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NAVEGANDO NO ATLÂNTICO PARDO OU A LUSOFONIA REINVENTADA Simone Pereira Schmidt * Resumo: O artigo pretende discutir o projeto colonial português e seus desdobramentos em termos de gênero e raça, tomando como ponto de partida o motivo da viagem e as rotas transnacionais do Atlântico Negro de Paul Gilroy. Para refletir sobre a “lusofonia” e suas implicações, dois romances são abordados: Nação Crioula e O ano em que Zumbi tomou o Rio, ambos do escritor angolano José Eduardo Agualusa. Palavras-chave: colonialismo; pós-colonialismo; raça; gênero; literatura angolana; lusofonia. Ao analisar as rotas transnacionais e interculturais realizadas na modernidade a partir da diáspora dos povos africanos [1] , Paul Gilroy criou a poderosa metáfora do Atlântico Negro [2] . Tomando a figura do navio como um dos primeiros cronotopos modernos, o autor percorre seus diferentes significados, desde sua função como unidade cultural e política, elemento móvel que, ao se deslocar, ligava os espaços fixos que através dele se conectavam., até a evocação do tráfico de escravos e sua relação com os projetos de modernização. No centro de sua reflexão, encontramos o motivo da viagem e seus desdobramentos históricos. O Atlântico Negro seria, assim, o espaço imaginário de uma outra viagem, protagonizada não pelos colonizadores em suas rotas de expansão e conquista, mas uma forma de repensar a cultura viajante, a partir da experiência e das trocas culturais protagonizadas pelos subalternos. Tomando como referência este espaço híbrido e transcultural do mar cruzado em vários sentidos a partir das rotas da escravidão, podemos começar a pensar em outras rotas que também ligaram África, Europa e América, mas em outras direções. Refiro-me ao projeto colonial empreendido pelos portugueses a partir do século XV, e que de forma anacrônica, problemática e ex-cêntrica, desenvolveu-se até o final do século XX. Este outro percurso, desenhado no espaço-tempo daquilo que podemos conceituar como um território transnacional de língua portuguesa, encontrou no Salazarismo sua máxima projeção utópica, de base fascista, quando o governo totalitário português, a partir dos anos 50 até os 70, reeditou o seu sonho imperial através da máxima que definia o país como um só, “do Minho ao Timor”. Na base desta utopia, sobreviviam, como uma fantasmagoria de grande utilidade, as teorias de Gilberto Freyre, então a serviço da interpretação do projeto colonial português como um colonialismo cordial, inter-racial, mestiço e não-racista [3] . Às interpretações que então se fizeram das idéias de Gilberto Freyre, subjazia a legitimação da empresa do poder colonial português. Este conjunto de princípios, que buscava justificar a permanência de Portugal em África, num momento histórico em que outras colônias africanas encontravam-se em pleno processo de descolonização, pode ser resumido no conceito de “lusofonia”. Em tempos mais recentes, marcados pela experiência pós-colonial, encontramos vários discursos no campo intelectual dos países de língua

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NAVEGANDO NO ATLNTICO PARDO OU A LUSOFONIA REINVENTADASimone Pereira Schmidt*

Resumo:O artigo pretende discutir o projeto colonial portugus e seus desdobramentos em termos de gnero e raa, tomando como ponto de partida o motivo da viagem e as rotas transnacionais doAtlntico Negrode Paul Gilroy. Para refletir sobre a lusofonia e suas implicaes, dois romances so abordados:Nao CrioulaeO ano em que Zumbi tomou o Rio, ambos do escritor angolano Jos Eduardo Agualusa.Palavras-chave:colonialismo; ps-colonialismo; raa; gnero; literatura angolana; lusofonia.

Ao analisar as rotas transnacionais e interculturais realizadas na modernidade a partir da dispora dos povos africanos[1], Paul Gilroy criou a poderosa metfora do Atlntico Negro[2]. Tomando a figura do navio como um dos primeiros cronotopos modernos, o autor percorre seus diferentes significados, desde sua funo como unidade cultural e poltica, elemento mvel que, ao se deslocar, ligava os espaos fixos que atravs dele se conectavam., at a evocao do trfico de escravos e sua relao com os projetos de modernizao. No centro de sua reflexo, encontramos o motivo da viagem e seus desdobramentos histricos. O Atlntico Negro seria, assim, o espao imaginrio de uma outra viagem, protagonizada no pelos colonizadores em suas rotas de expanso e conquista, mas uma forma de repensar a cultura viajante, a partir da experincia e das trocas culturais protagonizadas pelos subalternos.Tomando como referncia este espao hbrido e transcultural do mar cruzado em vrios sentidos a partir das rotas da escravido, podemos comear a pensar em outras rotas que tambm ligaram frica, Europa e Amrica, mas em outras direes. Refiro-me ao projeto colonial empreendido pelos portugueses a partir do sculo XV, e que de forma anacrnica, problemtica e ex-cntrica, desenvolveu-se at o final do sculo XX. Este outro percurso, desenhado no espao-tempo daquilo que podemos conceituar como um territrio transnacional de lngua portuguesa, encontrou no Salazarismo sua mxima projeo utpica, de base fascista, quando o governo totalitrio portugus, a partir dos anos 50 at os 70, reeditou o seu sonho imperial atravs da mxima que definia o pas como um s, do Minho ao Timor. Na base desta utopia, sobreviviam, como uma fantasmagoria de grande utilidade, as teorias de Gilberto Freyre, ento a servio da interpretao do projeto colonial portugus como um colonialismo cordial, inter-racial, mestio e no-racista[3]. s interpretaes que ento se fizeram das idias de Gilberto Freyre, subjazia a legitimao da empresa do poder colonial portugus. Este conjunto de princpios, que buscava justificar a permanncia de Portugal em frica, num momento histrico em que outras colnias africanas encontravam-se em pleno processo de descolonizao, pode ser resumido no conceito de lusofonia.Em tempos mais recentes, marcados pela experincia ps-colonial, encontramos vrios discursos no campo intelectual dos pases de lngua portuguesa, preocupados em ressignificar este espao transnacional e intercultural da lusofonia. O antroplogo portugus Miguel Vale de Almeida criou, a partir do Atlntico Negro de Gilroy, a provocativa imagem doAtlntico Pardo, fazendo aparecer, na frico das duas imagens, as diferenas tnicas, histricas e polticas que existem entre as experincias ps-coloniais do norte e do sul[4].Sobre o fundo deste Atlntico Pardo, mais assumidamente mestio do que o Atlntico Negro de Gilroy, desejo inserir ainda uma outra metfora, retomando o motivo da viagem. Trata-se daNao Crioula, criada por Jos Eduardo Agualusa em seu romance de 1997[5].No romance do escritor angolano,Nao crioula o ltimo navio negreiro, que cruza o Atlntico levando consigo a ltima partida de escravos da rota Angola-Brasil. Alm da fora simblica desta ltima viagem, o navio carrega, clandestinamente e esta a marca de ironia maior da situao ficcional construda pelo romancista - um portugus abolicionista e sua companheira, uma escrava angolana fugitiva. Mas a pardia criada por Agualusa encontra sua melhor expresso no fato de que este portugus ningum mais do Fradique Mendes, personagem de Ea de Queirs. Fradique Mendes, figura exponencial do sistema literrio portugus do sculo XIX, mais do que um personagem, o cone de toda uma gerao de intelectuais do perodo, sendo o mais galante, refinado, cosmopolita, o mais europeu dos portugueses daquela gerao. Pois exatamente este o estranhamento que nos quer provocar o angolano Jos Eduardo Agualusa, ao relatar que Fradique Mendes viaja a Angola e l permanece, enamora-se de uma ex-escrava, torna-se abolicionista, casa-se, vai ao Brasil e se faz senhor de engenho, procria, faz descendncia. medida que vive sua experincia na frica, Fradique Mendes vai-se envolvendo com aquilo que vive, e sente-se dia a dia mais sintonizado com tudo que outrora aprendera a considerar extico, brbaro, selvagem. Vive profundamente a aventura de descobrir-se outro, experincia que se radicaliza quando se apaixona por Ana Olmpia, a ex-escrava angolana com quem mais tarde se casa. Em poucas palavras, Fradique entrega-se frica, e ao faz-lo, torna-se sujeito de um processo de mestiagem, de que sua filha ser o melhor fruto. Assim, metamorfoseado, mestio, o personagem no aprende apenas a aceitar o Outro, mas na verdade confunde-se com ele.Fradique Mendes, ao contrrio do que fizeram seus antepassados colonizadores, deslocou-se para fora do centro, calibanizou-se. nessa condio, de sujeito hbrido, intermedirio entre o centro de onde provm e a margem qual progressiva se integra, a bordo de um navio negreiro chamadoNao Crioula, que Fradique acompanha a ex-escrava Ana Olmpia em fuga para o Brasil. No passado, a viagem fora para ele um exerccio de elegante cosmopolitismo, mas agora ela se transforma em errncia. O contrrio da casa/ptria patriarcal o deslocamento, a perda da fixidez do lugar o fim da casa. A bordo doNaoCrioula, Fradique e Ana Olmpia erram pelo Atlntico. Paul Gilroy chamou deAtlntico Negroeste mar sem fronteiras, que sem contornos definidos liga as culturas diferentes e dispersas da frica, da Amrica e da Europa. Mestio, transcultural, oNao Crioulapode ser uma bela metfora deste Fradique em verso ps-colonial inventado por Agualusa, desta espcie de Prospero calibanizado em que o personagem se vai transformando. O que nos leva a pensar no particular jogo identitrio que Portugal estabeleceu com suas colnias. Boaventura de Sousa Santos j tratou deste tema, classificando a cultura portuguesa como a de um pas semiperifrico: (...) demasiado prximo das suas colnias para ser plenamente europeu (...) demasiado longe da Europa para poder ser um colonizador conseqente[6]. Assim, ainda segundo Sousa Santos, a relao de Portugal com suas colnias desenvolveu-se de forma particularmente complexa, devido fluidez identitria que marcou o lugar de cada um dos elementos dessa relao, ou seja, o colonizador e o colonizado:O outro colonizado pelo colonizador no totalmente outro em relao ao outro colonizado do colonizador. Ao contrrio do ps-colonialismo anglo-saxnico, no h um outro. H dois que nem se juntam nem se separam. Apenas interferem no impacto de cada um deles na identidade do colonizador e do colonizado.[7]A carta que o Fradique de Agualusa envia ao seu amigo Ea de Queirs diz bem dessa viso desencantada do portugus civilizado para a choldra torpe em que se foi tornando o seu pas, e tambm o seu malogrado projeto colonial:A presena portuguesa em frica lembra-me alis um episdio recente. Estando eu de visita ao meu Engenho Cajaba, vi passar um homem a cavalo. O homem deixava-se levar pelo animal, quase deitado, quase caindo, o chapu tombado sobre os olhos, e por instantes acreditei que estivesse morto ou adormecido. Incrvel!, comentei para Ana Olmpia, j reparou como aquele homem vai montado?. Montado? Estranhou a minha amiga chamas quilo montar?! Ele vai depositado!...Penso naquele cavaleiro como sendo Portugal montado em frica. Montado, no, depositado.[8]Em outras palavras, podemos pensar no conceito de subalterno como algo que se aplica no apenas frica, real ou inventada, mas tambm, embora num sentido diferente, metrpole portuguesa. Ao conceito de subalterno, podemos somar, ou ainda fazer equivaler, um outro: o de colonizado. O inesquecvel personagem queirosiano Joo da Ega j afirmava, emOs Maias, que, em Portugal,importa-se tudo. Leis, idias, filosofias, teorias, assuntos, estticas, cincias, estilo, indstrias, modas, maneiras, pilhrias, tudo nos vem em caixotes pelo paquete. A civilizao custa-nos carssima, com os direitos da Alfndega: e em segunda mo, no foi feita para ns, fica-nos curta nas mangas...[9]O processo de mestiagem vivido por Fradique Mendes emNao Crioulanos leva de volta ao Atlntico Pardo de Miguel Vale Almeida. Segundo o antroplogo portugus, se h um aspecto que possa integrar o Brasil na experincia ps-colonial que envolve os outros pases de lngua portuguesa, e especialmente os pases africanos, este aspecto o da mestiagem resultante doa escravido. Assim, a tarefa ps-colonial, no caso brasileiro, seria a de interpretar a questo da mestiagem e suas implicaes em termos de desigualdades sociais, raciais e de gnero, que perduram at os dias de hoje. Boaventura de Sousa Santos ilumina muito bem esta tarefa, ao propor que o ps-colonialismo portugus exige uma articulao densa com a questo da discriminao sexual e o feminismo, no empenho de dilucidar as regras sexistas da sexualidade que quase sempre deitam na cama o homem branco e a mulher negra, e no a mulher branca e o homem negro[10]. Segundo o autor, o corpo mestio neste contexto foi constitudo como umlcusde significado fluido e cambiante, conforme o momento histrico e suas interpretaes. Por vezes, o corpo do mulato (e especialmente da mulata) foi visto como degradao, exposio concreta dos aspectos nefastos da mestiagem. Em outros momentos, ao contrrio, foi depositrio das expectativas mais ufanistas em torno de um projeto inter-racial com base na ndole branda e cordial dos portugueses. Assim, em nome do contato inter-racial, promoveu-se a idia do anti-racismo, ou de um racismo sem raa, ou, pelo menos, um racismo mais puro do que a sua base racial.e atravs dele, favoreceu-se o sexismo dos discursos e prticas povoados pelas ambguas representaes do corpo da mulata, como lugar de desejo e pecado, repulsa e prazer. Assim, segundo Santos, a cama sexista e inter-racial pde ser a unidade de base da administrao do Imprio e a democracia racial pde ser agitada como um trofu anti-racista sustentado pelas mos brancas, pardas e negras do racismo e do sexismo.[11]Em outro romance de sua autoria, intituladoO ano em que Zumbi tomou o Rio,Jos Eduardo Agualusa retoma ironicamente o tema da mulata sedutora, cujo corpo se encontra venda num anncio de jornal: Florzinha, morena queimada, linda, carinhosa[12].Ao breve texto onde a prostituta se auto-representa, seguem-se as consideraes de seu prximo cliente, o personagem Francisco Palmares, coronel dissidente do exrcito angolano, e hoje residente no Brasil, onde trafica armas vindas de Angola para as mos dos traficantes cariocas:Florzinha, morena queimada.Poderia ser tambm amorenada, melada, bronzeada, caf com leite, morena fechada, tostada, turva, corada, cobre, jambo, marrom, baiana, saraba. Numa pesquisa realizada nos anos setenta, em todo o territrio brasileiro, pediu-se aos entrevistados para se definirem em termos de raa. As pessoas responderam com um total de cento e trinta e seis definies diferentes.[13]A cena seguinte envolve Florzinha e seu cliente no motel:Quer que eu pare, moreno?O coronel sente-se de repente muito cansado.Eu no sou moreno, sou preto, e por sinal bastante preto. E voc tambm no morena, preta, embora no to preta quanto eu. Alm disso no se chama Florzinha.Ela ri-se (o riso dela parece gua a bater na gua).-O que um nome? Um nome no tem importncia.(...) muito importante, um nome. Os nomes resumem a essncia das coisas.Pensa no verso de Knopfly:Eu no tenho j nome aqui.Pensa no que diria Euclides:Se um negro se define como moreno queimado est a matar um negro. um negro a menos no Brasil. Sai do chuveiro, enxuga-se, e regressa ao quarto. Florzinha ajeita o cabelo diante do espelho. Vestida, parece mais nua. Canta:No sou negra, moreno, mas eu chego l.Com aqueles versos Euclides poderia escrever um ensaio:O Negro Brasileiro Uma Contradio nos Termos.[14]Na cena apresentada, o romancista pe em questo exatamente aquele racismo sem raa, base da relao inter-racial sexista de que fala Boaventura de Sousa Santos. Mas h uma outra abordagem realizada pelo romance que toca num aspecto fundamental da experincia ps-colonial de da lngua portuguesa. O romance se inscreve num espao de contato transnacional, ligando as experincias de personagens do Brasil e de Angola, no intuito de colocar em contato diferentes experincias de enfrentamento da violncia advindas, de forma mais ou menos direta, da experincia colonial. Assim, numa iniciativa de intenso significado esttico e poltico, Agualusa efetua o cruzamento, a partir de uma estrutura narrativa entrelaada e de personagens que se deslocam entre os dois espaos, de duas experincias de intensa violncia: a guerra civil angolana e a guerra do trfico nos morros cariocas. O autor pe assim em evidncia uma rede de experincias que se estabelece a partir da memria de uma mesma matriz de violncia: a rota da escravido e seus desdobramentos, seja no processo de descolonizao nos pases africanos, seja nas tenses raciais e sociais nas grandes cidades brasileiras.Distanciando-se, em termos histricos e polticos, do projeto utpico da lusofonia salazarista, autores como Agualusa ressignificam a utopia de um espao transnacional e inter-cultural de interao entre os pases advindos da experincia colonial portuguesa. EmO ano em que Zumbi tomou o Rio, esta utopia se encontra j no ttulo do romance, que evoca o mtico Zumbi dos Palmares e prope sua ressurreio em meio s lutas do trfico de drogas nas favelas do Rio de Janeiro. Alm disso, o romance prope vrias utopias, que nos remetem a questes de gnero, de raa, classe. Numa delas, por exemplo, a mulher branca da classe dominante carioca envolve-se amorosamente com o chefe do trfico no Morro da Barriga. Mas a utopia central que norteia a construo narrativa a de uma revolta armada, organizada, a partir da qual os moradores do morro, liderados pelo trfico, tomariam de assalto a zona sul do Rio, com apoio dos dissidentes da guerra civil angolana. A memria da violncia da guerra assombra os personagens e prenuncia o final desta outra guerra, marcada j de antemo pelo fracasso:O denso fedor das carcaas faz com que Francisco Palmares se lembre outra vez de Luanda. Pagaria muito para que algum lhe arrancasse do crebro aquelas imagens, uma por uma, com uma pina, como se arrancam espinhos. Algumas pessoas tomam medicamentos para melhorar a memria. Ele de boa vontade tomaria alguma coisa para a prejudicar.[15]Tudo acaba em nada: o amor entre a burguesa e o traficante, o grande sonho da tomada do Rio de Janeiro. Mas o espao de cruzamento das experincias, e o compartilhamento da memria da violncia em busca de respostas, atualizadas e localizadas para os dramas vividos nestes contextos permanecem como um passo importante realizado, no campo da esttica e da poltica, por autores como Agualusa.Um empreendimento desta natureza parece pr em prtica alguns dos desafios que Boaventura de Sousa Santos prope para aqueles que se encontram dentro de uma perspectiva emancipatria, empenhados na construo de uma globalizao contra-hegemnica. Um desses desafios seria, segundo o autor, justamente o de traduo de diferentes projetos parciais de emancipao social, visando transformar a incomensurabilidade em diferena, uma diferena que torne possvel a inteligibilidade recproca entre os diferentes projetos de emancipao social, sem que nenhum possa subordinar em geral ou absorver qualquer outro[16]. Em outras palavras, fazer falar as diferentes experincias ps-coloniais em lngua portuguesa s faz sentido se isso se investir num projeto de traduo dos significados histricos, polticos, raciais, tnicos e de gnero, dos diferentes modos de se vivenciar os desdobramentos da experincia colonial. Por outro lado, preciso tambm investir na idia de um ps-colonialismo situado, marcado por diferenas tericas e polticas em relao ao ps-colonialismo do Norte, que, de forma mais difundida, tem realizado suas reflexes a partir de suas experincias histricas. O Sul, como nos diz ainda Sousa Santos, pode ser interpretado como uma metfora do sofrimento humano advindo da violncia da experincia colonial. Aprender com o Sul seria assim, mais um dos grandes desafios colocados tarefa de traduo das experincias ps-coloniais. Algo que Caetano Veloso parece ter compreendido muito bem quando, nos versos da canoHaiti, encena as dramticas tenses raciais e sociais vividas no Brasil, sem deixar de conect-las aos dramas vividos pelos povos negros de outras regies do planeta e, muito especialmente, de outras regies do continente americano, como o Caribe. O trecho seguinte enfoca o conhecido episdio do massacre efetuado pela polcia de So Paulo sobre os presos amotinados da Penitenciria de Carandiru:E ao ouvir o silncio sorridente de So PauloDiante da chacina111 presos indefesos, mas presos so quase todos pretosOu quase pretos, ou quase brancos, quase pretos de to pobresE pobres so como podres e todos sabem como se tratam os pretosE quando voc for dar uma volta no CaribeE quando for trepar sem camisinhaE apresentar sua participao inteligente no bloqueio a CubaPense no Haiti, reze pelo HaitiO Haiti aqui, o Haiti no aqui[17].Ao afirmar que o Haiti aqui, Caetano Veloso nos sugere uma viagem em direo s experincias que podem ser traduzidas dentro de um mesmo projeto emancipatrio, contra-hegemnico, tomando o Sul como referncia poltica e simblica. Contudo, no instante seguinte quele em que afirma a identidade, entre a experincia dos negros pobres do Brasil e a dos negros pobres do Haiti, o poeta nega esta identidade (o Haiti no aqui), fazendo falar a diferena, num contraste que reala nossa condio hbrida, feita de identidades e diferenas. Assim, ele mais uma vez nos pe a navegar, no espao metafrico de um Atlntico que mais pardo do que negro... ou seria moreno queimado? ou talvez amorenado, tostado, turvo, corado...?RefernciasAGUALUSA, Jos Eduardo.Nao crioula; a correspondncia secreta de Fradique Mendes. Rio de Janeiro: Gryphus, 1998______.O ano em que Zumbi tomou o Rio. Rio de Janeiro: Gryphus, 2002.ALMEIDA, Miguel Vale de.Um mar da cor da terra: raa, cultura e poltica da identidade. Oeiras: Celta, 2000GILROY, Paul.O Atlntico negro: modernidade e dupla conscincia. So Paulo: Ed. 34; Rio de Janeiro: Universidade Cndido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiticos, 2001.QUEIRS, Jos Maria Ea de.Os Maias.In: Obra completa. vol. II. 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Author:Simone Pereira Schmidt

Abstract: The present paper discusses the Portuguese colonial project and its developments relating to gender and race. It begins by analyzing the motivation for the trip and for the transnational routes inAtlntico Negroby Paul Gilroy. In order to reflect on the lusofonia (Portuguese-speaking countries) and its implications, two novels are discussed:Nao CrioulaandO ano em que Zumbi tomou o Rio, both by the Angolan writer Jos Eduardo Agualusa.

Keywords:colonialism; post colonialism; race; Angolan literature; lusophony.

Ttre:Navigant dans lAtlantique Brun ou la Lusophonie rinvente

Auteur:Simone Pereira Schmidt

Rsum: Rsum: Cet article a lintention de discuter le projet colonial portugais et ses ddoublements en ce qui concerne le genre et la race, tout en prenant comme point de dpart la raison du voyage et les routes transnationales delAtlantique Noirde Paul Gilroy. Pour rflchir sur la lusophonie et ses implications, deux romans sont abords: Nation Crole et Lanne dans lequel Zumbi a pris Rio, tous les deux de lcrivain angolais Jos Eduardo Agualusa.

Mots-cls:colonialisme; post-colonialisme; race; genre; littrature angolaise; lusophonie.

Ttulo:Navegando porelAtlntico Pardo olalusofonia reinventada

Autor:Simone Pereira Schmidt

Resumen:O artigo pretende discutir o projeto colonial portugus e seus desdobramentos em termos de gnero e raa, tomando como ponto de partida o motivo da viagem e as rotas transnacionais doAtlntico Negrode Paul Gilroy. Para refletir sobre a lusofonia e suas implicaes, dois romances so abordados:Nao CrioulaeO ano em que Zumbi tomou o Rio, ambos do escritor angolano Jos Eduardo Agualusa.

Palabras-clave:colonialismo; pos-colonialismo; raza; gnero; literatura angolea; lusofonia.

[1]Verses anteriores deste artigo foram apresentadas naTranslocalidades/Tranlocalities Conference,University of Massachusetts-Amherst em maio 2006, e no X Congresso da Abralic, UERJ, em julho 2006.[2]GILROY, Paul.O Atlntico negro: modernidade e dupla conscincia. So Paulo: Ed. 34; Rio de Janeiro: Universidade Cndido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiticos, 2001.[3]Sobre este tema, consultar THOMAZ, Omar Ribeiro. Tigres de papel: Gilberto Freyre, Portugal e os pases africanos de lngua oficial portuguesa. In: BASTOS, Cristiana et al. (coord..).Trnsitos coloniais: dilogos crticos luso-brasileiros. Lisboa: Imprensa de Cincias Sociais, 2002.[4]ALMEIDA, Miguel Vale de.Um mar da cor da terra: raa, cultura e poltica da identidade. Oeiras: Celta, 2000.[5]AGUALUSA, Jos Eduardo.Nao crioula; a correspondncia secreta de Fradique Mendes. Rio de Janeiro: Gryphus, 1998.[6]SANTOS, Boaventura de Sousa.Pela mo de Alice; o social e o poltico na ps-modernidade. So Paulo: Cortez, 1995. p. 152.[7]SANTOS, Boaventura de Sousa. Entre Prospero e Caliban: colonialismo, ps-colonialismo e inter-identidade. In: RAMALHO, Maria Irene e RIBEIRO, Antnio Sousa (orgs.).Entre ser e estar: razes, percursos e discursos da identidade. Porto: Afrontamento, 2002. p. 42.[8]AGUALUSA, 1998, p.132.[9]QUEIRS, Jos Maria Ea de. Os Maias. In:Obra completa. vol. II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986. p. 83.[10]SANTOS, 2002, p. 42.[11]SANTOS, 2002, p. 43.[12]AGUALUSA, Jos Eduardo.O ano em que Zumbi tomou o Rio. Rio de Janeiro: Gryphus, 2002. p. 27.[13]AGUALUSA, 2002, p. 31.[14]AGUALUSA, 2002, p. 31-32.[15]AGUALUSA, 2002, p. 13-14.[16]SANTOS, Boaventura de Sousa. Do ps-moderno ao ps-colonial. E para alm de um e outro. Conferncia de Abertura do VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Cincias Sociais, realizado em Coimbra, de 16 a 18 de setembro de 2004. Disponvel em:www.ces.uc.pt. p. 35.[17]VELOSO, Caetano Haiti.Fina Estampa, 1995.

*Doutora em Teoria Literria (PUCRS); Professora da Universidade Federal de Santa [email protected]

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Para acabar de vez com a lusofonia

A lusofonia a ltima marca de um imprio que j no existe. E o ltimo impedimento a um trabalho adulto sobre as mltiplas identidades dos pases que falam portugusLusofonia um conceito vago, demasiado vago - e uma versokitschde uma boa relao de Portugal com os pases que foram colnias, que so ex-colnias. Alimentada pela esquerda mais retrgrada e pela direita mais nacionalista e nostlgica do imprio, a lusofonia tem uma histria, balizada por alguns acontecimentos.Num primeiro momento, surge a iluso de unir o Atlntico ao ndico, Angola a Moambique, atravs de um projecto poltico que reforava a necessidade de encontrar recursos econmicos extraordinrios no momento em que comeavam a sentir-se no pas os efeitos da revoluo industrial. (Note-se que hoje novamente com este argumento, agora usando a terminologia do investimento empresarial e da cooperao econmica, que se evoca a lusofonia.) O projecto foi apresentado no Congresso de Berlim (1884-85) e fundamentava-se no direito de ocupao daqueles territrios, direito esse que na verdade era falso - poca, nenhuma potncia colonial ocupava mais do que franjas do territrio africano. Este projecto, designado como Mapa Cor-de-Rosa, foi inteiramente rejeitado pelos pases que traaram as fronteiras africanas, nomeadamente pela Inglaterra (que imps o Ultimato de 1890).Num segundo momento, d-se a apropriao salazarista da tese do luso-tropicalismo do brasileiro Gilberto Freyre (1900-1987), tese essa que est presente na defesa poltica e diplomtica do colonialismo, em particular entre 1933 e 1961: "A primeira data corresponde ao ano da publicao deCasa-grande & Senzala, obra em que so lanados os fundamentos da doutrina luso-tropicalista; a ltima, ao ano da publicao deO Luso e o Trpico, livro em que a doutrina surge em "estado acabado"" (O modo portugus de estar no mundo, Cludia Castelo). O luso-tropicalismo, que se configurou como a essncia da identidade dos portugueses, passou a ter como objectivo criar as bases de um imprio mtico construdo sobre os afectos e o multi-racialismo (no qual o autor nunca vira sinais de tenso). Sem bases histricas, baseando a sua teoria na origem, tambm ela "mestia", do portugus face influncia de judeus e rabes, na sua capacidade de adaptao aos trpicos e no seu humanismo cristo, Gilberto Freyre, socilogo com prestgio internacional, deu sua tese uma cientificidade que assegurou a poltica do Estado (a partir da segunda metade dos anos 50) e produziu, no campo cultural, um conjunto vastssimo de mirades que acabaram por estruturar o campo das mentalidades.Depois do 25 de Abril, muito do trauma e do luto pela perda das ltimas colnias foi feito atravs de uma relativizao da violncia dos portugueses sobre os africanos - a guerra colonial portuguesa teria sido mais branda do que as de outros pases colonizadores. Como se os massacres das tropas portuguesas em Wiriyamu e Mihinjo no fossem a expresso da barbrie... Imps-se aquilo que seria uma cultura comum, cuja matriz era a portuguesa - e para a qual a confuso entre lngua e cultura era oportuna e baseada na relativizao das dores.Perdido o que restava do imprio, a crise da identidade nacional no foi superada por um trabalho de reviso das narrativas identitrias nem por um trabalho colectivo sobre as memrias na educao, na poltica, nas actividades culturais e artsticas. Demorou mais de 20 anos a aparecer uma literatura; algumas, muito poucas, artes performativas abeiraram-se do problema, e s a gerao de cineastas que comeou a filmar na dcada de 90 se confrontou com as narrativas mticas e com o presente das ex-colnias. "As contas a ajustar com as imagens que a nossa aventura colonizadora suscitou na conscincia nacional so largas e de trama complexa demais. A urgncia poltica s na aparncia suprimiu uma questo que tambm na aparncia o pas parece no se ter posto. Mas ele existe. Querendo-o ou no, somos agora outros, embora como natural continuemos no s a pensar-nos como os mesmos, mas at a fabricar novos mitos para assegurar uma identidade que, se persiste, mudou de forma, estrutura e consistncia" (Eduardo Loureno).Porm, a lusofonia, no logro de ser uma ptria de uma lngua comum, uma forma torpe de neo-colonialismo, tambm a prova da incapacidade de construo de um pas ps-colonial que no consegue olhar as suas ex-colnias numa relao de confronto de interesses e de respeito pelas identidades que cada um desses pases pretende construir. Com tudo isto h, por parte da esquerda conservadora, uma pretensa relao, baseada nos afectos e nos negcios; e, na direita, uma relao que se baseia na nostalgia, nos negcios e na defesa do uso da lngua conforme sua matriz lusitana.Ora, para que esta pretenso neo-colonial exista, a RTP frica, a RTP Internacional - e, de uma forma maisnaf, oJL- so os instrumentos adequados. J o Acordo Ortogrfico, por sua vez, , sobretudo pela forma como foi feito, uma tentativa de resistir ao estilhao da lusofonia. No entanto, tambm no saem bem aqueles que acusam o referido Acordo de cedncia da lngua a outros pases - como se ela fosse uma propriedade dos portugueses. E no deixa de ser paradoxal que um Governo que tanto exige da lusofonia, como se ela fosse o campo ideal de negcios - e como se alguma vez o capital tivesse um pas -, tenha feito desaparecer a cultura da misso do Instituto Cames na ltima Lei orgnica - e no tenha, neste momento, nenhum conselheiro cultural em nenhum dos pases africanos de lngua oficial portuguesa.Colonizar ou neo-colonizar e civilizar sempre estiveram juntos; por isso recorrente encontrar, sob a forma de cooperao, a imposio de um assistencialismo em lngua portuguesa que civilize sem "lhes" perguntar (a eles) - como reclama Appadurai - o que querem (o que quer o outro) e como querem (como quer esse outro) a cooperao.Neste processo de reconstruo de identidades, o Brasil h muito comeou com a investigao e a construo de narrativas das suas memrias - pese embora o trabalho sobre o passado ndio ser muito menos relevante do que o africano -, e at se conseguiu construir como um pas de glamour e terra de oportunidades, mito que o liberta definitivamente de Portugal e o transforma numa ptria de oportunidades mticas tanto para os europeus como para os chineses, para os antilhenses ou para os africanos. A responsabilidade desta construo mtica e aparentemente glamorosa no , naturalmente, dos historiadores nem dos estudioso da cultura.Mais: em frica, muitos africanos comearam tambm os seus trabalhos de reconstruo da identidade - de si mesmos enquanto sujeitos histricos e num dado contexto, e dos seus pases. Disso so prova os trabalhos dos angolanos Victor Barros e Antnio Toms, dos moambicanos Mia Couto e Eliso Macamo e, em Portugal, os pertinentes estudos de Joaquim Valentim, Cludia Castelo, ou o trabalho da revista/stiowebBuala, entre outros. De facto, "se a lusofonia se mantm como um princpio organizador das representaes sociais dos portugueses, no h concordncia entre os portugueses e africanos a esse respeito: os portugueses valorizam-na, os africanos rejeitam-na. Dito de outro modo, a este nvel, a valorizao da lusofonia no encontra correspondncia da parte dos africanos que so, em boa medida, interlocutores por excelncia dessa lusofonia. Mais ainda, os africanos no s manifestam uma posio contrria dos portugueses em relao lusofonia, como a importncia que atribuem sua identidade tnico-nacional se encontra associada negativamente valorizao da dimenso lusfona nas representaes das semelhanas dos portugueses com outros povos". (Joaquim Valentim,Identidade e Lusofonia nas Representaes Sociais de Portugueses e de Africanos). compreensvel. E se possvel criar uma comunidade de pases que tm como lngua oficial o portugus, com todas as suas variantes, e cujo uso pelas populaes pode ir dos 100% (em Portugal) aos 4% (em Timor) ou aos 40% (em Moambique), no possvel entender uma ptria lusfona comum a pases com outras diversidades lingusticas, economias to diferentes, regimes polticos distinto e, em particular, histrias singulares.Uma das maiores violncias criadas pelo luso-tropicalismo no foi querer impor ao Brasil uma essncia de ser luso. Foi, embora admitindo para o Brasil a herana ndia e para Portugal a herana rabe, excluir das ex-colnias africanas a sua histria pr-colonial. Ora, a expresso mais perversa da lusofonia a amnsia sobre o passado pr-colonial dos pases africanos ou de Timor e, de algum modo, a repetio dessa expresso do colonialismo que foi "a descoberta" destes povos - que s passaram a ter histria no momento em que os "descobridores" os encontraram. A lusofonia , pois, a ltima marca de um imprio que j no existe. tambm um impedimento a um trabalho adulto sobre as mltiplas identidades de quem vive em Portugal.Para l dos seus contornos coloniais, a lusofonia tem o efeito de uma epistemologia negativa: impede que se entenda que a razo da criao de comunidades de pases tem por base interesses polticos e econmicos, bem como jogos de partilha territorial. tambm assim com a francofonia, a Commonwealth, o G8 e o G20.Foi por causa destarealpolitikque Lula da Silva, enquanto Presidente do Brasil, estabeleceu parcerias econmicas Sul-Sul com a maioria dos pases subsarianos. Para esta estratgia, a lusofonia pouco importou: o argumento cultural foi a africanidade comum (outro mito, naturalmente).Quanto aos outros pases cuja lngua oficial o portugus, no nos resta se no admitir que produzem as suas pesquisas e trabalhos sobre as suas identidades. Se a presena dos estudos portugueses e da literatura quase residual nas universidades destes pases, isso no ocorre por falta de lusofonia mas sim por haver um excesso dessa caricatura da produo cultural portuguesa exportada que tem o nome de "Cultura Lusfona".Os portugueses no tm nenhum atributo de excepcionalidade mtica. No precisamos de uma diplomacia lusfona; do que precisamos de uma diplomacia de direitos e de igualdades. Este o momento de conhecer e dar visibilidade s produes culturais e artsticas, s literaturas e aos trabalhos cientficos destes pases por aquilo que valem, por serem incontornveis no mundo global, por conterem, at, uma estranheza que , porventura, consequncia da morte dessa mesma lusofonia.A lusofonia como retrato de famlia numa casa mtica comumFotografias deSeydouKeita1O discurso colonial hegemnico da ditadura do Estado Novo no desassociou a lngua da representao e da narrativa do processo de construo imperial. Partindo da anlise de um dos rgos mais importantes da propaganda colonial salazarista, inquirimos sobre as formas de representao apotetica da lngua como expresso do sentido colonizador portugus e a consequente sacralizao da ideia de atrelar as ento colnias esfera de uma tradio expressa pela cultura da lngua. Subsequentemente, problematizamos os discursos sobre a lusofonia, tendo em ateno quer os usos que a memria colonial ganha na reconstituio parcial da verso ps-colonial da identidade nacional portuguesa, como tambm as ambivalncias e contradies entre a ideia de uma suposta identidade lusfona e a fora de outras memrias inerentes s representaes identitrias dos diferentes interlocutoreslusfonos.

A lusofonia, ou a ideia de uma comunidade lusfona, constitui o exemplo paradigmtico da forma como os processos de construo e de representao identitria transportam sempre determinadas noes que buscam legitimar a discursividade subjacente imagem daquilo que se pretende patentear.Isto significa que, quando imaginamos a ideia de comunidade lusfona, no podemos dispensar duas das principais coordenadas inerentes ao processo de representao identitria: o tempo e oespao.Mesmo quando reconhecemos que estas coordenadas esto, directa ou indirectamente, inerentes a quase todos os sistemas de representao identitria, parece pertinente salientar que neste contexto particular, elas ganham uma dimenso particularmente expressiva naquilo que constitui a combinao retrica dessas duas coordenadas no prprio processo discursivo de representao da ideia de lusofonia ou de comunidadelusfona.Neste caso, o tempo (enquanto memria) constitui a categoria a partir da qual os discursos sobre a lusofonia ancoram para tentar legitimar a historicidade inerente ao processo de formao daquilo que hoje se denomina por comunidade lusfona. Isto significa que a verso actual daquilo que se props designar por lusofonia se inscreve discursivamente numa temporalidade intencionalmente insuflada pela memria histrica das relaes tecidas em tempos de colonizao entre Portugal e as suas antigas colnias: da a sacralizao do tempo dessa memria e da memria (actual) desse tempo, como instrumento essencial, passvel de construir uma narrativa caracterstica e legitimadora dos discursos celebratrios da lusofonia e da ideia de comunidade lusfona. Por isso, aqui, o tempo funda e outorga a sua dimenso referencial como uma das coordenadas do sistema de representao daquilo que constitui a lusofonia, ao mesmo tempo que funde sub-repticiamente as continuidades e as metamorfoses que a contemporaneidade ps-colonial e ps-independncia imprimem (aparentemente) como discurso de ruptura com o tempo da representaoimperial.A segunda coordenada a que aludimos (o espao), para alm de materializar o contexto da representao, constitui por excelncia um instrumento de fixao das referncias geogrficas e identitrias da comunidade que se pretende representar, tendo em conta a aparente articulao que se pode estabelecer tanto por referncia lngua, como instrumento de partilha, como tambm por referncia ao mito da ideia de uma histria comum. Neste contexto, tanto a lngua como a memria histrica aparecem imbudas de um alcance susceptvel de suportar a definio de uma aparente unidade; uma unidade no menos paradoxal e contraditria, tendo em conta a disperso territorial e continental dos vrios espaos que preenchem a geografia da designada comunidade lusfona e as especificidades scio-culturais e os contextos sociolingusticos intrnsecos historicidade que caracteriza a formao identitria de cada um desses espaos. Por isso, perante este quadro, a construo da coordenada espacial a partir da qual se imagina a ideia de uma comunidade lusfona opera tanto na sua dimenso demarcatria (ao estabelecer a lngua como pauta fundamental de pertena), como tambm nas suas funcionalidades como espao imaginrio. Um espao imaginrio que, contudo, no pode ficar imune ao questionamento, sobretudo quando os discursos que animam a imaginao de pertena ficam insuflados somente pela propalada retrica de uma lngua partilhada e pelo mito simplificador de uma histriacomum.Os discursos celebradores da lusofonia e da ideia de representao de uma comunidade lusfona so profundamente tributrios daquilo que constitui a memria histrica e colonial do imprio. Alis, no podemos perder de vista que a representao cartogrfica desta ideia de comunidade pisa e reproduz, praticamente, os mesmos permetros dos espaos que enformavam a geografia imperialportuguesa.Estamos assim perante os novos desdobramentos ps-coloniais que a discursividade da memria do antigo imprio colonial portugus ganhou com os novos discursos e contedos que lhe foram insuflados para servir de blsamo, tanto na forma de reconstruo da nova verso da identidade nacional portuguesa (aps 1974), como tambm na reelaborao da nova geografia imaginria (lusfona), susceptvel tambm de alojar as antigas colnias sob o manto de um mesmo legado que as atrela de forma umbilicalmente transversal a Portugal: alngua.No Portugal contemporneo, a reflexo sobre a identidade nacional esteve sempre presente e desenvolve-se em mltiplas direces aps a queda do imprio (1974-75) [Matos 2002: 123]. Neste sentido, a inveno da lusofonia no deixa de figurar como uma parte da verso da identidade nacional e, simultaneamente, uma espcie de frmula alegrica de projeco do futuro, sem poder deixar de imaginar o passado de Portugal como antiga potncia imperial e nao colonizadora. Da que, mais do que propriamente uma forma catrtica de exorcizao dos fantasmas imperiais, a sua inveno e a ideia de comunidade lusfona funcionam como uma das verses reconfiguradas e reformatadas da mitologia de vocao imperial que, at derrocada do Estado Novo salazarista em 1974, sempre alimentou o discurso profundamente nacionalista da identidade nacional portuguesa. Esta assero est bem patente na forma crtica como Eduardo Loureno problematizou a questo das imagens que a aventura colonial portuguesa impregnou na conscincia nacional e a nova tentativa de converso e de readaptao dos novos mitos para animar a identidade nacional: As contas a ajustar com as imagens que a nossa aventura colonizadora suscitou na conscincia nacional so largas e de trama complexa demais. A urgncia poltica s na aparncia suprimiu uma questo que tambm na aparncia o pas parece no se ter posto. Mas ele existe. Querendo-o ou no, somos agora outros, embora como natural continuemos no s a pensar-nos como osmesmos, mas at a fabricar novos mitos para assegurar umaidentidadeque, se persiste, mudou de forma, estrutura e consistncia [Loureno 2007:116].Para alm das verses (re)fundadoras de carcter revolucionrio que, depois de Abril de 1974, acompanham a reconfigurao da imagem de Portugal e das suas antigas colnias africanas, o discurso da lusofonia no representa exclusivamente a metamorfose polida da antiga vocao pretensamente imperial da nao portuguesa. Ele atesta tambm a plasticidade da memria e as diferentes apropriaes que as diversas formas discursivas de uma mesma memria ganham, de acordo com as funcionalidades polticas que se lhes incumbem decumprir.Qualquer problematizao da temtica em anlise no pode perder de vista as duas coordenadas essenciais sobre as quais assenta, directa e indirectamente, a representao da lusofonia ou da comunidade lusfona. Sub-repticiamente, o tempo e o espao aparecem como categorias importantes de legitimao do prprio discurso da lusofonia primeiro, pela inscrio numa memria histrica; segundo, pela possibilidade de mapear geograficamente os pontos dispersos da cartografia que configura a ideia de uma pretensa comunidade lusfona. Este facto no s atesta bem a importncia que o tempo e o espao ganham como categorias da narrativa de representao identitria, como tambm corrobora a ideia segundo a qual diferentes pocas culturais engendram, politicamente, diferentes formas de combinar essas mesmas coordenadas espcio-temporais [Hall 2006: 70]2. Uma combinao que, por sua vez, no deixa de animar a ideia de uma certa geografia imaginria (lusofonia, comunidade lusfona), a partir das representaes aliceradas nas narrativas do passado e que permitem reelaborar e readaptar velhos mitos como forma de conciliar a memria imperial e colonial com o presente e o futuro e, consequentemente, continuar a nutrir o velho aforismo j conhecido sobre o papel e o lugar de Portugal nomundo.Portanto, se a ideia de lusofonia reivindica um tempo e um espao a partir do qual se torna possvel imaginar uma suposta comunidade lusfona, na verdade a discursividade poltica a ela associada no deixa de ser tambm tendencialmente convocadora da necessidade de todos se reconhecerem numa mesma geografia imaginria, uma geografia imaginria que tambm no deixa de ser tributria de um tempo e de um espao que, outrora, foram inscritos na identidade nacional portuguesa e que permitiu imaginar o imprio. Por isso, a retrica da lusofonia e de uma comunidade lusfona busca, em parte, dar sentido a uma identidade que se imagina inscrita num tempo e num espao especficos, validando a tese segundo a qual todas as identidades se inscrevem e recorrerem a uma ancoragem num tempo e num espao simblicos [Hall 2006:71].O discurso colonial e o elogio da lnguaAqueles que nunca atravessaram os desertos e os matos da frica no podem compreender nem sequer imaginar como se dilata o corao de Portugal dentro do peito quando se aproxima de ns, do fundo da Donguena ou dos imbondeiros do Xipelongo, um pequenino preto que nos pergunta com graa ingnua: O si pass bm?[Boletim Geral das Colnias 1939: 26]3.A partir das consideraes propeduticas anteriormente explicitadas, propomo-nos agora a fixar sucintamente a forma como o discurso colonial no deixou de manifestar a sua posio apologtica quanto necessidade de atrelar a lngua misso colonial e civilizadora que se inscrevia no esprito imperial do Estado Novo salazarista, sob a retrica de fazer cumprir o mito da essncia orgnica de Portugal como nao. Assim, colonizar e civilizar eram propaladas como partes intrnsecas da essncia orgnica de Portugal, como nao imperial que no se coibia de desempenhar uma funo considerada histrica. Por isso, por referncia ao mito da essncia orgnica, a colonizao e a aco de civilizar os indgenas parecia conferir sentido prpria razo de ser de Portugal: da a sacralizao da ideia de imprio como alegoria e metfora da histria de uma nao emmovimento.Contudo, no podemos deixar de salientar que colonizar e civilizar so concepes que j de per si transportam uma dimenso poltica hegemnica e que se instalam como noes que estabelecem os lugares e as hierarquias das relaes de poder (colonizador/colonizado) em contextos dedominao.Apesar de serem categorias que o discurso colonial veicula dissimuladamente como noes imbudas de uma certa dimenso libertadora e emancipatria, elas acabam por mascarar uma parte importante do poder colonial e do prprio colonialismo, na medida em que fazem com que estes se tornem aparentemente legtimos e tolerveis de acordo com o que conseguem ocultar dos seus mecanismos de dominao. A fachada aparentemente libertadora que elas veiculavam inscreve-se naquilo que alimentava o discurso colonial e o prprio colonialismo como sistema (pretensamente) legtimo de poder e tambm como necessidade imprescindvel e inquestionvel da razo da fora civilizacional que alojava numa suposta fora da razo histrica portuguesa.Um facto no menos importante a considerar na anlise do processo colonial pode ser tambm identificado na forma como determinadas posies aparentemente valorativas da cultura ou da realidade indgena so discursivamente concebidas por mera referncia aos intentos hegemnicos de um colonialismo que, por todos os meios, se queria actuante. Com isso queremos dizer que a identificao de determinados elementos indgenas (como a lngua, por exemplo) e a tentativa da sua incorporao numa prtica colonial no correspondia a um processo de reconhecimento valorativo da diferena, mas sim o estabelecimento de funcionalidades supostamente cientficas de um saber colonial posto ao servio da prpria dominao: conhecer para dominar. Da que o que estava em causa era, fundamentalmente, afirmar a subalternidade do indgena mediante a celebrao real e simblica do prestgio de quem, pelo conhecimento da lngua, soube lidar com os pretos, conquistando sempre a mais respeitosa submisso [B.G.C. 927: 39]. Por esta razo, no faltaram posies fundamentadas sobre a importncia do conhecimento, por parte dos funcionrios coloniais, da lngua verncula da colnia onde iam exercer as suas funes, como forma de propagar a luz da civilizao na escurido da barbrie, que se imaginava caracterizar o primitivismo dos espaos coloniais africanos. Por exemplo, em 1927, esta perspectiva fi cou asseverada por um tipo de discurso tendencialmente salvfico e laudatrio que se traduzia nos seguintestermos:Eis a divisa da nossa nobre cruzada, cuja finalidade gigantesca Rasgar ao mundo as trevas em que ainda hoje se envolve a frica, abrir mil veredas por onde possa caminhar avante a roda do progresso; lanar a luz brilhante da instruo nos crebros obscuros dos seus habitantes, ensinar-lhes os sos princpios da sociabilidade, do trabalho e da moral crist. Os executores e dirigentes natos dessa cruzada () so os nossos funcionrios coloniais, que pela sua inteligente tcnica administrativa, sero de certo merecedores de louvor; e por isso para eles que vai o testemunho sincero das minhas saudaes, lembrando que um dos valiosos factores da colonizao portuguesa em frica como em toda a parte, foi desde os seus primrdios o conhecimento das principais lnguas do qual resultou a prtica de saber lidar com os naturais.[B.G.C.1927:37].

Apesar desta celebrao laudatria da gesta imperial portuguesa, esta assero antecipa aquilo que viria a ser posteriormente posto em relevo pelo Estado Novo salazarista sobre a especifi cidade da colonizao portuguesa, caracterizada fundamentalmente pela existncia de uma suposta disposio ou forma de estar tipicamente portuguesa na relao com os povoscolonizados.O elogio da lngua vinha sempre embalsamado por um discurso de pendor colonial, que reforava cada vez mais o nacionalismo imperial salazarista por referncia ao que se considerava ser a continuidade dos registos dos tempos gloriosos da gesta portuguesa da navegao pelos mares, da descoberta de terras e das batalhas vencidas nas diversas partes do globo. Por isso, no se obstava de propalar sistematicamente o lugar de Portugal no mundo como potncia colonizadora, difusora dos valores da civilizao e nao digna de nome no registo do livro da Histria que serve de lio para a humanidade, uma vez que se encontram ali registados em caracteres inapagveis esses picos feitos de um povo colocado na parte mais ocidental da Europa, e que pela sua singular caracterstica de colonizador, soube tornar-se grande, servindo de mestre e guia aos outros povos, que apareceram depois dele e trilharam pelos caminhos por ele aplanados [B.G.C. 1927: 24-25]. Assim, entre os feitos da colonizao, elogiava-se a rara capacidade portuguesa de integrao de indivduos nos usos e costumes portugueses, falando at a nossa lngua, e na boa-vontade com que acederam a essa transfigurao social, que at hoje, em terras que j no so nossas, no seu convvio particular se fala o portugus e com certo orgulho! [B.G.C. 1928: 216]. Ainda a corroborar a tese do elogio, encontramos tambm a forma como, por referncia lngua, se procurava reportar memria simblica que articula Portugal com o Brasil e com as colnias africanas, principalmente Angola, para onde seriam canalizados os esforos patriticos da misso civilizadora: a irrigar aquelas terras sedentas com a gua lustral da nossa civilizao, da qual esta lngua, que falamos, uma das mais vivas, das mais fortes e das mais palpitantes expresses [B.G.C. 1931:213].Nesta senda, a ideia de grandeza da misso colonizadora e civilizacional no podia dispensar a apologia da lngua. Isto no significa que se estava perante um programa poltico e cultural estruturalmente definido e enquadrado no mbito do projecto imperial, mas to-somente no mbito propagandstico e apologtico sobre a necessidade de no se desconsiderar a defesa da lngua, tanto como forma de reconhecimento dos vestgios de uma civilizao que se encontrava em todos os continentes [B.G.C. 1935: 159], como tambm de engrandecimento de Portugal como ptria e potncia colonial. Por isso, a apologia da lngua inscrevia-se no mbito de uma propaganda tributria da ideia de mant-la atrelada ao imprio: mais do que fazer imperar as suas funcionalidades no contexto da colonizao como um dos factores que mais contribui para os estreitos entendimentos dos colonizados e dos colonizadores, ao indgena devia ser ensinada a lngua para que ele a compreenda bem, e ensinar-lhe o melhor possvel, de modo a aprend-la e a divulg-la. Contudo, no podemos deixar de considerar que a apoteose discursiva desta assero assentava em duas premissasfundamentais.A primeira, de carcter nacionalista, que acentuava a necessidade de reconhecimento do valor cimeiro da lngua: s depois dela vm os costumes, o orgulho das tradies, numa palavra, a ptria; a segunda, de carcter colonial, arreigava no mito assimilassionista de inculcar ao indgena o verdadeiro sabor da lngua [B.G.C. 1935: 186-187]. Por um lado, parece fcil reconhecer que estamos perante posies discursivas que se ancoram no mbito da propagao da importncia superior da lngua como principal preocupao de quantos pretendem fazer grande a Nao; por outro lado, alimentava-se a crena na possibilidade de elevao progressiva do indgena civilizao e a sua consequente libertao da barbrie que se imaginava caracterizar os nveis de primitivismo resultantes do desconhecimento da lngua dacivilizao.Neste nvel problemtico, parece pertinente no negligenciar a forma como a lngua foi atrelada ideia de resultado que se fazia revelar por mera consequncia da aco colonial dos obreiros da grandeza da Ptria [B.G.C. 1939: 23] e do imprio (marinheiros, militares, fazendeiros, missionrios, mercadores). Assim, pensava-se que a partir da misso colonial especfi ca de cada uma destas categorias, a lngua se realizava e se revelava, automaticamente, como valor de civilizao: neste contexto que se exorta ao empenho da sua difuso como correlato da incumbncia caracterstica do trabalho de cada obreiro, por se considerar que no havia benefcio to grande que se possa fazer a um povo, como a difuso da sua lngua, pela qual domina sobre tudo a supremacia da raa [B.G.C. 1939:25].Esta posio no s buscava corroborar a pretensa vocao apostlica de Portugal como potncia colonizadora, como tambm pretendia validar o poder hegemnico sobre a qual se aspirava afirmar a sua suposta superioridade. Da que qualquer posio nacionalista se revelava legtima, sobretudo quando se tratava de defender a lngua, seja por meio de perspectivas propagandsticas, seja por meio de posies polticas supostamente susceptveis de anular e exorcizar os efeitos aparentemente perversos que se imaginava resultarem da adopo ou da colagem de noes estrangeiras. Estas eram vistas como fortssimos atropelos forma portuguesa e uma sensvel manifestao de mau gosto que no deixava de ferir o bom ouvido portugus: O uso da lngua estrangeira nem sequer merece serdiscutido.No h interesse que o expliquem nem aprumo patritico que o admita. Trata-se, simplesmente, duma incompreenso doentia da nossa funo na colnia, possivelmente baseada em fantasiosas razes de ordem comercial [B.G.C. 1940: 107-108, B.G.C. 1941:90].Por exemplo, em 1940, na ento colnia de Moambique, podemos identificar algumas referncias relativas quilo que as autoridades coloniais consideravam ser estrangeirismos, manifestos na troca deselegante do nome com o atributo, cujos exemplos estavam patentes nalguns casos tpicos como nomes de edifcios ou estabelecimentos. Na altura, uma das propostas centrais estabelecia o uso da lngua portuguesa, em nomes de edifcios, tabuletas, cartazes, marcas de fbricas e de comrcio nacionais, listas de mesa de hotis e restaurantes, e, bem assim, em todos os letreiros de carcter mais ou menos fixo e de leitura instintivamente forada para quem passa [B.G.C. 1940: 107-108 & B.G.C. 1941: 90]. Tudo parecia justificar a ordenao de disposies que o culto, a pureza e o prestgio da lngua portuguesa exigiam, no sentido de combater aquilo que parecia ser presena de estrangeirismos desnecessrios na linguagem local, como se podia testemunhar pelo desinteresse ou falsa comodidade de quem desprezava os abundantssimos recursos do vocabulrio portugus em detrimento do uso daquilo que se considerava ser o barbarismo dos que frequentemente utilizavam a designao tiqueta (do inglsticket) para designar o carto em que se registavam os dias de trabalho dos trabalhadores indgenas. Por isso, alertava-se para alguma ateno nos documentos oficiais e para a firmeza no combate oportuno ao que consideravam ser vcios sustentados por ignorncia, desleixo ou teimosia do exterior. Sendo assim, os Servios Pblicos poderiam tornar-se numa verdadeira escola de proteco da dignidade intrnseca da lngua, considerada ento como o mais permanente e um dos mais caractersticos sectores do verdadeiro nacionalismo portugus. Nesta ordem, ficou superiormente determinado pelo ento Governador-geral daquela colnia, o General Tristo de Bettencourt, que a designaotiqueta, abusivamente dada a cartes de trabalho indgena, fosse suprimida da linguagem oficial. Tudo isso para que seja defendida, naquele recanto do imprio, a riqueza, preciosa e autnoma, daquilo que se considerava ser uma aquisio de sculos: o patrimnio lingustico portugus [B.G.C. 1941: 141-143]4. Esta aco tanto vinha ao encontro do nacionalismo imperial que fundamentava a necessidade de legitimao e renovao constante da presena portuguesa nas colnias,como tambm reflectia a ambio de fazer reproduzir Portugal em todas as latitudes do imprio: Tudo quanto de qualquer modo propague e robustea, na Colnia, o esprito nacional constitui obra salutar da nossa presena e afirmao consistente dos nossos direitos [B.G.C. 1941: 90, B.G.C. 1940:107].Numa anlise rigorosa, parece fcil diagnosticar a forma como o discurso colonial investe a lngua de uma dimenso essencialista, uma vez que a sua imposio revelava o sentido colonizador de um povo que tambm atravs dela projectava a sua prpria alma. Da a sua importncia como factor espiritual que determinava a linha demarcatria entre a simples ocupao e a verdadeira colonizao, tal como se manifestava naquilo que se imaginava ser a capacidade de irradiao da lngua portuguesa e a sua resistncia, em todas as latitudes, entre os povos e os climas mais exticos. Neste sentido, a lngua corroborava a verdadeira vitria colonizadora por se revelar como uma espcie de vitria sobre o espao e sobre o tempo, tanto no domnio da terra como tambm na penetrao nas almas. Por isso se insistia na necessidade de no desvincular as colnias e os seus povos do sangue e da tradio expressa pela cultura da nossa lngua. Estamos assim perante uma forma celebradora do elogio da lngua e da saudao daquilo que se imaginava ser o sentimento ecumnico e o franciscano amor pelas gentes e culturas de outras latitudes, manifesta nesta capacidade nica de Portugal se perpetuar noutros povos [B.G.C. 1942: 114-115, B.G.U.51951:119].Contudo, quando elevamos a problemtica para uma dimenso mais crtica, no podemos perder de vista que, fora dos discursos propagandsticos, o manuseamento da lngua constitua um dos requisitos impostos para o reconhecimento do nvel civilizacional do indgena. Por esta razo, o enaltecimento da irradiao e defesa da lngua portuguesa nas colnias no deve passar imune a uma problematizao dos limites da sua real apropriao por parte dos indgenas, sobretudo quando tomamos em considerao que as determinaes superiores de 1954 exigiam, entre outras condies, que o indgena falasse portugus para que lhe seja reconhecido o direito de cidadania [B.G.U. 1955:393].Para alm desta dimenso supostamente valorativa da condio social e identitria do indgena, a propaganda no dispensou tambm a celebrao do portugus como lngua franca sem a qual teriam sido difceis os contactos das naes europeias com os outros povos; da a sua representao como veculo a partir do qual se estabeleceu o entendimento entre o Oriente e o Ocidente e como veculo do pensamento que serviu os interesses espirituais e mercantis da Europa, bem como o interesse comum da Humanidade nos diferentes continentes: Tanto a frica, como o Oriente, como o Brasil, como a Oceania, receberam de Portugal mais de que de outro pas o patrimnio da nossa lngua culta [B.G.U. 1958: 326]. Parece inequvoco que esta ideia de patrimnio ou de legado portugus suportava perfeitamente a concepo de uma geografi a imaginria a partir da qual se poderiam anexar as diversas periferias (antigas e ento colnias) na rbita de uma lngua que permitia imaginar e identificar Portugal como centro [Ribeiro2004].Ou seja, por referncia lngua tornou-se possvel imaginar o imprio, elaborar a narrativa da sua construo, situar os lugares onde ela se arraigou e, por fim, incorporar estes mesmos espaos numa representao que os atrelava directamente a Portugal. Este, durante o salazarismo, no deixou de incorporar e reelaborar imagens discursivas que beneficiavam a sua representao como nao de obra colonial manifesta na forma como se reproduzia nas diversas extenses do seu ento mundo colonial. Por exemplo, a imagem de Portugal como nao geografi camente pluricontinental, poltica e humanamente multirracial [Torgal 2002: 147-165] que, a partir da dcada de 1950, se instala discursivamente, estabelecendo-se como a nova metfora nacional e imperial, transportava tambm, directa e indirectamente, a ideia de uma suposta comunidade tambm passvel de ser representada atravs da memria da lngua. Alis, a sua disseminao geogrfica pelos diferentes espaos continentais e a possibilidade de identificao de um universo de falantes corroborava a formatao da ideia de uma comunidade imaginada a partir da lngua [B.G.U. 1965:118-119].Vrios so os registos que a partir da dcada de 1960 testemunham aces tendencialmente estruturadas e intencionalmente definidas no sentido de elaborar e fomentar a sedimentao do imaginado mundo portugus que se queria tanto como comunidade efectiva, como tambmafectiva.Nesta senda podemos identificar, por exemplo, a proposta lanada para a realizao, em 1961, dosJogos Desportivos do Mundo Portugus, a realizao doI Congresso das Comunidades de Cultura Portuguesa, em 1964, ou ainda a identificao da necessidade de uma maior expanso da lngua ptria no Ultramar. Fora da sua dimenso ldica, osJogos Desportivos do Mundo Portuguspretendiam encenar uma sensacional e empolgante afirmao de unidade da Raa e da Ptria atravs da congregao da juventude portuguesa de toda a parte da Nao e do mundo portugus, numa larga e nobre exibio nacional que testemunharia a fidelidade e a conscincia que vinculava todos os portugueses. Ao tentar diluir discursivamente as fronteiras da diferena (quaisquer que sejam as diferenas de cor, de religio), convocava-se sub-repticiamente para a celebrao da ideia de uma suposta unidade que se queria suprema, reveladora da presena viva da perenidade nacional e da imortalidade triunfal da Raa. Esta celebrao desportiva seria um desfile da juventude portuguesa, unida no estmulo da mesma competio fsica, numa s alma e num s nome; ao mesmo tempo, seria tambm a alegoria de uma verso da identidade nacional e imperial portuguesa, veiculada em forma de espectculo. Da a representao da juventude do mundo portugus como depositria de uma expresso de solidariedade e de um sentido de continuidade daquilo que se considerava ser a alma e o destino nacionais [B.G.U. 1961:215-217].Entretanto, independentemente dos contornos reais da sua realizao, para o propsito do presente texto, no podemos perder de vista a necessidade de problematizar e identificar as funcionalidades polticas subjacentes s propostas discursivas que alimentavam estas imagens e a forma como elas se inscrevem (com todos os seus efeitos momentneos e os seus desdobramentos posteriores) na construo de representaes postas ao servio das demandas (reformadoras ou fundacionais) de um tempoespecfico.O segundo registo a que nos aludimos I Congresso das Comunidades de Cultura Portuguesa(realizado de 8 a 16 de Dezembro de 1964, sob o patrocnio da Sociedade de Geografia de Lisboa) constitua o reflexo inequvoco da tentativa de fixao de uma espcie de comunidade decultura.Uma comunidade em parte imaginada a partir de uma certa forma de essencialismo, manifesta na concepo do portuguesismo que se pensava trespassar todas as comunidades de cultura portuguesa, sacralizando assim o mito da ideia de uma solidariedade filiada neste portuguesismo e o mito do modo portugus de estar no mundo, firmado por todas as parte (ao redor da terra) e por todos aqueles que, de algum modo, estavam fi liados nesse mesmo portuguesismo. Uma filiao reivindicada tambm por referncia concepo da ideia de uma matriz portuguesa estabelecida em terras alheias que, tambm merc da maneira portuguesa de viver, implantou nos trpicos comunidades de raiz portuguesa com o seu milagre do homem novo, o homem luso-tropical, depositrio cultural da civilizao portuguesa e produto de um povo de misso [B.S.G.L.61964: 358, Moreira 1964: 275]. Importa referir ainda que o referido congresso no se centrava exclusivamente nos espaos do ento mundo colonial portugus, mas tambm alargava a sua abrangncia representativa a outros espaos de emigrao portuguesa. Contudo, o mago da questo estava focalizado na tentativa de afirmao valorativa de uma determinada concepo de comunidades de cultura e lngua portuguesa e na tentativa de fortalecimento de laos (biolgicos, tnicos, lingusticos, religiosos e culturais) tributados por todos osluso-descendentes.Como corolrio do primeiro congresso ficou oficialmente instituda, em Dezembro de 1967, a Unio das Comunidades de Cultura Portuguesa, designada como uma instituio privada, internacional e apoltica, que tem por fim promover e assegurar as relaes e a cooperao das associaes, grupos e indivduos que estejam ligados ou se interessam pela conservao e propagao da cultura portuguesa [B.S.G.L. 1964: 399]. neste mesmo trilho de inclinao tendencialmente luso-tropicalista que entre 12 e 22 de Julho de 1967 foi realizado em Moambique oII Congresso das Comunidades de Cultura Portuguesa, com a participao de mais de mais de 180 personalidades dos diferentes pontos do mundo onde se fala a lngua portuguesa, de entre eles o apstolo do luso-tropicalismo, Gilberto Freyre [B.G.U. 1967:157-187].Do terceiro registo referido, importa salientar o diagnstico da Sociedade Portuguesa da Lngua quanto necessidade de expandir a lngua ptria no ento ultramar atravs da nomeao dos seus delegados nas diferentes colnias e da criao de ncleos regionais de estudo tambm para a recolha de material lingustico das lnguas locais. A Sociedade era defi nida como uma associao cultural, de carcter eminentemente popular, criada em 1949 com sede em Lisboa, mas que tambm mantinha contactos com as colnias. Contudo, parecia cada vez mais premente a mediao desse contacto com os espaos coloniais atravs do trabalho de divulgao que o seu boletim poderia ter na difuso da lngua por intermdio das autoridades militares ou dos padres das misses que ali se encontravam a prestar servio. Outrossim, no se podia dispensar a importncia assistencial e educativa das misses junto das populaes, sobretudo quando se considera que, atrelado s suas actividades especficas, estava sempre presente o trabalho propedutico do ensino e da difuso da lngua [B.G.U. 1969: 211-213, B.G.U. 1970:157].Portanto, a partir deste inqurito sobre a problemtica da lngua podemos facilmente diagnosticar a forma como ela esteve atrelada ao discurso colonial posto ao servio da sacralizao do imprio e da reivindicao de uma suposta vocao portuguesa de carcter missionria, ecumnica e, em certa medida, universal e universalizante. Atravs do mapeamento das formas discursivas elaboradas pelo discurso colonial e colocadas em evidncia directamente pela propaganda glorifi cadora da ideia e da representao do imprio, parece plausvel insistir na dimenso laudatria atribuda lngua na narrativa colonial e, consequentemente, nos efeitos que a apoteose do seu elogio (enquanto mecanismo de dominao) desencadeou na colonizao do imaginrio, por aluso fora da incumbncia pretensamente salvfica que lhe foi investida como elemento imprescindvel na validao do nvel civilizacional do colonizado. Ao celebrar o imprio, o elogio da lngua representava-a ostensivamente como lngua do imprio, afirmando assim a prpria lgica hegemnica que alimentava o imprio dalngua.Os mitos da lusofonia: entre as malhas da lngua e as memrias doimprioPortugal, deve ser uma solidariedade viva em quatro partes da terra: como se esta fsse a prpria fonte da vida nacional, tdas as populaes portuguesas tero de ajudar-se e proteger-se mtuamente, porque a tdas a mesma bandeira cobre e a mesma lngua tem de embalar [B.G.C. 1932:7].Para alm de corresponder matriz etimolgica que lhe devolve o significado semntico, a lusofonia veicula tambm noes que a investem de uma dimenso afectiva, por se ancorar no discurso celebrador da existncia de laos afectivos entre Portugal e as suas ex-colnias, fundamentalmente por referncia ideia de uma lngua comum. Apesar de se pretender veicular uma realidade passvel de ser percepcionada como comunidade de lngua, o discurso da lusofonia convoca e anima, em certa medida, a dimenso sentimental que permite insuflar a imaginao da mesma como comunidade de afectos. Em tese, as comunidades de pertena so tendencialmente projectadas de forma real e simblica como espaos de afectos. Neste caso, a representao da lusofonia (enquanto comunidade de lngua) no podia dispensar o trabalho de convocao dos afectos como suplemento capaz de fazer irrigar o sentimento de identificao e de pertena. Estamos assim perante um processo que no deixa de revelar as metamorfoses que os usos da memria histrica ganham em funo das pocas e de acordo com as funcionalidades polticas e discursivas que lhes so incumbidas decumprir.

No podemos negar que, no contexto da representao da lusofonia, a convocao dos afectos feita por referncia histria, ao passado: a um passado que sub-repticiamente convocado para ser imaginado como uma espcie de meta-histria cuja narrativa poder tornar possvel o reconhecimento de um passado comum. Para alm dos processos discursivos que indirectamente sobrevalorizam esta narrativa celebradora da lusofonia, parece tambm possvel diagnosticar o prprio uso da histria como uma espcie de blsamo com o qual se pode cingir uniforme e homogeneamente todos os antigos espaos coloniais onde ainda se fala o portugus. Neste contexto, como se a simples reivindicao de uma histria ou de um passado comum legitimasse automaticamente a concepo de uma comunidade que permite a insero dos diferentes povos que falam o portugus numa cadeia de filiao identitria homognea. A retrica de um passado comum enquadra-se perfeitamente nas estratgias discursivas impostas pela necessidade de uma nova forma de representao da histria e, subsequentemente, pela tentativa de insuflar o passado subjacente a essa histria como uma espcie de campo comum ou reflexo a partir do qual todos se reviam analogamente na mesma imagem. como se uma espcie de frmula sinttica passado comum revelasse susceptvel de aglomerar as memrias e as diferentes formas de representao do passado que d forma e contedo a essas mesmas memrias. Por isso, quando a imagem da lusofonia fica atrelada somente explicitao simplista da ideia de passado comum, ela simplesmente corrobora a sua prpria inscrio no processo da escrita de uma nova forma de representao identitria, com todos os reflexos perversos e os seus segredos de invisibilidade a elasubjacentes.Independentemente de qualquer tentativa de conceber a lusofonia a partir do aforismo da lngua e de um passado comuns, no podemos negligenciar que as diferentes sociedades que formam o universo lusfono revelam, todas elas, diferentes formas de lidar com a mesma representao. Isto significa que, nas antpodas da noo de lusofonia podemos diagnosticar os paradoxos inerentes sua representao, tendo em conta a importncia atribuda s memrias nacionais de cada um dos pases do espao lusfono na animao das suas representaes identitrias e nacionalistas. Sendo assim, a dimenso afectiva que a lusofonia convoca no pode estar imune ao questionamento. Os limites da sua apropriao so tambm moldados pela interferncia e sobreposio de outras referncias que so indexadas tanto no reportrio da memria oficial nacional e nas representaes do imaginrio colectivo de cada um dos pases como tambm na concepo das representaes sociais e individuais da identidade dos sujeitos ou grupos que pertencem ao designado espao lusfono. Mesmo quando a problemtica da imagem da lusofonia deslocada para o campo das representaes sociais ou individuais, ela no incorporada com o mesmo significado na estruturao real e simblica das representaes identitrias dos diferentes sujeitos. Por exemplo, dos resultados de um estudo sobre a lusofonia e as representaes sociais de portugueses e de africanos, Joaquim Valentim [2003: 146] salienta oseguinte:Mas se a lusofonia se mantm como um princpio organizador das representaes sociais dos portugueses, no h concordncia entre os portugueses e africanos a esse respeito: os portugueses valorizam-na, os africanos rejeitam-na.Dito de outro modo, a este nvel, a valorizao da lusofonia no encontra correspondncia da parte dos africanos que so, em boa medida, interlocutores por excelncia dessa lusofonia. Mais ainda, os africanos no s manifestam uma posio contrria dos portugueses em relao lusofonia, como a importncia que atribuem sua identidade tnico-nacional se encontra associada negativamente valorizao da dimenso lusfona nas representaes das semelhanas dos portugueses com outrospovos.Sendo assim, podemos reforar ainda que a dimenso valorativa da lusofonia tributria da forma como esta assumida por cada um dos pases e, sobretudo, como ela mais incorporada ou menosincorporada nas representaes da imagem e da prpria identidade de cada um deles. Em parte, esta maior ou menor incorporao resulta tambm da maior ou menor fora da memria do lugar hierrquico que, em tempos de colonizao, mediava as relaes de poder entre Portugal as suas colnias.Por outro lado, no podemos descurar os efeitos perversos que as representaes hierrquicas (colnias/metrpole) postas em destaque pelo colonialismo, tm no condicionamento das modalidades de incluso e de assuno plena de determinados legados, como todos os seus refl exos de visibilidade que se lhe podia atribuir. Esta assero cada vez mais pertinente quando conseguimos observar que a matriz da lusofonia se funde sobre a ideia de um legado do qual Portugal foi o grande depositrio: mesmo quando no se celebra directamente, ela acaba sempre por protagonizar inconscientemente a narrativa de um centro a partir do qual se pode identifi car a matriz originria da lngua atravs da qual todos os restantes espaos do mundo lusfono se encontram vinculados. Na esteira destas ideias, Eduardo Loureno [2004: 179] foi peremptrio em sublinhar a dimenso apoteoticamente portuguesa que acompanha a fora representativa dos afectos vinculados imagem dalusofonia:S para ns, portugueses, a lusofonia e a mitologia daComunidade dos Pases de Lngua Portuguesa imaginada como uma totalidade compatvel com as diferenas culturais que caracterizam cada uma das componentes. Como portugueses, seria impossvel e sem sentido no imaginar assim, pois somos o espao matricial da lngua portuguesa, levando-a connosco par as paragens que tocmos ou colonizamos, e onde estamos enquanto ela estiver e continuar a nos defini, aos nossos olhos e aos de outros, como interessados espiritual e vitalmente na sua irradiao, presena e metamorfose.A ideia de vinculao dos vrios espaos a partir da referncia lngua no deve exceder a representao das possibilidades de celebrar, em si mesma e com todos os seus limites, a prpriacomunicao.Os excessos celebratrios de vinculao cultural dos vrios espaos lusfonos a Portugal atravs da lngua acabam sempre por glorificar uma memria: neste caso uma verso presente de glorificao do passado que, por vezes, ultrapassa a simples celebrao da lngua comum e as possibilidades de comunicao que ela proporciona, para se cair nos excessos de imaginao de uma comunidade de cultura passvel de ser concebida, interpretada e reconhecida uniformemente por referncia s marcas impressas por Portugal nas extenses que formam a dita comunidade lusfona. Esta forma de celebrao discursiva da lusofonia tributria da perspectiva colonial que, durante o Estado Novo, acompanhou a alegoria da misso colonizadora de Portugal: o mito da reproduo de Portugal em todas as latitudes do seu imprio. E, se verdade que a imagem da lusofonia devedora imprescindivelmente da memria da lngua como um dos reflexos materiais e espirituais da aventura colonial e imperial de Portugal, tambm no menos verdade que ela acaba por renovar, consciente ou inconscientemente, a nova forma de readaptao da mesma memria, dotando-a de um novo sentido operatrio: estimular a ideia de afectividade, de sentimentos, de aproximaes e de partilhacomum.Sob a forma de discursos dos afectos, a imaginao da lusofonia acaba por matizar um pouco as representaes da memria que estabeleciam a prpria condio de subalternidade dos ento espaos coloniais portugueses: da posio afirmativamente hegemnica como Portugal se assumia e se impunha com a memria de todos os seus mitos nas relaes coloniais, passou-se ento para uma espcie de exaltao positiva desses legados, entre eles a lngua, atravs do discurso de celebrao afectiva, da concepo da lusofonia como espao de afectos assegurado por uma memria que se pretende partilhada. Ou seja, mesmo quando reconhecemos que, atravs dos rgos de propaganda e por referncia epopeia colonial e imperial, o Portugal do Estado Novo sempre animou formas afectivas de articulao da ento metrpole com as suas colnias, porm, atravs de uma espcie de mapeamento da geografia dos afectos, o discurso da lusofonia faz uma reconverso da memria histrica e convoca para a necessidade de reconhecimento de uma espcie de comunho das partes do mundo lusfono: o mito da eufonia lusfona. A mitologia que anteriormente narrava a grandeza imperial e colonial de Portugal e remetia as ento colnias para uma condio de subalternidade civilizacional, entre outras, por fora do elogio da lngua, reelaborada, readaptada e posta ao servio de um discurso que, sem desconsiderar as actuais especificidades, pretende estabelecer uma imagem onde todos, provavelmente, se podiam rever e sentir (confortavelmente) representados. Portanto, ao propor uma espcie de celebrao legitimadora de uma partilha comum, no se podem negligenciar as margens de sombras produzidas por aquilo que os processos selectivos da memria narram, mas que tambm eclipsam e escondem. Com isto queremos chamar a ateno para os formatos discursivos que a lusofonia ganha, tanto por fora da influncia das reminiscncias da memria colonial e imperial, como tambm pela importncia que a percepo e a viso da sua representao ganha em funo dos espaos de enunciao e das formas da sua apropriao, com todas as virtudes e todos os reflexos perversos inerentes plasticidade da prpria memria. Tal como refere Fernando Catroga, no se pode escamotear a ambiguidade da aco da memria: se por um lado, ela pode ser definida pelo que do passado aceite no presente por todos os que a recebem, a reconhecem e a prolongam ao longo de geraes, por outro lado, tende-se a esconder que a corrupo do tempo (e a historicidade do homem) tambm atravessa as reactualizaes e transmisses do recordado [Catroga 2001:26]. margem da retrica (poltica, jornalista, acadmica, etc.) celebradora e propagadora da ideia de comunidade lusfona, ficam sempre soterradas as contradies das realidades quotidianas e banais onde actuam e vincam as formas desiguais de representao identitria dos sujeitos falantes desta mesma comunidade. Apesar de a lngua ser a matriz fundamental de articulao da esfera lusfona, no podemos negligenciar a influncia furtiva que o senso comum e as relaes ordinrias estabelecidas a partir do quotidiano exercem nas formas de apropriao, imitao e reproduo da lngua atravs da representao pseudo-correcta do aportuguesamento do sotaque, principalmente no contexto das relaes entre portugueses e imigrantes ou descendentes de imigrantes dos pases de lngua oficial portuguesa. Tambm margem da retrica dos afectos, podemos diagnosticar alguns contextos relacionais que o quotidiano no escamoteia nas suas vrias lgicas de relaes de poder e at de conflito, inflamados ainda pelas contradies da permanncia das velhas (coloniais) representaes identitrias mal resolvidas, como tambm pelos choques ps-coloniais das memrias individuais e colectivas latentes imagem reminiscente do antigo colonizador e do antigo colonizado. Portanto, parece plausvel considerar que as mltiplas faces que a realidade ganha em funo das diferentes lgicas atravs das quais os diferentes sujeitos constroem, no quotidiano, as suas relaes tanto afectivas como conflituosas, no so mediadas pela retrica dos afectos que o discurso da lusofonia veicula. Por isso, uma radiografia do quotidiano se impe como necessidade de diagnosticar as contradies entre a fora retrica da lusofonia (no centro discursivo que a propala) e a fraqueza da sua inscrio (nas margens subalternas) onde os vrios mitos sesobrepem.Consideraes finais: retrato de famlia numa casa mticacomumHerdmos um patrimnio riqussimo de civilizao: patrimnio de saber, de sentimentos, e bens, de solidariedade, de lembranas comuns [B.G.C. 1934:82].Directa ou indirectamente, o debate sobre a lusofonia acaba sempre por exumar a matriz de pendor cultural e espiritual onde assenta uma parte do seu iderio. Se so j evidentes os esforos no sentido de fixao efectiva de um espao de concertao designado deComunidade de Pases de Lngua Portuguesa (CPLP), no entanto, no podemos pensar que o discurso sobre a lusofonia se esgota na concepo institucional dessa organizao de pendor essencialmente poltico e diplomtico. Partindo do inqurito crtico sobre a forma como os discursos sobre a ideia de uma comunidade lusfona se alojam consciente e inconscientemente na glorificao dos mitos portugueses que sempre inflamaram a grandeza de Portugal e a legitimao da prpria ideia de imprio, podemos ento salientar que algumas das formas celebradoras da lusofonia no se conseguem desenvencilhar dos efeitos que a persistncia desses mesmos mitos continuam a ter na colonizao do imaginrio portugus, enquanto espao privilegiado de enunciao do prprio discurso sobre a lusofonia. Por um lado, no podemos perder de vista o peso que a ideia de imprio e a sua incorporao na identidade nacional portuguesa ganha desde as dcadas finisseculares de Oitocentos (sc. XIX), sob o aforismo de fazer cumprir Portugal na sua tradio atlntica de manter o ento imprio incarnado na frica que, para muitos, representava o futuro indissocivel da nacionalidade portuguesa, tal como salienta Maria Manuela Tavares Ribeiro [1998: 259]; por outro lado, tambm no menos verdade que o mito do imprio como destino de Portugal foi tambm sacralizado pelo Estado Novo e convertido em suporte dos discursos legitimadores do ultramar como misso nacional [Rosas 1995: 20]. Sendo assim, torna-se pertinente no desconsiderar a forma como o mito do imprio permaneceu colado e incorporado na identidade nacional portuguesa, pelo menos oficialmente at sua derrocada definitiva em1974.Subsequentemente, na reactualizao da nova verso da identidade nacional, o discurso sobre a lusofonia reelabora uma nova viso e uma nova imagem procedente do trabalho de revisitao da memria do passado colonial e imperial de Portugal, uma vez que a tentativa de estabelecimento da ponte dos afectos passou pela renovao da imagem da ptria que fomos, atravs da sobrevalorizao das heranas culturais, entre elas a lngua, legadas por Portugal nas diferentes partes da sua peregrina misso civilizadora. Assim, a inveno da lusofonia renovaria a imagem nacional atravs da glorificao do legado da