há 2 anos. Aí eu achei que não ia valer, aí fiz de novo para poder me certificar que eu ia ligar... E se tiver outro plano aí eu estou entrando noutro planejamento. (rindo) O importante é que eu ligue. Camila, 35 anos

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O método buscado nem sempre atende ao que ela pretendia ou ela encontra

limitações no uso, e a mulher por vezes se depara com dificuldades para o seguimento

da assistência e para a experimentação novas alternativas até que possam satisfazer as

necessidades relacionadas ao controle reprodutivo.

As informações sobre os métodos contraceptivos adquiridas no grupo

parecem ecoar em muitos discursos ladeados com as representações trazidas pelo

circuito íntimo de sociabilidade. Quando perguntadas sobre os métodos que conheciam

elas geralmente citavam os grupos e os métodos que conheceram naquela ocasião, como

o diafragma, o preservativo feminino, adesivo e a pílula do dia seguinte. Vale destacar

que entre as mulheres que relataram o uso da pílula do dia seguinte grande parte delas,

quando perguntadas, referiram ter adquirido informações sobre este método no grupo de

planejamento familiar, mas quando precisaram recorrer a ele foram a farmácias sem

receita médica e compraram. O serviço, nesses casos, teve papel importante na criação

de meios de satisfazer as necessidades das mulheres através da informação oferecida no

grupo.

Na verdade eu até usava camisinha... mas a camisinha estourou... na hora eu não tava tomando remédio... não tinha mais como voltar no tempo... Já tinha... eu ainda não tinha feito planejamento familiar então eu não sabia... quando eu peguei gravidez da menor, eu não sabia da pílula do dia seguinte... não sabia... eu fui saber agora. Inclusive há pouco tempo agora... eu tive relação com uma pessoa... com um namorado... aí eu transei com ele... não tinha tomado remédio... (...) aí eu fui na farmácia correndo... e tomei a pílula do dia seguinte. (...) naquela época, eu não sabia... porque senão eu não tinha engravidado. Marina, 25 anos

Nos discursos as mulheres sugerem que as regras impostas pelos serviços

deveriam ser mais flexíveis, principalmente para aquelas que freqüentam as consultas

regularmente. Eunice está nesse grupo e defende que nesse momento elas deveriam

poder manifestar o desejo do uso de determinado método contraceptivo e isso ser

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suficiente para ter o acesso ou ser orientada sobre ele, já que o exercício de trabalho em

horários conflitantes com aqueles dos serviços geralmente impede sua participação

naqueles grupos.

Por exemplo... eu faço preventivo regularmente. Hoje eu estou aqui até para pegar o resultado do preventivo... que eu fiz em janeiro... então eu faço sempre o preventivo direitinho. Porque eu acho que isso é assim... da forma como a gente está fazendo uma entrevista agora... pode ser no caso com a médica. Eu não tinha a intenção de ter mais filhos... eu vou fazer 32 anos. Estou sempre regularmente no ginecologista. (...) E aí falou “se fizer planejamento familiar que você consegue” e tal... Mas aí... eu já trabalho... e essas reuniões são sempre no meio da semana... eu nunca consigo. Então eu vou tomando remédio. Eunice, 31 anos

A dissociação percebida por Eunice, 31 anos entre a assistência continuada

e ações específicas do programa de planejamento familiar desperta para uma

possibilidade de maior adesão aos métodos contraceptivos se dispusesse de um processo

de experimentação e troca com os profissionais, com retornos após o uso de

determinado método que esteja causando algum incômodo ou não seja adequado para a

mulher. O caminho talvez se tornasse mais livre para o acesso aos métodos

contraceptivos, além de permitir a escolha de um método que seja mais adequado à

mulher.

As regras estabelecidas pelos próprios profissionais correspondem à

maneira como interpretam e aplicam as leis e as regras dos serviços, mediante seus

critérios morais. As mulheres relatam que mesmo quando cumprem as exigências para o

acesso a determinado método, os profissionais impõem a elas novas regras, entendidas

por elas como descabidas. Nadir comenta em sua entrevista sobre o poder que está nas

mãos do profissional em decidir se o DIU será ou não colocado.

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Mas sendo que o meu objetivo era pôr o DIU. Mas sendo que lá eles arrumaram assim uma complicação e eu não consegui por. (...) Eu me aborreci com uma doutora lá, que eu falei pra ela: “Nossa! Eu preciso por o DIU” Ela falou que quem botava o DIU era ela. Ela ficou me olhando: “Mas quem bota o DIU sou eu, eu não vou botar o DIU em você”. (...) Aí eles pediram pra mim tentar usar o anticoncepcional. Não deu certo, suspenderam, passaram uma injeção, também não deu certo, suspenderam. Aí eles viram que não tinha jeito me encaminharam pra por o DIU. Eunice, 31 anos

No sentido de facilitar o acesso, as regras dos profissionais também são

diferenciadas quando o número de filhos de determinado casal precisa ser limitado, uma

vez que já que extrapolaram o número suficiente, por exemplo, com reunião individual

e única para que o parceiro possa realizar a vasectomia, após o nascimento do quinto

filho com a mulher. Essa flexibilização tem caráter discriminatório e solapa o direito de

decidir dos indivíduos.

Mandei chamar o esposo dela aqui, me tranquei na sala com ele e com ela: “Ah, eu não posso vir para o grupo porque eu trabalho, faço meus bicos”. Eu: “Não tem problema gatinho”. Peguei lá o álbum seriado, peguei a prótese peniana. Tirei pra ele duas horas, me tranquei no consultório com ele... Me gritavam no corredor, e eu: “Estou ocupada”. Passei para ele todo o conteúdo do que é vasectomia. Já encaminhei ele. Vai fazer vasectomia. Eu falei: “Pelo amor de Deus! (...) Eu falei: “Vocês vão ter quantos filhos? Vai deixar que ela se maltrate e ponhas mais crianças no mundo até quando?” Eu dei essa chamada, aí... Cássia, 36 anos

Os métodos mais referidos no uso após os grupos de planejamento familiar

não se diferenciam muito daqueles que elas já sabiam antes de freqüentarem as

reuniões, como a pílula, o preservativo masculino e o injetável. Apesar de conhecerem

outros métodos, suas escolhas (e talvez a oferta) se mantiveram restritas a alguns deles,

geralmente aqueles indicados no circuito social íntimo. Os métodos de longa

permanência, como DIU, e os definitivos, como vasectomia e laqueadura tubária,

embora conhecidos antes mesmo da participação nos grupos são buscados pelas

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mulheres para que atendam não somente à sua necessidade de controle reprodutivo, mas

também à sua necessidade de acesso e continuidade na assistência até então

negligenciadas.

Entre os métodos de acesso mais fácil nos serviços de saúde as mulheres

destacam o preservativo masculino. A oferta e acesso a este método está associada à

fartura e mesmo que tenham representações singulares sobre o manejo deste método,

como veremos adiante, eles aparecem de maneira diferenciada em torno do controle

reprodutivo.

Pego no posto... Até que tem bastante... Ele ganhou um monte. Foi até de uma ONG que deram para ele. Deve ter umas duzentas camisinhas lá no armário... Denise, 41 anos Camisinha... aqui no posto dá de graça. (...) É que no posto dá muito... Todo lugar dá... (...)No posto tem de montão e também o pessoal dá... (...) Eles fazem aquelas campanha contra a AIDS no centro da cidade, eu peguei um monte. Elinélia, 46 anos

Essa ampla oferta a que se refere Elinélia talvez tenha origem de um

objetivo primeiro na prevenção de DST/AIDS e seja provido por programas

relacionados a essa área. Pensando em uma rede integrada, nenhum problema há na

dispensação do preservativo para cumprir também o objetivo da contracepção,

entretanto torna a prática conflituosa entre as mulheres e seus parceiros já que a

confiança cria a necessidade de uso de outro método contraceptivo e dispensa o uso do

preservativo.

O desejo de colocar o DIU ou ligar é retratada pelas mulheres como

envolvida em uma luta para que se consiga no sistema público de saúde e tem regras de

acesso diferenciadas de todos os outros métodos contraceptivos. Para Nadir, o DIU é

um recurso que somente será disponibilizado após eliminação de outras alternativas,

como a pílula ou injeção.

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Eu penso assim: “Vou juntar um dinheiro... que pelo SUS é complicado, né? Você tem que ter uma série de... de questões, né? Tem que ter a pressão alta... ter mais de dois filhos... inclusive eu ouvi a enfermeira falar... Aí eu penso: “Vou juntar um dinheiro... vou pagar uma clínica pra mim ligar”. Marina, 25 anos (Na unidade) Porque é difícil, sabe? Você consegue se você tiver pressão alta, aqueles negócios todo. Tem que ter mais de três cesáreas. Os meus tudo foi parto normal. Aí ia ser difícil pra mim ligar. (...) Não, o segundo já foi cesárea porque eu liguei. Úrsula, 32 anos Eles também colocavam o DIU, mas sendo que eles queriam tentar uma outra coisa pra ver se dava certo, mas só que não deu. Nadir, 31 anos

Para alcançar a laqueadura tubária as mulheres referem que é necessário

dispor de tempo para correr os papéis nos serviços e, como disse Denise, de ter sorte.

Eu fiz o planejamento antes de engravidar dele. (...) Aí eu tinha que tomar o remédio pra não engravidar, que eu tinha que me precaver. (...) Aí fiz planejamento familiar pra ligar dele. (...) Hoje eu não consegui marcar um exame que eu tenho que fazer porque, não tem vaga... A vaga vai até agosto, pra lá de agosto. No momento como meus papéis já foram feitos desde novembro, então a moça falou que tem que correr com os papéis porque não pode passar do prazo... Senão tem que fazer de novo, fazer o planejamento familiar de novo pra botar o DIU... Agora só falta fazer exame de sangue. (...) E esse exame que eu acho que é o Raios-X de tórax e um risco cirúrgico. Helen, 24 anos Aí eu falei: “Ah, não! Prefiro agora... que eu to tento oportunidade... eu quero ligar”. (...) Porque antes... Eu já fiz o planejamento familiar lá na Praça... Saens Penna. E... quando eu fiz lá na Praça Saens Penna eu tinha dois filhos... E eles falaram que o governo estava dando preferência pra quem tinha três... três filhos para cima... e por causa da idade... eu com 22 anos não ligavam. Aí como agora eu tenho 24 anos, 25 anos, e eu com três filhos, vou completar o 4º, eles dizem que fica mais fácil. Porque o governo está dando preferência pra quem tem 3 filhos para cima e por causa da idade. (...) E também... eu botei que não tenho condições de ter mais filhos. Aí ele falaram que de repente eu consigo... Porque já está correndo os papel... que eles me deram um papel. Mas aí... o outro tá correndo na mão de uma diretora do hospital... porque ela tem que carimbar para poder

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mandar... (...) Mas aí está tudo na mão dela... Se antes d’eu ter neném eu conseguir... se Deus quiser eu conseguir eles mandam... de volta. Beth, 25 anos Naquela época eu tinha 28 anos, eu pedi que eu queria ligar, aí eu tinha que comprovar porque eu tinha feito a primeira cesariana, a segunda cesariana, e isso eu tive que buscar. Eu tive meu filho em Tocantins, uma dificuldade tremenda pra mim conseguir a documentação lá pra vir primeiro, pra trazer a documentação pra cá. Aí tive a minha filha, a segunda aqui na Maternidade Escola, fui lá, peguei toda a documentação, levei pra Praça Quinze que era onde eu estava fazendo o pré-natal pra que eles pudessem me dar a autorização pra mim fazer essa ligadura. (...) E quando estava tudo pronto, já na semana praticamente que eu ia ganhar minha filha já toda com aquela expectativa bem grande que eu ia conseguir a ligadura, a médica veio me falar que o hospital não autorizou. Eu fiquei pasma, chocada, comecei a chorar sabe? Porque eu não tinha condição financeira de pagar uma ligadura e eu precisava muito. Depois eu falei: “Ah, seja o que Deus quiser!” Clarice, 36 anos

A vasectomia é uma alternativa à laqueadura tubária, uma vez que é tida

como mais fácil de conseguir. Entretanto, outras questões são ponderadas para sua

escolha o que mantém a baixa adesão.

É igual à vasectomia, está mais fácil que a laqueadura. Nice, 38 anos Aí nós fomos lá, conversamos com a enfermeira, ela falou que era muito rápido, entendeu? Uma coisa muito fácil. (...)Aí ele decidiu... e tá esperando, né? Já tem quase 1 ano. Rosa, 42 anos

Fica claro que o serviço público de saúde é uma fonte importante para a

obtenção de alguns dos métodos contraceptivos, mas as fragilidades encontradas para

acessá-lo geralmente exige um tempo de espera do qual as mulheres não querem dispor.

Assim, elas buscam outras alternativas para atender às suas necessidades de controle

reprodutivo, como dispor de recursos próprios para utilizar um método, ressaltando

principalmente a questão do valor e benefício alcançados, utilizando de favores

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políticos, recebendo ajuda de outros, como amigos ou familiares ou negociando com os

parceiros.

A pílula e a injeção são métodos de menor valor adquiridos livremente em

farmácias.

E é baratinho porque eu tomo... Pode falar o nome? (...) Eu tomo Microvlar, né? E ele é baratinho mesmo... não é nem 5 reais. Eunice, 31 anos Às vezes meu namorado me dava o dinheiro... às vezes eu mesma comprava. Mas lá no Matozo eu podia ir buscar a pílula... mas eu achava lá muito contramão. Eu ia gastar quase a mesma coisa d’eu comprar porque era baratinho, era 4 e pouco, 5 reais a pílula. Gláucia, 23 anos O Micronor é três e pouco na farmácia popular, entendeu? Na farmácia normal é 4 e pouco, 5 reais, 6. Fernanda, 26 anos

O benefício de ter o método disponível nas farmácias a valores acessíveis

colabora de maneira importante para o uso dele pela mulher. Entretanto, mesmo a

preços baixos nem todas tem condições de comprar e mantém a dependência dos

serviços de saúde para continuar o uso, como cita Nilza.

Eu comprava. Nossa Senhora! E não era tão barato assim não. Não era tão barato. Quando eu trabalhava até eu tinha que comprar, porque não tinha tempo de estar vindo aqui, senão ia me atrapalhar mais e eu não ia faltar para vir aqui por causa do meu horário. Eu pegava de 10 as quatro e aqui as 2 horas que ele dão... Que a gente tem que vir para poder pegar. Aí eu comecei a comprar. Quando eu sai de lá que eu passei a vir, que você tem que fazer o planejamento pra pegar de graça no posto. Nilza, 24 anos

Discursos semelhantes circundam a compra de métodos como a pílula e a

injeção pelas mulheres, mas em relação aos métodos contraceptivos definitivos, como a

laqueadura tubária e vasectomia, há uma relação diferenciada entre recursos e acesso.

Estes métodos, envolvidos em longos caminhos para acesso nos serviços públicos, são

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desburocratizados nos serviços privados e o valor pago compensam o benefício e

segurança alcançados ao utilizá-los, mesmo que seja necessário financiar o pagamento

do procedimento.

Na época com 21 anos. Paguei na época 200 reais, lá em Niterói. E foi para não ter mais filho, cortei mesmo. (...) As duas mais velhas nasceram, a primeira e a segunda, agora a última foi cesariana, porque eu fiz o laqueamento. Eduarda, 33 anos Também é aquele negócio, tudo que é pago, né? Já viu. (rindo) Paga pra não assinar... (...) Ele não foi pra assinar pra mim poder operar. (...) E era mil e cem quando eu operei. Agora não, agora o pessoal pode até operar assim... Se estiver grávida vai pagando. (...) É. Quer dizer, é muito mais fácil, né? Edna, 39 anos Eu não quero nem saber. Já fui... Aí eu fui lá no Andaraí pra poder levar os papel. Aí a assistente social falou que ia me ajudar... com a papelada. A assistente social de lá, falou que ia me ajudar. Mas aí a minha irmã também tem conhecimento, aí eu vou ligar noutro lugar. Camila, 35 anos

Eduarda e Úrsula dão indícios do quanto a prática de laqueadura em

serviços particulares por mulheres que habitualmente utilizam de serviços públicos de

saúde está vinculada ao momento do parto, apesar de ser uma prática legalmente

condenada.

Outro meio para acessar a laqueadura tubária foi a utilização de favores

políticos, como contou Aline. Ela veio do norte para o Rio de Janeiro, conheceu seu

companheiro com quem teve três filhos. Determinada a trabalhar precisava encontrar

uma maneira de impedir que engravidasse novamente. Ela reforça as fragilidades de

todo o sistema quando fala que outros métodos, como a pílula, eram passíveis de

descontinuidade já que em alguns momentos deveria comprá-lo e nem sempre dispunha

de dinheiro. Decidiu voltar ao norte para fazer a laqueadura mediante ajuda de um

político local.

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Aí eu falei: “Eu vou fazer o quê? Aqui é tudo difícil”. Aqui no Rio é tudo difícil, pra mim ligar eu tive que ir pro Norte. (...) Eu fui no Beltrão porque disse que lá tinha, acho que aqui também tinha... os negócios pra fazer o papel, e levavam pra não sei pra onde, e depois de não sei quantos dias fazia. Aí eu fui no Beltrão, cheguei no Beltrão a menina... Eu deixei o nome tudo certinho lá, ela falou que era, chegava o dia ia escolher, parece que ia escolher as pessoas, e levava, mandava diretamente para o Andaraí. Do Andaraí já mandava o papel com a pessoa grávida... Porque eu estava grávida. (...) Do menino... Aí depois de 7 meses encaminhavam a gente para o Andaraí. Aí eu falei: “Ah, ta bom!” Aí a minha mãe falou assim: “Ah, mas eu acho que isso daí não resolve nada”. Que até hoje a minha ex-cunhada fez isso e até hoje ela não está ligada. Tem dois filhos já. Aí eu falei: “Não, sabe o melhor que eu vou fazer? Eu vou pro Norte”. No Norte eu ligo rapidinho”. No Norte é de... De vereador, de coisa assim... de política... é mais fácil. “Eu vou pra lá”. Aí eu fui pra lá. A gente todo mundo falou com a mulher do prefeito que a gente ia votar nele... Claro, isso a gente sempre vota. Aí ela foi e encaminhou os papéis pra mim. Fez os papéis tudo direitinho. Eu fiz os exames tudinho, não deu nada. (...) Aí fui. Fui fazer os exames pra ligar, chegou lá eu falei: “Se eu estiver grávida no exame que eu for fazer de sangue vai acusar” - né? “... Que eu estou grávida”. Mas não acusou nada, graças a Deus, Deus é tão bom que não acusou nada. Foi tudo normal. Fiquei nervosa um pouco? Fiquei. Fiquei. Mas eu entrego nas mãos de Deus, Deus sabe o que está fazendo. Foi tudo normal. Eu fiquei nervosa na hora de entrar, foi logo minha vez. Tinha umas 4 pessoas, me chamaram. Eu sei que rapidinho. Eu entrei na sala de cirurgia 9 horas, quando foi 9 e 15 já tinha acabado. (...) Eu fui pro Norte agora em 2008. Eu fui pro Norte pra mim ligar. E graças a Deus, vai fazer um ano já que eu estou ligada. Dia 5 faz um ano. Isso aí... eu acho que foi... (chorando) Aline, 27 anos

As organizações não-governamentais aparecem como satisfator de

necessidades relacionadas à laqueadura tubária, no entanto pode ter critérios

diferenciados para a realização do procedimento.

Nós tínhamos uma ONG aqui dentro da comunidade que eles estavam encaminhando as pessoas que já tinham mais de 4, 5 filhos, acima... O critério era: mais de 4 filhos... acima de três... O critério era: Mais de 3 filhos; acima de 24 anos que quisesse fazer laqueadura. Então... eu trabalhava dentro dessa ONG... então eu ia por esse método também... Magali, 41 anos

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Um caso chamou a atenção em relação à necessidade de interromper o fluxo

da reprodução. Úrsula conta que desde a segundo filho tentou fazer laqueadura, mas

encontrou empecilhos, como por exemplo, a idade. Ela conheceu um companheiro e

estabeleceram uma negociação em prol do objetivo de Úrsula em ligar, onde a ela

caberia ter dois filhos dele e a ele pagar pela laqueadura. As condições do parceiro não

soaram como uma obrigação e sim um meio de atender necessidades que tinham alguma

prioridade sobre outras.

Aí ele foi e falou: “Eu ligo se você tiver dois meus”. (...) Aí eu tive um dele e aí ele falou: “Não, só vou ligar se você tiver outro meu”. Aí eu tive que ter outro. Fiquei com dois dele. (...) Quando eu liguei eu tinha 26. (...) Porque é difícil, sabe? Você consegue se você tiver pressão alta, aqueles negócios todo. Tem que ter mais de três cesáreas. Os meus tudo foi parto normal. Aí ia ser difícil pra mim ligar. (via sistema público de saúde) Úrsula, 32 anos

A vasectomia geralmente é acessada através de recurso próprio ou de ajuda

de conhecidos.

Ele mesmo foi ao posto sozinho... se inscreveu no programa... ele mesmo se interessou. (...) ele terminou o planejamento familiar, foi nas palestras, entrou numa fila de espera, mas ele nem fez através do posto de saúde porque uma amiga nossa conseguiu para ele um outro lugar mais rápido e aí ele fez. Luana, 27 anos

Nenhuma das mulheres referiu buscar serviços privados para acesso a

métodos de longa permanência, como o DIU, por exemplo.

A participação dos serviços de saúde é percebida pelas próprias mulheres

como facilitadora da prática contraceptiva, especialmente quando nos atentamos às falas

de mulheres laqueadas ou que compram por conta própria sua pílula. Elas apresentam o

acesso ao serviço público como fácil e gratuito, tanto para obter informação quanto o

método contraceptivo, chegando a dizer que só não usa quem não quer.

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Outras tem e não usam porque não quer... não usam porque não quer... tem a informação mas não usam porque não quer... Gláucia, 23 anos Na questão do esclarecimento, né? Na questão dos métodos que são muito mais e gratuitos. São muito mais possibilidade de você... Tipos de contracepção, e a disponibilização também, né? Tirando a laqueadura e o DIU que é um pouquinho difícil, eu acho que a questão da pílula, a questão da vacina (talvez querendo dizer vasectomia), a questão do preservativo. Eu acho que está muito à vontade. Só não usa quem não quer. Ingrid, 40 anos Eu acho que uma adolescente de 13, 14 anos sabe tudo, então engravida mesmo porque quer. Porque é impossível na sociedade de hoje um adolescente não saber o que é uma pílula, o que é um anticoncepcional. (...) Não, mas eu tenho certeza absoluta que ela sabia, porque eu tinha acabado de ter neném. Eu sempre falava: “Vai no posto, mesmo que você não queira falar pra ninguém, você mata um dia de aula, ao invés de ir namorar, você mata um dia de aula, vai no posto, e começa a tomar remédio, conversa com a médica, pede pra ser atendida... “Eu acho que ela não vai... A médica não vai falar não. “Mata uma aula um dia, vai lá, conversa, começa a tomar a pílula escondida, se não quiser contar pra mãe, se não quiser contar pro pai, se previne. Não quer se prevenir com camisinha, se previne pelo menos com a pílula. (...) Ela não ouviu e... Acabou engravidando. Luíza, 22 anos A realidade se diferencia desses discursos, mas como elas não estão

atualmente dependendo diretamente dos serviços para obter seu método, faz com que

tenham uma visão ideal sobre a relação entre as mulheres e os serviços.

Com base nessa percepção da facilidade de acesso ao método nos serviços,

as mulheres falam umas das outras sobre o número de filhos que têm e poderiam ter, e

para o controle desse número determinam umas para as outras quais métodos deveriam

usar, como a laqueadura para quem tem mais de três, a pílula para quem tem poucos, ou

até mesmo a injeção para aquelas consideradas descuidadas com o uso da pílula ou

preservativo.

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Tem aqui uma amiga que pode ser um exemplo... ela está indo para o 4º filho com 22 anos. Quer dizer... se ela não ligar agora... ela vai pra o 5º, vai para o 6º... (...) Eu tenho uma vizinha que tem 6 filhos... uma escadinha... 6 filhos escadinha. A mais velha agora teve um bebê. Moram todos dentro da mesma casa, uma casa que sabe? Eu olho assim: “Gente, vocês não param? Vocês não pensam? Fecha a perna. Pelo amor de Deus toma um remédio”. Eunice, 31 anos

Falar do controle reprodutivo, próprio e do alheio, faz com que as mulheres

sejam alvos de disciplinas da reprodução ao mesmo tempo que reproduzem essas

disciplinas nas críticas às vivências de outras mulheres.

Apesar das fragilidades e potencialidades encontradas nos serviços, a partir

dos discursos das mulheres, fica claro que houve avanços no campo da assistência à

reprodução, principalmente no que se refere à contracepção.

Na minha opinião o Sistema Único de Saúde inclusive está muito precário sim, mas ele está... No sentido da reprodução está ajudando bastante. Está ajudando bastante sim, porque eles nessa área eles estão sempre aí. Nice, 38 anos

Elas comparam ainda que a informação hoje em dia é melhor, mais farta e

mesmo que acompanhada de pouca assistência tendem a modificar as escolhas

reprodutivas entre as mulheres.

Porque se você não quiser você só tem um ou então você não tem nenhum. Não tem como falar: “Ah, não tenho...”. Nas escolas eles informam, em qualquer lugar que você vai. Você está dentro do ônibus tem um outdoor falando. Não tem como a pessoa falar: “Ah, eu sabia!”. Naquela época (15 anos atrás) realmente eu não tinha tanta informação como eu tenho hoje. As coisas não eram igual o que é hoje em dia. Nadir, 31 anos Adianta, elas até procuram as informações. Eu acho até que tem mudado. (...) Então a informação não falta, não falta informação. De todos os lados tem informação. Você vê de tudo na televisão. Principalmente com TV a cabo. Cara, muita informação. Os livros da escola estão muito claros, muito diretos. Você pega um livro até da

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educação fundamental, que é da fase que é antes dos 10 anos, né? Ingrid, 40 anos Então hoje em dia é aquele negócio... Você pode muito bem ter relação sexual, ser uma pessoa nova ter relação sexual, mas não precisa ter filhos, né... (...) Eu ia orientar, mas eu gostaria de ter um serviço também... Um médico... Tanto que eu até já marquei... Já pedi a Dra. Denise para marcar uma consulta... Afinal ela ta namorando... Essas meninas tem a cabeça assim, meio avoada, pra ela ta se precavendo...Mônica, 37 anos

A informação sozinha não é suficiente para que as mulheres façam escolhas

acerca do seu controle reprodutivo, o que pode ser exemplificado com a fala de uma

enfermeira entrevistada. Cássia, mesmo com todas as informações tem conflitos em sua

prática contraceptiva.

Porque a gente sempre, como eu falei, enfermeiro tem muito isso, de achar que sabe tudo... Sabe tudo pra passar para os outros, quando é para fazer isso com a gente mesmo a gente emburrece. Eu brinco, eu emburreci e fiz tudo ao contrário. Há pouco tempo eu tive relação com uma pessoa e usei preservativo, mas a gente sabe que o pré-semem... Aquele processo, né? E tive essa experiência, de não usar antes. Eu estou com três dias de atraso menstrual, eu fiquei aqui enlouquecida achando que pudesse estar grávida. Eu falei: “Meu Pai do céu, o que eu fui fazer?” Mas não era. Era uma coisa do ovário policístico, hormonal... Fiz teste, fiz beta, não estou. Mas me deu pânico, não podia nem imaginar estar grávida de uma pessoa que não tem nada a ver, que não é parceiro, que não é namorado, não é nada. Então eu tive um pânico. Porque você passar uma informação para elas a gente se acha dono do saber. Mas quando é com a gente... Eu não gosto, não acho legal o DIU para mim... Eu passo para elas porque muitas querem colocar, porque tem que falar... Porque tudo que é de introduzir: métodos diafragma, DIU, camisinha feminina, eu não acho legal para mim, eu não gosto. Prefiro o preservativo masculino coloca na pessoa e pronto. Ou eu ingiro alguma medicação ou então preservativo... Eu prefiro assim... Já que eu não posso usar medicação nenhuma mais, uso preservativo. Cássia, 36 anos

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A forma como lidam com essa diversidade destaca de maneira interessante

as mediações em torno do conhecimento sobre cada método, e conseqüentemente da

escolha e do uso pelas mulheres em sua prática contraceptiva.

As informações sobre os métodos são compartilhadas no circuito íntimo de

relações, principalmente entre mulheres, como já comentado anteriormente. Essa troca

de experiências influencia na confiabilidade e nos efeitos dos métodos contraceptivos

sobre seus corpos. Os serviços são também fonte de informação, assim como são

também as revistas, os jornais, a televisão. Essa mistura de saberes se confunde ainda

com a crença do potencial de serem boas na função de reproduzir na criação das

necessidades relacionadas ao método contraceptivo.

Entre os métodos naturais as mulheres destacam sua rede de convivências

como fonte de informação e a surpresa que tiveram quando eles não funcionaram.

Sandra e Beatriz sabiam que enquanto estivessem amamentando não engravidariam,

entretanto esta era metade da informação que as protegeriam de uma gravidez. O

método da amenorréia da lactação somente é confiável enquanto o bebê mama em livre

demanda e até os seis meses de idade não recebe nenhum tipo de líquido ou alimento e

no caso de Beatriz, o filho tinha um ano e meio quando ela ainda usava a amamentação

(Método da Amenorréia da Lactação) como método para não engravidar.

Eu engravidei muito nova, da Lara, aos 16 anos. Aí com 6 meses eu já engravidei do Daniel novamente. Porque estava achando que quando você está amamentando não podia engravidar e não tomava nada, realmente. Engravidei do Daniel. Sandra, 28 anos Quando ele fez um ano e 5 meses ele estava mamando ainda no peito. Aí todo mundo falava que não pegava gravidez, que quem amamenta não pegava. Aí eu não usava nem camisinha, nem remédio, nem nada. Aí quando eu fui dar conta eu já estava grávida dela. Beatriz, 31 anos

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O coito interrompido é sabidamente arriscado de usar, mas as mulheres

assumem esse risco quando se vêem sem outra alternativa diante das opções

disponíveis, como comenta Beth. Quando elas freqüentam o serviço ouvem sobre a

contra-indicação do método no intuito de evitar uma gravidez, mas é ao ouvir como ele

funciona que elas chegam a usá-lo ciente da não-aprovação pelos profissionais.

Eu vim até na doutora. O comprimido me dava muita tontura... dor de cabeça. Aí a doutora pediu para mim parar e usar camisinha. Mas aí... o pai não gostava. (...) Aí ficava nesse negócio de jogar fora. Nesse negócio de jogar fora... eu peguei ela. (...) Eu falei com ela que meu esposo não gostava muito... Aí ela falou que era a melhor coisa que eu podia fazer... ou tomar o remédio ou usar a camisinha. E seu não pudesse usar... se eu não conseguisse... se não pudesse usar... se ele não gostasse de usar... eu ia ficar jogando fora, mas era muito arriscado eu pegar filho... que isso não é lá... certo. Mas aí o que eu poderia fazer com ele? (...) Aí... fazia, né? Beth, 25 anos Agora? (...) Aí, estava sendo coito interrompido. (...) Eu aprendi... Eles nem aprovam muito isso... no planejamento familiar, lá na Formiga. (...) Eu não estou usando. Eu não uso nada agora. Entendeu? A gente tem consciência disso. A mesma coisa... coito interrompido e quando está assim muito a fim mesmo ele põe a camisinha, não tem como engravidar aí. Entendeu? Porque a gente está bem ciente mesmo. Rosa, 42 anos

A tabelinha é um método que exige conhecimento do corpo e do

reconhecimento das condições que possam modificá-lo. Rosa conta sua experiência de

uso deste método e que aliado ao coito interrompido e esporadicamente o preservativo a

tem protegido de engravidar. Este método, entretanto, é revelado como pouco eficientes,

como conta Clarice quando diz que sua tabela está com 13 anos.

Eu já conheço o meu corpo bastante, eu sei do meu período fértil. Entendeu? Eu já sei de muita coisa, não tem perigo d’eu engravidar agora mesmo. (...) Me cuido pra isso. Rosa, 42 anos Eu fazia tabela. Minha menstruação nem sempre é regular mesmo, né? E acabou falhando mais uma vez. E minha tabela está hoje com 13 anos. Clarice, 36 anos

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O preservativo masculino, além de ser usada enquanto se constrói confiança

na relação com o parceiro, tem uma forte representação de fragilidade. As falas de que

estoura ou fura quase sempre completam os discursos sobre gravidezes que

aconteceram com o uso deste método. Helena comentou ainda que os preservativos

podem variar sua eficiência de acordo com a cor da embalagem, como mostra seu

relato.

Se for a primeira vez que eu conhecer o cara... tiver a fim de dar um lance nele... eu uso camisinha. Mas se caso... vamos dizer... a camisinha estourar... que a gente não sabe... Nunca estourou comigo.., nunca estourou.., e peço que isso nunca aconteça. Se acontecer eu já estou prevenida do que? (usa injeção) Em relação a filho... Né? Marina, 25 anos Aí eu engravidei do meu filho assim... com a camisinha amarela, porque a camisinha roxa não fura, mas a amarela furou. E aí eu engravidei... dele... do Jorge Wellington. (...) eu pegava aqui no posto. (...) agora estou usando normal... Agora estou usando... porque agora tem a camisinha roxa... agora estou usando. (...) Agora eu só uso a roxa... (rindo) A amarela joguei tudo fora... (rindo) Helena, 22 anos

Para os métodos que as mulheres dependem da participação ativa do

parceiro na decisão de usar e ter controle durante a relação sexual, como no coito

interrompido ou uso do preservativo masculino, as mulheres não se isentam de trazerem

para si a responsabilidade por ter engravidado. Nesses casos elas deixam transparecer o

poder que os parceiros têm sobre seus corpos e mesmo resistentes acabam por aceitar

uma nova gravidez e manter relações usando o mesmo método.

Entre os métodos hormonais aqueles que mais se destacam nas falas das

mulheres são a pílula e a injeção. Margarida comentou que o comprimido exige um

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período de adaptação em que alguns sintomas, como enjôo, podem acontecer, mas que é

preciso vencer esta etapa.

Ela tomava, com ela tudo bem, mas comigo não sei se era o período de... Como que fala? De entrar pra esse período do corpo aceitar, né? Não consegui vencer não (rindo). Não deu pra esperar. (...) Me sentia enjoada, meus seios inchados, a barriga grande, aí eu resolvi parar mesmo, estava muito estressada. Margarida, 25 anos

As mulheres descrevem alguns sintomas como limitantes do uso do

comprimido, entre eles o engordar e a dor de cabeça.

Está engordando um pouco... (...) Tá engordando um pouco. Manuela, 23 anos Porque todos que eu uso me faz mal. Porque eu sinto dor de cabeça, eu sinto dor na perna, uma dor de cabeça muito forte, enjôo, vômito, dor na perna que eu não consigo nem mexer. Então assim me faz muito mal, então eu parei em todos. Juliana, 19 anos Olha, o via oral não funcionava porque eu tinha muito enjôo, muita dor de cabeça, vômito... Eu ficava... A minha pressão baixava, tudo isso. (...) Eu engordei. Eu sempre fui cheinha, mas não tanto quanto hoje. Eu já fui mais na realidade, né? Pesei 135, hoje eu estou com 110. Entendeu? Mas... Assim, ele que fez... No meu pensamento foi ele quem fez engordar, porque eu não era tão gorda dessa forma. (...) Mas, enfim, esquecia... Porque aquele negócio... Tem que tomar todo dia no mesmo horário. Ih! Eu sou muito coisa com esse negócio de remédio. Eu comprei um monte... Não tomo remédio não, eu sou alérgica. Eu tenho que tomar meu remédio todos os dias, quem disse que eu tomo? Não tomo. Entendeu? Então pra mim fica difícil. Entendeu? Emília, 27 anos Porque toda vez que eu tomo anticoncepcional o meu sistema abala, meu sistema nervoso fica abalado, eu fico agressiva, então eu já tentei de tudo, aqui já me deram todos os remédios possíveis. Cassiana, 21 anos

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A pílula é referida como uma regra que jamais pode deixar de ser cumprida

quando o objetivo é não engravidar e muitas vezes é responsabilizada pelo ganho de

peso entre as mulheres.

Tem que cumprir que nem uma regra. Manuela, 23 anos Tomo um 11 horas da noite. (...) Todo santo dia, todo dia. Tereza, 26 anos E eu assim, quando eu tomava Microvlar eu engordava muito. (...) Tanto que eu sou fofinha, né? Até hoje. Eu era tão magrinha. Então eu falava: “Ah! Eu não quero...” E é enjoativo, porque você tomar aquele remédio todo dia, todo dia, todo dia... Aí no final de cada cartela, dá um certo enjôo. Você olha pra ele assim: “Ai, tenho que tomar isso de novo!” Tem que tomar. Marli, 32 anos

Entretanto, para outras mulheres esta regra de tomar diariamente o

comprimido pode ser complicado já que em suas rotinas o esquecimento de tomar a

pílula é freqüente. A dificuldade de lembrar sempre em um mesmo horário é referida

pelas mulheres como um principal fator para que desconsiderem este método entre as

opções disponíveis, fazendo com que muitas das mulheres desconsiderem o uso da

pílula para seu controle reprodutivo. Amanda engravidou após inúmeros esquecimentos

com o uso do comprimido e comenta que nos primeiros meses o uso é mais regular por

ser uma novidade, mas passada esta fase isto se complica.

Mas só que eu esqueci de tomar umas três vezes. Aí eu fiquei um mês sem tomar pra regular e começar a tomar de novo. (...) Eu tomei cinco meses acho que foi correto, mas depois... Foi ficando difícil... (...) No começo que era novidade, entendeu? (...) Dava certo. Amanda, 22 anos

Amanda traz uma idéia de que este uso inconstante proporciona um

estímulo no útero que favorece à mulher engravidar como foi o caso dela.

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Uma colega minha que me falou, quando eu esquecesse de tomar, que estimula o útero. Então como eu fui tomar e parei ao mesmo tempo, com certeza... Ia ser mais fácil... (...) Seria sorte se não engravidasse. Amanda, 22 anos

Quanto ao método injetável, ele surge como uma alternativa mais fácil que

responde ao problema do esquecimento com a pílula, uma vez que é usado uma vez ao

mês ou a cada três meses. Amanda completou seu discurso dizendo que após o

nascimento do filho a alternativa escolhida será a injeção, já que não esquece porque é

uma vez por mês.

Injeção eu não esqueço porque é uma vez por mês. Amanda, 22 anos Aí por isso que eu optei pelo injetável, que é uma vez no mês, todo dia 5 eu tinha que tomar remédio, então foi isso. Entendeu? Emília, 27 anos Só que a pílula pra mim é ruim, porque eu sou muito esquecida, né? Aí eu falei: “Não, eu tenho que tomar outra coisa.” Aí passou injeção pra mim. Eliana, 21 anos

Mesmo que sejam menos dias para se lembrar de usar, algumas mulheres

não conseguem controlar o uso deste método, como comentou Helen sobre seu

desligamento e para ela somente ligando é que conseguiria ter controle sobre sua

reprodução.

Tomava direitinho, mas tinha mês que eu não tomava, aí tomava, depois tinha mês... Eu já não tomava comprimido porque eu era muito esquecida, eu não conseguia tomar o comprimido. Então a médica falou: “Então vamos tomar injeção que você a injeção é muito mais segura que você vai tomar só mês a mês, então a gente controlada mais”. Mas aí eu não tomava o remédio. (...) Porque eu estava muito desligada. (...) Aí eu ficava naquele desligamento, aí depois da menstruação eu tinha que tomar no dia, no dia certinho, mas aí eu não tomava, mesmo tendo a injeção em casa eu não ia tomar, entendeu? (...) Eu esquecia. Helen, 24 anos

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A pílula e a injeção compõem um imaginário de que o uso por tempo

prolongado pode trazer efeitos nocivos sobre o corpo, como o ressecamento do útero.

Essa idéia faz com que aconteçam interrupções periódicas para limpar o útero. Foi com

esse comentário que Eliana contou sobre sua gravidez atual.

Tipo assim, eu parei porque... A injeção poderia continuar, mas eu parei porque... Sei lá! Eu acho que ficar tomando certos medicamentos assim – Sei lá! mais tarde vai me fazer mal. Entendeu? Letícia, 36 anos Foi assim uma surpresa, porque eu sempre me cuidei, tomei remédio... Aí fui ao ginecologista, e o ginecologista falou assim: “olha, você não pode ficar tomando muito tempo a injeção, porque se você tomar direto quando você quiser engravidar você não vai conseguir”. Porque o ruim da injeção é isso, ela protege, você só toma uma vez por mês, ela protege, mas resseca, pelo que ele falou, resseca o útero, não sei se é verdade. Aí parei de tomar durante um mês, nesse um mês que eu parei de tomar eu peguei gravidez rápido. (...) Né? Porque tem pessoas que demoram a limpar o útero com a injeção, comigo não, foi diferente, foi rapidinho. E 47

Essas interrupções quase sempre são referidas pelas mulheres como

responsáveis por algumas de suas gravidezes o que faz com que desconsiderem estes

métodos entre os possíveis de usar e buscam outros que sejam mais eficazes.

O dispositivo intra-uterino (DIU) geralmente é utilizado após a experiência

com outros métodos contraceptivos, apesar disso não ser uma regra, Nadir comenta que

o serviço de saúde que a atendeu tentou diversas alternativas antes de encaminhá-la para

um serviço que colocasse o DIU.

Aí eles pediram pra mim tentar usar o anticoncepcional. Não deu certo, suspenderam, passaram uma injeção, também não deu certo, suspenderam. Aí eles viram que não tinha jeito me encaminharam pra por o DIU. Nadir, 31 anos

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Os fortes sangramentos são referidos como condições que inviabilizam o

uso do DIU pelas mulheres e causam até medo do quanto este efeito poderia prejudicar

o seu corpo. Entretanto Vanessa, mesmo ciente dessas informações decidiu colocar o

DIU e há dois anos tenta retirar porque fica muito fraca.

Aí esse DIU diz que a mulher que menstrua muito não pode botar, dizendo que... Diz que a mulher que menstrua muito não pode usar... que dá muita cólica, aí sai do lugar. Aí eu fiquei com medo de botar. Beatriz, 31 anos Poderia me machucar... Ou ficar as vezes também de inflamação daqui, inflamação dali, eu desisti. Luíza, 22 anos Todas as pessoas que menstruam muito ele aumenta o fluxo, mas eu não sabia que... eu não imaginei que poderia ser tanto igual é. Que eu fico muito com dor nas pernas quando eu estou menstruada. Eu fico fraca, se deixar eu desmaio. (...) Eu coloquei consciente. Vanessa, 38 anos

Uma das vantagens que as mulheres vislumbram com o DIU é que por um

tempo mais longo elas não precisarão se preocupar em comprar, tomar ou negociar o

uso de método contraceptivo, o que pode soar como garantia de maior controle sobre

suas vidas reprodutivas.

Foi uma colega minha. Tem uma colega minha que ela usa o DIU há 5 anos. Entendeu? Ela falou: “Tem que ficar fazendo observações”, essas coisas assim. Aí eu queria colocar o DIU. Fernanda, 26 anos E a minha madrinha ela tem um DIU há 8 anos e eu tenho outra tia que também tem DIU há 11 anos. Entendeu? Aí eu tenho uma prima também que ela é enfermeira que ela me falou: “Bota o DIU que é bom e tal”. Tatiana, 23 anos

Os métodos definitivos pertencem aos discursos de contraceptivos seguros,

mas também tem ressalvas. Tanto a laqueadura tubária quanto a vasectomia são

métodos que interrompem a trajetória reprodutiva de homens e mulheres e vem

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acompanhados de significados que reverberam para outros aspectos da vida. A

vasectomia surge entre comentários de causar impotência nos homens, apresentado

pelas mulheres como a principal causa da baixa aceitação do método pelos parceiros.

Entretanto, para aquelas mulheres cujos companheiros fizeram vasectomia é comum

que os aspectos sexuais sejam desconsiderados enquanto enaltecem o cuidado e carinho

dos parceiros em cumprir a função que seria dela.

Os homens cismam que vai perder a potência. (rindo) (...) Ah, eu não sei! Eu acho que vem da criação também. Porque é igual aquela história de que homem pode ter várias mulheres e a mulher não pode. Eu acho que esse tabu vem daí também. Nice, 38 anos Ele fez o planejamento familiar aqui na Fiocruz, que agente ficou sabendo que aqui tem, ele veio, fez tudo direitinho, me passou alguma coisa também. Sabe? (...) Porque uma vez feito não tem como voltar atrás, depois que fez acabou. Mas a gente já tinha decidido mesmo. (...) Ele conversou sim com um colega dele que já tinha feito, pra saber mais ou menos, porque falam tanta coisa, né? Que a pessoa fica na dúvida. Ele conversou com um colega dele sim que já tinha feito. Aí ele tomou coragem e fez. (rindo) (...) Aí a gente conversou, ele decidiu, optou, que eu conversei com ele pra ele fazer a vasectomia, que seria mais fácil e tal, aí ele concordou. Até fez segunda-feira. Cecília, 32 anos

Quanto à laqueadura tubária (LT) este método vem despreocupar a mulher

sobre o controle de sua vida reprodutiva, como comentou Clara.

De alguma forma eu queria ligar, nem que fosse pagando, eu queria. (...) É bom. A pessoa ligar, a pessoa ficar despreocupada, sabe? Clara, 34 anos

A segurança da LT está associada à técnica utilizada no procedimento,

referidas pelas mulheres como cortar ou dar nó. O cortar oferece confiança às mulheres

de que não voltarão a engravidar novamente, enquanto o nó pode ser desfeito ao longo

do tempo e não é, portanto garantia absoluta.

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Foi rápido. Só que eu estava tão nervosa que eu não pedi pra mim vê... naquele negócio... Porque a gente pode pedir pra gente vê. Aí eu queria ver, só que na hora eu fiquei tão nervosa. Ainda a mulher que ia fazer a minha ligadura era veio conversou comigo, perguntou quantos anos eu tinha. E de tão nervosa que eu estava não passou pela minha cabeça de falar: “Oh, na hora que cortar eu quero ver”. Não passou. Aline, 27 anos

Além da técnica as mulheres também associam a segurança à via pela qual

ela foi realizada, se durante a cesárea ou pelo umbigo. Durante o parto o procedimento

é bem visto em seu potencial de impedir a gravidez, enquanto pelo umbigo pode deixar

suspeitas. Mas mesmo com estas questões em torno da eficiência do método, a LT pode

não ser tão segura perante corpos bons de se reproduzir, como comentou Cleonice.

Fiquei preocupada. Porque eu falei: “Ah, meu Deus, será que eu vou engravidar de novo?!” Aí ela fez um aninho... Aí eu falei: “Agora eu estou tranqüila, porque me ligaram mesmo”. Cleonice, 48 anos

Cada método contraceptivo tem graus de confiabilidade que variam entre as

mulheres, como por exemplo, a pílula pode ser o mais seguro para umas, pois tem a

certeza que depende delas e não de outros para cumprir o objetivo. Para outras, somente

a laqueadura atenderia ao seu intento de não engravidar mais. O que faz com que as

mulheres optem por um ou outro método está muito além dos efeitos ou percentuais de

garantia de cada método na função contraceptiva.

O processo de escolha do método contraceptivo pelas mulheres demonstra

uma articulação direta com as vivências de outras mulheres com determinado método, e

menor influência de outras fontes de informação, como a mídia e os serviços de saúde.

Marilene, agente comunitária de saúde em uma das unidades, é fonte de informação

para as mulheres de sua microárea e acessa também a rede privada para assistência

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contraceptiva, mas mesmo assim as ponderações para a escolha de um método envolve

a vivência de outras mulheres.

Por eu saber... por eu ter conhecido antes... como agente de saúde... por ser um dos métodos muito eficientes... claro... todo método tem limitações... tem sua margem de erro... mas a injeção é um método muito bom... Eu considero pra mim muito bom... pelos conhecimentos prévios que eu tenho... e até por relato de paciente que fala que tomou injeção muito tempo... que depois engravidou... aquela coisa toda... por isso... e até mesmo por comodidade pra mim... que é uma coisa... que eu tenho medo de esquecer... que é um medicamento oral... e pra mim... é muito mais tranqüilo... é mais segurança pra mim... Marilene, 25 anos

Quando a escolha é por um método que pode ser adquirido sem indicação

direta de um profissional de saúde, como por exemplo, a pílula e a injeção, as mulheres

contam com a ajuda de colegas ou parceiro, ou até mesmo escolhem por gostarem do

nome, como foi o caso de Denise.

Foi uma amiga minha que me indicou ele e aí eu fiquei tomando. Tereza, 26 anos Meu namorado também era uma pessoa bem consciente e ele também era farmacêutico, e ele disse: “Vamos tomar remédio pra evitar filho”. Clarice, 36 anos Fui na farmácia, peguei aqueles nomes, primeiro me informaram dos nomes, cheguei lá e pedi a Evanor. (...) Por incrível que pareça, parece até que eu sou doida, logo que vi eu gostei do nome. Denise, 41 anos

Por outro lado, optar por um método que depende diretamente do

profissional de saúde, como o DIU ou a LT, significa adentrar a rede de fragilidades e

potencialidades que compõe os serviços de saúde e foi apresentada anteriormente neste

texto. Os discursos em torno da escolha pela laqueadura tubária revelam que esse

processo acontece por um caminho diferente daquele utilizado para outros métodos.

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Apesar de ser um método de caráter definitivo, a escolha é pragmática e desconsidera

outros métodos como opção, uma vez que algumas necessidades se tornam prioritárias

sobre outras nas vivências das mulheres que optaram pela laqueadura tubária. Não ter

mais filhos é uma decisão que até poderia ser substituída pelo adiamento de tal escolha,

mas a busca por método confiável e que não coloque em risco outros de seus planos,

como adquirir a casa própria ou poder dar condições melhores de vida para seus filhos.

Assim, eu queria ter e não queria. Porque eu falava que depois que meu filho estivesse maiorzinho, depois de grande... eu queria ter mais um. Que até agora quando eu vejo na televisão eu começo chorar. Eu fico sentindo falta daquele bebezinho, o cheirinho de bebê. Eu fico assim pensando. Ah! Mas eu queria ter, com uma pessoa honesta. Melhor você ligar do que você está sofrendo. Como que eu vou querer ficar enchendo a casa de filho, não poder dar condições, e dependendo só de uma pessoa? (...) É melhor você ligar. Então eu liguei com vontade e sem vontade, mas eu queria. Queria e não queria, mas o melhor pra mim era ligar. Aline, 27 anos Porque eu acho assim... que não tem mais condição... assim... de ter mais filhos... está muito difícil hoje em dia... e... a oportunidade que o governo deu (de fazer LT pelo SUS)... eu não posso largar... tenho que pegar... porque depois... Beth, 25 anos Foi melhor... Eu ter ligado... Porque ter que tomar remédio sempre e não ter dinheiro... Não dá né? (...) Ainda mais esse remédio que é... Que tem que tomar todo dia... Rita, 35 anos

Apesar dos métodos terem características variadas entre os discursos e

assumirem papéis diferenciados de acordo com as vivências de cada mulher, como bom

ou ruim, eficaz ou não, confiável ou não, a laqueadura surge destacadamente como um

dos métodos mais idealizados entre as mulheres.

Ah! Se eu pudesse ligar, eu ligava. (...) Porque aí, né? Não pega... Valquíria, 21 anos

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Poucas mulheres desconsideram a laqueadura como um método que elas

escolheriam. Elas se baseiam no dinamismo de suas vidas, que não é, mas está assim

hoje e pode ser diferente daqui a alguns anos, e elas desejam viver todas as suas

possibilidades.

A não se que eu casar com um homem famoso, cheio do dinheiro, que nem Ronaldinho Gaucho, Romário... Sei lá! Aí sim... Aí quem sabe? (...) Conversando com essa menina (amiga), esse menina falou: “Você é doida, se você tiver um... Se você conhecer uma pessoa que você estiver apaixonada e você ver que é aquela pessoa, e pedir um filho, você não puder dar esse filho?”. (...) Eu tive esse conselho de duas amigas minhas... entendeu? que hoje essa pessoa teve filho com uma pessoa e hoje ta com outra pessoa e não tem como dá um filho. Aí eu fiquei pensando: “é mesmo, né?!”. Mas é muito complicado... muito complicado... Mas como o mundo dá muita volta, né? Hoje... eu to nessa situação... e como... Agora... eu posso realmente, né? (...) Eu penso nisso também... Marina, 25 anos Ligar também eu não pretendo ligar, porque eu acho que isso daí não... Eu quero dizer o seguinte, não é questão de... Não se trata da gente de ligar... (...) Eu falo pro meu marido também, nem eu quero ligar, nem eu quero que ela faça vasectomia, porque amanhã ou depois não dá certo, ele cisma de ficar com outra pessoa, quer ter um filho... Eu falei pra ele: “É só a gente se prevenir”. Sueli, 23 anos

A escolha de um método contraceptivo de uma maneira geral está sujeita a

várias mediações, como comentado até agora. Entretanto, para algumas delas, escolher e

usar um determinado método contraceptivo não isenta a possibilidade que uma gravidez

aconteça. Isso relembra o potencial reprodutivo dos corpos das mulheres que pode ser

maior que qualquer um dos métodos que ela possa escolher, como comentou Gabriela,

uma vez que engravidar não faz parte de seus planos neste momento.

Eu sou muito psicótica... Eu fico... Ai meu Deus, será que eu vou engravidar... Será que eu vou ficar assim... Aí até a minha amiga fala assim: “Gabriela, 19 anos, tira isso da cabeça, que não sei o que...” Mas eu não consigo... Enquanto a minha menstruação não... Às vezes, assim... Por fazer até sem camisinha (ela usa pílula), às vezes eu fico assim, será que eu vou engravidar, ai meu Deus... Aí elas ficam

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assim: “Fica tranqüila cara, não é assim.” “É assim sim.” (...) Ah... Eu quero casar... Quero ter meus filhos... Tudo direitinho, certinho... Gabriela, 19 anos

Aline comenta que existem forças que ultrapassam qualquer limite de

confiança nos métodos contraceptivos, até mesmo aquele que ela considera mais seguro

(a laqueadura tubária). Para ela a reprodução não tem como ser controlada por nenhum

deles, uma vez que faz parte da trajetória natural das mulheres.

Porque eu não sei, a gente pode usar camisinha, a gente não vai confiar; a gente pode tomar remédio, não vai confiar; pode tomar injeção que não vai confiar, pode colocar esse DIU que não vai confiar. (...) Eu não sei em qual confio, porque quem sabe é Deus. Porque eu liguei na terra, mas Deus está lá em cima. Deus que sabe, né? Tem muita gente que liga e daqui a 10, 15 anos engravida. Aline, 27 anos

Até o momento abordamos diversas nuances em torno da experiência

contraceptiva das mulheres. Entretanto, a contracepção é somente uma das faces do

controle reprodutivo apresentado pelas mulheres. A gravidez surge nos discursos das

mulheres como um entroncamento na trajetória reprodutiva, e se por um lado ela pode

assumir a gravidez e cumprir o plano de se reproduzir, por outro elas podem optar pelo

aborto como forma de controlar seu número de filhos. A vivência de um dos caminhos

não impede que o outro venha a ser percorrido em outros momentos pela mesma

mulher. Tanto nos relatos sobre a gravidez quanto naqueles que envolveram a sua

interrupção, as mulheres expõem seus conflitos, valores e escolhas quando relatam suas

vivências.

O aborto induzido nem sempre é colocado pelas mulheres como uma opção

em seu controle reprodutivo. As mulheres têm razões distintas para aceitar ou ser contra

esta prática, entre elas os riscos de danos aos seus corpos, a idéia de que estão tirando

uma vida, etc. A decisão entre continuar com a gravidez ou realizar o aborto está imersa

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na teia de eventos, valores e relações que modifica e é modificada, sobretudo à medida

que experimentam cada situação em suas vidas.

Ah! Fazer o que, né? Estava dentro, não podia tirar. Aí tinha que ter ele. (...) Por que é uma vida, eu não vou tirar ele depois que já está grande na barriga. Úrsula, 32 anos Como eu não tenho essa coragem de fazer aborto, aí eu acabo encarando uma gravidez naturalmente. Clarice, 36 anos Ah eu fiquei doida! Mas depois a gente fica... Porque não posso tirar. (...) Eu até eu pensava... Do segundo eu tomei, me ensinaram uns negócios, mas eu vomitava tudo, eu não conseguia. Úrsula, 32 anos Assim as minhas amigas falavam que iam fazer aborto eu era contra, eu falava pra não fazer: “Ah, não faz isso, não faz isso, não faz isso”. Acabou que um dia eu mesma fiz o aborto. (...) Entendeu? Porque assim, só você estando no lugar da pessoa pra sentir, pra saber o que que é... Pra viver... Por isso decidi fazer. Juliana, 19 anos

O processo de decisão e prática do aborto é vivenciado com a participação

de pessoas de seu circuito íntimo de relações, destacadamente a mãe e o parceiro. A

mãe é uma figura importante ao apresentar essa opção e contribuir com recursos para

que interrompam a gravidez.

Partiu mais assim... Começou com a minha mãe. (...) Aí fui, comuniquei pra minha mãe. Sendo que eu era muito nova, também não tinha muita cabeça, eu não queria ter um filho. (...) A minha mãe falou: “Você quer? Você quer ter filho?” Minha mãe falou: “Não, vamos lá na farmácia que se a sua menstruação está atrasada você vai tomar uma injeção pra menstruação que está atrasada”. Aí eu fui na farmácia. Não adiantou nada. Eu falei: “Ih! Eu acho que eu estou grávida!” Aí depois eu fui e comecei a falar: “Ah, mãe! Eu não quero, não quero, não quero”. Porque até a minha vontade era voltar a estudar de novo. (...) Eu falei: “Não, não quero, não quero, não quero”. E também eu fiquei assim porque eu falei: “Pô, eu vou... Eu não trabalho, não estudo, vou criar um filho sozinha?” Porque eu também não tinha como chegar pra o pai do meu filho e falar: “Eu estou grávida de você”. Eu não era namorada dele, eu não era nada. Ele ia falar pra mim: “Você não está grávida de mim”. (...) Aí eu preferi não falar. E aí preferi também não ter o filho. Nadir, 31 anos

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Entretanto, a participação da mãe é revelada com conflitos pelas mulheres.

Se de um lado, as mães apresentam o aborto como uma opção para o controle

reprodutivo, por outro, determinam às filhas essa vivência segundo suas próprias

necessidades, como exemplo, a de sustentar mais uma pessoa, como conta Fernanda.

Minha mãe que mandou fazer... Eu era muito nova. (...) 15... eu acho... A outra eu tinha... 17... (...) Eu quis também. (...) Tomei citotec. Mariley, 21 anos Foi no período antes d’eu conhecer o pai do meu filho. (...) Foi. Eu estava com 19, 20. Eu estava solta, né? Solta. (...) Eu não decidia, quem decidia era minha mãe. E assim, eu não decidia, eu ficava triste, eu chorava, mas eu podia fazer o quê? Não tinha condições. (...)Ela não queria porque ela achava que ia ser mais um peso nas costas dela também, entendeu? Mais uma boca pra comer. Entendeu? Era isso que ela achava também. (...) Com Citotec. (...) (nunca precisou ir a hospital) Mas eu não queria fazer, sabe? Tanto que eu tenho meu filho e tenho a minha filha. Hoje era pra mim estar com os meus 6 filhos. (...) Eu ia ficar muito feliz, que a família ia crescer, né? Mas a minha vida, não tem condições. Não tem condições. Fernanda, 26 anos

Um caso extremo da participação da mãe na vivência de aborto foi relatado

por Jose. A entrevista transcorria normalmente até chegarmos a este assunto e ao falar

dessa experiência ela caiu em lágrimas. Tentava se refazer quando contou que hoje é

alcoólatra para que não tenha essa lembrança tão viva em sua memória e preferiu

encerrar ali a entrevista, sob lágrimas e pedindo desculpas.

Mas o aborto... minha mãe... Por mim não foi provocado, minha mãe que tirou. (...) É, minha mãe quando viu, quando soube... A primeira vez minha mãe levou ali na frente, aí deram injeção... perdeu. Depois foi com cabo de vassoura, eu perdi gêmeos. (...) Achei que foi uma coisa muito bruta. Uma pessoa pegar assim, você falar que está grávida. Você falar: “Pára, pára, pára”. (com voz de revolta) Depois você ficar na cama, e chegar mesmo na sua própria cama levantar e fazer assim (apontando com o dedo) no colchão e ver aquela poça de sangue que você está perdendo? Foi o que aconteceu comigo. (...)

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Vai fazer o quê? Vivia as custas dela, vivia na casa dela. (...) u queria que ela conversasse comigo. (chorando) Conversasse comigo. (chorando muito) Eu tive que ficar no hospital. Quando eu cheguei... no mesmo dia eu tive que lavar roupa de cama... (chorando) Que nem lavar a roupa de cama... Fazer comida e lavar roupa dos meus irmãos. Eu não tinha nem coragem... (chorando e falando ao mesmo tempo) Eu podia ter tido menina. Depois de um tempo pra cá... eu acho que eu só me sinto bem quando eu bebo... que eu deito na cama e não penso em mais nada... eu durmo, eu penso no dia de amanhã... (chorando) Você desculpa. Jose, 33 anos

Essa tensão entre opção e determinação não se esgota com as entrevistas,

mas esclarece que o controle da vida reprodutiva pertence não só à mulher e tem marcas

importantes de suas mães.

O parceiro está presente nos discursos sobre aborto, porém de maneira não

tão intensa quanto a mãe. Ele nem sempre é consultado na decisão de aborto e essa

omissão reforça a idéia de responsabilidade das mulheres com o controle reprodutivo.

Juliana apresenta uma série de argumentos para sua decisão de fazer o aborto,

vivenciado um mês antes da entrevista, entre eles as dificuldades que enfrenta para

conciliar trabalho e filho e a busca por melhor estabilidade financeira. Nesses

argumentos ela se mostrava segura na decisão de abortar, mas se contasse ao parceiro

talvez toda sua argumentação não fosse suficiente e ela viveria mais uma vez a

maternidade. Sendo assim revelou a ele que tivera um aborto, porém ocultando que fora

induzido por ela.

Meu esposo não sabe que eu abortei, porque ele não queria, até ele queria ter esse neném, porque ele é doido pra ter uma menina. Mas ele é maluco, não tem noção, né? Mas eu não quero. Aí eu passei mal, fui parar no hospital. (...) Ele sabia que eu estava grávida, mas não sabe que foi eu que causei o aborto. Eu falei pra ele que eu perdi normal. Juliana, 19 anos

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Se por um lado as mulheres não compartilham com os parceiros a decisão

de abortar, por outro eles podem requisitados para prover recursos para levar a cabo tal

decisão ou acompanhá-las durante o procedimento, como comentaram Beatriz e Rosa.

Na época ele era casado, aí eu morava com a minha tia. (...)Aí falei pra ele: “você dá um jeito porque eu não posso ficar com esse filho, porque eu moro na casa da minha tia”. E a minha tia estava falando muito na minha cabeça, Eu falei: “Não, eu não posso não”. Beatriz, 31 anos Isso, tive um outro aborto. Esse eu já fui na clínica direito, porque eu não queria, eu estava em crise no relacionamento. Ih, eu não queria mesmo! (...) Foi... com ele. (companheiro atual) (...) Sabe, nós fomos... Nós estávamos a ponto de separar. (...) Fui. Fiz tudo direitinho. Fiz. Nem tudo direitinho, né? Porque eu tive que fazer curetagem depois. Tive mais um problema que fui até pro Andaraí. Rosa, 42 anos

Ao início de sua vida sexual, Rosa descobriu que estava grávida e tinha

expectativa de apoio do parceiro para viver a maternidade, mas ele, entretanto ofereceu

recursos para que ela tirasse. Mesmo sem ter cogitado essa possibilidade previamente

ela decidiu pelo aborto. Três anos depois viveu a mesma experiência de desamparo do

parceiro quando engravidou, mas tinha condições de bancar a decisão de seguir com a

gravidez e assim o fez.

Engravidei aos 17, tirei, né? O meu namorado não pensou a mesma coisa que eu. Porque a mulher não pensa em tirar, né? Mas aí tirei escondido da minha mãe e do meu pai. Logo assim que eu perdi a virgindade eu engravidei. Não sabia nada. (...) (na segunda vez) Ele me dava dinheiro pra tirar, eu não tirava, comprava tudo... Falei assim: “Não, não vou mais passar por isso de tirar”. Aí eu trabalhava (...) Eu assumi ela sozinha. (...) Eu podia sustentar. (...) Recebia bem, trabalhava numa fábrica... ganhava por produção. (...) sempre comprei tudinho, nunca dependi. Rosa, 42 anos

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Ingrid também vivera uma gravidez não esperada e por motivos familiares,

o casal de namorados decidiu pelo aborto. Apesar de compartilharem a decisão, a busca

pela clínica, agendamento e pagamento do aborto ficou por conta do parceiro.

Foi eu e ele. Até por causa da família, né? A questão das famílias que não se entendiam. Era tudo muito escondido. Mas eu me lembro assim que eu fiquei muito aérea. Foi tudo por conta dele. Ingrid, 40 anos

Algumas mulheres referiram ter cogitado a possibilidade de tirar e quando

procuraram a mãe e/ou o parceiro para falarem da opção pretendida, a participação deles

conduziu à vivência da gravidez e maternidade, muitas vezes acompanhada pelo ir

morar junto com o pai do filho.

E, vou ser sincera, pensei até em abortar. (...) Mas depois devido eu ter a segurança neles, meu esposo e na minha mãe, essa idéia foi rápida. E eles me ajudaram muito. (...)Trabalhando a minha cabeça, e a gente sentou pra conversar uma vez, eu e meu esposo. Ele falou: “Lívia, a gente está morando junto. Eu trabalho, você trabalha. Veio a criança, então vamos aceitar”. Né? Joana, 27 anos Quando eu engravidei a princípio minha mãe queria que eu tirasse. (...) Aí eu bati o pé, falei que não ia tirar. E aí ele me apoiou em tudo. Paula, 25 anos

As mulheres, em suas narrativas sobre o aborto, privilegiam a descrição da

forma como foram realizados. Geralmente o aborto induzido é feito em casa, com

receitas caseiras ou com Citotec, ou em clínicas. É no circuito íntimo de relações que as

mulheres conhecem os meios de induzir o aborto e as referências de serviços que

realizam o procedimento.

Eu estava com um mês e duas semanas. Aí minha menstruação não veio. Eu tomei chá. Tomei muito chá. Nossa Senhora! Tomei vários chás. Tomei coca-cola quente, tomei chá de erva cidreira com Coristina D, com um monte de coisa, eu fiquei com a minha língua

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toda... Minha boca estourou de tanta coisa quente que eu tomei. Até que desceu, passei mal no meu trabalho. Juliana, 19 anos Ficou aqueles resíduos daqueles abortos, que você toma remédio muito forte. É muito perigoso, né? Que é um remédio de estômago. Assim, eu fiquei informada que era pra dor do estômago. Fernanda, 26 anos Aí lá no trabalho tinha uma menina que ela sabia uma clínica onde fazia isso. Tanto é que eu tirei e depois no mesmo dia eu fui pra casa assim e comecei a fazer faxina. Levei um tombo horrível! Senti muita dor, voltei pro hospital. Rosa, 42 anos

A maioria das mulheres viveu a experiência de aborto sem intercorrências

durante ou após o procedimento, mas isso fez parte dos discursos de algumas delas. A

idéia de erro que está associada ao aborto aparece nos relatos sobre o medo de sofrer

julgamentos dos profissionais, e é reforçada pela percepção de punição na forma como

eram realizados os procedimentos. Essa mesma idéia fazia com que a prática fosse

omitida nas informações oferecidas aos profissionais, mas o silêncio era quebrado pelo

saber médico quando examinavam seus corpos, lidando veladamente com o assunto.

Aí fui parar no hospital. Aí cheguei lá fiquei no soro, tomei os remédios. Não me deram muita confiança, só me furaram, fiquei... Isso aqui até tenho a marca ainda aqui, me furaram toda. E eu fui pra casa e tomei chá pra poder limpar sozinha. (...) Pelo fato d’eu ter feito o aborto. (...) Porque eles não gostam, eles maltratam mesmo. (...) Nossa! (...) Eu me senti (maltratada). Porque ela me furou muito, a enfermeira, e tomava injeção... Eu falei: “Pô, minha senhora, não tem como a senhora ver direitinho? Porque está machucando”. E não achava minha veia, porque assim, eu sou muito difícil pra tirar sangue, pra aplicar remédio na veia porque eu fico nervosa e some. Ela: “Não, eu tenho que achar. O que eu posso fazer? O que você foi arrumar, agora você agüenta”. (...) Nossa! Foi horrível! Eu chorava o tempo todo, o tempo todo. Foi muito difícil. Estava doida pra sair. Eu quase que puxei... Estava tomando remédio na veia, quase que eu puxei e fui embora, dava meu jeito em casa, porque estava sendo maltratada lá, então... (...) Também não vou ficar. Aí depois que eu tomei o remédio, fui embora por conta própria. Ela falou que eu não podia, eu fui assim mesmo. (...) Eu que decidi ir embora. Não quis ficar. Juliana, 19 anos

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Mas aí... até então a minha mãe não sabia de nada. Pra minha mãe era por causa do tombo. Mas no mesmo dia que eu tirei eu... levei um tombo. Voltei para casa, levei um tombo. (...) (foi para o hospital) Foi só mesmo uma revisão que eles fizeram. (...) E o médico ficou sabendo de tudo, eu pedi pra não contar. (...) Minha mãe não sabe, até hoje. Rosa, 42 anos

Com ou sem complicações as mulheres despertam a necessidade de buscar o

serviço de saúde para cuidar dos possíveis danos em seus corpos, também, algumas

vezes, para acessar outras estratégias de controlar sua fecundidade. As mulheres

revelam saber dos riscos ao decidirem pelo abortamento desassistido, mas correm o

risco para atenderem à necessidade de controle reprodutivo.

Porque eu não quero ficar tirando filho, porque depois quem vai ficar prejudicada sou eu. Por isso que eu não quero. Eu falei com o meu médico. Eu falei: “O senhor tem que arrumar um jeito d’eu pôr o DIU, porque se eu engravidar eu vou tirar. Eu não quero ter filho.” (...). Nadir, 31 anos Eu tenho medo de prejudicar meu corpo (...) que é uma coisa muito séria... Marina, 25 anos Então eu vou vir com ela aqui, no médico, e vou conversar, explicar pra ela, de repente vou ter que bater uma ultra, porque eu sinto muita dor, no pé da barriga, a menstruação desceu já duas vezes agora nesse mês. De repente pode... Sei lá! Pode ter causado alguma coisa e eu não sei. Juliana, 19 anos Inclusive eu estava com problema no útero. (...) Quando eu tive meu filho, eles fizeram até uma curetagem. Entendeu? Ficou aqueles resíduos daqueles abortos... (...) Então eu pensava que eu tinha problema no útero... Fernanda, 26 anos

A preocupação com a forma como o profissional receberá a informação da

vivência do aborto é apresentada pelas as mulheres como um motivo importante para

não falar sobre essa vivência em atendimentos posteriores.

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Porque tem algumas pessoas assim... Porque é uma coisa que não é legal né? Então as pessoas às vezes te olham assim com uma cara, aí outras criticam... Outras não falam nada. Às vezes eu não falava, mas assim, quando eu me sentia muito mal que eu fazia isso... Aí sempre eu ia no médico, o médico sempre falava alguma coisa. Perguntava, mas às vezes eu não falava. Só uma vez só que eu falei. Mas sendo que eu acho que o médico sabe. Aí eu falava: “Ah, eu acho que eu estou passando mal. Eu acho que estou grávida!” que não sei o que... Eu ficava internada, fazia curetagem, essas coisas todas, depois eu ia embora. (...)Mas a última vez aí eu fui e falei com doutora. A doutora: “Pô, isso não é legal!” Nadir, 31 anos

Se para a mulher é difícil falar sobre o aborto que induziu, no outro lado

nem sempre o profissional está aberto para ouvir sobre essa experiência. Cássia trabalha

em uma das unidades, teve um aborto espontâneo em sua trajetória e contou de seu

dilema em lidar com os relatos de aborto induzido durante o atendimento às mulheres.

Eu luto para não interferir, mas acaba às vezes... Quando eu não consigo colocar esse limite, eu vou ser bem sincera com você, eu peço pra outra colega atender na hora. Eu peço mesmo: “Olha, Luís, atende”. Porque a questão do aborto, é uma coisa que me trava muito, porque eu sou muito contra, não adianta. Então toda vez que eu atendo que vem para mim e fala assim: “Ah, não...” Que no preventivo a gente pergunta: “Você já engravidou quantas vezes, já fez pré-natal, aborto quantos?” “Ah fiz 5”. Isso na hora eu acho que é até visível. Eu acho que aquilo realmente já me trava. (...) Eu tenho que parar um pouco, parar um pouco para respirar e peço pro médico atender. (...) Interfere. Para mim interfere. Eu faço o possível, te digo de coração, tem horas que eu até me violento... para tentar separar, mas essa questão do aborto me atrapalha muito. De você atender a pessoa, examinar e ter o mesmo cuidado que com quem teve o aborto espontâneo, que chora com você. Tem caso da pessoa chorar mesmo no consultório lamentando por ter perdido, e logo depois entrar uma dando graças a Deus que conseguiu botar um galho de mamona, ter introduzido na sua vagina, tentou tirar, não conseguiu, até que a criança nasceu com pé eqüino, alguma coisa assim. Isso acaba comigo. (...) Eu ter ouvir aquela história... engolir e continuar atendendo. Para mim não dá. Eu paro, disfarço, encaminho para pessoa. Fazia muito isso na roça, na roça é comum de acontecer isso. Eu não conseguia, eu parava na hora e encaminhava para outro colega. Cássia, 36 anos

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O plano de filhos e o controle reprodutivo compartilham uma construção

dinâmica e permanente nas trajetórias de vida das mulheres. É a partir dessas vivências

que outras se manifestam, principalmente aquelas relacionadas à gravidez, parto,

maternidade e maternagem.

Porque você tem uma vida sexualmente ativa tudo bem, você faz escondido e tal, mas e quando engravida? Aonde você vai enfiar o neném? Emília, 27 anos

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IV. Vivências de gravidez, aborto espontâneo e parto

Mas aí depois que eu fiquei com ele foi que eu fiquei sabendo como que ficava grávida. (...) Aí eu falei para ele. Aí ele foi e falou: “Então vamos alugar um quarto, vamos morar junto, vamos tentar”. Né? Eu falei: “É.” Aí eu fiquei morando com ele. (...) Aí eu fiquei conversando com as vizinhas, com todo mundo aí eu fiquei sabendo. Aí agora eu sei um pouco, né? (...) A maioria foi tudo que eu comprei, né? Mas muita gente ajudou. (...) Dava as coisas pro neném quando eu estava grávida. (...) Eu trabalhava tomando conta de neném. Aí foi... Eu já sabia até dar banho. Dar mama é que lá no hospital as enfermeiras ensinaram porque eu nunca tinha dado de mama, a primeira vez... Aí fui aprendendo aos poucos. (...) Foi normal. (...) Comecei a sentir dor era meia noite, aí quando foi 8 e meia da manhã do dia seguinte foi que eu tive ele. (...) Ficou nervosão. (o companheiro) Ficou lá no hospital só saiu depois que eu ganhei. (...) Foi a maior festa. (...) Cuidava de casa, do bebê, do marido. Essa rotina. (...) Depois que ele completou 3 anos que eu fui trabalhar. Natália, 32 anos

A menarca e a experiência da primeira relação sexual são eventos que

delineiam no horizonte das mulheres a perspectiva da vida reprodutiva. A vivência da

primeira gravidez dá uma maior concretude dessa expectativa, mas ela nem sempre é

consumada e a prática do aborto pode manter em silêncio esse novo passo na trajetória

reprodutiva. É somente com a experiência do parto, do nascimento e da maternagem

que as mulheres inauguram definitivamente a vida reprodutiva, defrontando-se com

novas demandas e desafios. Novas necessidades são geradas e percebidas e outras

mediações influenciam a sua satisfação.

Ao falarem sobre suas gravidezes que resultaram em nascimento de filhos,

de maneira geral, as mulheres as apresentam como desejadas, seja por ela, pelo

companheiro ou ambos, entretanto, nem sempre é planejada: a gravidez pertence à

seqüência de acontecimentos naturais na vida da mulher.

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Não, a gente não queria, aí aconteceu. Eu fiquei grávida, né? (...) Já morava com ele. Aí eu nunca tive coragem de abortar, né? De fazer aborto, essas coisas, aí fiquei com meu filho. Clara, 34 anos Depois que eu fiz esse aborto aí eu fiquei um ano e 7 meses sem ter relações com ninguém. Aí eu conheci o pai dele aí com 3 meses de namoro eu engravidei, mas eu já esperava já. (...) Aí eu queria ele. Eu falei: “Eu conheci o pai dele e estou morando com o pai dele...” (...) Aí eu quis engravidar dele. Beatriz, 31 anos Assim, eu estava casada, aí ele assumiu, todo mundo ficou ansioso pra nascer a primeira neta, primeira bisneta, primeira sobrinha, primeira afilhada, primeira tudo. Aí foi assim. Cassiana, 21 anos

O desejo, a expectativa ou a decisão explícita de engravidar e o ter filho são

influenciadas por diversas situações. Entre elas estão o fato de ter parceiro, de poder

compartilhar a experiência emocional e ter garantidas as condições materiais mínimas

para cuidar da criança.

Porque de uns quatro anos pra cá eu resolvi ter outro filho... resolvi não, penso muito em ter outro filho. Mas o que acontece? Hoje não é confiável, não é confiável ir pra cama com qualquer um. Não dá... a vida não é desse jeito. (...) E também porque na época que eu decidi eu estava namorando uma pessoa e estava achando que aquilo ali fosse... me dar o caminho... que fosse por ali. Só que as coisas não foram desse jeito... (...) Não tem como, porque eu já não estou mais com essa pessoa e eu não vou entrar em qualquer outra para ter um filho. Isso não existe. Eu quero pelo menos conhecer um pouquinho daquela pessoa. Até porque existe um monte de doença, um monte de coisas. Bárbara, 38 anos Eu quero ter um filho, mas com uma família, com o pai junto comigo. Uma família de mãos dadas, não assim ser mãe... Porque meu filho vai crescer, vai perguntar para mim: “Mãe, e papai? Cadê papai?”não é? “Meus coleguinhas tem pai... no colégio, e eu?” (...) Então isso tudo eu penso. Cássia, 36 anos Que é como eu te disse, que agente estava guardando dinheiro, fazendo uma poupancinha, tal. (...) Olha só, eu acho que assim, o relacionamento... não é porque a gente esteja, que nós estejamos casados que... “Ah! Está casado pode ter filho”. Não, a gente tem que estar assim num lar legal, sem brigas. Tem que estar em harmonia em primeiro lugar... Eu acho assim, a criança tem que vir pra um

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ambiente agradável. Porque não adianta, você engravidou aí daí a pouco seu marido foi embora. Acho que fica uma coisa meio assim conturbada, não só pra gente, mas pra o bebê principalmente. Porque essa coisa de vai pra casa do pai, aí fica na casa da mãe, eu acho que tem que estar num relacionamento legal. Emília, 27 anos Foi horrível! (...) Por causa que eu não tive apoio de ninguém. Então, foi muito ruim. (...) Me botou pra fora. (...) Aí quando eu chegava eu dormia na rua... nas portas das casas... E de manhã ia pro trabalho. Camila, 35 anos

A representação da idade limite para se ter filhos também aparece na

ponderação de algumas mulheres que desejam aumentar a prole. A relação entre corpo

que envelhece e filhos saudáveis gera preocupações em torno da decisão de uma nova

gravidez, como comentaram Bárbara e Vanessa.

Se no futuro... um futuro que seja bem próximo... Porque eu já estou com 38, não demora... É o que as pessoas dizem que depois de 40 não pode outro filho porque o filho vai nascer assim, vai nascer assado... Um monte de coisas bobas que as pessoas falam, quando eu vejo que mulher com 40 anos tem um filho perfeito, saudável, graças a Deus. Mas como eu tenho... eu acho que eu tenho juízo, eu tenho medo. Puxa, a vida já é tão difícil, aí vai que eu depois dos 40... engravido e tenha um filho com problema. Não vou deixar de cuidar dele, mas vai ser mais difícil ainda. Bárbara, 38 anos Porque ele não é pai dos meus filhos, a gente já tem quase 10 anos juntos. Aí a gente tem vontade de ter um filho, e como eu já estou com quase 40 anos já está passando do tempo, né? Vanessa, 38 anos

A gravidez é representada como uma grande mudança na vida das mulheres,

ainda mais quando seguida pela maternidade. Porém, como toda mudança tem aspectos

positivos, negativos ou até mesmo ambivalentes.

E geralmente as minhas gravidezes vinham num momento que eu não estava planejando. Então, quer dizer, desestruturava tudo, sempre. Sempre desestruturou de certa forma. Então eu não queria dessa forma. Nice, 38 anos

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Porque a gente ter um filho às vezes, pelo menos na minha história, é sempre novo, sempre acontece alguma coisa. Sandra, 28 anos Pra mim ao mesmo tempo que foi um choque também foi uma alegria. (...) Pra mim foi bom poder engravidar, mas assim eu não estava preparada, eu me sentia não preparada. (...) Foi um... Digamos que foi um vacilo. Foi um vacilo muito grande. Foi... Eu me prevenia com camisinha, não tomava remédio nenhum, não estava tomando, mas justamente o dia que eu não usei (rindo) eu engravidei. Tive ao mesmo um azar muito grande e uma sorte muito grande de engravidar. Porque eu não queria agora, queria daqui uns 5 anos. Que eu queria curtir meu filho primeiro, que ele é muito gostoso. E veio. Pra mim foi uma surpresa muito grande porque eu não esperava mesmo. Mas já que veio, Deus quis. Margarida, 25 anos

Ficar grávida introduz novidades nos modos como vivenciam o corpo e a

identidade e se relacionam com a própria imagem, além de relembrar, agora de maneira

mais incisiva, a responsabilidade na trajetória de cuidados, destacadamente com o

corpo para gestar e parir, mas também com os filhos que decidiram ter.

As mulheres mostram que o corpo é compartilhado com o filho que está

dentro da barriga e é com essa percepção de troca entre mãe e filho que elas instituem

cuidados aos filhos via corpo, através da alimentação e bem-estar.

Assim ter a experiência de engravidar, de gerar uma criança dentro de você, sentir uma criança mexendo dentro de você. Aquilo para mim foi tudo!(...) Beatriz, 31 anos Então eu sabia, eu conhecia o meu corpo. Eu acompanhei ele todo a gravidez inteira, (...) o meu corpo sadio a gravidez inteira... Eu não bebia refrigerante, eu não comi chocolate, eu cuidando da minha gravidez. Melissa, 24 anos

Mas o corpo da mulher está modificado pela gravidez, o que interfere na

imagem que tem de si mesmas e as maneiras de lidar com isso, tanto durante a gravidez

quanto depois do nascimento do filho.

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Eu engordei muito na gravidez, assim, a partir dos seis meses que eu comecei a inchar pra mim foi horrível. Fiquei uma elefoa. (rindo) Luíza, 22 anos Eu me achava horrorosa. Nem saía de dentro de casa. (...) Estava estudando nessa época, larguei. Estava com vergonha. Olha era do trabalho pra casa, de casa para o trabalho. Não saía para lugar nenhum. Nem para igreja que eu sempre gostei de ir eu ia mais. (...) Me senti muito horrível grávida. É por isso que eu não penso ter filho agora. Eu só penso em ter filho mesmo por causa da minha filha que eu quero que ela tenha um irmão. É muito ruim não ter irmão, ser sozinho. (...) Me senti horrível, gorda. Ai! Horrorosa. (rindo) Nilza, 24 anos Eu curti mais, fui mais cuidadosa (que na primeira), né? (...) Da Maria Eduarda foi maravilhoso! Porque eu tinha 31 anos, saía pra dançar muito, ia muito pra praia. Rosa, 42 anos Da gravidez da minha filha eu engordei 25 quilos. Do meu filho eu engordei uns 30 quilos. Eu engordei muito, muito mesmo. Olha aqui como que eu estou (apontando para a barriga). Entendeu? Estou com uma barriga de água. (rindo) Desculpa. Está horrível essa barriga! Engordei muito. Eu sou nova, né? Tenho 26 anos pesando 120 quilos. (...) Mas agora não. Já marquei nutricionista, vou me cuidar, cuidar do meu filho. Fernanda, 26 anos As queixas comuns à gravidez relacionadas a sensações físicas, como os

enjôos, o vômito e o ganho de peso, fazem parte dos discursos do normal de acontecer,

mesmo quando isso representa um grande incômodo. As intercorrências que fogem ao

normal, como a ameaça de aborto ou a gravidez de risco, somente reforçam os cuidados

com a gravidez ou acrescentam outros, mas que são vivenciados como pertencentes a

um mesmo grupo de cuidados.

Do meu filho eu não me lembro de ter ficado cansada, e desta aqui estou muito cansada, é um peso muito grande. Margarida, 25 anos Ah, é difícil! Porque tudo é mais cansativo, porque não tem muito pique pra fazer muito as coisas. Valquíria, 21 anos Ah... a minha sogra não deixava eu fazer quase nada. Assim... pegar peso... essas coisas... ela não deixava não, mas ela botava eu para

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trabalhar, falava que não pode ficar parada... e eu também não. (...) Só. Eu lavava louça... Só coisa assim. Eu varria um pouco... (rindo) (...) eu só queria dormir... Manuela, 23 anos Tive gêmeos. (...) Aí tive eles, fiquei passando mal também pra perder, mas aí tomei remédio, fiquei de repouso. Clara, 34 anos Antes do neném nascer eu fiquei internada... Com três meses de gravidez, eu passava muito mal e tal... Tava já ficando... Vomitava, vomitava... até a água que eu bebia eu vomitava, aí eu fiquei internada quinze dias... Tive uma diabetes gestacional durante a minha gravidez, e fazia vários exames, tudo o que tinha que fazer... Mônica, 37 anos

A relação entre cuidados com a gravidez e um produto saudável foi

percebido por algumas mulheres antes mesmo de engravidarem, o que antecipa essa

seqüência de cuidados. Os profissionais e serviços de saúde são envolvidos nessa trama,

tanto para ditarem as regras de cuidados quanto para avalizarem as condições de mãe e

bebê.

Aí eu fui conversar com a ginecologista ela falou assim: “Ah, Lúcia , você já está numa idade boa! Você já está com 28. Eu acho uma idade boa pra ter filho. Agora, o que você acha? Você acha que está no seu ponto?” Aí ela explicou, né? Tudo... Aí a gente conversou, bateu um papo, porque ela é muito boazinha. E aí ela falou: “Você tem que ver o que é bom pra você. Se você realmente for, você vem aqui, me procura, que aí a gente vai tomar as medidas pra você engravidar”. (...) E foi isso que aconteceu. Aí eu pensei, pensei, pensei, conversei. Aí depois eu cheguei: “Ah, vamos ter sim”. Aí fomos lá, conversamos. Ele também foi junto. Aí explicou pra parar de tomar o remédio, tomar algumas medidas, períodos... Tudo ela explicou. Lúcia, 31 anos Ah foi! Foi muito diferente. Muito mesmo. Que pelo menos fazendo o pré-natal... Por que hoje fazendo o pré-natal eles sabia como a criança ia nascer. E fazendo o pré-natal eles sabiam quando a criança ia nascer, quando o neném ia nascer, né? Eu não fiz o pré-natal, não fiz nada. Então do Alessandro eu já tinha feito o pré-natal, e dentro da barriga eles foram e bateram a ultra que eu fiquei horrorizada (rindo) com aquilo. Eles foram e bateram a ultra pra ver. (...) Com 16 anos. (...) Aí eles foram e bateram a ultra. Bateram... Um negócio gelado na minha barriga. Aí pegou, ele chamou o meu marido...

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Colocou nele. Eu falei: “Alguma coisa?” Ele: “Não. está ótimo o nosso filho”. Aí: “Poxa, chamar você?” (...) Isso que era fazer pré-natal. Bateu a ultra. (...)Aí fui, viajei com ordem do médico. O médico falou pra mim que eu... Que aí tudo tinha que ter ordem do médico, né? (...) Aí o médico falou pra mim: “Oh, você está com pouco tempo, você pode viajar, mas só não pode abusar”. Eu falei: “Está bom!” Aí fui viajei com o meu marido, pra poder conhecer a família dele que era lá na Bahia. (...) Aí ele pegou e me explicou. Falou: “Olha, você tem que ter descanso, porque é muitos dias de viagem...” Aquele negócio todo, né? Edna, 39 anos Eu fiz o pré-natal para acompanhar o meu filho, para ver a evolução, para o crescimento, e tudo mais. Eu sei a importância do pré-natal. (...) Tanto para o meu filho, tanto para mim. Melissa, 24 anos

A consciência dos cuidados com a gravidez, inclusive o pré-natal, revela

algumas questões que ecoam para além dessa experiência. Conciliar as vivências

reprodutivas com diversas atividades, como visita aos serviços de saúde, trabalho e

escola, é um desafio para as mulheres e uma representação clara de suas tramas de

necessidades.

No começo dava pra trabalhar, mas no finalzinho da gravidez foi um... Eu acordava cansada, ia trabalhar cansada. E aquela coisa, aquele peso, calor, também estava muito quente. Aí eu falei: “Gente, eu não vou agüentar”. Aí quando fiz 8 meses eu falei: “Não, não vou, vou parar”. Assim, foi cansativo no final, mas pra mim foi tranqüilo. Eliana, 21 anos Sem contar essas coisas (aspecto físico), a dificuldade que a gente tem, mesmo trabalhando. (...) Não, assim que eu engravidei eu continuei morando no trabalho, até uns 5 meses, eu acho, se não me engano. Eu engravidei em março de 2006, e em agosto eu comecei vir aos poucos mesmo, vindo pra cá. Até eu ter meu filho, aí fiquei de vez, morando de vez. (...) Continuei no trabalho. (...) No trabalho estou até hoje. (...)Margarida, 25 anos Estou lá até agora e quero ficar até quando puder. Até quando der pra ficar. Até então está sendo meio difícil porque os sintomas da gravidez está meio que me... (rindo) Mas dá pra levar. Até agora está dando pra levar. (...) O dia que eu preciso faltar pra ir a consulta ele não me fala nada. Eu comunico com antecedência, né? Porque ao mesmo tempo que eu preciso deles eles também precisam do meu

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serviço. Comunico, não tem problema nenhum. Mas ela está pegando muito no meu pé em relação a isso. Muito no meu pé. Ela não quer que eu falte devido as consultas, e é como eu já expliquei pra ela: “Não tem problema nenhum, a minha consulta é marcada as 10 horas da manhã...” Nunca sou atendida as 10... Olha a hora que já é né? (...) Então eu nunca sou atendida as 10. A última consulta mês passado eu cheguei aqui às 9, marcaram também pra as 10. Fui atendida às 11 e meia da manhã. Aí tinha exames pra marcar, marquei tudo. Fui lá fora, marquei os exames lá. Tinha que assistir uma palestra de odontologia ali fora. Quando eu sai daqui já ia dar 2 horas da tarde Sendo que eu entro no trabalho 8 e saio as 4. Até eu sair daqui pra ir pra Rio Comprido, trabalhar e sair as 4, que vantagem que tem, nenhuma, né? Mesmo que eu ficasse até as 6, digamos. (...) Mesmo levando atestado, mas ela implica, ela não quer. Entendeu? (...) Principalmente quando se trata diretamente com outra mulher. A empregada é mulher e a patroa é mulher. Eu acho que é muito competitivo, digamos assim. Eu acho que é complicado. (...) Com ele eu me dou mais fácil. (...) Entendeu? Explico a situação ele “Não, tudo bem. Se não der pra você vir hoje você vem amanhã, não tem problema nenhum”. Mas ela não, ela quer, quer, e quer porque quer. Joana, 27 anos

A expectativa de ter um filho despertada por uma gravidez desejada pode se

realizar com o nascimento do bebê ou ser frustrada pelas perdas espontâneas.

O aborto espontâneo surge nos discursos das mulheres como eventos

inesperados e tem descrições distintas daquelas referentes ao aborto induzido. Quando o

tema surgia durante a entrevista, as perdas referidas como aborto se davam em qualquer

período da gestação, mesmo quando o feto era natimorto ou até mesmo quando nasciam

prematuramente e morriam em seguida. Os relatos desses abortos se juntam aos

discursos dos demais abortos espontâneos porque á assim que as mulheres o vêem,

como algo que acontece sobre seus corpos na trajetória natural de suas vidas

reprodutivas, onde a gravidez por vezes dá certo e chega ao produto final, um bebê, e

por outras não.

Foi aborto espontâneo. Estava dormindo, aí levantei sentindo cólicas, né? Aí fiquei sentindo cólicas, sentindo cólicas, dali a pouco minha bolsa estourou, aí saiu aquela água verde. Fui pro hospital, quando

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cheguei lá o bebê já estava morto, que tinha morrido sem ar, né? (...) Porque a bolsa tinha estourado aí não deu mais pra salvar o bebê. (...) Aí eu fiquei internada. Aí depois de um ano eu fiquei grávida de novo. Clara, 34 anos

O corpo que aborta, que não segura a gravidez, é representado como imerso

em uma rede de fragilidades e suscita dúvidas sobre seu potencial reprodutivo

principalmente com a ocorrência de abortos espontâneos sucessivos.

Quando eu perdi meu primeiro eu tinha 18 anos... Com 18, quando eu tinha 20, 22 só que eu consegui segurar. (...) E eu tive meu filho tinha que tomar aquela vacina, não deram. (...) Pra falar a verdade até hoje eu nem sei o que significa. Eu só não tive mais porque o pessoal falava que podia nascer com retardamento, só sei disso. Porque nunca me explicaram. Elinélia, 46 anos Isso. Mas só que... Oh, eu... Se eu não conseguir dessa vez eu não quero mais, mas ele quer que eu tente. (...) Aí da última gravidez pra essa de agora eu levei três anos pra engravidar. Aí por isso que eu falo, eu acho que eu tenho dificuldade de engravidar porque eu não usava método nenhum... contraceptivo. E porque essa demora? (...) Entendeu? Aí o médico, falou pra mim: “Sua placenta descola antes de completar um mês”. Então, não sei. (...) Sobre o que eu tenho não. Porque meu sangue é negativo, isso eu já sei. Então eu... Aí o médico fala, “isso não tem nada a ver, você já perdeu os dois, três primeiros. Aí agora já que perdeu o primeiro então agora vai ser legal”. Então é aquilo... Toma a vacina... não adianta. (...) Então aí eu não entendo. Eu quero saber. (...) Por isso que eu comecei fazer o planejamento pra saber o que eu tenho. Se pode realmente engravidar ou se não pode engravidar. Emília, 27 anos

Os relatos sobre os abortos espontâneos tem maior riqueza de detalhes no

campo emocional, em oposição às descrições dos abortos induzidos que valorizavam a

forma como foram realizados.

Foi um susto. Porque não foi consciente. Eu engravidei sem estar consciente, eu tomava medicação, mas eu mesma me desregrei. O enfermeiro tem muito isso, ele acha que consegue (risos) se policiar nessas coisas, mas eu mesma não estava tomando remédio direito, eu estava usando como método coito interrompido, enfim, a gente

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não fazia um método... (...) Uma coisa legal. E ele dizia: “Não quero ter filho, não quero ter filho”. “Tudo bem”, mas eu achava que eu não ia engravidar, a gente sempre acha que nunca vai acontecer com a gente. Quando eu descobri foi já na hora do aborto, porque eu senti uma cólica muito forte não entendia o porque, liguei para minha: “Mãe, estou com uma cólica forte, estou sangrando muito”. Aí minha mãe por telefone falou: “Minha filha, isso não é aborto não? Vai ao médico”. Aí eu fui numa emergência, onde fizeram ultrassom transvaginal em mim. Aí tinha lá: “restos ovulares”. Eles falaram que eu tinha perdido já. Eu levei o choque que eu engravidei já no abortamento, entendeu? (...) Eu fiquei sabendo já quando tinha perdido. Estava com 6 semanas, estava bem assim no início, mas... (...) Foi traumática ter aquela perda, uma frustração muito grande. E ainda foi em casa o abortamento, então tive que fazer curetagem, aquilo tudo. Então foi um baque. Cássia, 36 anos Porque é muito ruim, entendeu? É uma sensação assim que eu não desejo pra ninguém. É muito ruim. Você espera um bebê, mesmo quando não é planejado, você sabe que está grávida, é uma coisa que você quer, e aí chega um certo ponto você compra tudo, aí começa a fazer o enxovalzinho, chega na hora, num certo momento você perde. (...) Eu não quero mais porque é cansativo, você entende? Você vai, planeja, vai... Aí ta, com 2, 3 meses. Você sempre fala: “Vou esperar mais um pouquinho pra comprar as coisas”. Aí quando começo a comprar as coisas uma semana depois eu perco. Então é uma coisa cansativa, aí aquilo pra mim é assim, eu fico triste, aí eu fico deprimida, eu tomo antidepressivo, tudo isso. Entendeu? Porque não dá. Emília, 27 anos

As mulheres descrevem a perda do bebê como sendo uma experiência que,

mesmo quando compartilhada com o parceiro ou outras pessoas, é irredutivelmente

delas, e descrevem algo próximo ao sentimento de solidão.

Porque o pai sofre, mas acho que a mulher ainda sofre muito mais, porque aí pega o amor, tem a curetagem, tudo isso. Vai ficar internado. Então não quero mais isso. Emília, 27 anos Foi de 2 meses, com 4 meses e 6 meses. Um morreu com 6 meses, ainda ficou internado no Salgado filho durante uma semana, com uma semana ele morreu. Só aconteceu tragédia... (...) Só Deus sabe. (...) Nunca morei com ele não. (parceiro) Ele nunca prestou. (...) Ele sempre sabia. (da gravidez) (...) Portanto eu enterrei meu filho sozinha. Agi o enterro e enterrei ele sozinha. Elinélia, 46 anos

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Eu tive dois abortos (um induzido e outro espontâneo), né? (...) (o espontâneo) Foi... Depois que eu tive a minha filha. (...) E começou a sair aquela poça... (...) Dois meses e meio (de gravidez). (...) Estava fazendo pré-natal. (...) (estava no trabalho) Aí eu simplesmente liguei pra minha casa, pedi a minha família... Porque eu sou da comunidade, né? Pra trazer uma roupa pra mim. Eu sozinha mudei de roupa, aí minha prima estava no ponto de ônibus me esperando. Fui de ônibus pro hospital. Vanessa, 38 anos

A experiência do aborto espontâneo é invariavelmente seguida por

atendimento em serviços de saúde. As mulheres descrevem a assistência muito mais

livre de tensões do que quando falam do aborto induzido.

De quatro meses... (...)Eu fui pro hospital... no dia que aconteceu, porque teve aquela hemorragia... aí eu fui pro hospital... fiz uma curetagem... fiquei um dia internada e depois vim para casa... Mônica, 37 anos

A busca aos serviços de saúde após o aborto espontâneo revela a

necessidade das mulheres em proteger o corpo para que possa voltar à normalidade sem

que cause novos eventos. E esses discursos são diferentes daqueles relacionados ao

aborto induzido onde a busca visa reparar ou minimizar os danos aos corpos com essa

prática.

Parir é um outro capítulo da vida reprodutiva que é equacionado em uma

imbricada rede de representações, relações e experiências que influencia a dinâmica de

produção e percepção de necessidades e as condições de satisfação.

O parto geralmente desejado e esperado é aquele que acontece por via

vaginal. Essa expectativa é fundamentada mais uma vez pela idéia de que os eventos da

vida reprodutiva acontecem naturalmente em corpos bons para conceber, gestar e parir.

Entretanto, os discursos sobre parto normal veiculam também muitas representações e

testemunhos negativos, enfatizando a dor, o sofrimento, a dilaceração do corpo, o medo

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de morrer, o medo de perder o bebê, o sentimento de desamparo e solidão e por vezes

maltratos nos serviços de saúde.

Normal. Eu falo que anormal. (rindo) (...) Anormal. Dói muito. Mas eu estou com medo da dor se for... Deus vai me guiar que seja parto normal, apesar da dor, mas eu prefiro parto normal, não sei porque... Joana, 27 anos Eu acho que é uma coisa horrorosa! Eu acho que é uma exposição. Eu acho assim... Não vejo como uma coisa, bonita. (...) Sabe? É uma coisa ruim que eu vejo. Eu sei que isso é uma coisa ruim dentro de mim. Não vejo assim... Eu sei que é uma coisa de Deus, mas eu não vejo, eu peço perdão a Deus todas as vezes que eu falo sobre isso, quando eu vejo uma amiga minha, por exemplo, ficar grávida vir me contar toda feliz. Eu não acho a menor graça. Entendeu? Eu não sei se eu estou desgostosa, se eu estou amargurada. Meus filhos já têm 18 anos, um tem 17 outro tem 18. Então assim eu não vejo – como é que se fala? A coisa boa, o lado bonito, poético... Eu só tenho coisas ruins. (...) Que eu não aceito uma coisa ser como é. Não aceito a dor, não aceito a exposição, não aceito enfim... Ingrid, 40 anos

Os relatos de vivência da dor durante o parto foram muito freqüentes e

vívidos. Essa experiência horrível estava na base do desejo expressado de muitas delas

de não terem mais filhos (embora isso nem sempre correspondesse a práticas

contraceptivas efetivas) ou ponderarem sobre um aborto.

Mas eu tive meu filho de parto normal. A minha filha na época foi cesárea, meu filho foi parto normal. O parto dói muito também. Mais um motivo para mim não querer ter mais filho, que parece que gente vai morrer. A senhora tem filho? (Tenho.) Não é? A senhora teve parto normal? (Tive.) Não é uma dor horrível? Deus me livre! Eu não quero mais não, moça. (...) Eu não quero. Não quero mais não. Eu não quero. Da cesariana da minha filha eu fiquei 16 dias no hospital, que eu tive princípio de eclampsia. Fernanda, 26 anos E aí quando eu soube que eu fiquei grávida do segundo eu pirei. Eu fiquei como que fala? (...) Aí quando eu soube que eu estava grávida do segundo, nossa eu pirei! Fiquei maluca! Quase morri... Quase me matei, que eu pensava em passar por tudo aquilo de novo. Entendeu? (...) Então assim, eu não... Claro, antes de eu ter filho eu tirei porque eu estava muito nova. Depois as minhas outras

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gravidezes foram todas depois do casamento, e aí assim eu ficava enlouquecida. Toda vez que eu fiquei grávida eu ficava maluca, ficava a beira de um ataque de nervos, mesmo. (...) Agora do segundo eu quase me matei. Fiquei deprimida, durante quase dois anos e pouco. Engordei quase 30 quilos. (...) Da minha segunda gravidez. O primeiro eu queria, eu quis ter o primeiro filho. (...) Só que depois do parto eu fiquei muito traumatizada, então não queria nunca mais ter filho. Entendeu? (...) Não foi planejado o primeiro, mas depois foi bem aceito. (...) Agora o segundo nunca foi aceito, nunca. Só depois que eu melhorei. Depois que ele estava já com quase dois anos. (...) Ingrid, 40 anos Os meus partos, do meu primeiro parto dele foi normal, tudo nasceu normal. Mas só que na hora de nascer dá muito trabalho, eles nascem muito grande. (...) Ela me rasgou muito. (...) Eu sofri muito (...) Aí depois eu fiquei com medo de ter filho. Beatriz, 31 anos

Algumas mulheres descrevem experiências de partos rápidos e

escorregadios, apesar da inevitabilidade da dor, como referiu Melissa. Os discursos de

parir normalmente enfatizam potencial do corpo em cumprir mais um passo na trajetória

reprodutiva.

E dessa criança aqui eu não senti contração nenhuma, que como eu te falei, foi apenas pressão alta (...) Eu não senti nada, dor, contração, nada. Só fui lá porque a dor de cabeça estava muito forte, e dor na nuca, peso na nuca. Denise, 41 anos Ah, foi um parto, mas não foi aquele parto... Menina, foi muito rápido. Eu fiz só uma força e a criança saiu. (...) Eu nem acreditei. (rindo) Foi muito fácil o parto. E fora as contrações que é horrível. Né? Mas a criança nascer foi rapidinho. Rapidinho. (rindo) (...) Foi tranqüilo. Não foi uma coisa... Uma experiência traumática para mim. Sabe? Foi tranqüilo. Nilza, 24 anos Foi rápido, cheguei lá 11 horas, tive ela meio dia. Saí depois... (...) Foi parto normal, não senti nada. Foi assim uma gravidez excelente. Rosa, 42 anos O parto dele foi ótimo. Porque ele nasceu, eu soube depois, mas o médico falou que o melhor parto que ele teve na vida foi esse... Eu comecei a sentir dor 5 horas da tarde, 9 horas assim ele nasceu, nem esperei. Quase que eu num... Quase que eu tive na cama mesmo. (...) Foi rápido. Rápido, rápido, rápido. Elinélia, 46 anos

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Quando o parto, a princípio esperado como vaginal, não evolui e são

necessárias intervenções, como fórceps ou cesárea, essas são justificadas pelas mulheres

como uma falha ou incompetência de seus corpos.

(rindo) E a dor do parto é muita. (...) Eu tentei parto normal, mas não consegui. Fiquei até a... Dilatou só até três... Seria parto normal, mas não consegui, teve que fazer uma cesárea. Luíza, 22 anos Meu parto foi a fórceps, porque ela não queria nascer. Tinha tudo para ser normal, mas ela dormiu no meio do parto, e ficou com a cabecinha só do lado de fora e puxaram ela a ferro, me rasgaram e puxaram ela a ferro. Durou 6 horas. Ela nasceu com problema respiratório. Cassiana, 21 anos

A cesárea não está no campo do normal para a vivência de parto, mas os

relatos das mulheres demonstram que fazer uma cesariana pode ter facetas do

atendimento a outras necessidades, como alcançar o controle reprodutivo através da

laqueadura tubária ou contornar aquelas representações negativas do parto normal. A

idéia da cesárea como mais segura para mãe e filho está presente, portanto, nos relatos

de algumas mulheres se sentiram salvas de perigo quando passaram por esta

experiência, mas também entre outras que a desenham como parte de um grupo de

objetos de consumo nos serviços privados de saúde.

Se eu tentasse parto normal de repente poderia ter perdido ele, ele poderia se enforcar. E a obstetra falou: “Olha, eu não quero que você chegue...” Eu tive que tirar ele antes do fim da gestação para evitar que eu entrasse em trabalho de parto. Lúcia, 31 anos Quase foi cesárea, mas aí depois foi normal. Sei lá! Estava demorando muito. Eu fiquei a última na sala... estava ficando toda roxa já... aí foi e me levaram. Quando botaram sonda e tudo para fazer cesárea... aí ela resolveu nascer normal... aí teve que tirar tudo de novo e ir pra outra sala... Ela nasceu normal. Manuela, 23 anos

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(...) (no terceiro parto) Praticamente... Já era marcado, né... (...) Eu cheguei a entrar em trabalho de parto. É, porque assim eu ia me internar na terça- feira... Eu ia fazer quarenta semanas... (...) Aí ela adiantou um pouquinho, eu fui no final de semana, no domingo de manhã... (fez Mônica, 37 anos A cesárea foi horrível! Que tudo foi normal. A normal você vai ter filho a dor é na hora depois é um alívio. (rindo) A cesárea, depois que você sente a dor horrível. (rindo) (...) E ligou aqui pelo umbigo e meu umbigo doía muito. Úrsula, 32 anos

O modo como as pessoas do círculo íntimo participam afeta a experiência

de parto e Edna faz um discurso bastante ilustrativo sobre isso.

Uma coisa horrível. (começa a chorar e damos um tempo) (...)

Desculpa. (chorando) (...)Foi muito difícil. Eu passando mal, aí falava

com a minha mãe: “Mãe, eu estou sentindo mal”. Minha mãe falava

assim pra mim: “Vai dormir, que isso é uma dor de barriga”.

(chorando) Falava: “Vai dormir que é uma dor de barriga”. Eu não

agüentava dormir. Não agüentava porque era muita dor. Dor que vinha

forte, depois passava. Aí quando foi no outro dia eu não agüentando

mais de tanta dor. E eu sem poder gritar, não podia fazer nada, sem

poder dizer nada, nem chorar, não podia falar nada. (...) Portanto,

quando eu engravidei, eu grávida do meu primeiro filho, ela falava

que o neném... Que não era nem pra mim chorar, nem pra mim gritar,

porque senão ia morrer eu e a criança. Né? Então o que eu podia

fazer? Eu tinha que ficar bem quieta porque quando eu acordasse o

neném ia ta do meu lado. (chorando) (...) O dia inteiro ela falando pra

mim... Ela pegou e falou: “Ah, se você está sentindo tanta dor assim,

embora eu ache isso uma palhaçada, eu vou levar você pro hospital”.

Foi e me levou pro médico. Quando eu cheguei lá, o médico antes ele

queria fazer cesariana em mim, porque parece que... Não sei... O pé e

a placenta estavam do lado de fora. Ele... E eu ali com medo de

chorar, com medo de acontecer alguma coisa e eu morrer com a

criança. (...) Aí ela pegou... Aí o médico pegou e falou: “Não dá mais

pra fazer...” Só escutava eles falando e correndo. “Não dá mais pra

fazer cesariana nela porque ser fizer cesariana nela vai cortar o

pescoço”. E eu não sabia nem o que era isso, uma cesariana. Aí eu sei

que aquela correria toda. Aí meu filho... Aí veio o médico, me ajudou

no meu parto. Aí nasceu, sem cesariana nem nada. E eu não estava

fazendo pré-natal que ela disse que isso era uma bobeira fazer pré-

natal. Então eu tinha que ir por ela, se não fosse por ela eu ia por

quem? (...) Aí eu achei que aquilo era normal. Se ela (a mãe) que era...

Tinha mais experiência do que eu, né? Pra mim. Mas aí só que não foi

assim. (...) (No segundo parto) Estava comigo (o parceiro). Aí eu

peguei... Aí quando eu ia ter... (rindo) Quando eu fui ter... Ele mandou

rosas pra mim. (falando com orgulho) (...) Aí mandou rosas. Aí ele

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ficava lá. Eu pensava que não ia ter visita, que ninguém ia me ver,

quando eu pensava que não, ele chegava. (...) Ah, muito bom! Sabe?

Edna, 39 anos

Nos discursos, as mulheres demonstram que o parto é um evento que

acontece em seus corpos, mas apesar de serem seus eles são experimentados sob

agência de terceiros, no caso os profissionais de saúde. A autonomia das mulheres

durante o parto está comprometida e é desenhada de maneiras diferentes nos relatos de

partos em serviços públicos ou privados de saúde.

E, assim... dele foi ótimo! Porque foi hospital particular... por causa do trabalho... eu tinha plano de saúde por causa da empresa. Então a gravidez dele foi ótima! Fiz pré-natal... parto particular. Uma maravilha! (...) Foi diferente. Eunice, 31 anos

A vivência do parto também é mediada pela qualidade das relações

estabelecidas com os serviços, que são freqüentemente relatadas pelas mulheres. Elas

demonstram que o bom comportamento durante o parto, sem gritos ou reivindicações,

nem sempre é garantia de uma boa assistência, apesar de essa ser a idéia que circula

entre os pares quando trocam informações. Isso é ainda reforçado pela expectativa das

mulheres em torno dos serviços públicos de saúde ao condicionarem à própria sorte ser

ou não bem atendida. Melissa descreve a vivência de uma cascata de erros durante o

parto apesar de ter chegado ao serviço de coração aberto e ter agido educadamente com

os profissionais, mesmo nos momentos em que era preciso resistir às regras e rotinas

para impedir mais sofrimentos para ela e para o filho.

Oh... Quando eu fui ter a primeira filha que aconteceu o caso de eu perder ela, assim... Eu fiquei um pouco traumatizada... porque as pessoas sempre falavam assim pra mim “Ah, quando vai ter o primeiro filho, não faz muito escândalo, não grita... aquela coisa toda, que o médico não atende”... Aí eu fui com aquilo na cabeça. Aí eu fiquei lá, tanto que chegou gente depois de mim, teve o neném, saiu, ganhou o neném... E eu lá no soro, esperando o médico me atender...

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Tanto que quando já veio, aconteceu o que aconteceu... Aí eu fiquei com aquele trauma. (...)Mônica, 37 anos Eu fui com o coração aberto. (...) Eu fui botando fé no sistema de lá, porque estava todo mundo falando bem. Quando eu cheguei lá deu tudo errado, e depois disso eu ouvi as pessoas falaram: “Não, você não teve sorte.” “Fulana teve sorte”. Não tem que ser uma questão de sorte, você vai para um hospital você ter sorte ou não ter de ser bem tratada. Você tem que ser sempre bem tratada, e tem que tratar todo mundo com respeito e com responsabilidade. O que aconteceu comigo não podia ter acontecido. Foram vários erros, e boa parte deles... (...) Eles trocaram os nossos exames de sangue (...) disseram que a gente estava com sífilis. Eu desmaiei, meu filho tomou medicações, passou por um exame sofrido sem ter necessidade (...) Fizeram pulsão lombar nele. Tiravam com sangue, o menino chorava, berrava, eu desesperada... (...) Porque antes de fazer isso então porque eles não pediram para o laboratório repetir o exame? (...) Olha, foi traumatizante! A roupa da saída da maternidade que todo mundo compra pra botar, veio cheia de sangue no pulso... (...) “Ele não tem que tomar nenhuma Benzetacil”. (...) “Eu iria tomar as injeções porque suspeitavam que eu estava com sífilis. mas eu não estou com nada, então eu não tenho que tomar nada”. (...) Eu desesperada para sair.(...) Aí veio a segurança levar as minhas bolsas até a mão dele (parceiro) peguei o papel na mão do segurança: “Vamos embora, pelo amor de Deus, vamos embora! Vamos entrando no carro, acelera. Vamos embora daqui. Porque só de consegui sair”. Melissa, 24 anos E o atendimento também que eu não sei como é que vai ser. (...) Eu já ouvi diversas histórias assim extremamente cabeludas, então eu tenho medo que eu possa passar por uma delas, mas Deus não vai deixar acontecer isso. (rindo). Joana, 27 anos

O parto interfere nas maneiras de atender outras necessidades, como cuidar

da casa e dos filhos, dos que já tem e/ou do recém chegado, e por isso o desejo de

recuperação mais rápida. Nesse sentido, o parto normal mais uma vez é expressado

como um desejo entre as mulheres, pois as mantém na trajetória natural de suas vidas.

(Ela quer parto normal) A recuperação é melhor, né? (...) Você se recupera mais rápido. (...) Eu tive o exemplo da minha cunhada que teve um parto cesárea (...) ela meio que sofreu um pouco, ela sentia muita dor depois que foi pra casa, ela demorou se sarar. (...) Entendeu? E pelo que eu me conheço eu também vou ser da mesma

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forma, não me guiando a ela, mas pelo que eu me conheço. Eu sou de difícil cicatrização, então... Do normal eu já meio que sofri, imagine de um mais complicado, digamos assim, vou sofrer o dobro. Joana, 27 anos

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V. Vivências de maternidade e maternagem

Olha... eu acho que é uma responsabilidade muito grande... um filho, porque você tem que criar.. você... é uma vida que depende totalmente de você... e hoje, no mundo que nós vivemos... né? Como a gente vê aí... é muito difícil... e assim... então... tem que ser... realmente... tem que ser num momento... em que você está muito preparada... não eu to pronta pra ser mãe... eu to pronta... pra dar um passo adiante... porque é uma vida totalmente... que você vai estar totalmente responsável por ela... então... e a gente vê muito disso dentro da comunidade... ter filhos e fazer filhos é muito fácil.... e é bom... é gostoso... o ato sexual... é muito bom... mas você colocar no mundo e dar o melhor pra ele... porque... eu quero ter um filho para dar um melhor pra ele... porque se eu to estudando... procurando crescer... é pra dar o melhor para ele... se eu tive o melhor... eu quero dar ainda mais pro meu filho... (...) Então... ainda mais... eu busco ter na estabilidade, entendeu? É... ter a minha casa... pra poder... assim... como eu posso dizer... é... sem ta avançando... pra quando chegar o bebê... ter uma estabilidade... é... financeira... pra que a gente possa cuidar dele... e arcar com isso... porque criança tem muitos gastos... e emocional também, né? É... porque uma família mais ou menos estruturada... então a gente ta começando um casamento estruturando isso... então eu acho que é isso tudo junto... e ter um filho é uma responsabilidade grande... Marilene, 25 anos

A vivência da maternidade e da maternagem é um marco de mudanças no

ciclo de necessidades das mulheres. Com o nascimento dos filhos, suas necessidades

envolvem também aquelas das crianças pelas quais são responsáveis e que, muitas

vezes, se tornam prioritárias sobre as próprias necessidades. Isso pode ser percebido

quando falam dos motivos que as levaram às unidades de saúde ou sobre as conquistas

que pretendem alcançar em prol de seus filhos. Mesmo entre aquelas que delegaram a

maternagem a outras mulheres da família, a vivência da maternidade provocou

transformações de suas necessidades, entre elas a de buscar alternativas seguras para o

controle reprodutivo.

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A transformação da menina em mulher, que já vinha sendo sentida desde a

menarca, se materializa com a existência do filho. As mudanças são sentidas em

diversos campos: nos comportamentos e papéis, no plano das relações afetivas e de

pertencimento e no plano das vivências no mundo extra-doméstico (trabalho, escola,

interação com pares). Nos discursos das mulheres existe um antes e um depois,

apresentados como incompatíveis em muitos aspectos, revelando o sentido dado à

maternidade e o modo como conseguem conciliar seus projetos pessoais com a

experiência de ser mãe – e essa inflexão redimensiona as dinâmicas de criação,

percepção e satisfação de suas necessidades.

As representações em torno da maternidade são marcadas pelas imagens de

maturidade, responsabilidade e de conserto de vida. Entretanto, ser mãe implica

delícias e desafios, expressadas pelas idéias de benção e realização, que convivem com

o reconhecimento de que isso é muito complicado. A fala de Gláucia ilustra bem esse

sentimento paradoxal.

Ah! Foi complicado. Totalmente diferente daquilo que eu esperava. É muito mais complicado do que você vê as pessoas passando. Passar por essa experiência é bem complicado. Sei lá! Aí eu me senti... Não sei... Eu fiquei num conflito, sabe? Assim... Eu amei esse período, sabe? Mas no fundo... meu corpo... tinha mudado tudo... estava diferente. Sabe? Criança pequena, chorando a noite, você tem que acordar de madrugada... ver por ali que é complicado, você tem realmente responsabilidade com a criança. Assim foi meio complicado. Eu morava com ele... com o pai dele. Mas só morava... não tinha outra responsabilidade... Sabe? Aí quando ele nasceu foi totalmente diferente. Muito complicado, muito complicado mesmo. Mas eu tive alguém para me ajudar. A minha mãe me ajudou bastante. (...) Porque era o primeiro neto, sabe? Ela me ajudou bastante. Gláucia, 23 anos

Mesmo que muitas mulheres tenham experiência de cuidar dos filhos dos

outros (irmãs, sobrinhos ou como babás), a maternagem dos próprios filhos é

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considerada muito mais complicada, para usar as palavras de Gláucia. As demandas de

cuidados no sentido afetivo, educacional e material são muito mais intensas e, em

grande parte das vezes, centralizadas nelas mesmas. Se, por um lado, a responsabilidade

pelos cuidados e a educação lhes dá um papel de poder para fazer diferente com os

filhos, por outro tem um sentido de fardo e de empreitada perigosa, que elas mesmas

nem sempre estão seguras de terem êxito e corresponder às expectativas da sociedade e

delas próprias sobre a boa maternidade. O poder formador e transformador da

maternidade é colocado em questão quando as mulheres falam da educação de seus

filhos e dos de outras. Elas enfatizam as vulnerabilidades de crianças e jovens como

responsabilidade das mães, e, numa relação de causa e efeito, descrevem os

(des)cuidados como determinantes para que algo dê errado, como por exemplo, o filho

virar bandido.

Tinha muito medo de meus filhos ficarem pelo meio da rua. Eu tinha muito medo disso. Tinha muito medo de um dia meus filhos ficar assim pela rua, ficar pelo mundo, ficar... (...) Eu acho que meus filhos não tem uma mãe só. Oh, eu sinto tanto amor por eles. Tanto amor, que eu deixei de viver a minha vida pra viver a vida deles. (...) Quer dizer, o meu marido sumiu minha filha tinha 3 anos. Criei. Consegui criar com muita luta, com muito sacrifício. (...) Então eu me considero então uma mãe... Me considero uma mãe. Não só uma mãe, como uma grande amiga que eles tem pra eles. Edna, 39 anos Que ao mesmo tempo eu penso - que eu gosto muito de criança - ao mesmo tempo eu penso que não, porque a gente cuidar do filho dos outros é mais fácil, dos da gente... Sei lá! Você tem que, vamos supor, dividir um pão pra três é muito complicado pra pessoa, principalmente quando não tem. (...) Pensar bem as coisas. Pretendo ir embora futuramente... (...) Fui criada (em Minas Gerais), minha família é toda de lá. Então eu assim, eu pensava que nunca ia querer morar lá, falava sempre. Agora já mudei de idéia. (rindo) Depois que tem filho muda tudo. (...) Quero muito morar lá... (...) Pra ver eles criados livres e soltos, eles... (...) Aqui não dá. É preso, dentro de casa. Quando você sai, você sai com medo de voltar e estar acontecendo isso, acontecendo aquilo. É muito difícil. (...) Que a gente pede a Deus, pede muito a Deus pra a gente dar uma boa educação pra ele, né? Pra mim tentar fazer o máximo, porque é

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muito difícil você ver o seu filho... Perder o seu filho assim... Quero muito ensinar a ele o mundo de... Conseguir as coisas com garra, com força, lutando ali, não com facilidade. Você ver seu filho ir embora assim do nada. Morre de bobeira. (...) Estou vivendo o hoje, mas pensando no amanhã, entendeu? Aí eu não sei como é que vai ser no futuro, como é que vai ser, como é que vai ser daqui pra frente com ele. Se ele vai ser um bom rapaz, se vai um... Ou um péssimo, ou um bom homem. Né? Margarida, 25 anos

Ser boa mãe, portanto, é representado como criar pessoas de bem e cidadãos

honestos, avaliado por elas a partir da qualidade do cuidado que dedicam aos filhos.

Foi bom por isso, porque pelo menos eu tive a maturidade de cuidar bem da minha filha quando nasceu, cuidei bem. Até então eu acho que eu sou uma boa mãe, ela sabe disso... que o que eu posso fazer eu faço. Também educando, também não vou extrapolar, na medida do possível, “tudo que ela quer eu dou”. Não, pra tudo tem que ter um limite, né? Joana, 27 anos Meus filhos são excelentes, me considero uma excelente mãe... No trato... Não sou de agarrar e beijar, essa característica eu não tenho. Mas assim me acho uma mulher, uma mãe super presente, em todas as fases de escola, na fase de namoro, enfim, todas, de doença. Só sou ruim pra dar remédio. (risos) Mas aí eles são bons. Porque já que eu era ruim, eu sou ruim até comigo mesma, né? (rindo) Então o que eu fazia? Depois que eles começaram a entender, eu deixava por conta deles os remédios, né? Eu falava assim: “Oh, tal hora...” Eles aprenderam a ver hora muito rápido, muito cedo porque eles que me ajudavam na questão de dar o remédio no horário, porque quando era bebê era uma tragédia. Ingrid, 40 anos Mas eu, tipo assim, não perco um dia que pela manhã, na correria da manhã, sentar, olhar nos olhinhos da minha filha. Eu posso estar fazendo isso tudo e amanhã tudo virar bagunça, mas são os meus valores. Olhar e falar: “Oi, filha, está tudo bem? Como que está na escola? E aí?” E fora que todo final de semana eu pego o caderninho dela e olho, eu quero saber. Bárbara, 38 anos

A idéia de maturidade associada à experiência da maternidade é expressada

como um crescimento pessoal, um aprendizado, reforçado pelo nascimento de cada

filho. Outro sentido dado ao par maternidade-maturidade está relacionado ao

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pertencimento definitivo ao mundo dos adultos, mais especificamente ao mundo das

mulheres com experiência.

A mulher eu acho que ela amadurece muito mais rápido, né? Aí eu tive a Sara, tive o Gabriel, e você vai amadurecendo, você vai crescendo, você é mãe. Sandra, 28 anos Eu achei bonitinho: “Olha pra isso... Minha barriga está crescendo, legal!”. Porque eu acho que a maioria das adolescentes que engravidam não tem noção do que é ter um filho, né? Depois que meu filho nasceu, que ficou doente, começou a gastar com remédio, acordar de madrugada, que eu era horrível pra acordar de madrugada, aí que eu fui cair a ficha, que eu estava tendo um filho, uma criança que dependia de mim, que eu ali não podia ser mais criança, tinha que virar uma mãe, uma mulher. Juliana, 19 anos No começo quando a gente é criança, né? Tudo pra gente é novidade, é bonito, mas depois que a gente vai passar mesmo pelo perrengue que a gente vai ver o que é, que a gente vai aprender ter cabeça, juízo, pensar. Sueli, 23 anos Com pessoas, as conhecidas que eram mais velhas, eram já mulheres formadas. Desde criança eu tive facilidade de comunicação. Então naquela época algumas pessoas já não tinham mais o tabu de não falar comigo, eu estava grávida. Nice, 38 anos

O sentido de conserto trazido pelas mulheres quando falam da vivência da

maternidade é revelado como positivo para que deixem de fazer algo, que é julgado

como errado por elas. Mas isso não significa que elas não gostam mais. Elas

demonstram que há necessidade de cumprir uma norma de gênero com o conserto,

reforçando a maternidade com função de domesticação da mulher. Ingrid, 40 anos

comentou sobre sua relação com os rapazes e a experimentação do próprio corpo ainda

na adolescência, e que era chamada de vassourinha por ter namorado muito. A

maternidade veio frear de maneira estanque suas experiências, que deixam de ser

individualizadas para serem compartilhadas e corretas.

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Eu acho que veio num bom momento. Porque eu estava já a fim de encerrar minha carreira, porque eu era muito... como é que se diz? Muito rueira, gostava de... Era farrista, uma palavra mais... Eu gostava de dançar, de individualizar minha vida, sabe? Ingrid, 40 anos Ah... pra mim no começo foi uma maravilha... (...) gostei muito. Eu parei também. (...) Depois que eu tive a minha filha... eu sosseguei mais, não fiquei mais na farra... minha filha me consertou muito. (...) Porque eu acho que se não fosse meus filhos... eu não estaria consertada hoje em dia não. Estaria na mesma coisa... Graças a eles eu to quieta... eu poderia estar na farra até hoje. (...) Se não fosse eles eu não tinha saído não. (...) Assim... eu perdi muita noite de sono... Eu perdi... Eu ficava na farra bebendo... eu chegava em casa de manhã... Aí dava muito trabalho a minha mãe (...) Quase não parava em casa. (...) Aí eu peguei minha filha... sosseguei mais. (...) eu fumava assim... besteira... meu marido me tirou. Ele foi falou comigo... se eu não parasse não ia dar certo... Então... aí eu perdi tudo, esqueci tudo para ficar com ele. Entendeu? (...) E... a gente vê depois que é muito difícil você gostar de... ter bastante filho... porque a situação não é a mesma que você pensa. Um filho você ainda... coisa... mas com 3 dá para ir levando... mas, meus filhos são muita felicidade para mim, sabe? Beth, 25 anos

As responsabilidades da maternidade prendem a mulher que deve cuidar do

bebê. As mudanças na interação com o mundo são reveladas pela dificuldade de manter

inserida em grupos que ainda pertencem, porém em condições diferenciadas, e pelo

adiamento dos planos de estudo e trabalho e pela participação. Valquíria, grávida pela

segunda vez, conta que apesar de estar na adolescência não consegue mais fazer o que

mulheres da sua idade fazem. E para Joana, seu plano de estudos sempre é adiado,

inclusive em função da maternidade e maternagem.

A mulher fica muito presa... Muito presa a filho. É pra trabalho, é pra estudar, é pra tudo. Eu parei minha vida, eu parei de estudar. Eu parei... Tudo que eu tive, eu tive que abrir mão pra poder dar pro meu filho. Sueli, 23 anos Porque eu interrompi. Por incrível que pareça eu sou nova, estou na adolescência ainda. Aí, tipo, deixei de fazer muitas coisas que eu fazia antes por causa dela. Entendeu? Inclusive eu já não saio. É de casa para o trabalho, do trabalho para casa... Tem que ter uma certa

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responsabilidade. Então os meus amigos me chamam pra sair, eu já não saio por causa dela, porque eu sei que a noite ela vai ficar chorando por causa do peito. Então eu deixei de fazer muitas coisas. (...) Então... Como eu estava falando, eu estava pensando o ano que vem que aí ela já ia estar com dois aninhos já. Ela já não está tão apegada assim a mim, porque agora eu estou trabalhando, ela já fica com as pessoas. Então aí agora com o outro eu vou ter que esperar mais um pouquinho, porque vai estar recente... Assim, ficar durinho, eu vou poder voltar a estudar. Valquíria, 21 anos

No início foi triste também, porque eu queria muito terminar de estudar, eu queria concluir o 2º grau e eu queria fazer um curso de enfermagem que até hoje é meu sonho, e todo ano por tentação ele é meio que adiado. Não sei como é que eu vou fazer, mas eu já falei que antes d’eu morrer eu vou fazer esse curso, (rindo) não sei quando. Joana, 27 anos

O trabalho é revelado com conflitos tanto para a própria conciliação entre

maternagem e outras atividades, quanto pela reafirmação da mulher em idade

reprodutiva e economicamente ativa. As mudanças compulsórias nesse campo,

portanto, modificam o ciclo de necessidades de maneira importante de acordo com os

valores intrínsecos de cada mulher. Para algumas mulheres a maternidade é

incompatível com o exercício de atividades fora do lar e exige algumas alterações nesse

campo.

Aí eu não voltei mais trabalhar, eu fiquei com ele direto. Quando eu voltei a trabalhar ele estava com um ano. (...) Ah! Porque eu queria. Porque queria ficar o máximo de tempo perto dele, pelo menos nessa fase até um ano, um ano e meio, que eu achei que era importante pra ele. (...) E não parar de amamentar tão rápido também. (...) Pra mim foi bom, não senti tanta falta não. (...) Mas à medida que ele vai crescendo, vai começando a pedir tudo, cada vez mais, e aos poucos a gente sente necessidade de voltar a trabalhar. Luíza, 22 anos Então... Mas eu creio que não vou trabalhar mais não. (...) Tomar conta só de filho. Tereza, 26 anos

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Os recursos para sustentar e criar os filhos revela um transfundo econômico

para essas necessidades e apresenta fontes diversas através dos discursos das mulheres.

Prevalece a norma do pai provedor, enquanto a mãe cuida dos filhos e da casa.

Entretanto, as mulheres demonstram preocupação em oferecer melhores condições aos

filhos, e quando não são elas quem sustentam sozinhas (são pai e mãe), sua renda é um

extra para que alcance as metas que estabelecem para os cuidados. Além da mulher e do

parceiro, aparece também o estado como provedor, através de programas sociais, como

o Bolsa Família, que mesmo sendo pouco às vezes é o que garante uma renda mensal

para atender às necessidades dos filhos, como contaram Conceição e Cleonice.

Eu não precisava de trabalhar... Trabalhar, porque tinha tudo ali. Ele me dava tudo, e tudo pros meus filhos. Então não tinha necessidade d’eu trabalhar. Edna, 39 anos Ele leu: “Ah, então eu vou ser pai, vou ser pai!” Eu falei: “Você vai ser pai? Quem vai ser pai sou eu, que é eu que trabalho, eu que mantenho a casa.” Porque ele não fazia nada. Não fazia nada, não fazia nada. Muito mau cuidada do meu mais velho, que o meu mais velho não é dele, era de outro. Jose, 33 anos Eu tenho uma renda que é o Bolsa Família... é de 112 reais. Não dá pra fazer nada, mas Deus abençoa. Deus me ajuda muito. Cleonice, 48 anos Que quando eu não estou trabalhando eu tenho que buscar alguma forma pra mim ter o meu dinheiro, né? E a forma que eu uso é a forma que eu aprendi... A prostituição. (...) Eu tenho que fazer, eu tenho que... Ué! São três... (...) Não é? Quando tem trabalho eu trabalho, quando não tem eu tenho que dá... De alguma forma eu tenho que suprir a necessidade das minhas crianças. (...) Falar é muito fácil, mas na prática é muito complicado. (...) Muito, muito mesmo. Sandra, 28 anos

O trabalho, também enquanto forma de assegurar recursos, por vezes requer

o acionamento de uma rede de apoio para a maternagem. A maternagem compartilhada

faz parte das estratégias encontradas pelas mulheres para prosseguirem em seus

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trabalhos ou estudos, como conta Cassiana sobre o apoio sincronizado de toda a família

para cuidar da filha e ao mesmo tempo todos poderem desenvolver atividades laborais.

Porque a minha mãe trabalha de 8 as 3 e meu pai entra no trabalho 3 horas, e meu irmão trabalha de 8 as 11. Então, Por enquanto, nesse tempo eu saio de casa na hora, meu irmão chega 11 horas fica com a minha filha, eu vou trabalhar, e nisso minha mãe está chegando. (...) Todo mundo olha. Cassiana, 21 anos

A rede de apoio social criada para amparar as decisões que elas tomam em

relação a seus filhos, seja para educá-los ou compartilhar cuidados, inclui pessoas do

seu círculo social, geralmente mulheres, com presença marcante de suas mães. As mães

circulam nos discursos como os anjos e o segundo corpo da própria mulher por

permitirem que elas possam se expandir enquanto os filhos são cuidados pelas avós.

É um anjo na minha vida. (...) Ela até hoje me ajuda, né? Quando eu preciso sair ela olha, quando eu preciso ir fazer alguma coisa, ela vai lá, dá almoço, dá banho, me ajuda pra caramba... Clara, 34 anos

A minha é ah... (sob lábrimas) Não é o meu braço, a minha mãe é o meu corpo todo. É meu segundo corpo, é o meu primeiro corpo, ela é o meu segundo corpo. Ela faz tudo para mim. Tudo, tudo, tudo. Lúcia, 31 anos

Tenho a minha mãe mora perto, minha mãe, a mãe dele. Elas moram muito perto. (para estudar) Amanda, 22 anos

Entre aqueles que colaboram (ou até assumem) com os cuidados dos filhos

as sogras também aparecem, mas de maneira mais sutil e com menor responsabilização.

As vizinhas assumem funções de babás, mas as mulheres destacam que o que pagam a

elas não corresponde a um salário e sim uma ajuda ou gratificação por cuidar de seus

filhos enquanto elas trabalham.

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Ela ficava com a avó dela. (...) Ainda fica... (...) Quando ela era menorzinha ela ficava mais lá... Agora ela fica, mas ela entende mais agora... aí ela fica... Aí quando o pai dela chega primeiro... pega ela. É tudo no mesmo quintal. Manuela, 23 anos Eu deixo uma menina tomando conta deles. Porque eu pego de meio dia, eu pego de 2 às 10 da noite, aí nesse período que eu saio ela fica tomando conta deles. (...) uma vizinha minha. (...) Eu dou uma gratificação a ela, 100 reais... não é pagar. (...) É. Que eu não confio deixar eles só, né? Natália, 32 anos A educação da Lúcia (filha). Olha, hoje eu privo a Lúcia de um monte de coisa. Por quê? Porque eu dependo mesmo sempre de alguém para fazer pra mim, porque os meus horários não permitem. Tipo, eu pego 8 horas da manhã em um, saio 3 da tarde. 3 da tarde eu vou pro outro, pego 5 horas da tarde no outro, e saio onze e meia, meia noite. Então, o que acontece? Eu chego em casa, tomo banho e durmo. Aí de manhã eu pego a Lúcia, levo pra babá, que é uma senhora que fica com ela que eu digo que é a babá. (...) É aqui na comunidade mesmo. Então a Lúcia fica lá na parte da manhã. Bárbara, 38 anos

As creches são referidas como apoio nesta rede, mas ocupa um lugar de

menor destaque e as mulheres parecem acioná-la somente quando pessoas de seu

circuito íntimo não podem compartilhar os cuidados com os filhos.

Eu estou tentando colocar ele numa creche. Vou até sair daqui e vou direto pra ir pra Bonsucesso pra ver se consigo colocar ele numa creche. (...)Eu tenho uma vizinha que ela fica com criança... (...) Eu já falei com ela que caso eu não conseguir a creche ela ficar com meu filho. Porque meu esposo trabalha até uma e meia. Aí eu falei com ela, só meio período mesmo até ele sair do trabalho, quando ele sair do trabalho ele pega. Pra mim fica mais tranqüilo... Aí eu fico com a cabeça mais aliviada, né? Não vou ficar tão preocupada em casa... No trabalho, pensando que ele está na creche. Eliana, 21 anos

Outra forma de conciliar as atividades de trabalho diárias com a

maternagem é delegar às filhas maiores a função de cuidar dos irmãos, como contam

Sandra e Camila.

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Eu deixo eles dormindo. (...) A Sabrina, já fez 12 anos. (...) É meu braço. (...) Ela me ajuda muito. É respondona, mas me ajuda. Sandra, 28 anos Aí fazia biscate. Se desse um tempo bom eu deixava... Ia para rua, trabalhava muito na rua, e deixava as crianças com a mais velha. (...) Das pequenas. Assim, eu botava numa escola e ia trabalhar, aí quando retornava ela já tinha chegado na escola. Aí ela já tinha dado banho nas crianças, já tinha dado janta e já estava vendo televisão. Camila, 35 anos

A maternidade compartilhada revela o parceiro como participante nesse

processo, mas sem designá-lo como responsáveis pelos cuidados, reproduzindo a norma

do homem como provedor de recursos. Lúcia comenta que a responsabilidade sobre os

cuidados com os filhos sempre cairá sobre a mulher, e apesar de ela ter tido a

experiência de colaboração do parceiro, quem efetivamente assume os cuidados com o

filho é a mãe.

A responsabilidade sempre vai cair pra mulher... (...) Os homens não querem nem saber. Fez um ali, fez um ali, fez outro acolá. Não está nem aí. Ele está fazendo o quê? O que o mundo machista ensinou a ele. Mulher deu mole... Ele está fazendo a parte dele, porque a gente vive numa sociedade machista então eles acham que isso é certo fazer isso. Ficam com uma, ficam com duas, ficam com três, ficam com cinco, não estão nem aí. Não querem responsabilidade com nenhuma. (...) Lúcia, 31 anos Os parceiros geralmente são referidos nos discursos das mulheres como pai

do filho e isso remete à responsabilidade designada a ele de manter mãe e filho. Quando

a mulher desenvolve atividades laborais ou de estudo, o parceiro não deixa de ser

responsabilizado de seu papel de provedor e não é incorporado à rede de apoio. O

compartilhamento dos cuidados com as mulheres de seu circuito íntimo impera sobre os

cuidados que o parceiro desempenha em relação aos filhos ou casa, sendo um

complemento a essa rede e não parte dela. Para as mulheres que contam com o parceiro

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para cuidar dos filhos, a participação deles é considerada uma ajuda valiosa, exaltando

seu desempenho sem que isso signifique uma divisão de tarefas nos cuidados com os

filhos, como referiram Lúcia e Joana.

Eu tinha medo de pegar na criança. Porque é muito molinho, eu ficava medo de deixar cair. Ele que chegava, ele dava banho, ele fazia o curativo no umbigo (rindo), porque eu tinha medo de arrebentar. Tudo eu tinha medo com ele, né? Mas é receio mesmo porque eles são muito pequenininhos, né? (...) Mamar de madrugada, ele pegava o neném no berço pra dar pra mim mamar. Então ele foi um companheirão mesmo. Aí às vezes eu falo isso, as meninas: “Aí, cruz credo! O meu marido não levanta nem se eu chamar ele: ‘Filho, pega ali para mim, pega lá o neném’. ‘Vai lá você que eu estou cansando’. É assim”. Elas: “Poxa, seu esposo é maneirão”. Tem foto deles dando banho dele. Ele às vezes tomando banho, ele com o neném no braço. (...) Até hoje. Se eu chegar, porque normalmente eu chego muito tarde, né? Do trabalho. E ele chega mais cedo que eu. Às vezes eu pego... chego meu filho está dormindo, aí meu filho já está tomado banho. Eu chego meu filho já está com a mamadeira tomada. Está dormindo, mas já está tudo direitinho. Aí ele pega cedo. Aí eu levo ele pra escola cedo. E assim só pego ele assim na hora de levar para a escola acordado, fora isso não. Eu já chego ele já está dormindo, os dois às vezes. Ele também pega de madrugada, né? Lúcia, 31 anos Nossa! Ele me ajuda muito. Pela manhã ele fica com ela... E arruma ela, manda ela pra escola. Se tiver que fazer o almoço pra ele ela faz. Entendeu? Se tiver uma festa na escola e eu não puder ir, ele me substitui. Entendeu? (...) Eu já falei: “Te prepare pra lavar fralda...” (risos). Joana, 27 anos

As mulheres que tem filhos de outros relacionamentos comentam a

participação dos parceiros na criação de seus filhos. O leque se abre e mostra que há

desde uma grande dedicação até a abstenção determinada pela própria mulher.

Gosta mais da minha filha do que o próprio pai dela. (...) Sim. O pai dela nunca dá muita atenção para ela. Ama a filha, mas dá dinheiro, o pai dela acha que dinheiro compra felicidade. Entendeu? Então aí ela fica... Esse não, meu namorado não, fica com ela todo dia, brinca, dá atenção, dá presente. (...) Eu acho que é mais importante a presença

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do que o dinheiro, o dinheiro a gente dá um jeitinho, compra só o básico, mas a gente quer mais atenção. Cassiana, 21 anos Eu não agüentava mais. Ele era muito agressivo, ele me batia, batia no meu filho. Aí não dava mais. Clarice, 36 anos Pra o contexto familiar eu acho que está sendo importante porque eu tenho um filho de 21 anos e uma filha de 15, que estão naquela fase difícil. Aí envolve ele muito. E às vezes ele cobra, fala: “Ah, eu me aborreço com os filhos dos outros, e não tenho o meu”. Então isso está mexendo com a nossa estrutura familiar. Vanessa, 38 anos Ele tenta, mas eu não deixo não. (rindo) (...) Até assim porque eu discordo totalmente do ponto de vista dele de criar uma criança, então eu não dou muita liberdade pra ele se meter com os meus filhos não. Sandra, 28 anos

A dedicação integral aos cuidados dos filhos por um lado pode ser

compreendido como impossibilidade para acessar outras oportunidades, como trabalho

ou estudos, mas por outro pode representar uma escolha mediada pela negociação com o

parceiro, como conta Tereza.

Porque ele não quer que a minha mãe tome conta, nem a mãe dele. Ele fala que quem tem que dar educação é eu e ele. (...) Bom, apesar que eu não quero três filhos. No máximo um, dois. Entendeu? Tereza, 26 anos

Algumas mulheres ao vivenciarem a maternidade precisaram mais do que

apoio para ajudar a cuidar de seus filhos, elas precisaram delegar integralmente a outros

os cuidados a eles. Nesses casos geralmente são as avós que assumem as crianças para

que as mulheres consigam continuar com suas vidas. Mariley deixou seu filho sob os

cuidados da avó e atualmente vive com outro parceiro, ela conta de maneira muito

tranqüila que até cuida dele durante o dia, mas todas as noites entrega ele para a avó.

Úrsula e Sueli tiveram filhos ainda na adolescência e até hoje contam com a ajuda das

mães para criar alguns de seus filhos.

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Esse garoto é muito levado! (...) Ele mora com a minha avó. (...) Mas eu que tenho que aturar ele... o dia inteiro... porque ela ta no trabalho... (...) Mas de dia ele fica comigo... eu entrego ele para ela de noite. (...) Agora ele vai começar na escola segunda-feira... Mariley, 21 anos Minha mãe me ajuda até hoje. (...) Minha mãe mora na Formiga. Ela continua morando lá. (...) Ela me ajuda. (...) Tem. Esse mora com ela. (...) Ele e a outra. Os dois mais velhos. Úrsula, 32 anos Um mora com a minha mãe (...) perto da minha casa. (...) Já passo um aperto pra poder olhar um que fica comigo, imagina se eu morasse com os três. Sueli, 23 anos

Entre as mulheres que não dispõem da rede de apoio, essa ausência de ajuda

– principalmente da figura da mãe – é referida como um complicador na vivência da

maternagem.

É meio complicado, a gente não tem como contar muito com ninguém, né? Cecília, 32 anos Realmente este (o filho que vai nascer) vai mudar muita coisa, ainda mais que eu sou sozinha aqui, não tenho ninguém, ele também (o parceiro). Tem uns primos dele aí, mas... Sei lá! Então, tem que trabalhar, deixar ele com alguém... (...) Não posso contar com ninguém, porque minha mãe já morreu, tenho os meus irmãos tudo em Minas, né? (onde o filho vai ficar) Na creche. Aí eu vou pro trabalho e pego ele. Às vezes quando não dá eu peço pra minha vizinha pegar ele. Mas, por enquanto, eu vou levar lá pro trabalho, pra botar na creche lá de perto do trabalho, e ele vou pedir pra minha vizinha, vou pagar a minha vizinha pra pegar ele. (...) Aí quem chegar primeiro pega ele. (...) Ele já está grandinho, já está com dois anos. Margarida, 25 anos

Morava sozinha, trabalhava e tudo... Na época eu morava em Brasília, fui lá pra Tocantins, aonde minha mãe mora, pra ter meu filho. E quando ele fez um mesinho eu voltei pra Brasília e ele (o parceiro) me ajudou, sabe? Levava remédio, fralda, comprava leite... Mas aí eu encarei tudo sozinha. (...) Clarice, 36 anos

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A maternidade roubada fez parte dos discursos de algumas mulheres que

foram mães ainda jovens e morando na casa dos pais. Edna e Jose choravam bastante

quando relataram que tiveram seus filhos levados pelas mães, mas se recobravam

quando falavam de suas conquistas acerca dessa vivência.

Aí minha mãe... Aí minha mãe pegou e falou... Como eu era muito nova, muito nova, não tinha juízo nenhum, muito nova mesmo. Aí eu saía, deixava o menino lá, deixava lá. Ela... Aí ela pegou e falou pra mim: “Oh, se você sair, quando você chegar não vai encontrar mais teu filho aqui”. Mas, pra mim... (...) E foi o que ela fez? Ela foi... Ainda bem que ela pegou e deu meu filho pros meus sogros criar. (...)E, hoje, ele está com 25 anos, me chama de mãe. Eles criaram ele, mas falando que eu era mãe dele, ensinando que eu era a mãe. (...) Me separei assim dele estar lá e eu estar longe, mas estava sempre ali, sempre na urgência eu sempre corria. Essa aí que é minha história. Edna, 39 anos

Quando eu tive o meu filho mais velho ela estava viva ainda. Ela me tomou o meu filho mais velho, mas eu peguei ele de volta. Dormia na escada do Unidos da Tijuca com ele. E depois ela foi atrás de mim me pedindo perdão, aí eu voltei. Eu estava de resguardo, fiquei internada, e meu filho ficou com ela. Jose, 33 anos

A pobreza e a violência aparecem como ameaças à condição de ser boa mãe.

Essas dúvidas acerca da educação que dão a seus filhos, e o que eles realmente serão,

são reforçadas principalmente pelos desafios do mundo moderno que são lançados

diariamente a mães e filhos. Esses dilemas se aliam às mudanças sentidas pelas

mulheres e às condições de criar os filhos em um mesmo conjunto de ponderações, mas

com um grande diferencial, elas não tem controle sobre esses fatores nem mesmo

conseguem medir suas conseqüências reais. Os tiroteios, seguido pela morte de pessoas

próximas, invasão policial, tráfico de drogas compõem o cenário de violência exposto

pelas mulheres e os limites impostos por ela ao direito de ir e vir delas, dos parceiros e

dos filhos, e deixam claro até mesmo o medo de perder o filho antes do tempo.

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Olha, hoje eu privo a Luiza de um monte de coisa. Por quê? (...) Não vou deixar descer o morro com a minha filha. Ontem, por exemplo, era 5 horas da tarde tinha um monte de polícia, uma confusão danada... Era hora que ela estava chegando. Eu fico em parafuso no trabalho, ligando para casa toda hora para ver se minha filha está bem, se já chegou, se não chegou. Então, eu privo a Luiza de muita coisa por causa disso. Bárbara, 38 anos A gente sempre ensina a ele a não ter medo. Hoje em dia ele tem medo de ficar no escuro... Tudo bem. É coisa de criança, mas ele não tinha medo de ficar sozinho no escuro, ele ia, hoje ele morre de medo. Se falar: “Vai lá, pega seu chinelo”. Essas coisas assim, ele já tem medo. Ele fica com medo. Se ele escuta alguma coisa ele pensa que é tiro já. Já começa a resmungar, a chorar já, a choramingar. Porque é muito assustador. (...) Aqui não dá. É preso, dentro de casa. Quando você sai, você sai com medo de voltar e estar acontecendo isso, acontecendo aquilo. É muito difícil. Margarida, 25 anos Que o Rio de Janeiro é bom, mas tem violência demais pra todo lado que a gente olha. A gente fica sem ter opção, né? A gente mora na favela porque não tem opção. É complicado. Não tem segurança de mandar um filho comprar um pão na padaria, se ele atrasa eu já fico preocupada. Cecília, 32 anos Eu não quero que meu filho continue morando aqui. Sexta-feira aqui foi um caos. A polícia entrou atirando, a gente estava pegando as crianças na escola. (...) Eu não quero isso, eu não quero chegar e enterrar meu filho, eu quero que ele me enterre, não que eu enterre ele. Lúcia, 31 anos

As drogas e toda a representação do mundo do tráfico são consideradas uma

ameaça às escolhas dos filhos, principalmente por perceberem que há poucas

oportunidades para eles.

Às vezes esses garotos adolescentes, um quer ser melhor do que o outro, se arrumar melhor do que o outro, né? Aí vem aquele humildezinho ali do lado, deixa a pessoa constrangida. Às vezes até leva pra fazer besteira. Aqui no morro o que mais se vê é isso, às vezes os adolescentes vão crescendo, garoto arrumadinho, aí já começa a carregar mochila, fazer favorzinho pra... Mochila assim, com droga, carregar pros caras. Aí faz um favorzinho aqui, aí ganha um dinheirinho. Aí vê a facilidade e acaba se envolvendo. (...) Entendeu? Vitória, 41 anos

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Eu falo: “Quer isso para você? Daqui a pouco você está no beco aí, dando mole para um e para outro, eles vão te chamar de mamada, falar que você está passada, e que virou carrocinha de cachorro quente, que todo mundo passou a mão, todo mundo pegou, todo mundo levou... É isso que vocês querem para vocês?” Sabe? Eu falo. Aí um dia desses essa minha filha de 14 anos, estava vindo da escola um menino mexeu com ela. (...) Aí eu fui lá, e bati nas costas dele e falei: “E aí, colega, gostou?” (...) Ele: “Pô, tia! Ela é devagasona...” (...) Sabe por causa de que? Porque eu não estou aqui pra ela passar o que vi passar... Amanhã ou depois estar grávida, sem terminar os estudos, na mão de um e de outro. Vocês metendo o malho, porque vocês falam”. (...) E a minha filha vai passar de lá pra cá, se você mexer com ela, tu vai arrumar um problema, porque antes d’eu arrumar um problema contigo, vou lá no teu superior. Mas depois se você não ficar ligado vai arrumar um caô ferrado comigo”. Aí vim embora com ela. Minha filha vai e volta. Eles nem olha. Nem mexe. (...) E eu explico para elas: “Ó, sair com esses meninos é problema. Por quê? Vocês sabem que todos eles tem mulher. (...) Você vai ter sua época de namorar. (...) Mas você está consciente que tem os riscos. Não só tem a gravidez, porque às vezes a gravidez não é nem o problema. O problema é a AIDS, a Sífilis, a gonorréia”. Eu falo mesmo. “Depois que... Eles só querem comer. Eles vão te comer, vão te passar uma doença, um filho, e vai te largar pro lado.Vai ficar nas minhas costas, mas nas minhas costas não vai ficar porque eu te boto para fora.” Mas claro que eu não vou botar. Eu falo: “Eu te boto para fora” Porque senão fica aquela mulher doente, com filho, e eu tendo que sustentar, além dos meus que estão pequenos e eu ainda estou fazendo (apontando para a barriga), vocês ainda vão ficar nas minhas costas?”. Camila, 35 anos

A violência é sentida no desenvolver da maternagem, mas também repercute

nas próprias escolhas reprodutivas, como comentam Juliana, Amanda e Nadir.

E fechar. Pronto, não ter mais. Porque hoje a vida está muito difícil, principalmente pra quem mora dentro de comunidade, porque as crianças têm muito contato com essa coisa de tráfico, com droga, com essas coisas, eles vêem, passam por perto. Então fica difícil principalmente pra mim que trabalho o dia todo e meu filho fica com a tia dele. Então eu não estou ao lado dele todo dia pra falar o que está certo e errado. Juliana, 19 anos Onde eu moro não tem condições nem de criar um, se tem muito filho é sem condições. (...) À comunidade. (...) Porque é muito perigosa. Ontem mesmo, pra ir pra escola. Assim, porque ontem

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mesmo tive que ir a pé, eu estudo na Mangueira. Tive que ir a pé porque o ônibus não estava passando porque havia um tiroteio. (...) Então pra ficar assim, está bom um só. Amanda, 22 anos E assim o local que eu moro também não é um local bom pra ter filho. Eu moro em comunidade carente, então eu vejo muitas coisas. Sabe? (chorando muito) Eu não quero, pra mim ter um filho eu quero dar uma vida melhor pro meu filho. Eu não quero... O local que eu moro não é legal. Nadir, 31 anos

Fernanda morava na rua quando descobriu que estava grávida do segundo

filho, o receio de que ele se envolvesse com drogas por ver as pessoas fazendo serviu de

motivação para que ela decidisse buscar ajuda para si mesma e para proteção de seu

filho. Ela reconhece alguns recursos sociais que podem colaborar em sua decisão, como

o abrigo, os cursos do SENAC e o encaminhamento para colocação em emprego, o que

abriria ainda mais portas para ela como a busca pela casa própria através do programa

Minha Casa Minha Vida.

É porque, assim, eu via aquelas crianças que eu vivia no meio... Usando droga, passando tine, cheirando cola, bafando crack, usando esses tipos de drogas todas. E eu falei assim: “Poxa, isso não é vida para o meu filho, cara! Meu filho não merece isso. Meu filho não merece isso”. “Eu não posso ficar aqui na rua, criar meu filho na rua” (...) Eu falei: “Não, vou procurar um abrigo, cara!”. Foi nessa que eu procurei um abrigo, que eu tive um apoio, e graças a Deus estou aqui trabalhando, quero voltar a estudar, quero levantar minha vida. Entendeu? Quero dar um futuro para os meus filhos, independente de não ter pai... (...) Aí fui para o abrigo. Aí lá que me deram um apoio. (...) Eu fiquei no abrigo 7 meses, ele não agüentou. Pediu para ser desligado, foi desligado e eu fui continuando. Eu falei: “Eu não vou ficar na rua com ele. Eu não vou.” (...) Aí me ajudaram. Me deram curso e esse emprego aqui. (...) Me inscrevi na casa própria. Sabe moça? Com a fé de Deus eu vou conseguir uma casa pra mim deixar pros meus filhos. Amanhã ou depois eu morrer: “Essa casa aqui é de vocês”. Sabe? Fernanda, 26 anos

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Os valores predominantes e aqueles que as mulheres defendem para a

educação de seus filhos podem estar em conflito e exige que as mulheres elaborem

estratégias para lidar com ele em seu dia a dia.

Porque nós não temos assim, digamos assim, por exemplo, eu moro numa casa que hoje eu tenho uma pequena varanda, mas eu não tive ela durante muitos anos. Então eu não tinha como dar um espaço para meus filhos brincarem de uma forma que eu pudesse saber exatamente o que estava envolvendo eles. Então eu tinha que dar o espaço da rua, que é dividido com as outras pessoas. Então a sociedade também são cabeças diferentes, são pessoas que agem de forma diferente. Isso seja numa comunidade do morro, numa favela ou no asfalto, eu entendo do mesmo jeito. Então quer dizer, no prédio lá, cada um no seu quadrado, como fala hoje em dia, cada um no seu quadrado. Aí tem aquele playground que nem todas as crianças brincam na mesma hora. Na favela ou no morro não. Toda hora vai ter gente na rua, que é o nosso playground. Nice, 38 anos

Tanto a violência, a (in) segurança, as drogas e uma moral sob suspeita são

influências sobre a educação dos filhos que concorrem com os valores defendidos pelas

mulheres. Luana ilustra essa questão quando questiona seu papel de boa mãe para

educar as filhas diante das influências contrastantes da comunidade e não deixar que

elas se percam.

Ah... eu tenho medo. Eu tenho medo de não poder... de não ser uma boa mãe para as minhas filhas. Sei lá! Eu tenho medo de perder as minhas... Não sei! De perder as minhas filhas muito cedo. Não sei! Eu tenho medo desse mundo do jeito que tá... De... Eu tenho medo das minhas filhas não ter uma boa formação de caráter, de personalidade. Sabe? Tenho medo dessas coisas assim. De sofrer influência... Sei lá. (...) Influência de dentro da comunidade que a gente... Que a gente mora mesmo. Entendeu? (...) Eu... assim... eu não achava... Eu não achava que influenciava por completo, porque... por mais que a minha família não tinha um suporte legal, entendeu? A nível de família... eu consegui, eu e meus irmãos, vamos dizer assim... nós conseguimos... Hoje nós não temos envolvimento com nada. Aquela coisa toda. Mas eu vê... Hoje eu observo meninas de dentro da comunidade mesmo que tinham uma vida melhor, assim... olhando, do que a minha, tinha um suporte bem maior do que o

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meu, e que de repente se... entendeu?... se perderam no meio do caminho. Não sei o que aconteceu. (...) Porque você não tem controle sobre a vida. (...)Eu tenho medo de ficar tendo filho... e aí depois, Sei lá! Seus filhos crescem e se desvirtuam. Eu não sei. (...) Condição financeira... eu sei que eu posso buscar, eu posso trabalhar. Se eu ficar desempregada eu posso vender sorvete na praia, eu posso vender bala, eu posso dar o meu jeito de sobreviver. Mas você não sobrevive só porque você tem dinheiro... tem condição. Entendeu? Eu acho que é o caráter mesmo, essa coisa mesmo. Eu acho que essa coisa de caráter, de personalidade... eu acho que está muito complicado hoje em dia a formação disso, nesse mundo que a gente vive louco, que pai matando, tendo relação com filha e aquela coisa toda. É isso que me amedronta mais. Luana, 27 anos

Eu sou aquela mãe que eu sempre penso... A minha mãe sempre me explicou o que é certo e o que é errado... As pessoas: “Ah, mora na comunidade vai dar para coisa errada. Eu sempre conversei com os meus filhos: “Se entrar numa vida dessa eu não aceito. Eu não aceito.” (...) Mas mora no moro. Não é só porque a gente mora no morro que vai se envolver em coisa errada não... porque tem que ter cabeça. Porque infelizmente quem tem cabeça fraca faz besteira. E graças a Deus, eu tenho 3 filhos homens mas tudo... Porque é difícil! Está muito difícil a gente morar na comunidade e vê os jovens se envolvendo. Não é só os jovens. As meninas é a gravidez, né? E os meninos entrando no mundo do tráfico. Mas graças a Deus, com todas as dificuldade estão todos muito bem. Cleonice, 48 anos

Algumas mulheres, assim como Luana, apresentam a religião como amparo

para que, mesmo sob conflitos, os filhos se tornem pessoas de bem.

Aí conforme eu fui crescendo a minha avó me falava da religião que ela seguia, e eu sempre respeitei porque ela era uma chefe de família, vamos dizer assim, que conseguiu manter todos os filhos dela como homens de bem numa comunidade complicada. Então isso aqui no morro uma pessoa conseguir fazer isso é um mérito, né? Porque passa por dificuldades, muitas coisas, então eu, pelo menos para mim, acho que é um mérito. Então eu sempre me espelhei vendo essa situação. Melissa, 24 anos Graças a Deus, são lá 3 homens, estudam, trabalham. O de 20 está desempregado, mas é o que trabalha lá na igreja, que viaja. Até viajar, coisa que eu tinha medo. Ela vai viajar com ele agora mês que vem para São Paulo, vai trabalhar com a peça, com a igreja. Cleonice, 48 anos

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Para algumas mulheres em cujos relatos transparecia um grande desamparo

afetivo e social, a maternidade trouxe outro sentido às suas vidas. O filho que é seu

representa para essas mulheres um passaporte para seu existir no mundo através deles.

Ah! Fiquei muito feliz, né? Fiquei muito feliz. (...) (chorando) Eu me sentia muito carente. Entendeu? Muito carente. Muito sozinha. Eu fiquei muito feliz. Aí na época meu pai e minha mãe queriam que eu tirasse o neném... também. Minha mãe não agüentou, entendeu? Aí falou: “Você é muito nova...” E eu não quis tirar. Não quis. Não quis tirar, tive minha filha. Minha filha agora está com 8 anos. Tive uma vida muito sofrida, sabe moça. Devido a minha mãe trabalhar assim não na parte financeira, mas assim sempre me senti muito só. O que adianta ter pai e mãe e ser só? Entendeu? Era assim que eu me sentia. Era muita briga do meu pai e da minha mãe, separação. Sabe? Isso tudo. Eu me sentia sozinha, ficava sozinha no mundo, me sentia sozinha com as minhas colegas. Eu vivia na casa das minhas colegas. Essas coisas assim. Fernanda, 26 anos

Porque a minha família me maltratava muito. (...) Não era maltratada assim de coisa não. Assim de palavras, sabe? Também coisas que ofendem assim. A minha mãe morou com um homem, esse homem não gostava de mim, não me aceitava, e também minhas irmãs também ele não aceitava. Então... Aí a minha mãe deixou minhas irmãs na casa com meu pai, que eu chamo de pai, mas não é meu pai verdadeiro não, chamo de pai. Aí deixou com meu pai meus três irmãos e carregou um. Ela só levou um. Aí ele não aceitava os filhos dela lá. Aí eu ficava ali. Nunca gostei de dormir na casa de ninguém, nunca gostei de estar na casa de ninguém. Aí eu dormia pelas estações, pela linha do... No trem. Ia pra Central, ficava lá na Central. Ficava lá e chegava um me dava um dinheiro, me dava uma comida. Eu ficava andando pela... De trem pra baixo e pra cima durante o dia, pra baixo e pra cima de trem. Edna, 39 anos

O orgulho que sentem ao falarem de seus filhos demonstram não só os bons

frutos de seus cuidados como também expõem seus próprios desejos realizados nos

filhos através de suas conquistas.

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Hoje eu moro dentro de uma comunidade, mas eu vejo que meus filhos são pessoas de caráter maravilhoso. Sabe? Meu filho de 16 anos já está no segundo grau, hoje trabalha, faz estágio no Banco do Brasil, me ajuda pra caramba! É um menino lindo, maravilhoso. A minha filha também já está uma mulher também. Sabe? Eles me ajudam. Clarice, 36 anos

Ela está estudando, estuda, está fazendo a... Já terminou um curso, agora está estudando pra fazer outro curso. Né? Edna, 39 anos

Por sinal ela é miúda, essa minha filha é miudinha, magrinha, mas tem uma disposição danada, é ativa. Sabe? É a Paula, a mais velha é a Bruna. A Bruna estuda no Pedro II, conseguiu vaga por sorteio. A mais velha está fazendo a 8ª série ginasial, está no último ano, e a outra está indo ano que vem pro quinto ano. E tem um garoto que tem 4 anos, é o Felipe. (Percebe-se o orgulho em seu tom de voz ao falar dos filhos)(...) Tem o Felipe, e tem a Maria Clara que é de um ano e nove meses de uma gravidez para outra. E esse. Denise, 41 anos

Essas conquistas fazem parte de perspectiva de mobilidade social que as

mulheres vislumbram para seus filhos, instituindo que devam ter vivências diferentes e

serem mais do que elas, pertencendo ao mundo de outra maneira.

Porque assim, a gente conversa com os filhos e eles andam para gente, né? Por isso que eu falo, eu tento ser amiga. Eu vou tentar ser amiga, eu vou tentar não, eu já sou amiga hoje. Então eu vou conversar com ela, eu vou preferir que ela use camisinha, senão eu “entupo” ela de anticoncepcional. Eu dou na boca, eu dou. Eu dou, eu dou ,eu dou. Sabe por que? Não é porque eu não quero ser vó, é o que eu acho que ela precisa ter outro caminho. (...) Eu quero que a minha filha estude. Eu estou batalhando pra conseguir botar minha filha em outro colégio, tipo um Dom Pedro II da vida... Um Pedro II da vida. Tipo um instituto. Sabe? Eu converso com um, eu converso com outro. Eu já... tipo assim, sai no jornal anúncio do colégio tal eu falto serviço, chego atrasada... Eu quero que ela tenha um pouco mais. Tem algumas pessoas na comunidade que pensam do mesmo jeito que eu, que quer que seu filho cresça, que ele tenha um bom trabalho, que ele tenha alguma coisa. Eu não quero a minha filha com 13, 14 anos, andando pra baixo e para cima, andando atrás de homem, porque é assim que fica, é desse jeito. É horrível, é horrível. Às vezes eu tenho medo de falar e no futuro eu viver isso. Mas eu

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espero que não. Pela amizade que eu tenho com a minha filha, por conversar com ela. Bárbara, 38 anos Eu sou do interior de Minas. Minha cidade fica próximo de Montes Claros. Eu sou não, fui criada, minha família é toda de lá. Então eu assim, eu pensava que nunca ia querer morar lá, falava sempre. Agora já mudei de idéia. (rindo) Depois que tem filho muda tudo. (...) Quero muito morar lá... (em Minas Gerais onde tem parentes) Penso muito voltar morar lá. Pra ver eles criados livres e soltos, eles... Margarida, 25 anos Sempre trabalhei. Tem que trabalhar. Porque não dá. A renda do meu marido é muito pouca, e meus filhos não são filhos dele. Eu tenho vergonha, meu filho precisar... Meu filho quer fazer medicina. (...) Ele vai tentar o ENEM. Se não tentar o ENEM eu não tenho como realizar esse sonho dele. (...) Nem ele trabalhando... porque medicina é integral. (...) Dá vontade de chorar quando eu falo isso. Eu não... (sob lágrimas) Eu não falo pra ele desistir do sonho dele, mas eu não sei o que falar pra o meu filho. Ele dizer: “Pô, meu sonho é medicina, mãe...” Mas é fora da nossa realidade. (...) Se ele se entregar mesmo, estudar dia e noite eu acho que dá. (...) Numa universidade pública. O problema é que a gente vem de uma escola horrorosa, né? O município não prepara ninguém pra vestibular pra medicina. Eu conheço... assistente social pobre, enfermeira pobre, professora pobre, mas não conheço um médico pobre, paupérrimo. Conheço pobre classe média, paupérrimo não conheço nenhum médico. (...) Ah, eu me considero bem pobre, porque o meu dinheiro vai tudo pra construir a nossa casa. Vanessa, 38 anos Como eu to dizendo, mas tem muitas meninas que tem andado apressada, né, então já quer... Então hoje em dia é aquele negócio... Você pode muito bem ter relação sexual, ser uma pessoa nova ter relação sexual, mas não precisa ter filhos, né... (...)Afinal ela ta namorando... Essas meninas tem a cabeça assim, meio avoada, pra ela ta se precavendo... (...) Eu namorava, mas eu não procurei uma gravidez cedo... Eu fui ter uma gravidez com dezoito anos porque eu quis... Então eu acho que também para ela... ela precisa estudar... (...) Hoje em dia a gente pode procurar uma curso, pode procurar qualquer coisa pra uma adolescente fazer... E... Além disso, eu tenho um plano hoje em dia de mandar estudar na Europa... Que eu tenho duas primas que moram na Europa... Então a nossa meta é essa... Ela terminar o segundo grau aqui e ir pra lá... (...) E eu como tenho assim um ciclo de amizades... Muitos amigos fora daqui da comunidade, então a gente ta sempre saindo, a gente tá sempre viajando... A gente é convidado a gente vai, então a gente ta sempre mostrando eles que outro caminho de vida eles podem levar... Eles podem escolher para a vida deles... Mônica, 37 anos

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A maternidade, portanto, é apresentada como um choque que desperta na

mulher a mãe e institui uma série de responsabilidades, e nem sempre as mulheres estão

prontas para adentrar este mundo. Luíza comenta sua experiência.

Eu gostei de ser mãe. (...) Gostei. (...) Ah, mudou tudo, né? Mais responsabilidade. (...) Mudou tudo... Minha vida... Valquíria, 21 anos Que é uma benção, né? Claro! (...) Ah... foi maravilhoso... ter um bebê! Eu era nova, mas eu tinha responsabilidade... que eu sempre cuidei da casa da minha mãe... dos meus irmãos. E foi muito bom! Eunice, 31 anos Foi um choque assim normal: “Vou ser mãe. Como vai ser? Tem um filho dentro de mim. Como que vai ser agora? O que eu vou fazer da minha vida? Vou ter que largar um monte de coisa”. Mas foi tranqüilo. (...) Foi tranqüilo. (...) Ah, passou a gravidez. Aí meu filho quando estava com seis meses eu me separei do pai dele. A gente ficou um ano separado. Tem pouco tempo que a gente voltou, voltamos em agosto do ano passado. Aí decidi não ir morar com ele de novo, porque eu não tenho paciência. (rindo) Eu não consegui conciliar filho, casa e marido, assim, tudo ao mesmo tempo. Eu me considerava ainda muito nova, com 20 anos eu ainda não tinha tanta responsabilidade assim. (...) Eu não tive preparo. (...) Me separei. Eu fui embora, fui pra casa da minha mãe de novo. (rindo) (...) Ah! Foi bom. Ela estava perto do neto dela: “Primeiro neto.” Eu sofri um pouco, mas depois foi tranqüilo. (...) Pra minha mãe foi maravilhoso. Ela adora o neto dela. (...) Fica com ele. (...) Pra eu poder trabalhar. Luíza, 22 anos

Existe uma comparação nas maneiras de agir das mães que serve de baliza

para os próprios julgamentos de sua maternagem, mas também das de outros.

Mas eu sei que no dia a dia tem um monte de mãe que, coitadas, trabalham muito, final de semana lava aquele roupeiro, e vai fazer o almoço do domingo, e as filhas adolescentes estão em casa dormindo porque passaram a noite no baile. Quer dizer, é um pouco confuso, mas eu vejo assim que o povo na comunidade vive muito um igual aos outros. (...) Então eu acho que eles vivem muito um igual aos outros, porque eles acham bonito. Tem menino que fuma maconha,

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cheira, faz tudo, porque o outro faz, e as meninas engravidam porque outras engravidam. É só pra achar bonito estar carregando o boneco, no colo. Isso quando carregam. Entendeu. Porque elas andam, mais não cuidam. (...) E as mulheres também. E elas tipo assim, parece que não entendem, ou até entendem. Tem muita mãe legal, que conversa. Eu tenho amigas que tem filhas, hoje eu tenho uma filha com 10 anos, mas eu tenho amigas com 38, que tem com 16, 17, filhas adolescentes, né? Então elas conversam, elas falam, mas o dia a dia, o que mata eu acho que é um pouco a falta de atenção. Bárbara, 38 anos Meu irmão não cuida das crianças, as crianças ficam largadas. Eles só sabem terem filhos, botarem filho no mundo. As crianças às vezes não tem nem nada pra comer. (...) Essas coisas me entristecem muito. (...) Eu falo com a minha mãe: “Eu não mandei o Anderson ter um monte de filho. Eles tem filhos porque querem”. Ele perdeu a guarda dos 6 filhos dele pra o juiz, ainda me faz mais um filho. Tem um menininho de um aninho. As crianças não tem culpa. Se você botou um filho no mundo você tem que ter consciência daquilo que você está fazendo. Não é o pegar e botar a criança no mundo e deixar o mundo criar. Não é assim. Nadir, 31 anos

Os discursos sobre a vivência da maternidade e maternagem tem um

silêncio sobre as experiências do corpo, da sexualidade, das paixões, dos impulsos,

revelando um pudor feminino e contenção de seus corpos. Os cuidados com a saúde

foram poucas vezes referidos e mesmo quando apareciam tinham motivação em garantir

cuidados aos filhos. É cuidar do corpo que cuida, conforme contou Jose.

Eu botei ele em três colégios, ele saiu. (...) Uma porque quando eu fiquei... Eu fiquei internada três meses pra operar que eu fiquei com mioma e um cisto, aí eu tirei uma trompa. Aí ele pegou e saiu... Aí eu tive que botar noutro colégio... (...) Aí sou eu e meus filhos mesmo. O pai do meu filho mais novo sumiu, o do mais velho morreu. Eu estou aí. Se eu não correr atrás da minha saúde agora os meus filhos não vai ter ninguém por eles. Porque a minha cunhada mesmo falou, ela disse: “Eu já tenho dois filhos, boto eles no colégio interno. Eu não vou criar.” Então eu tenho que correr atrás pra mim enquanto dá tempo porque depois... Jose, 33 anos

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Os paradoxos e conflitos vivenciados com a maternidade por muitas das

mulheres, giram em torno das mudanças advindas da maternidade, das condições para

criar os filhos e da conciliação de um sem fim de atividades que as mulheres falam

sobre maternagem. O discurso de Nice revela ainda que, quando se tem mais de um

filho, além de todos os conflitos já citados é preciso conciliar as maneiras de lidar com

cada um dos filhos. As necessidades relacionadas à maternidade e maternagem são

dinâmicas e diversas, para cada grupo, cada pessoa e a cada vez que acontece. Nice fala

sobre seu amor pelos filhos que segue essa mesma linha, sendo igual para todos, mas ao

mesmo tempo diferente, porque cada filho é diferente um do outro.

Porque você dividir a atenção para mais de uma criança é muito complicado. Até porque cada um é diferente do outro. Então eu sempre tive esse medo, eu sempre carreguei comigo esse medo de não tratar meus filhos com igualdade. Mas não tem como você tratar com igualdade, porque eles são diferentes um do outro. E como mostrar pra eles que eu amo todos? De certa maneira igual, que eu não trato igual porque cada um me obriga a tratar um diferente do outro. Não é? Então pra mim é super difícil. Então constituir uma família é você dar o melhor. O melhor ali dentro da necessidade de cada um, não é? Pra mim é isso. Eu quero sempre que meus filhos cresçam, tenham estrutura de ter uma vida legal, moral, de andarem de cabeça erguida, sem medo. Saber escolher o que é bom, o que é ruim para eles acima de tudo... Nice, 38 anos

A maternidade, e claro toda a cadeia de vivências reprodutivas, é percebida

pelas mulheres como uma grande responsabilidade e com isso modifica de maneira

importante seu ciclo de necessidades. As dualidades de antes e depois, perder e achar,

assim como os complementares de gestar e parir, ter e cuidar, revelam que nesse

processo das vivências reprodutivas as mulheres experimentaram maneiras diferentes de

criar, perceber e satisfazer necessidades. As mulheres se apropriam ainda mais de suas

escolhas, mesmo que paradoxalmente estas não sejam para elas. O desejo de conquistar

algo se torna mais real quando está envolvido benefícios ao próprio filho. Se nesse

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caminho novas necessidades foram criadas, surgem também outras maneiras de

perceber necessidades semelhantes às de antes e a satisfação parece ganhar um plus.

Para algumas mulheres, a maternidade trouxe também essa face deixando-as mais

espertas e mais ligadas para o controle sobre a fecundidade, seja para andar com seus

projetos pessoais ou para dar melhores condições para os filhos que já tem.

Ah! Tive mais consciência, né?... do que estava fazendo agora. Sei lá! Parece que eu... Ah, sei lá! Fiquei mais ligada... agora fiquei mais esperta. (...) Fui morar com ele. (...) Então fui ficar lá... morava com a mãe dele lá. Manuela, 23 anos

A própria vivência já modifica o ciclo de necessidades das mulheres e aliada

à observação das vivências reprodutivas de outras pessoas de seu meio comunitário – de

práticas contraceptivas e abortivas, número de filhos e forma como são cuidados,

relação entre parceiros, paternidade múltipla, etc. - serve como base de comparação e

julgamento de suas próprias escolhas, vivências e possibilidades, influenciando a

modelagem e percepção de necessidades da vida reprodutiva.

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VI. Tramas da vida

Na comunidade você não tem pra onde você correr. Criança vê arma, criança vê droga, criança vê... Está vendo... Lida com aquilo dali é todo dia, todo o tempo, todo instante, todo minuto. Entendeu? Então já cresce naquela... (...)a gente nunca cria filho pra gente, a gente cria filho pro mundo. (...) Assim, mesmo porque eu sou um tipo de pessoas que eu uso muito aquilo que eu aprendo, boto muito no meu dia a dia. Eu sou assim. (...) Comecei viver, ter uma vida diferente. Falei: “Eu não quero mais isso pra a minha vida”. Foi até um dia que eu sentei, conversei com a minha mãe, peguei minhas coisas, aluguei minha... Botei minha casa pra alugar, vi outra casa na rua pra mim, e fui embora. (...) Porque eu quero terminar meus estudos. Eu não quero ficar minha vida toda ralando. Podendo trabalhar num lugar melhor. Entendeu? Estou trabalhando num lugar que eu trabalho 12 horas por dia pra ganhar um salário mínimo. Porque não vale a pena. Não vale a pena. Sem... Com estudo já está difícil, imagina sem. (rindo) Sueli, 23 anos

As vivências reprodutivas ou não reprodutivas das sessenta e três mulheres

entrevistadas estão imersas em uma trama que permeia todas as faces de relações que

constroem suas vidas. É na relação com o trabalho, com a escola, com a comunidade,

com a religião, com as instituições - saúde, assistência e seguridade social -, com os

parceiros e seu círculo íntimo que as mulheres vão moldando a criação, percepção,

distribuição e satisfação de suas necessidades norteadas por seus desejos e valores.

As mulheres narram suas histórias a partir de um lugar compartilhado, mas

com singularidades que tornam cada uma delas única. Ecoa dessas narrativas que elas

têm algum destaque, positivo ou negativo, experimentados pela reprodução ou por

outras formas de participação social. Entretanto, esse protagonismo não facilita o seu

modo de andar a vida e é vivenciado sob tensão. Ao mesmo tempo que confere poder,

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na criação dos filhos, por exemplo, e são colocadas no topo, o protagonismo também

representa a base de uma pirâmide e serve para que tudo o mais se equilibre. Edna

morou na rua, conheceu um companheiro, viveu com ele, teve filhos, foi feliz, como ela

mesma conta. O marido sumiu quando a filha mais nova tinha três anos e ela teve que

segurar tudo sozinha. Ser esteio da família ao mesmo tempo em que se lida com as

próprias vivências de abandono, fez com que ela se superasse diante de diversas

dificuldades e contasse sua história sem lamentações e com um sentido positivo a todas

as vivências.

Que depois que eu adoeci tudo desandou lá em casa. Tudo veio água abaixo. Fiquei 5 meses internada, no Getúlio Vargas. (...) Era eu que cuidava de tudo... (...) Agora eu estou em pé aqui, porque aquele lá de cima não permitiu. Eu estava parada, estava fora do tempo, fora de mim. (...) Foi muito difícil. (...) Tenho tentado melhorar. Edna, 39 anos

Edna fez relatos expressivos de superação diante dos problemas, o que

demonstrou uma trajetória de vida de conquistas dentro de suas possibilidades.

As origens das mulheres não foi algo explorado desde o início da pesquisa,

entretanto à medida que o trabalho foi se desenvolvendo e até mesmo durante as

transcrições é que me dei conta da diversidade de sotaques que compunham as vozes

dessas mulheres. Pelo menos quinze delas vieram de outras regiões, comumente

referidos como norte, e nenhuma se referiu a estados ou regiões localizadas ao sul do

país. Algumas vezes elas citam seu estado de origem, como Espírito Santo, Minas

Gerais, Bahia, Paraíba, Maranhão, Goiás, quando contam seus projetos e conquistas,

assim como quando comparam fatos que acontecem aqui e lá, sejam os modos de vida,

os serviços de saúde, a violência e até mesmo os comportamentos reprodutivos.

Aqui no Rio é tudo difícil, pra mim ligar eu tive que ir pro Norte. Aline, 27 anos

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Os hospitais hoje, principalmente aqui no Rio eu acho uma decadência. Eu digo perto da cidade que eu vivi e passei uma boa parte da minha vida que foi em São Luis do Maranhão. Joana, 27 anos Penso muito voltar morar lá. Pra ver eles criados livres e soltos, eles... (...) Aqui não dá. É preso, dentro de casa. Quando você sai, você sai com medo de voltar e estar acontecendo isso, acontecendo aquilo. É muito difícil. Margarida, 25 anos

Durante as entrevistas, três mulheres mencionaram situações de abuso

sexual durante a infância, principalmente quando falavam de escolhas que tomaram ao

longo de suas vidas. Para Emília, Sandra e Alícia, essa vivência marcou as trajetórias e

o fluxo de decisões que enfrentam ao longo da vida.

Olha, hoje, eu acho que eu falo muito hoje por conta que eu não falei durante muitos anos assim, porque eu era... Eu terminei meus estudos com 16 pra 17 anos. Eu estudava muito, muito. Porque eu falava que eu não queria mais vê-lo, queria sair de lá de onde nós morávamos pra um lugar onde eu não pudesse mais vê-lo. Então eu falei: “Vou estudar o máximo que eu puder pra que isso aconteça o mais rápido possível”. Então eu comecei a namorar muito tarde. Entendeu? Eu ficava muito trancada dentro do quarto, chorava muito... Tudo isso assim foi... Mexeu muito com a minha cabeça. Eu faço terapia até hoje. Hoje eu consigo falar, assim, de um ano pra cá eu já consigo falar que eu fui estuprada... (...) Porque assim, eu falava o que estava acontecendo, que o marido da minha tia mostrava o pênis pra mim, não sei o que, e eles achavam que era mentira. Então uma situação meio assim, sabe? desagradável. Eu num... assim, eu lembro da situação ainda. Meu marido fala assim às vezes: “Você tem que tocar mais no assunto pra você esquecer... Sei lá! Ficar... Isso sumir, esse monstro na sua vida. Mas é uma coisa meio difícil, é uma coisa meio difícil, porque, assim, eu lembro, quando eu lembro da situação eu lembro da dor... É como se estivesse passando um filme na minha frente. Eu lembro da dor, eu lembro da brutalidade. Tudo isso. (...) Quer dizer, não é... Assim... Supera, pode até superar, uma coisa que não vai ficar pra sempre... Você vai ficar lembrando? É um monstro que vai sumindo aos poucos, mas até agora ainda está meio presente. Entende? Emília, 27 anos Eu fui criada pelo meu avô e minha avó e meu avô tentava abusar de mim... E aí pra evitar eu ficava muito na rua. (...) Até assim a altura de

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12 anos, 11 anos que eu comecei querer ir embora de casa... Cada vez que acontecia... (...) Ele também saiu de casa, e aí a gente foi ficando mais a vontade. Aí eu fui vendo que tudo aquilo que ele fazia era errado. (...) Ele foi e saiu de casa. Mas aí eu já não ficava mais em casa. Eu saí de casa definitivamente com 13, mas eu já havia saído de casa algumas vezes. E eu ainda era moça ainda, mas eu já tinha noção do que era. Mas não abria o jogo com a minha mãe e com a minha avó até por medo da situação. Sabe? Que quando eu falei também a minha avó não acreditou, e a minha mãe falou que tinha acontecido tudo aquilo com ela também. Aí é meio difícil de entender. Sandra, 28 anos Pode um estranho, principalmente, pegar ele e levar a qualquer lugar e estuprar, matar, esse tipo de coisa, e os pais não vai saber. E também tem muito assim, os pais matam, tem coragem de matar o próprio filho por uma coisa que não tem no mundo. Bota o filho no mundo e quer matar. Então isso aí também é muito chato. Pra que ter filho se pra trazer no mundo pra sofrer, pra morrer de fome, pra ser uma vida de sofrimento, de estupro de qualquer tipo de pessoas que tem no mundo. Isso aí a pessoa acaba sofrendo. E eu fico revoltada por isso, porque não gosto de ver violência. (...) Então a minha vida que acontece foi muito o passado que acabou nisso. Então eu não gosto dessas coisas também... (...) Que revolta mais ainda o que eu vejo agora. (...) Então pra eu não ver essas coisas que eu já vejo que está acontecendo aí e ver meu passado então eu prefiro não ver... Alícia, 28 anos

A violência doméstica aparece abertamente nos discursos de nove das

mulheres. As maneiras de lidar com essa violência tem variações de acordo com as

ponderações que cada uma faz, como a dependência financeira do parceiro e do quanto

isso envolve os filhos, e conviver com ela quase sempre é a o caminho escolhido pelas

mulheres. Essa continuidade soou como uma naturalização, quase próxima daqueles

eventos que acontecem em seus corpos. Ela parece aceitável e, às vezes, as mulheres se

colocam em pé de igualdade com o parceiro, como se ser agredida de vez em quando e

até de revidar as agressões justificasse a violência. Essa naturalização, demonstrada por

Sueli, é ainda reforçada pelo deixar a vida acontecer até que novos caminhos se abram,

nem que seja pela morte de um dos dois, para fazer parar a violência.

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Mas aquilo... De tanto assim... No começou eu estava gostando... Eu gostava dele, aí depois de um bom tempinho aí começou a briga, ele tinha muito ciúme. Aí nisso eu... Entendeu? Ficava respondendo o que ele falava, porque eu achava errado as coisas... Que ele ficava falando umas coisas que eu não fazia. Aí eu... Muitas horas a gente acabava brigando aí ele perdia a cabeça comigo e me metia porrada. Mas eu também não ficava por baixo, porque eu também não sou de ficar por baixo. Eu sei que vou apanhar, eu sei que vou sair mau, mas também revidava, entendeu? (...) Mas ele saía ganhando porque ele é homem, tem mais força. Comparado à força de uma mulher... Letícia, 36 anos O pai deles também tinha essa mania de bater... (...) Quando eu tive ele (o filho), ele (o parceiro) trabalhava direitinho. De uma hora pra outra ele virou a cabeça, resolveu roubar, roubar, roubar, roubar, roubar, roubar. Era um cara muito possessivo, eu não podia sair pra lugar nenhum, não podia ter amizade nenhuma porque ele tinha ciúme. Se ele chegasse em casa eu não estivesse em casa, tivesse ido pra casa da minha irmã, qualquer coisinha ele me bater. Falava que eu estava me encontrando com homem. Ficava nessa. Qualquer coisinha ele queria bater, bater, bater, bater, bater, bater. (...) Virava e mexia os outros tinham que estar ligando pra minha mãe me tirar da mão dele. (...) Ele falava que não ia me deixar em paz, se eu largasse dele, ele ia me matar. Se não me matasse ia me deixar aleijada, que eu tinha que viver com ele o resto da vida, ou ia ser na morte, ou ia ser aleijada. Eu falava pra ele: “Seu tempo é mais curto do que o meu, porque quem vive nessa vida só tem duas opções, ou é ir preso, ou é morrer”. Então um dia eu fui pra igreja, pedi muito a Deus. Eu falei: “Meu Deus, se tiver que ser esse o meu futuro, se for da sua vontade vai ser. “Agora, se não for, me tira dessa vida, seja na morte, ou seja, ele morrer, ou eu morrer, o senhor tira a vida de alguém, ou então me leva pra bem longe”. Um belo dia eu estava em casa, quando eu menos esperei vieram me falar que ele tinha ido preso. (...) Foi a hora que eu falei: “Agora chega! Quero arrumar minha vida, não quero mais viver nessa”. Eu cansei de tudo, abandonei ele lá pela cadeia. Aluguei minha casa e fui me embora. (...) Aí foi quando eu me separei, porque eu não queria isso mais pra minha vida. Eu comecei viver, comecei sair, comecei trabalhar. Sueli, 23 anos

Entretanto, a violência doméstica não é normal para muitas mulheres e é

preciso dar um basta. Para isso, elas articulam meios ou acionam os recursos que tem

disponíveis para combatê-la, mas não a qualquer custo. Romper com a situação de

violência nem sempre significa deixar de viver com o parceiro e nessas situações as

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mulheres, de diferentes comunidades, demonstram um caminho paralelo à denúncia na

delegacia de mulheres. Elas acionam os homens, como são chamados aqueles que

participam da organização do tráfico na comunidade, que se tornam referência e servem

de contra-ameaça aos parceiros violentos. Melissa comenta que denunciar na delegacia

pode causar um problema ainda maior, já que além do conflito doméstico iniciaria um

conflito com os homens da comunidade.

Agora nós separou. A gente brigava muito, muito, muito. Eu tive que ir pra boca pra ele parar. Aí agora tem 3 anos – não é 4, que a gente não briga mais. Discute sim, como marido, como qualquer outra pessoa discute, é normal. (...) É assim... A boca é falar pros homens. Fica batendo boca, a gente fica bate boca, e as crianças escutando, a gente tem que falar pros homens pra resolver. Aí eu tive que descer porque eu não agüentava mais a gente brigar no tapa na frente dos meus filhos. Aí eu tive que descer. (...) Falei, com medo, porque não sei qual é a reação dos homens, tem dias que ele está bem, tem dias que ele está mal, não quer saber de relação de mulher com marido. Aí eu cheguei e falei. Aí eles falaram assim, se ele voltasse a me bater era pra mim vir aí que eles iam pegar ele, só que ele foi-se embora depois disso. (...) Faz até um tempo que ele e a gente não briga mais assim no tapa. Quando a gente começa a discutir assim, aí ele vai... sai, vai embora pra casa da mãe dele, não encosta mais a mão em mim. Aline, 27 anos Aí me estuprou 4 anos, me bateu 4 anos. Aí eu ameacei ele de chamar aos bandidos da favela, porque não pode chamar socorro de polícia, só de bandido. Aí ele parou de me estuprar e me bater. (...) Não fui, eu ameacei só. (...) Não cheguei a ir. Aí ele pegou e viu que eu ia, aí parou de me estuprar e me bater. Aí vai fazer um ano que ele me deu outra surra, depois desses 4 anos. Me deu outra surra. Aí eu falei pra ele: “Ou vai parar de me bater agora ou eu vou chamar os caras de verdade”. Aí ele não bateu mais não. (...) O que acontece se chamar os caras? Os caras vão resolver. Vão tirar ele de casa, vão saber porque ele bateu em mim, saber o motivo porque ele está batendo, saber se ele é um bom pai, se ele é um bom marido. (...) Se ele não for ele vai ser expulso. Se eu pedir pra matar, eles matam, se eu pedir pra bater, eles batem, se pedir pra não bater eles, também não batem. (...) Depende da gente, manda embora e pronto. Vânia, 33 anos Na época foi muita coisa que aconteceu então os próprios rapazes do morro falou para ele não se meter mais comigo, deixar eu em paz,

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deixar eu e meu filho em paz. E se ele viesse falar alguma coisa comigo pra mim falar com eles. Mas eu estava na igreja, eu estava bem, eu não queria problemas eu queria viver a minha vida com o meu filho, não queria mais nada. E ele ficava atrás de mim e eu estava desesperada. O que eu vou fazer? Eu vou denunciar ele que ele está enchendo meu saco, para ele me deixar em paz? Porque na época eu fiquei com hematomas porque ele me bateu. Eu fui lá procurei advogada, a advogada mandou procurar a delegacia da mulher para prestar queixa. Mas só que na comunidade eu fiquei muito receosa porque já estavam sabendo do que tinha acontecido e eu fiquei com medo de botar polícia no meio e me dar um problema maior. E eu no meio da confusão toda eu ia arrumar outra confusão maior. Aí eu fiquei com medo, deixei para lá. Mas eu falei para ele se afastar de mim e tudo o mais, ele se afastou, levou as coisas dele toda embora. Melissa, 24 anos

As maneiras de lidar com a violência doméstica, entretanto, é por vezes

silenciosa e de tolerância até que se alcance condições de romper definitivamente o

vínculo com o agressor, como a conquista de renda própria,

Exatamente, desde essa época. Aí eu apressei... Uma coragem tremenda, que nem todo mundo... Sabe? (Chorando) Não ter parente nenhum no Rio de Janeiro, não tive... Eu lido com venda, até hoje, sabe? Ganho por comissão. Aí como ele sempre falava: “Ah, você não tem parente, então você tem que viver comigo... Depende de mim pros seus filhos...” Eu já tinha consciência que eu tinha como trabalhar. Então eu já tinha conseguido juntar um dinheiro, sabe? Consegui alugar uma quitinete. Aí me separei... (...) Nossa! Muito. Porque me deixou confiante: “Que eu também sou capaz... posso lutar”. E hoje eu tenho meus filhos, são todos maravilhosos. Meus filhos hoje são minha vida... Me ajudam. E se eu tivesse ficado com ele, Deus me livre disso. Eu não me arrependo em momento nenhum. Nunca. Sabe? Talvez eu estaria numa situação muito difícil... Mas graças a Deus... Ele me deu muita coragem pra eu cuidar dos meus filhos. Clarice, 36 anos

As mulheres descrevem uma gama de instituições que podem ser acionadas,

desde aquelas proscritas pela lei e agem com violência até as formais. Em busca de

recursos sociais e de saúde, as instituições do estado são as mais referidas. Para a saúde

as mulheres referem à rede de assistência do Sistema Único de Saúde, em seus diversos

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níveis, como as próprias unidades de saúde da família, Unidades de Pronto

Atendimento, hospitais, além de alguns programas, entre eles a Farmácia Popular. O

Bolsa Família representa uma fonte importante de renda para atender às necessidades

básicas dos filhos segundo as mulheres que falaram sobre o benefício e elas tem

preocupação em manter esse recurso através do recadastramento, o que era motivo da

ida à unidade para Marli. Outros recursos sociais, como abrigos e programas para a

aquisição de casa própria também apareceram, demonstrando que as mulheres estão

atentas a maneiras de satisfazer suas necessidades. Elas estão informadas sobre os

benefícios e garantia das relações de trabalho, como a licença maternidade e

aposentadoria, e sabem como lutar por eles, como comentou Marli, que levou a patroa

na justiça quando fora despedida ao voltar da licença maternidade.

Era tipo um autônomo, sem carteira assinada, né? Mas estava dando um dinheirinho. Aí ele foi pra esse que está trabalhando de carteira assinada. Porque nesse de carteira assinada, já tinha mais outros benefícios que é a cesta básica... (...) Tinha ticket alimentação, fora o salário, né? Então essas coisas já pra gente já ajudava bastante. Porque hoje em dia se um trabalho tiver alguma assistência, até de saúde mesmo. Eu acho que todo trabalho tinha que ter (...) Assistência de saúde e uma cesta básica. Pro empregador isso não vai ficar ruim. Lúcia, 31 anos Quando eu entrei de licença eu com dois meses estava louca, pedindo pra minha patroa pra voltar. (rindo) A sorte é que a menina acabou não ficando lá e ela foi e me chamou. Aí minha prima estava aí ela ficava com o meu filho e eu ia trabalhar. Não trabalhava todos os dias, ela não me botou pra trabalhar todos os dias, trabalhava três dias na semana. (...) Já era bom, já era uma ajuda. Um dinheirinho a mais pra botar em casa. Bem melhor do que ficar em casa. Sentia muita falta de lidar com ele, ver crescendo. (...) Mas, pensava no bem estar dele, essas coisas de não faltar nada. Margarida, 25 anos Pra mim principalmente faz muita diferença, muita diferença, entendeu? E assim, você dentro de uma empresa é muito mais seguro, né? Eu nunca vi nenhuma prostituta se aposentar... Ir lá receber lá todo mês... Isso não existe... Sandra, 28 anos

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Ela só assinou minha carteira depois que ela me mandou embora... Porque eu fiquei os 4 meses em casa ela me mandou embora. Ela queria que eu retornasse depois de 2 meses e como eu estava amamentando, aí eu... Aí ela me mandou embora, botou outra pessoa no meu lugar. (...) Eu botei ela na justiça, porque ela não queria me pagar. (...) Aí ela assinou também, pra poder... Porque eu estava grávida do outro. Marli, 32 anos

O trabalho surge nas falas das mulheres de diversas maneiras, como forma

de independência, para atender as necessidades dos filhos, para romper com situações

de violência doméstica ou para pertencer ao mundo do consumo. O trabalho doméstico

na própria casa nem sempre é inserido neste mesmo grupo, sejam as tarefas realizadas

para a própria família ou para terceiros, como lavar ou passar roupa. Este trabalho é

apresentado com uma representação menor em um plano valorativo e reforçando as

divisões de tarefas entre homens e mulheres, onde o campo doméstico é da mulher, a

dona de casa. As mulheres reivindicam para si os cuidados com a casa e família, mas,

além de não demonstrarem que isso representa uma colaboração para a dinâmica

familiar, elas nem sempre reconhecem ou são reconhecidas no desempenho desta

atividade, uma vez que geralmente estão desvinculados da conquista de renda.

Vai fazer um mês que eu vendo roupa. (Antes você trabalhava com alguma outra coisa?) Não... Trabalhava passando roupa para fora. Passava roupa para fora... só isso. Aí eu parei... e agora tô vendendo roupa. Beth, 25 anos

A dupla jornada é aceita pelas mulheres, pois mantém nelas o poder sobre o

gerenciamento dos cuidados à família. Nos discursos o parceiro é no máximo

colaborador nessas tarefas e nunca responsável. Quando ajudam com os cuidados com

os filhos e com as atividades da casa, geralmente são destacados e diferenciados dos

outros homens, mas quando não participam, as mulheres não citam ou evocam a isso.

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É um pouco trabalhoso porque a gente tem que cuidar da casa, cuidar dos filhos, você chega um pouco cansada, mas dá pra ir... Dá pra levar. Clara, 34 anos Ele me ajuda muito. Pela manhã ele fica com ela... E arruma ela, manda ela pra escola. Se tiver que fazer o almoço pra ela ele faz. Joana, 27 anos

A renda da mulher nem sempre é complementar e na maioria das vezes

representa uma fonte estável, já que seus parceiros tem entradas incertas por exercerem

atividades como autônomos, em trabalhos temporários, pedreiro, serventes, etc. Além

disso, o trabalho esteve na perspectiva de grande parte das mulheres, como comentou

Tereza que sempre trabalhou porque isso era seu destino e não uma opção, o que é

reforçado por Vanessa quando diz que foi educada para trabalhar.

Porque lá em casa nós fomos educados pra trabalhar, não pra estudar, pra trabalhar e depois casar, mas pra tristeza do meu pai ninguém casou... né? Aí o que acontece. Meu pai sempre falava assim pra gente: “Ah, vocês têm que trabalhar”. Porque era um peso a menos pra ele. Né? (...) Qual o adolescente não quer ouvir que: “Você tem que trabalhar”? Entre 10 eu acho que um quer estudar, né? (rindo) (...) Porque a gente amadurece muito cedo. Tomando conta dos irmãos, as tarefas da casa, o pai e mãe cobrando que você tem que trabalhar. Você com 14 anos, o pai e a mãe já estão falando: “Olha, tem que trabalhar pra ter suas coisas”. (...) Porque a renda já não vai dando pra vaidade dos filhos. Então a vida é muito dura pra o pobre. Vanessa, 38 anos

Entretanto, exercer um trabalho extra-doméstico é conjugar várias faces de

sua vida sob um ponto de equilíbrio dinâmico. As mulheres vêem o trabalho como uma

redenção para suas necessidades e principalmente para as de seus filhos, mesmo aquelas

que não estão inseridas no mercado de trabalho. Mas, ao mesmo tempo em que o

trabalho lhes oferece a renda que garante condições de ter filhos ou mantê-los, exige

que elas se isentem de outras atividades, como cuidar deles, ter tempo para o marido,

cuidar de si mesmas e tocar projetos pessoais. Responder às expectativas de empresas e

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empregadores é como silenciar as necessidades da vida reprodutiva, ignorando suas

vivências corporais, ocultando ou revendo o plano de filhos, delegando a outros os

cuidados com seus filhos e se culpando por isso, e até mesmo se envergonhando pela

ocorrência de uma gravidez. O trabalho, portanto transita como uma conquista para as

mulheres, mas ainda é um desafio para empregadores reconhecer tais necessidades em

suas funcionárias e compartilhar com elas a vivência de suas escolhas.

Porque eu estava há um mês e meio mais ou menos trabalhando nessa casa e eu tive a confirmação do exame que eu estava grávida. Então não foi de propósito assim, pra: “Ah, estou trabalhando...” Tinham acabado de assinar minha carteira, não foi uma coisa assim que eu: “Ah, eu fiz de mal... que vão assinar a minha carteira então eu vou engravidar logo.” Não. Mas me deu uma preocupação muito grande: “Nossa! Será que vai dar certo, será que não vai dar?” Graças a Deus eu conversei com eles, eles concordaram em me deixar lá. Joana, 27 anos Hoje um dos motivos d’eu estar afastada do trabalho é muita carga, muita sobrecarga. (...) Então acumulava tudo. As pessoas me maltratavam. Se chegava lá, se meu filho passasse mal ou falava assim:. “Teu filho caiu da laje”. Eu não podia sair para levar meu filho ao médico. A empresa que eu trabalho não pegava, não deixava eu sair. (...) Não pegava pessoas pra me cobrir. Eu não tenho culpa, aconteceu um acidente. Acidente pode acontecer a qualquer momento, eu estou aqui pode acontecer um acidente, eu cair daqui e quebrar a perna. (...) E não pensavam dessa forma. Eu me sentia um lixo. Porque, servia, servia, servia e na hora que precisava ser servida não era servida. E foi assim esses anos todos. Aí de uns tempos pra cá eu acordei. Meu filho, depois que meu filho nasceu muita coisa mudou na minha cabeça. Lúcia, 31 anos

Trabalhar fora tem também outro significado muito além da conquista de

renda própria. As mulheres demonstram que o trabalho vem contribuir para que a

necessidade de se tornar sujeito - perante as pessoas, o mundo e elas – seja atendida. O

trabalho é um meio de participação e sociabilidade extra-doméstica que oferece

condição de expansão pessoal para a mulher e é fonte de novas relações; atende à

necessidade de dignidade e orgulho, assim como de se auto-reconhecer e ser

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reconhecida, e garante o pertencimento ao mundo do consumo. Essas conquistas,

mesmo que vividas sob tensão, promovem a idéia das mulheres de ser um indivíduo

útil, produtivo e realizado.

Nossa, pra mim é super importante, porque eu não gosto de ser dona de casa, não suporto ficar em casa fazendo as cosias, recebendo ordem. Nossa! Eu fico pra morrer com isso. (...) Eu não me considero dona de casa. Eu gosto de ficar na rua, de sair, trabalhar como sempre eu trabalhei. Então eu sinto muita falta, muita falta mesmo do trabalho. (...) É bem melhor. (...) Porque eu vou ter minha renda. Não vou precisar ficar dependendo 100% dele, porque também isso acaba comigo, ficar dependendo sempre só dele. Eu gosto de ter minha independência. Ser independente. (...) Isso faz diferença, com certeza. Me sinto outra pessoa, ninguém gosta de ficar dependendo de ninguém, é uma situação muito chata. Ele não joga na minha cara não. Ele é um bom marido, mas eu própria me incomodo com essa situação. Às vezes ele reclama. “Ah, o dinheiro não está dando...” Aí eu fico mais triste ainda porque se eu estivesse trabalhando eu até poderia ajudar mais ainda a ele, né? Que as coisas ficam complicadas nas despesas. Nilza, 24 anos Levantou minha auto-estima. Antes eu dependia do dinheiro do meu marido, hoje não. Se eu falar eu quero comprar isso, eu vou comprar porque eu tenho o meu dinheiro. Paula, 25 anos E agora que eu ganho meu salário , meu irmão fez um cartão de crédito pra mim, dá pra mim ir lá compro umas peças de roupas, parcelo e eu visto elas (as filhas). Marli, 32 anos Eu não dou conselho pra nenhuma mulher viver com homem dependendo dele, porque é muito ruim, muito. Fica jogando na cara. Igual... querer poder comprar uma coisa que quero e não vou poder comprar por causa que eu não tenho dinheiro que meu marido não vai me dar. Aline, 27 anos Eu gosto muito de trabalhar, gosto de ter minhas coisas. Eu gosto de... Eu tenho orgulho quando eu vou no mercado eu faço compra, quando eu compro uma roupa pro meu filho, quando eu dou um presente pro meu filho, quando eu compro uma coisa pra mim. Eu sinto orgulho porque eu sei que fui eu que trabalhei, eu que lutei pra ter aquilo. Entendeu? Então eu gosto muito de trabalhar. Nossa! Tem dia que eu chego desesperada, eu choro: “Aí, que raiva desse gerente! Que isso?! Estou cansada desse trabalho”, mas ao mesmo tempo eu peço perdão a Deus, porque eu agradeço todo dia por ter esse trabalho. Porque eu acho muito importante você trabalhar, não

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ficar dependendo das pessoas, ficar pedindo. Porque assim, você tem mão, tem braços, tem pernas então eu acho que você tem que correr atrás. (...) Entendeu? Tem muita gente deficiente que está aí trabalhando correndo atrás. Então eu acho... Eu tenho orgulho, e eu agradeço a Deus todo dia por ter esse corpo, essa vida, essa disposição de trabalhar, eu gosto muito... Juliana, 19 anos

O mundo do trabalho há muito não pertence somente aos homens, assim

como também não define às mulheres a função reprodutora nem encerra suas

possibilidades. Emília comenta esse avanço e traz algumas das discussões apresentadas

no tópico sobre maternagem.

Para mim é (importante trabalhar). Não é bom a gente trabalhar e ter o dinheirinho da gente? Né não? (...) É tudo dividido. (...) Tanto ele me ajuda como eu ajudo também. A despesa é toda dividida. (...) Por ele eu não trabalhava não. (...) Porque ele acha que mulher tem que ficar em casa. (...) Ah, conversei! Porque depender só de homem, não dá né? Ele: “Ah, não! Fica em casa que eu trabalho, dou as coisas para você”. Eu digo: “Não. Não vou esperar só você... Se eu tenho duas mãos e dois braços”. E saí para o trabalho. (...) Tereza, 26 anos Eu acho que assim, porque tem mulheres que acham que o homem é obrigado, que a mulher nasceu só pra procriar, cuidar dos filhos, ficar em casa, cuidar da casa, cuidar dos filhos e fazer a comida pra o marido chegar do trabalho. Não é bem assim. (...) Eu quero ter o conforto de ter internet, telefone, TV a cabo. Então eu tenho que trabalhar pra ter essas coisas na minha casa. Estou errada? Não é? Ela (a mãe) acha que não, que eu tenho que deixar isso tudo com o Rodolfo. “Não, eu não tenho que deixar pro Rodolfo”. Aí ela fica contra mim nesse... (...) Eu não tenho filho, mesmo se tivesse... Se tivesse, tem creche hoje em dia. Tem creche, pode botar. Não vou te dizer pra você que nasceu hoje já vai pra creche. Não, vou ficar um bom... Certo tempo em casa cuidando do meu filho. A não ser que... ele esteja num trabalho e que ganhe... Que ganhe o que dê pra sustentar nós três. (...) Você entende? Aí sim ele pode trabalhar sozinho. Se não... Não... Vai ter que ser dessa forma, um ano, um ano e meio, ou dois anos, volto a trabalhar e meu filho vai pra creche. Como qualquer filho de outra pessoa. Emília, 27 anos

Entre as mulheres mais jovens o mundo do trabalho geralmente está aliado a

completar os estudos, uma vez que esta é uma condição para se alcançar empregos

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melhores. Para aquelas que passaram dos trinta anos, os discursos relacionados ao

trabalho se encerram na conquista de renda ou de expandirem sua rede social.

A escola assume um amplo espetro nos discursos das mulheres, desde um

espaço informal para interações e convívio, não só na adolescência, até um lugar com

foco no aprendizado formal, e desta maneira, representa um meio para conseguir

melhores empregos, assim como para serem reconhecidas. Há muitas histórias de

interrupção dos estudos durante a adolescência, e nem sempre em função da

maternidade, mas também porque queriam sair para trabalhar, ou até mesmo por

farrear enquanto estavam na escola. O fato de não ter dado a importância aos estudos

quando deveria, como comentou Letícia, demonstra que existe uma sensação de que

algo se perdeu e a falta tanto é sentida que muitas delas decidiram retomar a atividade

escolar para realizarem seus projetos.

Assim, a escola pra mim tem um papel muito importante, porque foi justamente na fase da adolescência mais marcante pra mim, né? Foi onde eu comecei a ter experiências, assim ouvir as histórias das outras, né? E também a estar colhendo. Através desse ouvir, estar colhendo assim uma informação aqui, outra ali, as curiosidades, esclarecendo algumas coisas, mas assim, não pra dizer se está certo ou se está errado, mas pra questão mesmo de tentar. Tipo assim, você ouve sua amiga contar uma história aí você vai e faz. Você não fala que você vai fazer não, você vai e faz, entendeu? Tem vezes que dá certo e tem vez que não dá. Entendeu? (falando sobre a experimentação da sexualidade e relação com parceiro) Ingrid, 40 anos Porque naquele momento era minha única saída de dentro de casa era pra ir pra escola. Era o dia todo dentro de casa. De noite era hora d’eu ir pra a escola. Aí conversava, aí sempre tem assunto diferente da escola, amizade... Era tipo a minha válvula de escape, sair de dentro de casa algumas horas. (contando que mesmo com filhos pequenos não deixou de estudar) Eliana, 21 anos Foi um pouco difícil de achar uma vaga... Estudei e comecei a ter amizade, aí não quis mais estudar. (...) Eu não ligava muito pra estudar, né? Quando a gente é nova a pessoa não esquenta muito pra estudar. Hoje está fazendo falta. Né? (...) Mas aí não liguei mais

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pra estudar e aí agora depois que eu sou dessa idade entrei na escola. Marli, 32 anos Eu que decidi trabalhar. E aquele negócio, não estava com saco para poder estar na escola... Aí veio aquela fase... Depois aquela rebeldia: “Não quero mais ir a escola”. Então eu achei que eu tinha aquela obrigação de trabalhar...” Que eu quis trabalhar, não fui obrigada a isso. Que eu achei que aquilo era o suficiente. Acordava cedo, cumpria meu horário de trabalho, e gostava do que eu fazia. E não tinha aquele negócio: “Ah, ainda vou ter que ir pra escola! Ah, mas não vou mesmo!” Aquela coisa de... Mas fiz alguns cursinhos depois disso. Datilografia, informática... Mas não voltei mais pra escola. Hoje até penso em voltar para concluir. Denise, 41 anos

Voltar a estudar pode ser mais um desafio a ser conciliado com outras

atividades, e mesmo que constantemente adiado paira no horizonte das mulheres.

Completar os estudos representa para as mulheres uma forma de auto-reconhecimento e

de reconhecimento social, uma vez que confere maneira de enfrentamento e inserção

nas relações sociais, além de rebater o estigma da ignorância quando buscam

oportunidades de trabalho. Essas questões fazem com que as mulheres tenham grande

preocupação que os filhos completem os estudos durante a adolescência e com isso

conquistem oportunidades melhores do que aquelas que experimentaram.

Precisava ajudar meus pais com meu esforço. Aí eu parei. Aí eu estava pensando em voltar o ano que vem. Mas aí agora grávida... Ano que vem capaz d’eu estar com ele nos braços já... Nenenzinho, ainda não dá não. Só ser for assim pro meio do ano, aí que eu vou tentar voltar... (...) Pra mim concluir meus estudos, né? Porque você com estudo têm mais oportunidades, pode ter oportunidades melhores. Valquíria, 21 anos Igual tem muitos lugares aí que a gente vai pra trabalhar... E as pessoas pensam “ah mora em comunidade, é ignorante”. Então eu acho que me ajudou bastante (freqüentar a escola), só não me ajudou mais, porque eu também não procurei, não queria saber, não quis mais estudar. Mônica, 37 anos O pai da minha filha é médico, é neurocirurgião, então eu tinha vergonha de mim. Eu não tinha coragem de abrir minha boca para

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conversar com eles. Aí é que caiu a minha ficha que eu era uma burra. Que aí eu pensava assim: “Meu Deus do céu! Como que eu vou arrumar uma pessoa se eu não sei nem conversar? Aí que eu vi que realmente tinha que estudar. Aí eu pensei né? O que eu vou fazer nessas alturas do campeonato e uma coisa que eu goste? Vanessa, 38 anos

Poucas das mulheres tinham alguma aspiração de continuar os estudos para

além do ensino médio, mas para aquelas que verbalizaram o desejo ou já cursam uma

faculdade, sempre o referem com tom de conquista e aliado a melhorar as condições de

vida de seus familiares.

Eu quero fazer arquitetura. Eu não desisti do sonho. Eu sei que é mais complicado agora que eu tenho um filho, agora que eu estou com essa vida toda descontrolada, eu sei que é complicado, mas não é impossível. (...) Meu plano não é casar com o Anderson, isso não é plano de carreira. Meu plano de carreira eu quero estudar, eu quero fazer um concurso público, pra quando eu estiver estável... ter uma estabilidade eu poder fazer minha faculdade com mais tranqüilidade porque eu tenho dinheiro para bancar meus livros e dinheiro para bancar meu filho, para fazer uma faculdade pública, mesmo que eu tenha que passar por isso (fazendo um movimento como quem limpa o suor da testa) para fazer uma faculdade pública. (...) Então eu tenho que construir. (...) A comunidade (...) não apóia ninguém para uma faculdade da vida, não apóia ninguém. Então a pessoa aqui da comunidade correr atrás de uma faculdade, praticamente é ela que está indo atrás. É ela que está correndo, é ela que está descobrindo. Porque aqui você não conhece arquitetos, aqui você não conhece médicos, você não conhece enfermeiros, da comunidade não. Agora que a gente está tendo contato com médicos assim mesmo aqui do posto. Mas você não conhece ninguém de nível superior dentro do morro. É muito difícil. Os pais já criam seus filhos assim: “Meu marido é pedreiro”, “eu sou servente”, “eu sou merendeira” e assim vai, nível superior é uma coisa muito além. Então pra uma criança fazer o nível superior é complicado. Tem que ter muito apoio. Melissa, 24 anos

A religião aparece freqüentemente nos discursos das mulheres quando

contam seus dilemas em conciliar as determinações religiosas em suas práticas. Poucas

delas demonstraram assumir os preceitos religiosos de maneira rigorosa, e a grande

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maioria, apesar de referir o pertencimento a algum grupo religioso, combinam aqueles

preceitos com aquilo que acreditam ser o melhor para si mesmas, revelando que a

religião passa pelo prisma de seus próprios valores.

Quando eu quero me sentir mais bonita, melhor... Eu gosto de passar um batom, de passar uma maquiagem, de me olhar no espelho e falar assim: “Nossa, eu fiquei bonita!” de cuidar do meu cabelo. Eu gosto de fazer isso. E nessa igreja não pode. Não pode usar um brinco, não pode fazer isso que é a doutrina da igreja. Então eu me sinto muito presa, fico muito presa com isso. Então eu falo assim: “Poxa Senhor”, em ficar aqui seguindo a casa dele, seguindo a doutrina e ficar pensando as coisas lá de fora, nas coisas que estão me fazendo falta, e às vezes eu me senti pra baixo, querer me arrumar e não me sentir bem, aí fico meio assim... de largar isso... (os cuidados com a aparência) Melissa, 24 anos Porque é assim, na minha religião é o seguinte, a gente segue a doutrina da igreja. Como assim? Deixa eu te explicar. Se eu for morar com ele sem estar casada eu estou em fornicação com um homem nesse caso. Entendeu? (...) E aí por isso que eu tenho que casar direitinho. Tudo bem que ele já era meu esposo, essas coisas assim... (ela tem dois filhos com ele) Sendo que eu tenho o meu canto. (...) Aí o que acontece? Então eu vou casar direitinho (...) pra depois eu descer pra morar com ele. Tatiana, 23 anos Estou freqüentando (igreja evangélica), estou como visitante ainda. (...) E esse negócio da religião proibir a pílula ou qualquer coisa eu não concordo com isso não. A minha religião ela é muito pessoal, do que eu entendo do ser, não é? Nice, 38 anos

A religião aparece também como fonte de segurança para muitas delas

viverem de maneira mais serena frente às adversidades que enfrentam.

É que o budismo é uma filosofia de vida, né? Conhece a Lei Mística? Então, tudo depende de nós mesmos. Do nosso esforço e da nossa determinação. Entendeu? (...) Então eu achei que aquilo que ele falou parecia que estava falando diretamente pra mim, direcionado a mim. Aí eu fui freqüentando essas reuniões, sempre gostando, gostando, aí eu me consagrei. Vitória, 41 anos Se eu não estivesse na igreja certamente eu já estaria morta. Porque eu era muito agitada, muito ignorante. Eu acho que a vida me fez

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muito, uma pessoa amarga. E eu não aceito assim muita conversa, não gosto de conversa, não gosto. Não gosto de amizade... (...) Eu era assim muito problemática (...) Agora não, que agora eu estou na igreja então estou mais calma. Camila, 35 anos

Duas mulheres narraram suas histórias sob a lente da moral protestante, com

vivências que se encaixam em uma seqüência correta e protegida das influências do

mundo conturbado que as cercam. Elas demonstram que este pertencimento seria

salvação para as mulheres com decisões desviantes dos caminhos corretos nas vivências

sexuais e reprodutivas.

Eu acho que elas (as meninas da comunidade) vivem do momento, pelo menos aqui... vive daquilo, vive do momento... (...) Porque são muito novas, entendeu? Às vezes nem trabalham, dependem dos pais. E engravidam, aí depois engravidam de novo. Elas vivem mais pelo momento. (...) porque tem meninas que eu conheço, que nunca foi numa igreja, que nunca soube o que é igreja, o que é estar dentro de uma igreja, essas coisas assim. Até mesmo o que diz a bíblia, essas coisas todas que diz sobre gravidez ou sexo antes do casamento. (...) Um erro delas... Viviane, 19 anos

A violência e o tráfico de drogas estão presentes na maioria dos discursos e

permeiam a vida das mulheres em suas múltiplas facetas. As necessidades de segurança

e até as de conviver com a insegurança acrescentam uma lente sobre o próprio sistema

de necessidades. As narrativas de tiroteios, morte violenta e de mudança de hábitos

cruzam as descrições das vivências das mulheres, e algumas vezes como parte do

contexto sem estranhamentos. As maneiras de enfrentamento das mulheres inclui

aprender a conviver com os conflitos ou, utopicamente, romper com a situação,

deixando a comunidade.

Logo depois ele morreu. Até por confusão... Por minha causa mesmo. Sabe? Ele corria muito... Ele tomou um tiro... Um policial atirou nele. E ele também era muito novo, ele tinha 18 anos. Sandra, 28 anos

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Onde a gente mora tem que viver a vida como a gente... Com cuidado. A violência está demais. (...) Olha, a gente entrega na mão e Deus, né? Porque a qualquer hora a gente tem medo, né? De acontecer as coisas... O que a gente tenta fazer né, pra parar de ficar menos em rua, né? (os familiares) Do colégio pra casa, só sai se for com o pai ou com a mãe. Conceição, 32 anos Porque aonde eu moro aqui é perigoso e aí eu chegava tarde, tinha muito tiroteio, aqui é muito esquisito à noite, eu tinha medo, eu pedi para sair (do trabalho). Mariana, 20 anos O lugar onde eu moro posso dizer que lá é o paraíso. (...) não tem bandido. Nunca presenciei nada de troca de tiro. (...) Agora é preocupante. (...) Eu sou assim (...) Se tiver um tiro ali ponto de ônibus, e eu estiver aqui eu não me apavoro. (...) Não costumo me apavorar. Eu tento me proteger. Mas eu fico assim, eu não saio que nem louca pelo meio da rua procurando o primeiro lugar para me enfiar embaixo. Denise, 41 anos Pra mim é muito difícil, eu estava dizendo que no futuro tudo que eu quero é ir embora daqui. Mas é o que eu falo, eu ganho, oitocentos reais... mas eu pago um monte de conta, aí eu falo, eu ganho 800 reais, mas eu pago 100 reais de transporte, 70 reais para moça ficar com a minha filha, entendeu? Aí pago as contas da casa, não sobra nada... As despesas, que é comer, não sobra nada. Aí vou embora daqui como? Fica difícil. (...) Se eu tiver que ficar aí por mais 20 anos eu fico... e o futuro... a Deus pertence. Bárbara, 38 anos Olha, eu vou ser sincera, por mim eu não moraria aqui. (...) Eu não me acostumo. E essa experiência de morar em comunidade estou tendo agora através dela, que eu nunca morei nisso. Então eu fico com medo de ver esses caras armados. E eu convivo com aquilo. Eu chego do trabalho os caras está armado, desço pro trabalho os caras está armado. Daí você está descendo tem um tiro e a minha pressão logo sobe. (...) Ainda mais agora que tem essa história de invasão pra lá, invasão pra cá e eu não consigo ficar tranqüila dentro de casa. Aí eu falo: “Vamos sair daqui, vamos...” (...) Mas ela cisma em permanecer aqui, porque ela tem 30 e poucos anos aqui, então ela já está acostumada com essa vida. E eu não quero essa vida pra mim, entendeu? Então a gente discute muito em questão disso. Eu quero o melhor pra mim e pra ela. Eu não quero viver perigosamente aqui não. (rindo) Eu não consigo, não consigo. Eu não me acostumo. Aí todo mundo fala: “Ah, XXX, você é boba! Ainda não se acostumou.” Eu não vou me acostumar nunca. Você nem imagina o que eu passo quando dá um tiro. Às vezes eu estou em casa assim vendo televisão... Outro dia cheguei do trabalho, tomei meu banho, jantei, estou lá relaxada vendo televisão aí dá uma rajada. Caramba!

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Acelerou meus batimentos. (...) Então, por mim eu sairia daqui. Eu não saio mais por causa dela. (...) Quando a pessoa não tem a necessidade... Quando tem necessidade de morar é até admissível, mas eu acho que ela deveria fazer um pouquinho de esforço, né? Pra poder tentar sair dessa. Aí uns se acomodam e vivem nessa vida porque é beneficiado, não paga aluguel, não paga luz... Porque a maioria não paga luz. (...) Quer dizer, aí vive nesse conflito aí, nervosismo. (...) Quando não é polícia é bandido... Aí às vezes é eles testando arma. Porque eu não entendo nada. Aí pra mim eu escutei barulho de tiro pra mim já é... (rindo) (...) Não me acostumo. Vitória, 41 anos

A narrativa construída pelas mulheres em torno da vida reprodutiva marca

de maneira importante as mediações de suas necessidades. E o que fica claro ao fim das

leituras das entrevistas é que as vidas das mulheres estão em constante movimento, e

dinamicamente vão criando, percebendo, distribuindo e satisfazendo suas necessidades.

Eu quero conseguir tudo com o meu esforço, com o meu suor. Entendeu? Porque a gente pode, tudo que a gente quer a gente não consegue? Tanto que eu consegui isso aqui, porque eu tive força de vontade. Entendeu moça? Eu falei: Acabou! Chega de sofrimento. Eu estou chorando não é porque eu estou sofrendo não, é porque é uma coisa que mexe muito comigo. (...) eu aprendi muita coisa, eu amadureci, sabe? Sabe quando você aprende? Eu era muito infantil. Eu amadureci sofrendo, mas eu aprendi. (...) Mas eu fico assim feliz por ter conseguido sobreviver... onde eu passei, mesmo assim eu sobrevivi. E hoje eu quero só melhorar. Eu só quero progredir. Quero... Assim, eu pretendo isso tudo. Eu não quero só sonhar, eu quero fazer. Quero voltar a estudar, quero ter um bom emprego, quero fazer cursos, quero fazer uma faculdade de assistente social. Para eu poder ajudar outras pessoas, eu quero. Eu quero muito. Quero que meus filhos tenham muito orgulho de mim. Fernanda, 26 anos

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Capítulo 7 - À guisa de conclusão

Podemos ter prévia certeza de que várias de nossas necessidades concretas não serão satisfeitas. (...) As mulheres e homens modernos não têm a necessidade de estar completamente satisfeitos. (Heller e Féher, 2002. p. 59)

Sintetizar as reflexões e intuições que surgiram no processo de análise das

entrevistas não é fácil. O quadro teórico elaborado para olhar as necessidades das

mulheres em regulação da fecundidade e controle da vida reprodutiva se demonstrou

prolífero e permitiu perceber um conjunto grande de nuances no que diz respeito às

mediações sociais que dinamizam seus sistemas de necessidades – o que torna o esforço

de síntese um desafio maior. Porém, ao mesmo tempo, é o esquema teórico-analítico

montado sobre as contribuições Heller, Fraser, Doyal e Gough, Sen, Petchesky e, claro,

Stotz, que propicia religar as questões analisadas e compreender a complexidade desses

sistemas de necessidades e suas inter-relações internas e externas.

As necessidades de regulação da fecundidade e controle da vida reprodutiva

são um dos fios da meada que compõem o sistema de necessidades das mulheres

participantes da pesquisa, mas estão longe de ser o “fio guia”. Suas necessidades no

plano das vivências sexuais e reprodutivas são indissociáveis e não podem ser

equacionadas nem compreendidas sem que se considerem suas interações dentro de uma

economia das necessidades e à luz de necessidades que se expressam em outras esferas,

como saúde, educação, trabalho, carreira profissional, segurança econômica, lazer, vida

afetiva. As necessidades em suas expressões “concretas” – ou seja, socialmente

reconhecíveis - podem, até certo ponto, ser nomeadas e tratadas individualmente, seja

para fins analíticos ou políticos, mas uma compreensão hermenêutica-dialética revela

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que essas necessidades estão profundamente imbricadas. É nesse ponto que aqueles

autores citados nos dão suporte teórico. Em primeiro lugar, a proposição das

necessidades como construtos sociais nos ajuda a colocá-las em perspectiva histórica,

dinâmica e relacional. Nesse sentido, as necessidades em saúde e aquelas na esfera da

regulação da fecundidade e controle da vida reprodutiva não podem ser deduzidas (ao

menos exclusivamente) da razão biomédica e de normas higiênicas e, nem tampouco,

das normas da boa reprodução, principalmente considerando que essas são atravessadas

por diferenciais de poder, de classe, gênero, raça/etnia, geração, entre outros. Vimos

como lógicas biomédicas, higiênicas e de ordem social participam da modelagem das

necessidades das mulheres – seja por compartilharem do senso comum, seja por força

das relações que estabelecem com as instituições -, mas percebemos também como

muitas outras condições estruturais, dinâmicas culturais, experiências e interações

concorrem nesse processo.

O discurso do natural ou do normal, tão freqüente nas racionalizações das

mulheres, revela uma representação do corpo em sua acepção biológica como uma

determinação de seus destinos e necessidades, que se entrecruza com outra

representação, aquela de que o seu sexo determina o seu papel social de mãe. Nos

discursos, a normalidade nem sempre é operada através da natureza biológica e social;

às vezes, outras forças sobre-humanas interferem, as de uma ordem divina. Entretanto,

elas não vivem somente sob tais determinações: escapar da natureza é também algo que

está ao alcance das mulheres, segundo concebem, e implica decisões e agência

individual.

O desejo ou decisão de escapar da natureza revela a concomitância de outras

necessidades que aparecem tanto como carências como enquanto valores - para usar as

categorias de Heller – e influenciam os acontecimentos da vida reprodutiva. As

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mulheres da pesquisa têm um acesso ineqüitativo a recursos sociais como educação,

saúde e renda; pode-se dizer que ocupam posições menos favoráveis nas estruturas

redistributivas. As projeções e decisões no que diz respeito a quantos, quando e como

ter e criar filhos são perpassadas pela consciência dessa situação e as estratégias para

contorná-la, minorá-la ou até transformá-la: desejam que seus filhos tenham melhores

condições materiais e educacionais do que tiveram, que eles possam “ser alguém”;

projetam para eles e também para elas mesmas um acesso melhor ao circuito do

consumo.

Os valores morais e emocionais também são o substrato de certas

necessidades que, para serem satisfeitas, demandam ação, atitude, agência das mulheres

no intuito de fazer frente às determinações estruturais e normativas. Aspirações e

projetos pessoais também dão contorno ao sistema de necessidades das mulheres e

entram na equação das necessidades de controle da vida reprodutiva: estudar, ter

conhecimento, não ser ignorante; trabalhar para ter independência e acesso ao consumo;

ter uma vida profissional que seja fonte de respeito da família, da comunidade, dos

pares e dos superiores; e, no fundo de tudo isso, necessidade de auto-estima, de

reconhecimento e de participação social – para lembrar a discussão de Fraser.

Outras condições como a insegurança pública e o fato de viver em

comunidades marcadas por muita violência também afetam o sistema de necessidades

das mulheres – tanto as carências como os valores – e repercutem no fluxo das decisões

da vida reprodutiva.

As determinações normativas e estruturais influenciam diretamente as

dinâmicas de criação, distribuição, percepção e satisfação das necessidades de regulação

da fecundidade e controle da vida reprodutiva e, em certo sentido, pode-se dizer que as

necessidades estão a elas subordinadas. Entretanto, ao mesmo tempo em que assumem

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essas determinações (no plano prático e discursivo) tentando ser boas mães, dedicar-se

aos cuidados com a família e zelar pela sua mobilidade social, elas para isso tem que

agir e de fato agem. E agir significa fazer frente às contingências e incidir sobre o

próprio destino, em suma, exercer-se como sujeito e criar para si – mesmo dentro de

circunstâncias, às vezes, difíceis – uma esfera de autodeterminação.

Isso nos remete a Heller e a Doyal e Gough quando falam da

autodeterminação e da autonomia pessoal como a necessidade central das pessoas:

necessidade de poder, de saber, de ter habilidade e habilitação (reconhecimento no

sentido fraseriano) para pertencer e se apropriar do mundo social e humano – suas

estruturas, suas determinações - e ser participante ativo das interações que ali se dão.

Aqui se coloca a questão da dialética entre a subordinação e resistência: para agir,

resistir e transformar situações individuais ou coletivas as pessoas tem que pertencer,

que significa também viver e interagir em contextos estruturados.

Mais além de determinações estruturais, ou melhor, em profunda relação

com os contextos estruturados, as interações que as mulheres estabelecem ao longo de

suas vidas, seja em circuitos de convívio mais próximo e cotidiano, seja com as

instituições, devem ser um plano de corte específico na análise da modelagem do

sistema de necessidades, inclusive no plano das vivências reprodutivas.

Vimos que as relações com pessoas da família, amigos, parceiros, colegas,

membros da comunidade influenciam todas as dimensões da dinâmica das necessidades,

ou seja, como elas são criadas, percebidas, distribuídas e satisfeitas. Vimos também que

essas interações não incidem de maneira igual nessas várias dimensões, segundo sejam

os participantes. Mulheres do círculo mais íntimo, principalmente mães e amigas,

aparecem em todos os momentos da cadeia das necessidades, enquanto os parceiros têm

participação contundente no que diz respeito à criação e percepção das necessidades,

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mas presença menos significativa quando se trata da satisfação das mesmas – e,

conforme se pode se deduzir da análise das entrevistas, diferenciais de gênero são o

substrato principal dessa realidade.

As interações diretas com as instituições são indubitavelmente

impulsionadas pela busca de satisfação de necessidades, mas se deve reconhecer

também a incontornável participação de instituições como o sistema de saúde, o sistema

escolar, o sistema de previsão social e os meios de comunicação, na geração, na

distribuição e nas formas de percepção das necessidades, em toda a trajetória dessas

mulheres.

Para o grupo de mulheres participantes da pesquisa, a busca de satisfação de

necessidades em regulação da fecundidade e controle da vida reprodutiva nos serviços

de saúde pode ser mais ou menos limitada, tanto por problemas estruturais dos próprios

serviços como pela qualidade das relações estabelecidas com os profissionais, muitas

vezes marcadas por hierarquias de gênero, de classe, de geração, entre outras. Desse

modo, elas têm uma expectativa relativizada em relação à possibilidade de satisfação de

necessidades nesse espaço e uma postura seletiva diante das prescrições e das

orientações, dos tem que ditados por médicos, enfermeiros e outros profissionais. Mais

uma vez se revela a capacidade - e por que não dizer, a necessidade - de agência das

mulheres. Stotz (1991) em sua pesquisa concluiu que os serviços de saúde estão muito

mais aptos a atender necessidades que são carências do que aquelas que são valores,

especialmente a necessidade de exercício como sujeito ou autodeterminação.

As relações com o mundo do trabalho e o modo como ele condiciona o

sistema de necessidades também tiveram destaque nos relatos das mulheres. No que diz

respeito às necessidades da vida reprodutiva, trabalhar fora tem implicações e

significados variados. Por um lado, implica acionar uma rede complementar de

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maternagem (mães, avós, babás, creches), mas significa também contar com mais

recursos para satisfazer as necessidades da família, e a relação trabalho-reprodução

aparece de maneira bastante conflituosa na experiência dessas mulheres. Muitas vezes

no mundo do trabalho é mais difícil oferecer resistências do que nas relações com as

instituições de saúde, pois o preço a pagar pode ser a perda do emprego e daquela fonte

de renda. Em ambas as instituições, contudo, impera uma visão reducionista sobre as

mulheres: uma que absolutiza seu papel como agente da reprodução e outra, que dando

primazia às relações de compra e venda de força de trabalho, não reconhece suas

necessidades no campo reprodutivo.

De maneira geral, as instituições estão habilitadas a apreender e atender as

necessidades das pessoas com uma ótica sócio-política; em seus discursos e

intervenções, as carências dos sujeitos ou de grupos humanos aparecem como

necessidades políticas, como teorizou Heller. Geralmente, nos macroprocessos

políticos de produção das políticas, essas necessidades são representadas a partir de

lógicas homogeinizadoras e abstrações reducionistas. No entanto, em seus interstícios,

as instituições são tecidas por relações e interações que se dão diretamente entre os

agentes que as representam e os indivíduos que a elas recorrem, a elas tem direito ou

delas dependem (e faz toda a diferença como se concebe a participação das pessoas nas

relações estabelecidas com as instituições). É nesse nível, ao mesmo tempo mais e

menos visível, que se desenrolam os microprocessos políticos e que as necessidades dos

sujeitos enquanto tais – para continuar com Heller - são reveladas. Para avançar no

sentido de satisfazer as expectativas e as necessidades dos sujeitos – incluindo aquelas

que estão no plano dos valores, como reconhecimento, eqüidade, autodeterminação,

liberdade, participação – as instituições, no plano de suas relações cotidianas com os

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sujeitos das necessidades e dos direitos, precisariam se despir de certas lentes do

autoritarismo, gênero, classe e geracionais.

As necessidades em torno do plano de filhos, da forma de criá-los, das

práticas de contracepção e aborto, entre outras da esfera reprodutiva são reais – como

nos indica Heller - para todas as mulheres. A legitimidade e racionalidade dessas

necessidades é alvo de julgamentos entre as mulheres. Deixar de reconhecer a

necessidade da outra mulher, assim como determinar qual necessidade ela deveria ter é

prática comum nos discursos das mulheres. Entretanto, falar das próprias necessidades é

posicionar-se assertivamente, pois para a mulher que percebe tal necessidade ela tem

uma justificativa que a sustenta e a torna racional – para usar um dos critérios de Heller

para a racionalidade das necessidades.

O plano de filhos na forma como é representado pelas mulheres revela uma

dinâmica permanente entre as múltiplas faces do sistema das necessidades e demonstra

a busca por equacionar as maneiras de satisfazê-las. As relações das mulheres com os

próprios sistemas de necessidade tem uma lógica diferente daquela adotada pelos

serviços de saúde. Os serviços que assistem à saúde reprodutiva olham para a

reprodução na vida da mulher como uma dimensão absoluta, pouco relacionada com as

demais e, desse modo, projetam o ideal de um comportamento ultra-racionalizado em

relação às práticas sexuais e contraceptivas, traduzido na idéia de um planejamento

familiar estático, adotado desde o início da vida sexual e de um estado de observação

constante das práticas mais saudáveis no exercício da vida sexual e reprodutiva. No

nosso estudo, percebemos dialéticas diferentes entre o plano de filhos das mulheres e o

planejamento familiar dos serviços de saúde. Esses últimos têm a tendência em

setorizar as necessidades e reduzi-las àquelas que senso estrito são consideradas de sua

alçada, ou seja, a regulação da fecundidade - e mesmo assim limitando-se, muitas vezes,

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à oferta (precária) de métodos contraceptivos. Transformar a lógica que opera nas

microrrelações institucionais é um desafio aos serviços e profissionais. O plano de

filhos pode até ser algo que acontece, mas revela a participação ativa da mulher nessa

vivência. Entretanto, a agência das mulheres exercendo-se como sujeitos e manejando

dentro de certas condições a condução de sua história nem sempre cabe no scritp de

atitudes, iniciativas ou práticas que os serviços de saúde reclamam delas. Heller e Féher

colocam que a “autodeterminação não está livre do contexto; na verdade, enfrentar seu

contexto é seu traço intrínseco” (2002. p.48). A agência das mulheres para conduzir

dentro de contextos complexos o seu plano de filhos parece bem distinta da agência

normativamente dirigida esperada pelo discurso mais clássico do planejamento familiar.

A idéia de contingência está presente subliminarmente nos discursos que as

mulheres fazem sobre suas necessidades e incerteza de poder satisfazê-las. Para Heller e

Féher (2002), o mundo tornou-se o contexto de nossas possibilidades indeterminadas,

mas, como lembra Sen (2002), quando possibilidades indeterminadas se deparam com

limitações sócio-econômicas e culturais pode resultar em insatisfação. A insatisfação

denota a distância entre expectativas e experiências e, como lembra Heller, nas

sociedades modernas, ela pode também servir de motivação para a criação de uma trama

que dê conta de satisfazer as necessidades. Para isso, é preciso agir, em que pese

contextos e determinações estruturais. Ao narrarem suas histórias as mulheres

discorreram sobre as possibilidades que tinham diante de determinado contexto –

poderiam ter feito outras opções, ter outras vivências – mas julgam ter agido

“acertadamente, colhidos [as] em um estado de contingência com reduzidas

oportunidades de vida e liberdade” (Heller e Féher, 2002. p. 45).

As mulheres têm uma série de carências que não estão satisfeitas, entre elas

a de moradia, segurança, alimentação e educação. Assim como também nem sempre

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246

estão satisfeitas suas necessidades enquanto valores, como ter reconhecimento no

trabalho, viver sem violência doméstica, poder participar mais da vida social.

Entretanto, ao reconhecer essas carências e valores não satisfeitos deve-se evitar a

armadilha de vitimizar as mulheres, o que solaparia a possibilidade de ver como lutam

por uma esfera de autonomia e agência diante de sua vida e de suas necessidades. Heller

e Féher vêm então nos poupar desse risco quando dizem que “é a satisfação das

necessidades de autodeterminação, e não de simples carências, que melhor permite a

transformação de nossa contingência em destino” (2002. p. 46). Surpreendemo-nos ao

longo da pesquisa ao perceber como mulheres constroem suas trajetórias demonstrando

que suas necessidades reprodutivas estão satisfeitas, porque “estar satisfeito com nossa

vida não significa estar satisfeito em geral” (Heller e Féher, 2002. p.59). Para os autores

é a satisfação das necessidades de autodeterminação que traz essa sensação de estar

satisfeito às mulheres.

Uma experiência concreta acerca da satisfação sentida através da

autodeterminação foi a entrevista de Edna. Ela chegou cabisbaixa, falando com

dificuldades, e, à medida que ia contanto seus feitos, foi recuperando o tom de voz,

chorou, mas também sorriu, se arrumou na cadeira, ajeitou o próprio corpo para contar

como conseguiu heroicamente criar os filhos, ser amiga e agir de maneira diferente com

eles, oferecer melhores oportunidades (através dos estudos até o ensino médio), mesmo

que sob o pano de fundo do abandono do parceiro, da extrema escassez de recursos

econômicos, de pouca participação nas esferas do mundo social, de ter sido moradora de

rua e outras condições, que poderiam nos levar a dizer, erroneamente, que ela deveria

estar insatisfeita.

A insatisfação com as necessidades pode também atuar como força motriz e

impulsionar a ação das mulheres diante daquilo que lhes falta. As interações cotidianas

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247

nos círculos familiares, afetivos e comunitários e nos interstícios das instituições

demonstram um movimento contínuo e silencioso em busca de satisfação de

necessidades, inclusive que sejam ouvidas como sujeitos das necessidades enquanto

tais.

Em um outro plano, cuja análise específica foge aos propósitos desta

pesquisa, as necessidades das mulheres podem ser organizadas politicamente e

expressarem-se publicamente como reivindicações ao Estado, às instituições de diversas

naturezas e à sociedade como um todo. Reivindicações que chegam organizadamente

aos planos públicos e institucionais, como aquelas dos movimentos de mulheres por

justiça e equidade de gênero, ao mesmo tempo em que aspiram o reconhecimento e o

atendimento da satisfação das necessidades, também difundem novas idéias e criam

novas sensibilidades que reincidem nos sistemas de necessidades das mulheres. Ainda

que as conquistas no plano normativo-legal e das políticas e programas públicos sejam

de extrema relevância, a economia das necessidades em uma sociedade que pretende

caminhar em um sentido de justiça de gênero não pode neglicenciar as transformações

que devem se dar nas interações face a face dos sujeitos das necessidades com os

agentes das instituições.

Colocar em pauta as necessidades dos sujeitos enquanto tais, a partir do

arcabouço teórico que utilizamos nesse trabalho, pode potencializar as condições para

que tanto o desenvolvimento dos direitos (inclusive os direitos sexuais e reprodutivos)

como das políticas e programas públicos possam atender, ao mesmo tempo, às carências

e à primordial das necessidades: a de tornar-se sujeito diante da própria vida, sendo

agente (Sen), com autonomia pessoal (Doyal e Gough), participando como par na

sociedade (Fraser), empoderado (Petchesky) e autodeterminado (Heller).

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Apêndices

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Apêndice I

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

Projeto de pesquisa de mestrado acadêmico: NECESSIDADES EM REGULAÇÃO DA FECUNDIDADE E CONTROLE DA VIDA REPRODUTIVA NA PERSPECTIVA DE MULHERES ATENDIDAS PELA ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO.

Pesquisadora responsável: Andreza Rodrigues Nakano Telefone: 8151-2842 e-mail: [email protected] Instituição responsável pela pesquisa: Instituto Fernandes Figueira Endereço: Av. Rui Barbosa, 716 – 4º andar - Flamengo - Rio de Janeiro Telefone: 2553-0052 – ramal: 1812 Comitê de Ética em Pesquisa responsável: CEP Secretaria Municipal de Saúde da cidade do Rio de Janeiro Telefone: 2503-2024 / 2503-2026 Orientadora: Cláudia Bonan Jannotti Telefone: 2554-1912 e-mail: [email protected] Prezada senhora,

Convidamo-la a participar voluntariamente de uma pesquisa de

mestrado, intitulada “Necessidades em regulação da fecundidade e controle da

vida reprodutiva na perspectiva de mulheres atendidas pela Estratégia Saúde

da Família na cidade do Rio de Janeiro”. A finalidade deste estudo é

compreender melhor as necessidades de saúde das mulheres relacionadas à

vida reprodutiva e como condições socioeconômicas e culturais interferem na

criação e na satisfação dessas necessidades. Solicitamos que a senhora nos

conceda entrevista, contando-nos suas experiências de vida afetiva, familiar e

conjugal, de contracepção e/ou gravidez, de cuidados de saúde e experiências

com os serviços de saúde.

Pedimos que leia as informações abaixo antes de nos fornecer seu

consentimento:

Sua participação na pesquisa é voluntária.

Seus dados pessoais serão mantidos no anonimato e as informações

que vier a prestar guardadas em sigilo.

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As entrevistas serão individuais e realizadas em dia, local e horário de

sua conveniência. Elas serão gravadas e posteriormente transcritas,

lembrando que será mantido o sigilo sobre o seu nome assim como o

nome de todas as pessoas que por ventura a senhora citar.

O material das entrevistas ficará sob a minha guarda e será usado

apenas para fins de pesquisa. A senhora poderá ter acesso a esse

material, podendo inclusive fazer modificações que julgue necessárias.

A senhora poderá pedir todos os esclarecimentos que quiser, antes,

durante e depois da realização da entrevista. Também poderá retirar

este consentimento e solicitar a sua retirada do protocolo de pesquisa,

sem ter que dar nenhuma explicação. Sua desistência poderá ocorrer

em qualquer momento da coleta de dados, sem qualquer risco de

penalização.

As informações fornecidas pela senhora serão analisadas junto com as

de outras mulheres que serão entrevistadas nesta pesquisa, sempre

garantindo o sigilo e anonimato de todas as participantes.

Os resultados da pesquisa serão divulgados através do trabalho final

de mestrado e também poderão ser difundidos em artigos, congressos,

simpósios, reuniões, conferências, mesas redondas e demais meios de

divulgação científica.

Eu,______________________________________________________,

brasileira, identidade no __________________, declaro ter lido o documento e ter sido claramente informada pela pesquisadora acerca do protocolo de pesquisa de mestrado no qual serei incluída, e ter recebido respostas claras a todas as perguntas que fiz.

Rio de Janeiro,___________________________________________.

_________________________________________________________

Assinatura da participante Confirmo ter dado todas as explicações à participante sobre os

objetivos, o tipo e os riscos inerentes ao estudo. _________________________________________________________

Assinatura da pesquisadora

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Apêndice II

Pauta Temática

Experiências na Infância e Família de Origem

Condições de vida: moradia, alimentação, renda, etc. Relação entre os pais Relação dos pais com os filhos Relação com outros familiares, amigos e outros membros da comunidade Violência familiar Vícios Práticas Religiosas Assistência à saúde na infância

Experiências na escola

Experiências na escola Percepções do papel da escola na sua vida Opiniões sobre conhecimentos adquiridos na escola

Experiências no mundo do trabalho

Experiências de trabalho (remunerado ou não) Percepções sobre o papel da vida profissional e do trabalho remunerado na sua vida

Experiências afetivas

Amizade Namoro Companheiro Importância das relações de amizade e amorosas em sua vida

Experiência sexual

Início da vida sexual Experiência sexual Fonte de informações sobre sexualidade e reprodução ao longo da vida

Experiência conjugal e de constituição de família

Vida conjugal pregressa e atual Condições de vida da família atual: moradia, alimentação, renda, etc. Percepções sobre a vida conjugal e a relação com os parceiros Percepções sobre papéis de homens e mulheres nos relacionamentos amorosos, sexuais, conjugais e domésticos. Dinâmicas das tomadas de decisão referentes a família e fatores que as influenciam (questões econômicas, trabalho, religião, etc.) Relações da familiar nuclear: família estendida, amigos, vizinhos, comunidade, etc.

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Experiência de infertilidade

Histórias relacionadas à infertilidade (momentos, circunstâncias, vivências, etc.) Participação dos parceiros nas vivências relacionadas com a infertilidade Experiência com serviços de saúde para atenção à infertilidade Significados da infertilidade na sua vida

Experiência de aborto

História de aborto (momentos, circunstâncias, vivências, etc.) Participação dos parceiros nas vivências relacionadas com o aborto Práticas relacionadas ao abortamento Rede de apoio para decisão e ação de abortamento Experiência com serviços de saúde para atenção ao abortamento Relação entre prática do aborto e uso de contracepção

Experiência de maternidade e criação dos filhos

História de gestações (momentos, circunstâncias, vivências, etc.) Participação dos parceiros nas vivências relacionadas com a gestação Experiência com serviços de saúde para pré-natal e parto Número de filhos idealizado e numero de filhos tidos Significados da maternidade na sua vida Divisão de tarefas domésticas e de criação dos filhos com o parceiro Rede de apoio doméstico/familiar/comunidade Opiniões sobre possibilidades e limites para articular cuidados da família e trabalho fora de casa

Histórias de contracepção

Histórico do uso de contraceptivos (métodos que utilizou, em que circunstâncias, quem sugeriu ou indicou, fontes de obtenção de métodos, como utilizou, como se sentiu, etc.) Participação do(s) parceiro(s) nas decisões e na prática de contracepção. Outros atores envolvidos nas decisões e práticas de planejamento reprodutivo Significados da contracepção, motivações para realizá-la ou não nos diversos momentos da vida, oportunidades e limites para a regulação da fecundidade. Experiências com os serviços de saúde na busca de orientações e métodos para a regulação da fecundidade. Pessoas, instituições e/ou os momentos mais importantes na aquisição de conhecimentos sobre contracepção: pais, irmãos, outros parentes, amigos, escolas, mídia, igreja, serviços de saúde

Experiências com serviços de saúde

História de busca por assistência à saúde Cuidados com a saúde sexual e saúde reprodutiva: histórico de utilização de serviços de saúde para consulta ginecológica, exame preventivo, pré-natal, planejamento familiar, etc. Percepções sobre os serviços de saúde: dificuldades e facilidades de acesso, relacionamento com os profissionais, satisfação com a assistência prestada, etc.

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Informações e conhecimento sobre saúde, reprodução e sexualidade

Fonte de informações Quando obteve informações (momentos da vida) Aprendizado das informações e práticas relacionadas Conhecimentos sobre temas de saúde sexual e saúde reprodutiva: prevenção de DST e HIV, prevenção de câncer de colo uterino, exame de mamas, etc.

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Apêndice III

Identificação da Participante

Código no estudo:______________________________________________

1. Nome: _______________________________________________________

2. Data de nascimento: ___/___/____

3. Escolaridade:_________________________________________________

4. Gestações __________ Paridade _________ Aborto _____________ Filhos vivos________ 5. Uso atual de contraceptivo: ( ) SIM ( ) NÃO Quais:_______________________________________________________ 6. Uso anterior de contraceptivos: ( ) SIM ( ) NÃO Quais: _______________________________________________________ 7. Participou de grupo de planejamento familiar: ( ) SIM ( ) NÃO Locais: _______________________________________________________ Quando: _____________________________________________________ 8. Estado Civil: _________________

9. Cor: __________________________

10. Religião:_____________________________________________________

11. Ocupação:___________________________________________________

12. Renda Familiar: _________________

13. Renda pessoal: _______________

14. Endereço residencial: __________________________________________

____________________________________________________________

15. Telefone: ____________________

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Apêndice IV

Quem são as mulheres da pesquisa2

A., 28 anos

Viveu no Espírito Santo com a família até a adolescência. É homossexual e vive

com uma colega que esporadicamente é sua parceira sexual. Trabalha como auxiliar

de serviços gerais e em todas as férias aproveita para se cuidar, fazendo exames para

deixar seu “corpo limpo” para as relações. Revela ter vivido experiências

heterossexuais, mas que hoje sabe reconhecer que “desde nova” já sentia atração por

mulheres.

A., 27 anos

Veio do norte para trabalhar. Está separada do marido e vive com os três filhos na

casa que construíram juntos, recebendo suprimento financeiro do parceiro. Ela

deseja conseguir um trabalho para que deixe sofrer humilhações e de depender da

renda do parceiro. Ela acredita que sua vida mudaria se conseguisse um emprego,

pois assim supriria às suas necessidades e às de seus filhos. Sobre sua vida

reprodutiva, decidiu fazer LT pela instabilidade de recursos para manter um método

de uso contínuo. Dadas as dificuldades apontadas por conhecidos para conseguir o

procedimento foi ao norte, para que a obtivesse através de favores políticos. Apesar

de ter realizado a LT, acredita que se um dia encontrar alguém com queira ter um

filho isso se reverterá, pois “somente Deus é quem sabe” se poderá engravidar

novamente.

A., 22 anos

Está grávida do primeiro filho e vive com o parceiro. Fazia uso irregular de pílula

anticoncepcional e acreditava que se interrompesse teria aumentada a sua chance de

engravidar. Ela engravidou em poucos meses e planeja após o nascimento do filho

usar injeção por considerar um “método mais fácil”. Refere à violência onde vive

como um limitador para que tenha mais filhos, já que “basta abrir a janela” para vê-

la.

2 Os nomes fictícios das mulheres estão aqui apresentados somente pelas iniciais como mais um recurso

para proteger suas identidades.

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B., 38 anos

Empregada doméstica e tem dois empregos. Tem uma filha de 12 anos e deseja ter

um filho “já”, mas primeiro precisa encontrar alguém com quem compartilhar este

desejo. Conta com a ajuda de uma pessoa da comunidade para cuidar da filha já que

os familiares têm seus compromissos pessoais. Já usou pílula, mas prefere o

preservativo já que tem grande preocupação com doenças. Refere valores diferentes

daqueles que vê nas pessoas do local onde vive e por isso gostaria de se mudar para

o “asfalto”. Os impostos que teria de pagar e as despesas impedem que realize esse

sonho, que será ainda mais adiado se engravidar novamente.

B., 31 anos

Está grávida pela quarta vez. Na primeira gravidez fez um aborto com a ajuda do

parceiro. Na segunda gravidez, “muita coisa mudou”. Além de gerar a criança outra

novidade era morar “com homem”. Acreditou que o AME não a deixaria engravidar

até que aos 1ano e 5meses do filho, estava grávida novamente. Pensou em abortar

mas o apoio do parceiro fez com que mantivesse a gravidez. Já na gravidez da filha

pensou em um método para usar. Conheceu vários e usou a pílula, mas decidiu

buscar a laqueadura por ser o “melhor para ela”. Ia “ligar pelo umbigo” dentro dos

três anos seguintes ao pedido, mas engravidou e tudo mudou, agora pode até ligar

pela cesárea. Prefere o parto normal, como dos dois anteriores, mas se é para ligar,

prefere correr o risco da cirurgia e ligar “por baixo”.

B., 25 anos

Está grávida pela quinta vez. Teve um aborto ainda na adolescência e ao viver a

maternidade no mesmo período sentiu que sua vida sofreu grande mudança. Ela

deixou a vida de farra e drogas e teve o estímulo do parceiro para isso. Hoje está em

busca de fazer a laqueadura, já que dos métodos que pode usar restou o preservativo,

mas não cabe negociação com o parceiro. Como o “governo está dando a

oportunidade” ela pretende ligar logo, já que não pretende mais ter filhos.

C., 35 anos

Está grávida pela nona vez, do terceiro parceiro. Ela brinca com a questão do

número de filhos corresponder a um time de vôlei. Deseja realizar a laqueadura

tubária para que não venha a completar um time de futebol. Viveu sucessivos

abandonos, desde morar em um internato quando criança e mais tarde quando

engravidou pela primeira vez. Defende os filhos, mas principalmente as filhas, dos

riscos de viver em uma comunidade (“virar mulher de bandido”). Sente que é

criticada por ter tantos filhos, mas aceita todos eles e tem a defesa do parceiro

perante os outros.

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261

C., 36 anos

Sempre sonhou com um príncipe encantado e se guardou para ele até os 30 anos.

Viveu a experiência de “morar junto com ele” e engravidou, mas descobriu a

gravidez já no abortamento. Tem restrições para o uso de diversos métodos

contraceptivos, ficando limitada ao uso do preservativo, mas refere o quanto é difícil

e tem vezes que não usa.

C., 21 anos

Mora com os pais, o irmão, o “marido” e a filha. Trabalha como atendente de uma

loja de doces e conta com o apoio de todos para cuidar da filha. “Faz tudo certinho”

para não perder o emprego, já que depende dele para cuidar da filha. Engravidou aos

19 anos porque o marido furou a camisinha, e mesmo discordando de sua atitude e

não considerar boa hora para ter filho decidiu que teria a filha. Separou do

companheiro em seguida. Já usou diversos métodos contraceptivos, mas refere que o

que mais se encaixa para ela é o DIU e está percorrendo os caminhos estabelecidos

para conseguir colocar.

C., 32 anos

Veio do interior de Minas Gerais quando se casou. Vive com o marido e um casal de

filhos. É do lar e cuida dos filhos, mas refere compartilhar decisões com marido

sobre a educação das crianças. Sua vida sexual teve início após o casamento e com o

aval dos exames pré-nupciais. Desejava ter dois ou três filhos, e usou sempre a

mesma pílula para alcançar o intento. Teve um casal de filhos, e com o plano

alcançado o marido “tomou coragem” e fez a vasectomia. Deseja voltar para MG a

fim de dar melhor condição de vida a seus filhos.

C., 34 anos

Veio do Ceará aos 12 anos, é lactarista em uma creche e vive com os quatro filhos e

o marido. Sempre desejou ter dois filhos, mas teve quatro. Fez uso de pílula por

indicação de colegas, tendo usado sempre a mesma. Pagou para fazer laqueadura no

final da última gravidez, já que estava satisfeita com os filhos que tinha. Valoriza as

informações trocadas entre as mulheres e considera isso uma importante rede de

apoio para as inexperientes.

C., 36 anos

Veio do interior de Goiás. Vive com os três filhos e é vendedora autônoma. Teve

três parceiros e um filho de cada um deles, o que a fez desejar por um fim nessa

seqüência com a laqueadura. Teve dificuldades com a autorização e com os papéis

que permitiriam que ela ligasse, entretanto ela conseguiu “porque seu corpo não

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agüentaria novas gravidezes” segundo o que ouvira da médica. Fala com orgulho

das conquistas dos filhos e da coragem em conseguir criá-los sozinha.

C., 48 anos

Vive na mesma casa que os filhos e o parceiro apesar de estar separada dele. Está

aguardando sair um dinheiro de causa trabalhista para comprar a própria casa e

deixar de viver com o parceiro que sempre a agrediu e esteve envolvido com bebida

e cigarro. Considerava-se fácil de pegar filho e por isso mesmo após a laqueadura

vivia com medo de engravidar, o que não ocorreu nos dois anos seguintes e aí sim

ela acreditou no procedimento. Atualmente quer cuidar de si mesma, melhorar sua

imagem, pois não se reconhece. Essa mudança aconteceu após a isquemia sofrida

recentemente.

C., 32 anos

Veio do norte. Vive com o marido e os dois filhos em uma casa que ainda está em

construção, alternativa para que parassem de pagar aluguel. A renda fixa que dispõe

é a do Bolsa Família, já que o marido “bebe” e quando sobra coloca para a

construção da casa. Conheceu o marido em um baile e ao descobrir a gravidez foram

morar juntos. Usa a pílula desde o nascimento do primeiro filho. Tem vontade de ter

uma menina, mas nas condições financeiras que vive ela considera inviável, a não

ser que “aconteça”.

D., 41 anos

Mora com o companheiro e seus cinco filhos, mas é solteira. Atualmente é do lar,

mas já trabalhou em comércio. Tem interesse no kardecismo, mas sente que é

discriminada por isso. Quando usou pílula, foi por conta própria e escolheu porque

achou o nome bonito, mas depois teve o aval de um profissional para a certificação

de sua escolha. Usa o preservativo masculino como método contraceptivo, mas

pelas sucessivas falhas decidiu que é hora de optar pela laqueadura.

E., 39 anos

Analfabeta, tenta superar os desafios de maneira positiva. Conta sua trajetória

marcada por silêncios desde a infância até quando conheceu o companheiro e viveu

a maternidade pela segunda vez. Teve cinco filhos e vive com dois deles. O primeiro

deles foi criado pelos avós por determinação da mãe, a filha mais velha é casada e o

mais novo faleceu há um ano em um acidente na linha do trem. Ela vive

integralmente para os filhos e deixa o que for para estar com eles. Um deles

descobriu ser portador de HIV e ela o está apoiando e estimulando para a realização

correta do tratamento. Viveu de maneira intensa particularmente a maternidade e

maternagem das filhas, com o intuito de fazer diferente do que vivera com a mãe.

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E., 33 anos

Vive com o parceiro e quatro filhas. Engravidou pela primeira vez aos 18 anos, usou

injeção, mas suspendeu por conta própria por conta de uma hemorragia de 15 dias.

Engravidou da segunda filha, e ainda no resguardo, amamentando, teve um choque

descobriu uma nova gravidez. Cogitou abortar pois queria fazer outras coisas, entre

elas trabalhar, mas seus familiares e parceiro desmotivaram quanto ao aborto e ela

teve a filha. Traumatizada decidiu pela laqueadura e pagou para “cortar mesmo”.

Apesar de ter decidido não ter mais filhos, adotou uma criança depois de oito anos,

quando já vivia com outro parceiro.

E., 21 anos

Auxiliar administrativo, está de licença maternidade, mora com o marido, o filho e

um afilhado. Usava a injeção e por sugestão médica interrompeu por um período.

Acreditando que “seu útero demoraria a limpar”, acabou engravidando. Não estava

em seus planos uma gravidez agora, já que tem o sonho de cursar a Faculdade de

Administração. Atualmente está se articulando para deixar o filho em creche ou com

uma vizinha para voltar ao trabalho que lhe faz “tanta falta”.

E., 46 anos

Compartilha sua casa com o filho e a nora e trabalha como empregada doméstica.

Teve sucessivos abortos, até que aos 26 anos “conseguiu segurar” a gravidez.

Relaciona os abortos com o fato de ser A negativo, mas nunca soube ao certo.

Freqüenta serviços de saúde para se cuidar, principalmente depois que descobriu que

teve cancro. Essa vivência mudou seu comportamento em relação ao uso do

preservativo e a tornou fonte de informação para familiares e amigos na divulgação

da importância do uso da camisinha.

E., 27 anos

Vive com o companheiro e tem tido sucessivos abortos desde os 19 anos. Viveu

situação de abuso sexual na infância e hoje consegue lidar melhor com o assunto.

Buscou orientação profissional e freqüentou o grupo de planejamento familiar para

ser encaminhada a serviço especializado que responda se poderá ou não ter filhos.

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E., 31 anos

Vive com o parceiro e os três filhos. Faz uso regular da pílula anticoncepcional e

conta com a ajuda do parceiro para controlar o uso e comprar o método, mesmo

tendo renda própria acredita que é obrigação do parceiro prover o método. Seu plano

de filhos está cumprido uma vez que ao construir sua casa fez três quartos e mais

uma criança demandaria mais renda e muitas modificações. Refere sempre o apoio e

ajuda do parceiro nas atividades e criação dos filhos.

F., 26 anos

Auxiliar de serviços gerais, mora com os pais, o irmão e dois filhos. Engravidou

pela primeira vez aos 16 anos e teve a filha. Ainda jovem “saía muito” e deixava a

filha aos cuidados da mãe que a assumiu inteiramente quando ela conheceu um

rapaz e foi morar com ele na rua. Essa vivência foi marcante em sua vida, conviveu

com o consumo de drogas pelo parceiro, a fome e a insegurança. Foi recolhida a

abrigos diversas vezes, mas o parceiro sempre os levava de volta à rua. Por ocasião

de sua gravidez, tudo mudou, ela não desejava aquela vida para o filho e quando ele

nasceu, ela estava com o parceiro em uma casa de recuperação. Ele decidiu sair e ela

resistiu. Ficou sozinha como o filho, fez cursos, voltou a morar na casa dos pais e

foi encaminhada a um emprego. Fez três abortos com citotec, decididos entre ela e a

mãe. Hoje, deseja colocar o DIU ou “ligar ou cortar” por confiar que seria o mais

seguro para ela. Pretende fazer um check-up do corpo, da mente e do coração para

dar novo sentido à sua vida e um passo foi dado buscando o benefício do programa

do governo Minha Casa Minha Vida.

G., 19 anos

Estudante no ensino médio. Após o falecimento recente da mãe, mora com o pai, a

madrasta, um irmão e um primo. Iniciou sua atividade sexual aos 17 anos, contou

para a mãe e dela recebeu informações sobre o uso do preservativo e a importância

de procurar um profissional. Desde a primeira menstruação visitou ginecologistas

para acompanhamento, pois teve uma tia que faleceu em decorrência de câncer no

útero. Participou de GPF, usa pílula anticoncepcional e planeja ter dois filhos no

futuro, após concluir a faculdade de Educação Física.

G., 23 anos

Mora com o filho, duas irmãs e seus respectivos maridos e quatro sobrinhos. É

auxiliar de depilação e está empregada atualmente. Ela recebe apoio financeiro do

pai de seu filho, mas é ela quem cuida do filho. Aos 18 anos desejou engravidar,

morava com uma pessoa e interrompeu o uso da pílula. A maternidade foi

complicada pelas responsabilidades que trouxe para ela. Hoje ela diz que não quer

mais ter filhos para que possa dar melhores condições ao filho que já tem.

Atualmente não usa MAC, mas se tiver um relacionamento pretende lançar mão do

uso do preservativo e depois da pílula, método já usado por ela anteriormente.

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H., 24 anos

Vive com o parceiro, quatro filhos e um enteado. Está “na luta” para conseguir a

laqueadura desde o nascimento do terceiro filho, mas ainda faltam alguns papéis. O

parceiro gostaria de ter outro filho, mas para ela quem decide é a mulher. Tentou

usar alguns métodos, mas sempre falha no uso deles, já que dependem de sua

memória. Ela deseja continuar os estudos e buscar um trabalho quando o filho mais

novo estiver mais independente.

H., 22 anos

Mora com o companheiro e dois filhos, um de 2 anos e o outro de 8 meses. Aos 12

anos teve sua primeira relação sexual e sua mãe lhe explicou “tudinho”. Sempre

usou camisinha para se proteger de doenças e de engravidar. O primeiro filho foi

desejado e então parou de usar o preservativo, já no segundo a camisinha furou.

Desde então manifestou a vontade de tomar “remédio” e está se programando para

participar do GPF. A maternidade mudou sua vida e tem o sonho de trabalhar para o

melhor a seus filhos.

I., 40 anos

Manicure e cabeleireira. Tem dois filhos e se separou recentemente. Namorou muito

na adolescência e se considerava a “vassourinha”, pois beijava muitos garotos.

Trocava informações com amigas e lia muitas revistas para adolescentes. Ao

descobrir-se grávida foi levada pelo parceiro e cunhada para realizar aborto em uma

clínica, o que foi uma experiência “horrível” já que nunca tinha ido a uma consulta

anteriormente. Usou pílula por um período e mais tarde engravidou novamente.

Teve o filho, que “não foi desejado, mas foi aceito”, pois chegou na “hora de

encerrar a carreira” e deixar de ser “rueira”. Porém a experiência do parto foi

“traumática” e definiu sua escolha de não ter mais filhos. Mesmo se preservando

com camisinha engravidou, o que a fez cair em depressão e rejeitar a criança até os

dois anos. Apesar de “não ter tino para a coisa”, se considera boa mãe.

I., 28 anos

Vive com o parceiro e o filho de seis meses. Acaba de voltar da licença maternidade

e tem a creche como apoio para cuidar do filho. Acreditava que não poderia

engravidar, já que no primeiro casamento não usava contraceptivos e não

engravidou durante os três anos de tentativa. Com o segundo relacionamento

decidiu buscar ajuda profissional, mas descobriu a gravidez antes mesmo de acessar

este recurso.

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I., 41 anos

Veio da Paraíba e vive com o companheiro há 22 anos. É aposentada, mas “sempre

correu atrás” vendendo cosméticos, panos de prato e outros itens e assumindo o

cuidado de algumas crianças da vizinhança onde mora. Sua rotina é cheia de

atividades. Ela teve hanseníase e tem seqüelas do agravo nas mãos e pés, mas isso

não impede sua livre movimentação. Referiu durante a entrevista o desejo de ter

filhos (vivenciado também pelo parceiro), mas que por vergonha nunca procurou

saber e nem foi perguntada durante as consultas.

J., 27 anos

Veio com o parceiro e a filha do Maranhão para o Rio de Janeiro.É empregada

doméstica, está grávida do segundo filho. Sempre buscou informações e assistência

nos serviços de saúde para cuidados com a saúde e métodos anticoncepcionais.

Experimentou vários métodos, mas por não estar se adaptando a nenhum deles,

decidiu engravidar para “fazer LT”, mas o parceiro está se preparando para fazer

vasectomia. Ela achou bom que ele participasse com essa atitude, mas se não fizesse

ela o faria, pois pensa que cuidar da fecundidade é responsabilidade da mulher,

mesmo que não assuma isso claramente para o parceiro.

J., 33 anos

Mora com seus dois filhos e um irmão. Os pais de seus filhos são ausentes, um

sumiu e o outro morreu. Ela trabalha esporadicamente ajudando a carregar sacolas

em feira e é de lá que tira o sustento de sua família. Os filhos não querem freqüentar

a escola e com isso perdeu a ajuda do Bolsa Família. A mãe teve papel determinante

em sua vida reprodutiva, já que impôs o aborto por duas vezes. Esses eventos

marcaram sua vida e mobilizaram sentimentos enquanto os narrava, trazendo entre

lágrimas que “bebe para esquecer” e pediu para interromper a entrevista.

J., 19 anos

Engravidou pela primeira vez aos treze anos e vive com o parceiro desde então. Foi

trazida da Bahia ainda criança após a morte da mãe. Um primo que a criava

colocou-a para fora de casa quando descobriu a gravidez. Ela recebeu apoio dos

sogros e foi morar com eles. A maternidade que antes era uma brincadeira de

boneca tornou-se uma responsabilidade com grandes mudanças em sua vida. Desde

então, trabalha e fica feliz por poder comprar o que precisa com seu próprio esforço.

Já experimentou vários métodos contraceptivos, mas ainda não encontrou um que se

encaixe para ela. Fez um aborto há pouco mais de um mês, mas omitiu do parceiro

que tenha provocado. Sentiu-se maltratada pelos profissionais quando procurou

assistência no serviço após o aborto. Deseja ter mais um filho, mas somente no

futuro quando já tiver a vida mais estabilizada financeiramente.

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L., 36 anos

Tem um casal de filhos e vive na casa da mãe. Já trabalhou como promotora de

produtos e atualmente voltou a estudar. Participou de um grupo de planejamento

familiar para ter acesso ao método injetável e a informações. Chegou a usar pílula

do dia seguinte algumas vezes. Preferiu parar de usar o método contraceptivo por

um período, pois acredita que faz algum mal ao corpo da mulher. Está em constante

negociação com o parceiro para que use preservativo, uma vez que se sente em risco

de contrair DST. Tem o desejo de fazer teste de HIV para atestar a ausência do vírus

ao parceiro caso venha a contraí-lo. Planeja voltar a trabalhar e completar os

estudos, principalmente agora que os filhos tem rotinas estabelecidas em escola e

creche.

L., 27 anos

Recreadora em creche e cursando psicologia, ela tem duas filhas e vive com o

parceiro. É evangélica e acredita que este é o motivo para ter vivido experiências

diferentes das mulheres que tem idades próximas à sua, entre elas ter tido a primeira

relação somente quando casou. Ela tem medo se conseguirá educar as filhas pelo

caminho do bem, dado que as influências externas são fortes sobre elas. O parceiro

fez vasectomia quando decidiram que não teriam mais filhos. Ela viu a atitude dele

como um cuidado e carinho compartilhando com ela a responsabilidade de limitar o

número de filhos do casal.

L., 31 anos

Vive com o parceiro, trabalha em uma loja de eletrodomésticos e conta com a ajuda

da mãe para criar e cuidar de seu único filho. Atualmente está afastada do trabalho

pela tensão que vinha sofrendo e conta com auxílio doença. Desde que menstruou

tardiamente aos 18 anos ela tinha cólicas e sofria de TPM, após várias tentativas

decidiu com sua ginecologista que tomaria uma pílula que a impediria de menstruar.

Sente-se uma ET perante as outras mulheres que cobram que ela tenha menstruação.

Ela pretende ter mais um filho, mas com as condições atuais acha muito arriscado,

principalmente pela violência que vê constantemente na comunidade.

L., 22 anos

É atendente em farmácia, tem um filho, tentou morar com o parceiro, mas não se

adaptou à “vida de casada”. Hoje mora com os pais e isso facilita para que possa

trabalhar e sustentar as necessidades do filho. Faz uso de pílula e deseja colocar o

DIU.

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M., 41 anos

Vive com o parceiro, pai da última de seus quatro filhos. Descobriu o HIV durante a

gravidez, recebeu tratamento e a filha não tem o vírus. O ex-marido foi quem lhe

passou o vírus, mas o parceiro atual não o contraiu. Ela se sente amada e cuidada

pelo companheiro que compartilha com ela suas angústias e superação diárias. O

diagnóstico é omitido da sociedade onde mora por medo de represálias, apesar

disso, após o diagnóstico tornou-se agente na prevenção de DST e AIDS, reforçando

com jovens e mulheres a importância do uso do preservativo.

M., 23 anos

Mora com o companheiro e a filha de cinco anos. Engravidou aos 18 anos, após 3

anos de tentativa. Morava anteriormente com o pai e a gravidez foi determinante

para ir viver com o parceiro. Desconhecia os MAC até lhe ser prescrito uma pílula

na ocasião do nascimento da filha. Até hoje usa regularmente a pílula, e tem

cuidados e critérios para que ela não lhe falte, separando “o primeiro dinheiro que

lhe chega” para este fim. Deseja ter mais um filho, mas prioriza o estudo para

alcançar um melhor emprego. Conta com o apoio da sogra e do parceiro para os

cuidados com a filha no período que vai à escola.

M., 25 anos

Está grávida do segundo filho. Mora com o marido e o filho. Trabalha como babá

desde os 16 anos em uma mesma família. Vê o trabalho como importante meio de

conseguir bens, principalmente a casa própria. Quando iniciou o uso de pílula foi

por indicação de uma amiga, mas “não conseguiu vencer o período de adaptação”

dela ao seu corpo. Optou por usar o preservativo, mas engravidou e agora pretende

tomar algum outro remédio. Pretende voltar para Minas Gerais onde tem familiares

para garantir uma vida mais tranqüila a seus filhos.

M., 20 anos

Veio do norte com toda a família, está solteira, mora com os pais e os irmãos. Está

desempregada, mas a procura de emprego. Está aguardando uma vaga para

continuar os estudos. Descobriu um cisto ovariano aos 13 anos e desde então usa

pílula para “regular a menstruação”, o que ela acha bom já que vai protegê-la de

uma possível gravidez no caso de se envolver com alguém.

M., 25 anos

Estudante de Pedagogia, trabalha atualmente como ACS e nos fins de semana como

decoradora de festa com sua mãe e tios. Já fez uso de pílula, mas não se sentia bem e

atualmente está usando preservativo e trocando para injeção contraceptiva que

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“pega” gratuitamente no posto por ter participado do GPF. Pretende ter filhos, no

máximo dois, mas somente depois de ter a vida estabilizada (financeiramente).

M., 21 anos

Foi criada pela avó, mas sempre teve contato com a mãe. Fez dois abortos, sempre

amparada pela mãe, na decisão e escolha do método utilizado. Tem um filho que é

criado pela bisavó, mas que ela tem que “aturar” durante o dia, enquanto a avó

trabalha. Usa injeção desde o nascimento do filho, pois atualmente vive com um

companheiro e ambos não desejam ter mais filhos.

M., 25 anos

Trabalha como manicure em salão. Faz uso de anticonceptivo injetável que “pega”

mensalmente no posto. Mora com suas duas filhas. Participou de um grupo de

planejamento familiar, conheceu a pílula do dia seguinte e já a usou por duas vezes.

Seu discurso está mais voltado para si mesma e suas escolhas, reforçando que é

preciso se cuidar para estar bem consigo mesma.

M., 32 anos

Veio da Bahia. Mora com o marido e dois filhos e trabalha como empregada

doméstica. Engravidou aos 18 anos, mas teve aborto espontâneo. Descobriu que tem

o útero infantil e por isso acha “difícil pegar filho”. Somado a isso, usou um

“remédio fraquinho” e engravidou quando o primeiro filho tinha seis meses. Há seis

anos participou de um GPF, usou pílula e hoje tenta “engravidar para ligar”, já que a

informação recebida é que deve ter três filhos.

M., 24 anos

Agente comunitária de saúde, tem um filho, está vivendo uma crise conjugal e tem

buscado conforto na religião. Vive em conflito por isso também, sente-se completa

quando vai à igreja, mas suprimida em cuidar-se como mulher pelas regras que a

igreja impõe. Tem tentado reestabelecer seu casamento, e mesmo que não consiga

mantém o plano de no futuro ter uma menina, formando um casal e cursar

arquitetura.

M., 37 anos

Cozinheira desempregada, mas faz bicos como banqueteira, o que mantém sua

renda. Engravidou por “produção independente” aos 18 anos, mas a filha morreu no

parto. Fora orientada por familiares a se comportar e não gritar durante o parto e

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associa seu silêncio a perda da filha. Aos 19 anos engravidou novamente e teve

aborto espontâneo. Usou então a pílula por um tempo até resolver engravidar

novamente aos 22 anos. Enquanto a mãe era viva, morava com a ela, mas depois

resolveu ter um parceiro. Tem três filhos.

N., 31 anos

Vive com o parceiro e durante os dez anos de relacionamento tem buscado

alternativas para controlar sua reprodução. Foi a diversos serviços em busca de DIU,

mas ainda não conseguiu colocar, tentou outros métodos, mas sempre tinha algum

impedimento para prosseguir o uso, o que a fez provocar inúmeros abortos. Teve a

primeira experiência de gravidez aos dezessete anos, com a ajuda da mãe tentou

abortar, mas não conseguiu. O filho nasceu com hidroanencefalia e após três meses

faleceu. Viveu essa experiência sozinha, desde o parto até o enterro do filho. Hoje

pensa muito à respeito da maternidade, as responsabilidades e as condições

necessárias, e por isso a adia até o momento que se sentir pronta para vivenciá-la.

N., 32 anos

Veio do norte na companhia da irmã. Auxiliar de limpeza em academia, mora com o

casal de filhos. Morava com “o pai das crianças” desde os quinze anos até

recentemente, quando se separaram. Conta com a ajuda de uma vizinha para cuidar

dos filhos enquanto trabalha. Procura sempre cuidar de toda a família e para isso

conta com a unidade de saúde. Cuida de si com o objetivo maior de não vir a

“faltar” para os filhos.

N., 38 anos

Vive com o parceiro com o qual tem três de seus cinco filhos. Tem se dedicado

integralmente a criação deles e se preocupa que se tornem pessoas de bem.

Engravidou pela primeira vez ainda na adolescência e diz que a maternidade a

amadureceu muito. Deseja poder dar de tudo a seus filhos, mas acredita que quanto

mais filhos menos se pode dar. Tem buscado alternativas para realizar laqueadura e

assim retornar ao mercado de trabalho, pois com a renda pouca e variável de seu

parceiro não tem dado para suprir as despesas.

N., 24 anos

Tem uma filha e vive com o parceiro. Atualmente está desempregada, mas em busca

constante por um trabalho, pois não consegue ser “dona de casa”, onde além de

receber ordens do marido não tem renda própria para cuidados pessoais e

complemento das despesas domésticas. O parceiro está estudando e vai prestar

vestibular. Ele queria fazer vasectomia, fez o grupo de planejamento familiar, mas

ela não assinou, pois quer ter mais um filho.

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P., 25 anos

Trabalha como Agente de Saúde e sente orgulho por ter seu dinheiro para comprar o

que deseja. Engravidou pela primeira vez aos 13 anos e com o apoio do parceiro

seguiu com a gravidez. Continuou na escola, pois sentia que lá era o espaço para

interagir com outras pessoas e sair da rotina de cuidados com a casa e criança. Está

buscando recolocar o DIU, mas teve problemas na segunda vez que o fez. Pensa em

engravidar mais uma vez, entretanto pondera o fato de ter que deixar o mercado de

trabalho e as condições atuais para criar os filhos e sente-se insegura para uma nova

maternidade.

R., 35 anos

Vive com o marido e os filhos. Teve o primeiro filho aos 18 anos. Usou pílula por

um período da vida, mas nem sempre tinha dinheiro para comprar. Tentou colocar o

DIU, mas com as visitas freqüentes à unidade foi impedida pelo marido de

continuar. Acabou por fazer a laqueadura em um serviço privado com a ajuda

financeira de uma cunhada. A entrevista foi interrompida pelo marido, que

determinou a sua saída.

R., 42 anos

Técnica de enfermagem e trabalha em uma empresa de home care. Considera-se

“muito fértil” e sempre desejou ser mãe, desde que ajudava a criar seus irmãos. Aos

17 anos, quando se descobriu grávida e o parceiro não assumiu, fez um aborto. Aos

20 engravidou novamente e mesmo o parceiro “dando dinheiro” para fazer aborto,

assumiu sozinha porque “trabalhava e tinha como sustentar”. Chegou a fazer uso da

pílula algumas vezes, mas sempre parava por um tempo, o que acarretou outras

gravidezes. Abortou uma outra vez quando vivia uma crise no casamento com o

marido atual. Teve duas filhas com ele. As experiências de parto e dos cuidados com

a filha mais nova que teve meningite, também colaboraram para a sua decisão de

não mais engravidar. Atualmente se protege de uma gravidez com camisinha, coito

interrompido e tabelinha, já que “conhece bem o seu corpo”. Tendo realizado muitas

cirurgias, delegou ao marido realizar a vasectomia como método definitivo de

contracepção.

S., 28 anos

Vive com os três filhos e o companheiro com o qual não tem filhos. Ela fez

laqueadura quando mais nova levada pela família do ex-parceiro, que hoje está

preso. Gostaria de ter um filho com o atual parceiro já que ele é filho único e poderá

não ver sua geração continuar se mantiver o relacionamento com ela. Para suprir as

necessidades de seus filhos ela se prostitui, mas omite isso do parceiro. Os cuidados

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com a saúde ela busca em clínica particular a preços populares e sente-se segura por

poder cuidar de si.

S., 23 anos

Mora com um filho e o parceiro, os outros dois filhos moram com a mãe dela.

Trabalha como atende em loja e por medo de perder o emprego, adia ao máximo os

cuidados de saúde dela ou de seu filho para não ter faltas. Ela decidiu deixar a

comunidade pelas freqüentes situações de violência, mas ainda mora próxima a ela.

Não pretende ter mais filhos e nem seu parceiro, para isso faz uso de pílula

anticoncepcional. Não cogita fazer laqueadura, pois acredita que muitas coisas

podem mudar na vida inclusive sua decisão de ter filhos. Está cursando o ensino

médio para que possa buscar melhores empregos. Viveu experiências que a

amadureceram, como violência do parceiro seguida de ameaça de morte, e vê que a

prisão dele foi uma oportunidade que a vida lhe deu para novas conquistas.

T., 23 anos

Vive com os três filhos em um apartamento de um prédio invadido há alguns anos.

Tem como renda o auxílio doença da filha que teve câncer e está em tratamento.

Espera o casamento para morar com o parceiro, pai de um de seus filhos, para que

não cometa o “pecado da fornicação”, mas mantém relação sexual com ele

esporadicamente. Tem tentado colocar o DIU desde a segunda gravidez por

indicação de parentes que usam o método, mas os serviços que acessou mudaram de

lugar, assim como suas ofertas de DIU e por isso ela ainda está tomando pílula.

T., 26 anos

Veio do Norte e vive com o companheiro. Alguns de seus familiares também

migraram para o Rio de Janeiro e, mais recentemente, sua mãe. Ela usa uma pílula

anticoncepcional indicada por uma amiga para adiar uma gravidez desde já muito

desejada. Seu plano é primeiro ter o “próprio barraco” para só depois pensar em ter

filhos, no máximo dois. Trabalha como doméstica para complementar a renda do

parceiro, mas sabe que vai deixar o trabalho para cuidar dos filhos quando os tiver,

já que ficou acordado entre o casal que quem educa são os pais e não os avós.

Estabeleceu como critério para procurar consulta médica quando a mulher tem

alguma inflamação, apesar de que toda mulher “que tem homem” devesse se cuidar.

Para engravidar pretende parar com a pílula e procurar um médico.

U., 32 anos

Desejava ter “ligado” no nascimento do segundo filho, aos 19 anos, mas a médica “a

enrolou”. No relacionamento com o segundo parceiro ficou acordado que ele

pagaria pela LT se ela tivesse dois filhos com ele. Cumprido o combinado, ela ligou.

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A mãe a ajuda criando dois de seus filhos. Hoje vive com dois de seus quatro filhos,

o companheiro e três filhas dele, sendo que uma já tem um filho e está grávida

novamente. Ela “ajuda o parceiro como pode, pois não trabalha”, cuidando de casa e

dos filhos.

V., 21 anos

Está na segunda gravidez. Após o nascimento da primeira filha ela usou

preservativo que falhou no intuito de prevenir a gravidez, hoje desconfia de

quaisquer outros métodos, elegendo como confiáveis somente o DIU ou

Laqueadura. Tem planos de voltar a estudar quando o bebê estiver maior. Hoje

deseja manter o trabalho para que possa ter melhores condições financeiras e suprir

as necessidades dos filhos.

V., 38 anos

Técnica de enfermagem, vive com o companheiro e tem um casal de filhos de outros

relacionamentos. Está em uso de DIU e devido a complicações tem tentando tirar há

algum tempo, mas as barreiras que encontra para acessar o serviço adiam a

resolução de seu problema. Além das complicações com o método está ponderando

uma nova gravidez, muito desejada pelo parceiro “para deixar a sua geração” e

suprir “seu contexto de felicidade familiar”. Ela diz que deve “dar este filho” ao

parceiro, uma vez que ele sempre esteve presente ajudando a criar os filhos que são

só dela. Ela engravidou aos dezesseis anos e por não desejar o mesmo para a filha

controla o uso de método por ela, antes a pílula e agora a injeção, iniciados por

conta própria. Quanto ao filho deseja cursar medicina, e ela não vê possibilidades de

ajudar na realização de seu sonho “já que todo o dinheiro que tem vai para a

construção da casa”.

V., 33 anos

Veio do norte. Está afastada do trabalho de empregada doméstica devido à

depressão que a acompanha desde o nascimento da segunda filha. Vive com as

filhas e marido em um “barraco na comunidade”. Está separada do parceiro

alcóolatra desde a descoberta da última gravidez, quando deu um basta na situação

de violência sexual que sofria. Comenta com orgulho que cuida bem das filhas e que

“parecem até filhas de rico”. A vivência da primeira gravidez foi conturbada e ainda

mais quando descobriu que estava com sífilis. Conta com ajuda dos irmãos para

ampará-la nos momentos difíceis e para conduzir suas escolhas. Graças ao salário

que recebe, hoje consegue comprar roupa para as filhas, fez um cartão de crédito e

pertence ao mundo do consumo.

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V., 45 anos

Trabalha em confecção, vive com sua companheira há oito anos, mas não tem boas

perspectivas para este relacionamento. Deseja voltar a morar próximo da mãe, para

que saia da área de conflito onde vive, onde não se acostuma com a violência e tiros

constantes. Vê como um grande avanço a sociedade estar aceitando mais o

homossexual, e uma contribuição para isso vem da abordagem do assunto em

novelas. O trabalho é forma de segurança, que garante as despesas e atende às

vaidades da parceira.

V., 19 anos

Secretária, evangélica, noiva e com planos de “casar e ter filhos”. Mora com os pais

e a irmã. Planeja o início de sua vida sexual para após o casamento e pretende lançar

mão do uso de métodos anticoncepcionais para definir quando ter filhos.

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Anexos

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Anexo I