natureza e sagrado na memÓria da festa de bom jesus … · 2017. 12. 13. · aracaju, a festa de...

143
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO E MEIO AMBIENTE PROGRAMA REGIONAL DE DESENVOLVIMENTO E MEIO AMBIENTE ISABELLA CRISTINA CHAGAS CORRÊA NATUREZA E SAGRADO NA MEMÓRIA DA FESTA DE BOM JESUS DOS NAVEGANTES São Cristóvão (SE) 2013

Upload: others

Post on 03-Oct-2020

2 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM

DESENVOLVIMENTO E MEIO AMBIENTE

PROGRAMA REGIONAL DE DESENVOLVIMENTO E MEIO AMBIENTE

ISABELLA CRISTINA CHAGAS CORRÊA

NATUREZA E SAGRADO NA MEMÓRIA DA FESTA DE BOM JESUS DOS NAVEGANTES

São Cristóvão (SE) 2013

i

ISABELLA CRISTINA CHAGAS CORRÊA

NATUREZA E SAGRADO NA MEMÓRIA DA FESTA DE BOM JESUS DOS NAVEGANTES

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção de título de mestre à banca examinadora do Núcleo de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente da Universidade Federal de Sergipe.

Área de concentração: Desenvolvimento e Gestão em Meio Ambiente

Orientadora: Profa. Drª. Maria Augusta Mundim Vargas

São Cristóvão (SE) 2013

i

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

Corrêa, Isabella Cristina Chagas

C824n Natureza e sagrado na memória da festa de Bom Jesus dos Navegantes / Isabella Cristina Chagas Corrêa ; orientadora Maria Augusta Mundim Vargas. – São Cristóvão, 2013. 125 f. : il. Dissertação (mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente) –Universidade Federal de Sergipe, 2013.

O 2. 1. Relação homem-natureza. 2. Festa de Bom Jesus

dos Navegantes (SE). 3. Festas folclóricas. 4. Sergipe. I. Vargas, Maria Augusta Mundim, orient. II. Título.

CDU: 502:394.2(813.7)

ii

iii

Este exemplar corresponde à versão final da Dissertação de Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente.

_______________________________________________

Drª. Maria Augusta Mundim Vargas - Orientadora Universidade Federal de Sergipe

iv

É concedida ao Núcleo responsável pelo Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente da Universidade Federal de Sergipe permissão para disponibilizar, reproduzir cópias desta dissertação e emprestar.

________________________________________________

Isabella Cristina Chagas Corrêa – Autora

Universidade Federal de Sergipe

________________________________________________

Drª. Maria Augusta Mundim Vargas - Orientadora

Universidade Federal de Sergipe

v

Aos meus sobrinhos Vinícius e Ísis. Tão pequeninos,

trouxeram luz à minha vida e me devolveram. Dedico-lhes com o

desejo de que o mundo seja, sobretudo, uma experiência de amor.

Que amem e que sejam amados!

À minha avó Esbela (in memorian), sempre presente em

cheiros e sabores. Sua história de vida foi para mim o legado com o

qual me ensinou que a paciência e a persistência são caminhos para

o saber viver.

vi

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus que se manifesta em seres, atos, lugares e coisas. Por nos dar a graça da

existência e a possibilidade desse despertar consciente com experiências em todo o tempo, dia

após dia. Confio e sigo.

A minha avó Esbela (in memorian) com quem tive o privilégio de partilhar boa parte da vida e

de seus singelos ensinamentos pelos quais adquiri valores fundamentais. Ao meu avô Fausto

(in memorian) que de tantos em um, destacou-se em mim pelo seu ser sitiante, “talaieiro” e

pelo pagamento de promessa ao Bom Jesus dos Navegantes da Atalaia sendo a centelha deste

percurso investigativo aqui delineado.

Aos meus pais Manoel e Dalila pelos inúmeros esforços empreendidos em prol da minha

formação. Por se fazerem presentes, cada um a seu modo, em mais uma jornada,

participando, contribuindo, ouvindo o desenrolar da pesquisa e os momentos de dúvida,

angústias, descobertas, desconstruções e reconstruções. Agradeço o apoio incondicional

nesses momentos e em decisões difíceis que acorreram a mim neste percurso.

A Isadora, minha irmã, que dividiu comigo tempos, sabores, cheiros e momentos. Obrigada

por ser minha companheira de vida e mesmo com os compromissos de mãe, de esposa e de

tudo o mais que exige a idade adulta, concede-nos sempre um tempo para o resgate de nossa

“velha infância”.

A minha orientadora, mestre e fundadora do PRODEMA Prof. Dra. Maria Augusta Mundim

Vargas (Guta) por acreditar e incentivar este trabalho depositando em mim sua confiança e

paciência ao conceder-me a honra de sua orientação. Além disso, sou grata pela sutileza com

que transmite seus ensinamentos que transcendem, de certo, o conhecimento acadêmico os

quais seguramente levarei adiante.

A todos os professores do PRODEMA. Ao professor Dr. Antônio Carlos dos Santos pelas

valiosas reflexões e recomendações para com este trabalho. A professora Maria José por não

medir esforços ao programa e aos discentes. Aos professores Gicélia e Inajá pelas

contribuições nos seminários integradores, tornando-os momentos de muito aprendizado.

vii

A professora Dra. Maria Benedita Lima Pardo, pelos valiosos ensinamentos desde 2006.

Muito grata por compor a banca de avaliação deste trabalho.

Ao professor Dr. Fernando José Ferreira Aguiar por aceitar compor a banca de avaliação.

Notadamente pelo incentivo e estímulo a mim estendidos desde 2008 com o curso lato sensu

onde a possibilidade deste trabalho nasceu.

Aos professores Dr. Antônio Carlos dos Santos e Dr. Antônio Lindvaldo Sousa pelas

indicações de leitura e por aceitarem a suplência da banca.

Ao grupo de pesquisa Sociedade e Cultura pela oportunidade a mim estendida de estar em

campo nas festas sergipanas observando o festar, os festeiros e os festejos deste nosso rico

cenário cultural. Notadamente a Rodrigo Lima por subsidiar-me na diagramação em parte do

trabalho.

Ao padre Luís Lemper que me acolheu gentilmente, enriquecendo-me com sua simplicidade e

seu conhecimento de vida; e padre Genário de O. Júnior pelas informações e documentos

concedidos, sobretudo, pela disposição e atenção a mim dispensadas.

Aos meus colaboradores (entrevistados) que me oportunizaram grandes encontros, que

permitiram a esta pesquisadora adentrar em suas casas e em suas histórias de vida sem as

quais, a pesquisa não seria possível. Sei que esta experiência mútua floresceu laços de

amizade. Esse estudo é minha singela contribuição ao que me foi confiado por vocês. Minha

gratidão!

Ao professor Msc. Claudefranklin Monteiro Santos que me acolheu no departamento de

História através do tirocínio docente oferecendo-me suporte teórico nos campos do

Patrimônio Cultural e da Memória. Sou grata pelos ensinamentos e pela confiança em mim

depositada.

Aos queridos alunos do tirocínio docente, primeiro período de História/ 2012, com os quais

tive a doce e profícua experiência no ensino superior com a disciplina Patrimônio Cultural.

As queridas biólogas Ana Bárbara, Edilaine (Mel) e Camila. Agradeço os gestos de carinho e

força nesta jornada do conhecimento. A Maracy Pereira pelos momentos de descontração e

sorrisos em meio às angústias da Academia. Agradeço aos demais colegas de turma

PRODEMA/2011 por dividirmos a árdua, porém gratificante trajetória acadêmica. Sobretudo,

por termos partilhado a satisfação desse encontro.

viii

À amiga/irmã Taís Fiscina sempre presente nesta e tantas outras instâncias da vida. Minha

gratidão!

Ao professor Dr. Hyppolite Brice Sogbossi pelos valiosos ensinamentos ao ministrar a

disciplina Antropologia Simbólica do Núcleo de Pós- Graduação em Antropologia/UFS.

Muito grata aos colegas pelos debates calorosos e reflexões enriquecedoras sobre ritos e

rituais. Notadamente Henriete e Aparecida pela sugestão de leituras importantes. Gustavo, Isa,

Claudio e Vanessa Menezes pela acolhida e energias positivas.

À amiga Fernanda Cordeiro e estimada Rosimeire Guimarães pelo incentivo, torcida e apoio

na caminhada rumo ao PRODEMA.

A dona Julieta e Aline Cajé pela atenção, porque sempre estiveram solícitas aos discentes

frente às atividades administrativas do mestrado.

Por fim, agradeço ao mestre professor Dr. Francisco José Alves dos Santos que na graduação

me introduziu no mundo das festas, dos festares e que de forma visionária trouxe-me à luz a

paixão pelo tema.

ix

Mas quando foi então a magia verdadeiramente

ultrapassada, e, aliás, onde é que ela para? [...] O

século XVII não a cala. [...] Ainda no século XVII a

denominação comum das doenças se refere aos

nomes dos santos especializados na cura de cada

uma delas. [...] Durante muito tempo, as nascentes

termais haviam sido a morada dos deuses. [...] O

sentimento desta harmonia tem mantido, na vida da

humanidade, um lugar infinitamente maior que as

preocupações científicas; [...] “a coisa mais bela que

podemos experimentar” escreve ainda Einstein, “é o

lado misterioso da vida. É o sentimento profundo

que se encontra na origem da arte e da ciência

verdadeira.” A magia, “o poder de fabulação”, é uma

necessidade psicológica tal como a razão. Não

morreu no final da Antiguidade, não morreu no

século XVIII [...] ela encontra-se em recrudescência

e não em declínio.

Robert Lenoble

x

RESUMO

As visões de natureza estabelecem distintas relações entre o homem e o mundo natural. Uma

via para esse entendimento são os rituais religiosos que se consagram singularmente como

valores simbólicos desta relação. Ritual tradicionalmente celebrado no bairro Atalaia em

Aracaju, a festa de Bom Jesus dos Navegantes suscitou a pesquisa a partir da alteração

significativa neste evento com a ruptura do rito da procissão fluvial pelo estuário do rio

Poxim em face da impossibilidade de navegação pela condição degradante da Maré do

Apicum, palco dessa manifestação. A procissão deslocou-se para via terrestre. O estudo teve

como objetivo geral analisar as relações homem-natureza atribuídas por moradores do bairro

Atalaia à festa do padroeiro Bom Jesus dos Navegantes e suas alterações desde suas primeiras

experiências até os dias atuais. Para consecução deste, buscou-se como objetivos específicos:

levantar as interações homem-natureza estabelecidas no decorrer da festa desde sua criação,

identificar as relações conectivas, cognitivas e conflitivas da interação homem-natureza no

bairro Atalaia a partir das alterações da festa e avaliar o sentido da Festa de Bom Jesus dos

Navegantes para a relação homem-natureza. A pesquisa classificada como qualitativa adotou

a história oral enquanto metodologia. Assim, as fontes orais forneceram base para análise dos

dados pelo eixo passado/presente da festa. Os instrumentais de coleta foram observação livre,

diário de campo, entrevistas semiestruturadas, levantamento e registro de fotografias. Para

análise de conteúdo dessas fontes, delinearam-se como categorias memória e sagrado por

meio de subcategorias quais sejam tradição, patrimônio e religiosidade. Desse modo,

concluiu-se que a permanência da procissão terrestre pela tradição foi o lastro pelo qual o

evento se realizou por longa data. No passado, a festa foi símbolo da relação entre o homem e

a natureza por ritos de promessa e procissão fluvial; Já no presente, a natureza degradada está

à margem da festa e metaforicamente representada no plano do transcendente. Logo, o

sentido da festa reproduz-se pela memória engendrada nos sentimentos de pertença à devoção

e a fé atribuída ao padroeiro. Observou-se, através deste estudo, uma memória coletiva

bastante significativa no bairro. A reivindicação da tradição e a resistência ante as mudanças

desvelaram a festa como sendo um patrimônio. Portanto, a procissão se revela como marco da

história da Atalaia, forma pela qual o homem religioso/memorioso se representa na festa.

Palavras-chaves: Festa, Relação Homem-natureza, Bom Jesus dos Navegantes.

xi

ABSTRACT

Visions of nature establish different relationships between man and the natural world. One

way of understanding them are the religious rituals that singularly represent the symbolic

values in this relationship. A ritual traditionally celebrated in Atalaia district in Aracaju, the

feast day of Bom Jesus dos Navegantes raised a research from the significant change from the

rite of fluvial procession on the estuary of the river Poxim to a procession on land, due to the

impossibility of navigation, as a result of the degradation of the sea Apicum. This study aimed

to analyze the association of the man-nature relationship with the feast of the patron saint,

Bom Jesus dos Navegantes, and the changes of this event since its start until today. So,

specific goals were set for such purpose: to survey the interactions between man and nature

established during the feast since its beginning, to identify the connective, cognitive and

conflictive relationships of these interactions from the changes in the feast in Atalaia district,

and to evaluate the meaning of the Feast of Bom Jesus dos Navegantes for man-nature

relationship. This qualitative research used the oral history as a methodology. So, oral sources

were the basis to analyze the data concerning the axis of past and present of the feast. The

data collection instruments were free observation, a field journal, semi-structured interviews,

a survey and record of photographs. For such purpose, categories as the memory and sacred

were outlined and divided into subcategories: tradition, heritage and religiousness. Thereby, it

is concluded that the religious procession on land was kept for so long by tradition. In the

past, the feast was a symbol of man-nature relationship by rites of promise and fluvial

procession. At the moment, the degraded nature is on the fringe of such feast and it is

metaphorically represented in the transcendent plane. Therefore, the meaning of this feast is

perpetuated by the memory of a feeling of belonging to devotion and faith attributed to the

patron. Through such study, it was verified that there is a very significant collective memory

in the neighborhood. The claim of tradition and the resistance against changes revealed the

feast as a heritage. Thus, the procession reveals itself as a landmark of the history of Atalaia,

means by which the religious/memorable man is represented in the feast.

Keywords: Feast, Man-Nature Relationship, Bom Jesus dos Navegantes.

xii

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 1

CAPÍTULO 1 - A RELAÇÃO HOMEM-NATUREZA ..................................................... 6

1.1 APONTAMENTOS HISTÓRICOS DA RELAÇÃO HOMEM-NATUREZA ........ 6

1.2 NATUREZA E CULTURA: NATUREZAS ................................................................ 12

1.3 PATRIMÔNIO: A NATUREZA CULTIVADA ......................................................... 16

1.4 FESTA E FESTAS RELIGIOSAS ................................................................................. 20

1.4.1Ritos, Rituais .................................................................................................................. 20

1.4.2 Festas ............................................................................................................................ 23

1.5 MEMÓRIA ...................................................................................................................... 31

CAPÍTULO 2 - UNIVERSO DO ESTUDO: METODOLOGIA E PROCEDIMENTOS

DA PESQUISA ...................................................................................................................... 39

2.1 CONTEXTO DE ESTUDO ............................................................................................ 39

2.1.1 Notas sobre as manifestações de Bom Jesus dos Navegantes em Sergipe ............... 39

2.1.2 Caracterização da área de estudo ............................................................................... 41

2.2 METODOLOGIA ........................................................................................................... 48

2.2.1 Instrumental da Pesquisa ............................................................................................48

2.2.2 Procedimentos para coleta dos dados ......................................................................... 50

2.2.3 Tratamento dos dados .................................................................................................. 53

CAPÍTULO 3 – CONFLUÊNCIAS: NATUREZA, SAGRADO E TRADIÇÃO

NA MEMÓRIA DA FESTA DE BOM JESUS DOS NAVEGANTES ............................. 63

3.1 REMINISCÊNCIAS ........................................................................................................ 63

3.1.1O vivido na Festa do Bom Jesus ................................................................................... 66

3.2 CONEXÕES E CONFLITOS: ENTRE O PASSADO E O PRESENTE

DA FESTA ............................................................................................................................ 78

xiii

3.3 O PRESENTE CONTIDO .............................................................................................. 93

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. ..99

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 102

APÊNDICES ........................................................................................................................ 108

ANEXOS .............................................................................................................................. 121

xiv

LISTA DE SIGLAS

BNH Banco Nacional de Habitação

COHAB Companhia de Habitação

PEMAS Plano Estratégico Municipal de Assentamentos Subnormais

PMA Prefeitura Municipal de Aracaju

PETROBRAS Petróleo Brasileiro S/A

SUDENE Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste

xv

LISTA DE FIGURAS

Figura 2.1 Planta Hidrográfica da Barra e Porto de Aracaju- 1894 ....................................... 43

Figura 2.2 Enunciação das hipóteses nos roteiros de entrevista ............................................. 54

Figura 2.3 Ocupação atual dos entrevistados ........................................................................ 55

Figura 2.4 Faixa etária dos entrevistados .............................................................................. 55

Figura 2.5 Grau de escolaridade dos entrevistados ................................................................ 56

Figura 2.6 Ocupação na linha da vida: infância e adolescência ............................................ 58

Figura 2.7 Ocupação na linha da vida: idade adulta ............................................................... 60

Figuras 2.8 Atividade na Terceira idade ............................................................................... 60

Figura 3.1 Pagamento de Promessa na Maré do Apicum durante a Festa de Bom Jesus dos

Navegantes. ............................................................................................................................. 73

Figura 3.2 Entrada nas águas: rito de promessa .................................................................... 73

Figura 3.3 Fausto Cardoso Chagas em pagamento de promessa na Maré do Apicum .......... 73

Figura 3.4 Desembarque da imagem votiva de Bom Jesus dos Navegantes -

Procissão fluvial. .................................................................................................................... 75

Figura 3.5 Percurso terrestre da procissão de Bom Jesus em retorno a Igreja ....................... 76

Figura 3.6 A Andor carregado por fiéis na procissão de Bom Jesus em retorno a Igreja ...... 77

Figura 3.6 B Cortejo terrestre de Bom Jesus em retorno a Igreja .......................................... 77

Figura 3.7 Última Procissão Fluvial na Maré do Apicum. Janeiro, 2005 .............................. 78

Figura 3.8 Assoreamento da Maré do Apicum – 2008 ........................................................... 79

Figura 3.9 Procissão terrestre ocorrida em 2008 (Avenida Paulo Barreto) ............................ 81

Figura 3.10 Roteiros da procissão de Bom Jesus dos Navegantes ......................................... 83

Figura 3.11 Cortejo alusivo a Bom Jesus dos Navegantes em 2008

(Avenida Paulo Barreto) .......................................................................................................... 84

Figura 3.12 Procissão terrestre ocorrida em 2008 (Avenida Beira Mar) ............................... 84

xvi

Figura 3.13 Procissão terrestre de Bom Jesus dos Navegantes/Jan./2011 ............................. 85

Figura 3.14 Faixa de protesto na Associação dos Pescadores da Atalaia .............................. 85

Figura 3.15 Procissão de Bom Jesus dos Navegantes na Avenida Antônio Alves.

Jan.2011 ................................................................................................................................. ..89

Figura 3.16 Nova imagem votiva de Bom Jesus dos Navegantes apresentada na festa de

janeiro de 2011 ........................................................................................................................ 90

Figura 3.17 Filarmônica de Ribeirópolis puxando a procissão de Bom Jesus dos Navegantes/

jan.2011 ................................................................................................................................... 90

Figura 3.18 Vendedoras de queijada em frente à Paróquia Bom Jesus dos Navegantes. Festa

de jan. 2011. ............................................................................................................................ 91

Figura 3.19 Apostolado da Oração em Procissão noturna de Bom Jesus dos Navegantes.....92

Figura 3.20 Benção do Santíssimo em frente à Igreja de Bom Jesus dos Navegantes........... 93

1

INTRODUÇÃO

Os problemas ambientais tornam imperativa a reflexão sobre a relação entre o homem

e a natureza. Percebida a partir dos movimentos ambientalistas no último quartel do século

XX, a crise que ora se apresenta ao debate na contemporaneidade reflete os limites que os

modelos de civilização convencionaram social e cientificamente. Modelos que instituíram

conceitos de natureza os quais desencadearam técnicas e ações que dilapidaram sobremaneira

o meio natural, homogeneizando modos de produção e de vida das sociedades.

A ideia de natureza é uma construção histórica e social materializada em práticas e

atitudes concernentes a interpretações, demandas e contextos existenciais, pois quando “[...]

lidamos com fenômenos como as florestas, ciclos hidrológicos, estamos diante de energias

autônomas que não derivam de nós. Essas forças interferem na vida humana, estimulando

algumas reações, algumas defesas, algumas ambições”. (WORSTER, 1991, p.201)

O ambiente construído expressa cultura1 já que o meio natural transformado pressupõe

o pensar a natureza tendo como base a sua utilização. Da abstração para a realidade o aparato

técnico criado em dada sociedade demonstra o modo como esta se relaciona com o meio

natural, como o influencia e como é por ele influenciado.

Em 1996, um apelo dos pescadores do bairro Atalaia na cidade de Aracaju/SE foi

veiculado no Jornal da Cidade2. A matéria em questão destacou a devastação do rio Poxim

com a faixa de alerta colocada na extensão da Maré do Apicum, parte integrante do rio, com a

seguinte mensagem: SALVEM NOSSO RIO. A Associação de Pescadores da Atalaia Velha

denunciou o grande acúmulo de lixo e aterros feitos naquele ecossistema em face da

especulação imobiliária ressaltando a importância do rio como espaço de realização de festas

na comunidade a exemplo da procissão de Bom Jesus dos Navegantes.

Em 2005, a procissão deslocou-se de fluvial para terrestre. Ritual tradicionalmente

celebrado na Atalaia, a festa de Bom Jesus dos Navegantes sinalizou uma modificação

significativa dada a impossibilidade de navegação pelo assoreamento o que culminou com a

ruptura do cortejo pelo estuário do rio Poxim.

1(WORSTER, 1991, p .201); Tomamos como base o conceito de Gonçalves(2004) em que enfatiza ser a cultura [...] o conjunto de saberes e valores que empresta sentido às práticas sociais. (GONÇALVES, 2004, p.29) 2 RIO SOFRE COM CONSEQUÊNCIA DA DEVASTAÇÃO. Jornal da Cidade. 29 de março de 1996. Caderno B, p.9.

2

O deslocamento da imagem do padroeiro realizava-se em embarcações de grande porte

e foi estabelecida através dos tempos. Sua celebração fluvial sempre esteve em consonância

com o ciclo das marés. Além disso, as práticas tradicionais realizadas na festa como banhos e

pagamentos de promessa não mais se repetiram estando a Maré do Apicum, palco daquela

manifestação cultural, relegada na atualidade a uma condição de ambiente degradado e

poluído, veículo de doença e sinônimo de sujeira. Desse modo, tomamos como objeto de

estudo a relação homem-natureza e, para refleti-la, a festa de Bom Jesus dos Navegantes no

bairro Atalaia em Aracaju.

As festas são concebidas nesta pesquisa como manifestações culturais que exprimem

visões de mundo, fenômenos sociais imbuídos de sentidos, sentido e sentimentos

(BRANDÃO, 1978). Toda festa é ato singular de dada sociedade sendo a maneira simbólica

pela qual se representa e pela qual se põe descoberto o contexto na qual está inserida.

O objeto surgiu a partir de estudo preliminar com monografia de especialização lato

sensu no qual identificamos vínculos dos moradores da localidade com o meio natural pela

devoção ao Bom Jesus dos Navegantes. A devoção revelou ser uma perspectiva de valor

numa demonstração ritualística dos sentimentos, atitudes e práticas para com a maré desde

longa data.

Este levantamento preliminar suscitou-nos novas possibilidades de pesquisa a partir de

algumas indagações: Qual o sentido da devoção a Bom Jesus dos Navegantes? O que muda

no sentido da festa? Os elementos do meio natural influem para o significado da festa? Em

que medida a degradação do meio natural interfere nos sentimentos, atitudes e práticas da

Festa de Bom Jesus dos Navegantes? O que se altera?

As hipóteses aventadas foram: 1. Trata-se de uma festa cujo ritual estreitava a relação

entre o homem e a natureza pela realização de procissão fluvial na Maré do Apicum; 2.

Mesmo sendo terrestre, a manutenção da procissão atualmente indica uma ressignificação da

relação homem-natureza pelo sentido religioso.

Desse modo, a pesquisa teve como objetivo geral analisar as relações homem-natureza

atribuídas por moradores do bairro Atalaia à festa do santo padroeiro Bom Jesus dos

Navegantes e suas alterações desde suas primeiras experiências até os dias atuais. Para

consecução deste, ordenou-se como objetivos específicos: levantar as interações homem-

natureza estabelecidas no decorrer da festa desde sua criação, identificar as relações

conectivas, cognitivas e conflitivas da interação homem-natureza no bairro Atalaia a partir das

3

alterações da festa e avaliar o sentido da Festa de Bom Jesus dos Navegantes para a relação

homem-natureza.

A relevância deste estudo justifica-se por se propor refletir as questões ambientais pelo

viés da relação entre o homem e a natureza concebida como uma interação que gera sentidos,

referências, visões de mundo refletidas nas formas de manifestação humana que representam

“atos de (re) produção da vida” como as festas religiosas. (PEREZ, 2002, p.53)

Esse trabalho vincula-se à linha de pesquisa do Grupo Sociedade e Cultura que

desenvolveu projeto financiado pela CAPES e Ministério da Cultura, pelo edital Pró-

cultura/2009 intitulado "A Dimensão territorial das festas populares e do turismo: estudo

comparativo do patrimônio imaterial em Goiás, Ceará e Sergipe”. Neste, o grupo de pesquisa

desenvolveu trabalho de campo nas festas sergipanas no período de 2010 a 2012,

oportunizando a discente aguçar metodologicamente a vivência de um amplo trabalho sobre

festas além de suporte no uso de instrumentais quais sejam observação, aplicação de

questionários e entrevistas.

O primeiro capítulo da dissertação esboça a revisão de literatura pela qual se

fundamentou teoricamente o objeto investigado. Neste, pontuou-se a complexidade da

interação homem-natureza na perspectiva de um apanhado histórico sobre distintas visões de

natureza as quais estabeleceram singularmente relações com o mundo, com o meio natural.

Uma via para esse entendimento são os rituais religiosos que se consagram como valores

simbólicos desta relação. Tais manifestações culturais revelam o homem em sua condição de

ser de natureza no processo de elaboração de seu patrimônio.

O segundo capítulo comporta o universo do estudo, seu contexto e caracterização da

área de pesquisa com a descrição das etapas cumpridas no processo de investigação

destacando os procedimentos metodológicos e o tratamento dos dados. A pesquisa

classificada como qualitativa adotou a história oral como metodologia e instrumentais de

coleta de dados quais sejam a observação livre, diário de campo, entrevistas semiestruturadas,

levantamento e registro de fotografias. O perfil dos entrevistados foi apresentado e analisado

ao tempo que se delineou o homem religioso, devoto de Bom Jesus dentre os moradores

antigos do bairro. Esse procedimento forneceu bases ao entendimento das relações

estabelecidas para com a festa apreendida como um fenômeno social.

O terceiro capítulo apresenta os resultados da pesquisa dispostos em três seções sobre

as quais a memória e o sagrado foram as categorias analíticas do estudo. A primeira seção

4

desvela a festa imbuída de significado religioso em relação ao meio natural, transmitido por

tradição e reproduzido nas práticas festivas ao longo do tempo. As outras seções analisam a

transição da festa ante as alterações sofridas, os impactos ressentidos nos fiéis, na coletividade

e a permanência da mesma pela tradição. Por fim, as considerações finais esboçam o percurso

interpretativo delineado com as conclusões da pesquisa empreendida.

5

CAPÍTULO I

6

CAPÍTULO 1 - A RELAÇÃO HOMEM-NATUREZA

A complexidade da relação homem-natureza perpassa por ideias historicamente

tecidas sobre o mundo natural haja vista a diversidade de maneiras e sensibilidades expressas

em manifestações sociais que fundamentaram lógicas existenciais. Tais visões de mundo

entendidas como valores culturais imprimiram e instituíram modelos de vida que ora

apartaram, ora aproximaram o homem de sua condição de ser de natureza.

Este capítulo de cunho teórico traça uma breve periodização histórica que não deve ser

entendida como estanque já que se dá a título de fundamentação para uma abordagem sobre a

evolução de pensamentos que engendraram um conhecimento homogeneizante à sociedade

ocidental. Ademais, evidencia-se a reciprocidade entre homem e natureza por meio de

manifestações culturais como as festas, em especial as festas religiosas que se consagram

como valores simbólicos da concepção de natureza e da relação homem/homem.

1.1 APONTAMENTOS HISTÓRICOS DA RELAÇÃO HOMEM-NATUREZA

A humanidade é tributária de uma histórica e complexa relação entre o homem e o

mundo natural. Esta complexidade pressupõe visões, cognições, representações de natureza

em distintas épocas e lugares e que estabeleceram vínculos com o mundo, com o meio natural,

o homem consigo e com o outro: “A natureza em si, não passa de uma abstracção. Não

encontramos senão uma ideia de natureza, que toma sentidos radicalmente diferentes segundo

as épocas e os homens.” (LENOBLE, 1988, p.16/17)

Neste sentido o conceito de natureza não é natural, sendo na verdade criado e instituído pelos homens. Constitui um dos pilares através do qual os homens erguem as suas relações sociais, na sua produção material e espiritual, enfim, a sua cultura. (GONÇALVES, 2005, p.23)

Convém-nos abordar uma breve trajetória das visões de natureza no intuito de evidenciar

a influência destas para as relações estabelecidas ao longo do tempo entre as sociedades e o

mundo natural. Estas representações apresentar-se-ão sob sistemas filosóficos que

estruturaram o conhecimento ocidental influenciando modelos de sociedades a nível

científico, político, ideológico e espiritual.

7

O animismo é o exemplo da primeira ideia de natureza como uma moral Lenoble (1988).

Tendo uma lógica contemplativa, a natureza mágica era evidenciada nas chamadas

“antropossociedades arcaicas” as quais a concebiam como um mistério manifesto por deuses e

espíritos. O homem era dependente e subjugado pelo mundo natural sendo este onipotente e,

portanto, temido. Já a visão semi-sacralizada da natureza foi característica das primeiras

civilizações que não tendo se desligado do sagrado, com a revolução agrícola já faziam

intervenções significativas no meio natural, mas ainda não detinham o controle sobre suas

manifestações. (CAMARGO, 2003; SOFFIATTI, 2002)

A concepção holística dos físico-gregos concerne aos filósofos do chamado período pré-

socrático. Estes pensadores ao se interrogarem sobre a origem do mundo e da vida

conceberam a natureza como um todo da realidade do ser. Entendida como pysis3, a natureza

em sua totalidade é um princípio inteligente de onde tudo emana, é a origem e o lugar onde

coexistem todas as coisas. Assim, a pysis compreende o universo, o transcendente (deuses), o

animado/ inanimado e o homem, seu pensamento e comportamento diante das coisas a

exemplo da política e da justiça. (SOFFIATTI, 2000; GONÇALVES, 2005)

Esse conceito de natureza é revisto na antiguidade por Platão e Aristóteles os quais

experimentaram a democracia grega em pleno auge o que provocou uma afirmação de novos

valores. Para o primeiro, o pensamento racional era algo privilegiado e tinha a ideia como

sinônimo de perfeição. Para o segundo, a natureza orientava-se a uma finalidade, para um

propósito, para um destino que se pautava para além de si. Aqui o homem já aparece, portanto

na condição de superioridade perante o mundo natural. (GONÇALVES, 2005)

A natureza é fortemente hierarquizada: [...] as plantas existem para os animais e os animais existem para o homem, os animais domésticos para o seu trabalho e alimentação, os animais selvagens, [...] para outras necessidades, porquanto o homem tira deles vestuário e outros instrumentos. .[...] A hierarquia repercute-se no interior da humanidade, ditando a superioridade do homem sobre a mulher (que não passa de um homem incompleto)[...] A natureza, que continua no social, ordena-o hierarquicamente. (LARRÈRE&LARRÈRE, 1997, p.49/50)

A concepção judaico-cristã fomentada no contexto medieval baseou-se no pensamento

aristotélico e platônico através do teocentrismo. (GONÇALVES, 2005) Neste postulado havia

a ideia de um Deus-criador como onipotência a quem tudo controla inclusive o mundo (a

3 Pysis é uma terminologia grega que “evoca o que nasce e se desenvolve [...] o princípio, a substância primordial, de onde todas as coisas saíram [...]conjunto do processo que do princípio ao fim, explica a constituição de uma coisa particular, ou da natureza na sua totalidade, a do mundo,”(LARRÈRE&LARRÈRE,1997,p.30/31)

8

natureza) e a alma humana. Assim, houve a separação entre espírito e matéria, entre homem e

natureza que agora está a serviço do primeiro enquanto criatura divina.

[...] o mundo só existe em referência à comunidade dos homens [...] este mundo não é estranho a Cristo, através de quem a humanidade se prolonga, no universo. Há, portanto, uma salvação da natureza, tal como há uma salvação dos homens [...] A natureza tem origem na gratuidade de uma criação. [...] Ao serviço de todos ela comunga, se assim podemos dizer, da generosidade e da abnegação de Cristo. Finalmente, ela tem de participar também na Paixão e na Ressurreição de Cristo. (BOURG, 1993, p.173)

A modernidade inaugurou a era da cientificidade, adotou uma nova concepção de

mundo tendo como ética “[...] a natureza despojada de todo mistério, de todo o encantamento,

[...] uma natureza criada, de que se pode dispor e que é possível manipular. Uma natureza [...]

matéria”. (LARRÈRE & LARRÈRE, 1997, p.68/69). O antropocentrismo renascentista

reafirmou a capacidade humana de dominação da natureza, a exemplo do desenvolvimento da

Botânica que objetivava compreender a virtude e as propriedades das plantas. (THOMAS,

1988). A natureza foi vista assim sob esta lógica preponderante tanto em conceito como em

utilidade.

A dicotomia homem/natureza foi consagrada nos séculos XVI e XVII pelo

desenvolvimento do conhecimento científico com o mecanicismo e, sob esse postulado a

natureza foi tomada como objeto de estudo, uma matemática. Fragmentada em partes, foi

desvelada em leis e sistemas universais sendo uma “[...] possibilidade de exploração técnica”

(LENOBLE, 1988, p.279) O homem viu-se na condição de sujeito, “senhor da natureza” que

a superava e a dominava em diversos âmbitos quais sejam artístico, religioso, intelectual.

[...] o mundo não era senão uma grande máquina; o animal e a planta, autômatos [...]o cristão da época adquiriu uma nova razão para amar a Deus ao aperceber-se de que através do domínio das coisas, Deus lhe deu este mundo como herança. E também o artista tende a tornar-se sábio [....] a técnica da perspectiva e das tonalidades imporá a sua fixidez geométrica[...] o academicismo.[...]o virtuosismo torna-se um fim em si[...] o risco é sem dúvida a perfeição da técnica. A arte, mantém com a natureza o mínimo de contato afetivo sem o qual morreria. (LENOBLE, 1988, p.274 a 276)

A inferioridade atribuída ao mundo natural estendeu-se também à relação

homem/homem no caso de seres humanos que não atendiam às qualidades específicas dos

moldes ingleses, como nos descreve Thomas (1988) a despeito da ética da dominação humana

na Inglaterra e em suas respectivas colônias:

[...] o principal propósito dos pensadores [...] era justificar a caça, a domesticação, o hábito de comer carne e o extermínio de animais nocivos ou predadores.[...] Com efeito os séculos XVII e XVIII ouviram muitos discursos sobre a natureza animal dos negros, sobre sua sexualidade

9

animalesca e sua beleza brutal[...] os índios americanos eram descritos em linguagem parecida[...] Também as mulheres estavam perto do estado animal. Uma vez percebidas como bestas, as pessoas eram passíveis de serem tratadas como tais [...] A ética da dominação humana [...] legitimava os maus tratos àqueles que supostamente viviam em condição animal. (THOMAS, 1988, p.49 a51)

Os séculos XVIII e XIX consolidaram através do Iluminismo a racionalização da

natureza. Não obstante, a domesticação do mundo natural foi ilimitada e justificada por um

Deus externo à Criação, pois só o homem dotado da razão negou a existência da alma dos

animais. (DIEGUES, 1996, p.43)

A natureza mecanizada com a Revolução Industrial donde as inovações tecnológicas

corroboraram o progresso como sinônimo de modernidade destacou a oposição entre homem

e natureza com o positivismo a exemplo da separação das ciências da natureza das ciências

humanas. Essa natureza “objetiva” deu bases ao contexto capitalista de acumulação de

riquezas haja vista que “[...] O aparato técnico da chamada sociedade industrial é a ponto de

ele ser visto como condição por excelência do desenvolvimento dos povos a partir de então.”

(GONÇALVES, 2005, p.118)

As cidades, a exemplo do contexto inglês como salienta Thomas (1988) tornaram-se

lugares das gentes “civilizadas” em oposição às florestas que ganharam a conotação de

selvagem, hostil e perigosa sendo algo a ser domado, pilhado pelas novas necessidades

econômicas emergentes. A expressão wilderness remete-se justamente a essa visão das matas

como incultas, densas e não cultivadas, lugar de criaturas e seres humanos rudes. Essa visão

justificou o desmatamento desenfreado e a domesticação das plantas na Inglaterra dos séculos

XVII e XVIII.

As matas, portanto, eram lar de animais, e não de homens.[...] As florestas eram vistas com maus olhos por fornecerem refúgio aos fora-da-lei e base para criminosos de alta periculosidade[...] por certo, todos concordavam que eram necessárias reservas de madeira, e que os bosques eram úteis para combustíveis e outros propósitos. Mas as árvores deviam ser cultivadas em terra inferior, em matas plantadas para corte ou para extração de madeiras nobres, regularmente cortadas e limpas. Para matas de qualquer outro gênero não havia lugar. (THOMAS, 1988, p.233 a 235)

Todavia, ainda no século XIX, o Romantismo influenciou uma nova visão da natureza

emanando novas sensibilidades. Contribuiu para isso, o ambiente fabril e poluente das

cidades. A escassez de plantas e animais, inclusive os domésticos, já em processo de extinção

na zona urbana fez da zona rural um lugar de natureza “pura”. A natureza era a idealização da

floresta como uma paisagem bucólica em que “[...] os moradores do campo não eram apenas

10

mais saudáveis, porém moralmente mais admiráveis que os habitantes da cidade.”

(THOMAS, 1988, p.293)

Entrementes, a zona rural estava reservada não ao povo do campo, mas para nobreza que

buscava o refúgio das tensões sociais e o descanso dos males urbanos. Assim, buscava-se no

campo um estilo de vida aos moldes da civilização, mas, mais “ruralizado” sendo essa uma

postura escapista e mistificadora. (THOMAS, 1988, p.299)

Conforme Thomas (1988), a tendência de cultuar o campo como “símbolo da inocência”

fitava a natureza pelo belo (poesia e arte) e a concebia como paraíso4· , por isso, representava

tanto um atrativo estético como uma busca pelo restabelecimento espiritual. Assim, o amor às

árvores, foi um exemplo do forte sentimento religioso na sociedade inglesa do século XIX,

estendendo-se às montanhas, oceanos e desertos tidos como manifestações mais sublimes do

sagrado. Outro exemplo desse sentimento no imaginário ocidental foi a percepção dos anglo-

saxões no tocante às ilhas e praias isoladas sendo estas lugares de refúgio, isolamento e

contemplação. (DIEGUES, 1996)

“O apreço pela natureza, e particularmente a natureza selvagem, se convertera em ato

religioso.” (THOMAS, 1988, p.309) A religião foi, neste contexto, um impulso moral desta

nova visão de natureza que ressurgiu. Benéfica e bela, a natureza se transpôs de “selvagem” à

romântica “[...], pois Deus exigia bondade com todas as criaturas vivas. [...] Foi a religião que

ensinou que o mundo natural era o livro de Deus, e seu estudo um atalho para a compreensão

da sabedoria divina [...] era um dever moral[...] homenagem devida ao Criador”

(THOMAS,1988.p.331/334)

Esses ideais românticos do século XIX imprimiram ações de cunho preservacionista5 a

exemplo da construção de áreas naturais protegidas, verdadeiros santuários da fauna e flora

em extinção contribuindo para uma mitificação de uma natureza intocada, distanciada do

homem a exemplo do primeiro parque do mundo, o Yellowstone, onde se buscava a proteção

a certos animais por serem exóticos ou indispensáveis ao controle de outras espécies

“nocivas”. (DIEGUES, 2001; THOMAS, 1988)

4 “[…] a concepção cristã de Paraíso, existente no final da Idade Média e no período anterior ao descobrimento da América, era de uma região natural, de grande beleza e rigorosamente desabitada, de onde o homem tinha sido expulso após o pecado original” (DIEGUES, 1996, p.27) 5 O preservacionismo é uma corrente do pensamento ocidental visando proteger o meio natural do desenvolvimento industrial. “[...] pode ser descrita como a reverência à natureza no sentido de apreciação estética e espiritual da vida selvagem (wilderness)” (DIEGUES, 1996, p.30)

11

As implicações desse pensamento de cunho naturalista pressupõem uma insistente

dimensão utilitarista do homem em relação à natureza sendo esta uma visão urbana de mundo

natural legada a partir de práticas para com a natureza para com o humano nas sociedades

contemporâneas, a exemplo da escolha de áreas naturais a serem preservadas em detrimento

de outras igualmente importantes ao funcionamento dos ecossistemas e, da consequente

expulsão das populações tradicionais dos seus contextos ambientais. (DIEGUES, 1996)

As representações de natureza no Brasil são ambíguas e comportam a visão moderna e

romântica as quais reiteraram o distanciamento do homem do meio natural. Moderna do

ponto de vista da lógica da exploração colonial, a natureza era tida como fonte de riqueza

inesgotável donde se estabeleceu a atividade predatória; romântica porque vista como mãe-

terra, paraíso conquistado pelo europeu revelou uma passividade exaltada pelas belezas

naturais sendo cenário de deleite à mercê do colonizador. (DA MATTA, 1993)

Essa natureza subjugada à vontade humana é o reflexo das desigualdades sociais oriundas

do processo de colonização donde “[...] o escravo simboliza a junção da natureza com a

sociedade. De resto, é por isso que ele, tal como os animais domésticos, é objecto de castigos

e acto de crueldade por parte de seus senhores.” (DA MATTA, 1993, p.141) Vemos, com

efeito, que as representações do mundo natural e da sociedade possuem um mesmo âmago de

valores, a exploração do mundo natural se fez pelo trabalho escravo que assim, como a

natureza estava em condição inferior aos colonizadores europeus.

É assim que o Brasil nasce com o selo de uma visão relacional, ao mesmo tempo ingênua e retorcida da sociedade humana e da natureza. Uma visão hierárquica e holística em que os superiores dispensariam a fé cristã civilizadora em troca do direito inato de explorar à sua vontade as gentes e os recursos naturais. [...] No novo mundo [...] o português transforma-se em aventureiro e bandeirante e vai tentar sozinho o impossível [...] reproduzir em ciclos econômicos sucessivos, o modelo hierárquico e autoritário em vigor no seu país. (DA MATTA, 1993, p.136/137).

Essa discussão é ratificada por Gonçalves (2005) na medida em que atenta para duas

visões predominantes a despeito da concepção de natureza prevalecente no mundo ocidental

contemporâneo: a antropocêntrica haja vista ser a natureza concebida como algo hostil, lugar

de tensões e disputas; a visão naturalista ou romântica já que a natureza idílica foi sinônima

de harmonia e bondade, o homem foi quem a destruiu. Tanto numa como noutra, há a

emblemática oposição entre sociedade e natureza, entre homem e natureza, entre cultura e

natureza.

12

1.2 NATUREZA E CULTURA: NATUREZAS

Os humanos são animais que carregam ideias, assim como ferramentas, e uma das mais abrangentes e mais consequentes delas tem o nome de “natureza”. Mais precisamente, a “natureza” não é uma ideia, mas muitas ideias, significados, pensamentos, sentimentos, empilhados uns sobre os outros, frequentemente de forma menos sistemática possível. Todo o indivíduo e toda cultura criam esses aglomerados. (WORSTER, 1991, p.210)

A seção anterior apresentou um breve panorama de como as concepções de natureza -

entendidas como valores culturais - influenciaram as relações (atitudes e práticas) com o meio

natural ao longo do tempo. Faz-se necessário esclarecer que o âmago destas relações presume

o entendimento da posição do homem na natureza e da natureza no homem.

Há que se considerar que existem tantas maneiras e sensibilidades de manifestação da

natureza quantos contextos sociais: os sentimentos que nutrem os pescadores de áreas

litorâneas a respeito da natureza, por exemplo, não são os mesmos que tem o vaqueiro do

sertão nordestino brasileiro.

É o que atesta Leach (1978) quando argumenta que o contexto cultural é uma

linguagem, algo que deve permear todo entendimento do fenômeno social, pois “todos os

comportamentos com base no costume transmitem informação” (LEACH, 1978, p.15) – Esses

comportamentos são classificados em ações biológicas naturais do corpo humano (respiração

e batimentos cardíacos); ações técnicas que alteram o estado físico do mundo (o ato de

cozinhar um ovo e seu processo) e as ações expressivas que dizem como é o mundo (gestos,

acenar dos braços, ritos.). Estes estão interligados e dão a informação sobre o background

cultural de cada sociedade. (LEACH, 1978)

Do mesmo modo, Eagleton (2005) suscita a cultura como linguagem simbólica que

aparta ou une o homem à natureza. Para o mesmo, a cultura pode ser entendida como modo

de vida de um dado grupo em específico com seus valores, costumes, crenças e práticas.

[...] Nossa existência simbólica, abstraindo-nos das restrições sensoriais de nossos corpos, pode levar-nos a nos excedermos e nos destruímos. Somente um animal linguístico poderia criar armas nucleares, e só um animal material poderia ser vulnerável a elas. [...] a cultura não suplanta a natureza; em vez disso, ela a complementa de uma maneira que tanto necessária como supérflua. (EAGLETON, 2005, p.141/143)

Na relação sociedade/natureza, as questões ambientais trazem à luz o debate sobre a

concepção de natureza que se convencionou ser oposição à cultura. A cultura tomada

13

filosoficamente como civilização e a natureza como externalidade ao homem.

(GONÇALVES, 2005)

A diferença entre os conceitos de cultura e civilização é sutil. Em função da

cristalização de ambos os termos é que recorrentemente tornaram-se sinônimos na sociedade

ocidental. A palavra civilização denota mais uma expressão de consciência que o Ocidente

tem de si, “o nível de sua tecnologia, a natureza de suas maneiras, o desenvolvimento de sua

cultura científica ou visão de mundo” (ELIAS, 2011, p.23)

No entanto, Eagleton (2005) atenta que o conceito de cultura/civilidade tem cunho

eminentemente político haja vista a seleção de valores em detrimento de outros: “[...] a cultura

que está aqui em questão é uma seleção particular de valores culturais. Ser civilizado ou culto

é ser abençoado com sentimentos refinados, paixões temperadas, maneiras agradáveis [...]”

(EAGLETON, 2005,p.32)

Já Elias (2011) enfatiza ainda que a palavra civilização, cunhada ao modelo ocidental,

não tinha a mesma semântica entre as nações do ocidente. Etimologicamente francesa

advinda do contexto iluminista, civilização está mais voltada a uma idealização, convenção,

ao culto do autodesenvolvimento (política, economia, técnica) por isso é um termo que

determina.

Todavia, para o contexto alemão, essa noção era secundária, pois o termo Kultur, era a

palavra que expressava a individualidade de um povo (no plano religioso, artístico,

intelectual), ou ainda, o requinte de um grupo em detrimento da sociedade como um todo.

Portanto é um termo que delimita. “A civilização minimizava as diferenças nacionais, ao

passo que a cultura as realçava.” (EAGLETON, 2005, p.20)

Tal como a ideia de natureza, o conceito de cultura é complexo, diverso e foi

construído historicamente passando de um processo material (práxis) a um processo imaterial

(crenças, ideologias). A etimologia da palavra cultura deriva de natureza tendo como

significado original “lavoura” ou “cultivo agrícola”, estando vinculado ao trabalho. Deriva

também do latim “colere” que significa habitar, cultivar, adorar. Colere também desdobra

para o termo latim cultus, no termo religioso “culto” e já na modernidade considerado

tradições de um povo (EAGLETON, 2005, p.09/10).

O autor supracitado enfatiza que epistemologicamente o conceito de cultura desnuda a

natureza porque enseja uma dialética entre natural e artificial já que “[...] matéria-prima

precisa ser elaborada numa forma humanamente significativa [...] os meios culturais que

14

usamos para transformar a natureza são eles próprios derivados dela [...] a natureza produz

cultura para transformar a natureza.” (EAGLETON, 2005, p.11/12) Logo, o homem como ser

natural e biológico está na natureza, é parte integrante dela, tem-na como sua fonte de

inspiração e produção porque, “[...] a cultura não é senão uma natureza cultivada, cuidada por

esse produto da natureza que é o homem: se a natureza morrer, morrerá também a cultura e

todos os seus artefactos”. (LARRÈRE &LARRÈRE, 1997, p.16)

A reciprocidade entre homem e natureza converge para o entendimento de que cultura

não exclui natureza, pelo contrário, é o seu adjetivo. É a compreensão de como o homem se

vê e se apropria do mundo por meio de abstrações, de técnicas, modalidades de representação

social que fundamenta sua lógica existencial: pela arte, política ,religião, dentre outros. A

maneira como cada sociedade explora os seus recursos e interage com o ambiente em que

vive está relacionada diretamente à visão de mundo (natureza) sobre o mesmo; a cultura

apresenta-se como apreensão mental significada em aspectos materiais e imateriais:

Falar em cultura é falar igualmente de referenciais mentais que conferem sentido ao comportamento social dos indivíduos vivendo em determinados arranjos societários que se associam a manifestações materiais e espirituais, oferecendo-nos um panorama de estilos ou modos de vida, valores e aspirações dos mais diversos. (VIERTLER, 1999, p. 18)

No Japão onde o meio natural é marcado pelos rigores do clima, relevo e outros

fenômenos o culto shintoísta6 apresenta-se como um exemplo de expressão memorial e

religiosa de um sentimento de harmonia do homem para com a natureza desde o princípio dos

tempos através de ritos, narrativas e poesias corroborando uma aceitação destas forças e

mudanças por elas provocadas. (PONS, 1993)

Segundo o autor citado, a influência que a natureza exerceu sobre os japoneses deu-se

através das artificialidades criadas em prol dessa harmonia em que a estética se sobressaiu

menos como uma produção elaborada que uma exaltação do natural. Dessa forma, “[...] a

natureza é o fim último da cultura, sendo o bonzai (árvore anã) um exemplo deste artifício da

natureza que os japoneses afeiçoam: é efetivamente a natureza, mas uma natureza elaborada.”

(PONS, 1993, p.42/43).

Entretanto, essa mesma visão de natureza/artificialidade contribuiu, no contexto da

modernidade, para a sua dilapidação com a adoção de tecnologias de ponta pela corrida ao

mercado mundial. A exacerbação da técnica contribuiu para a subversão de natureza no Japão

6 Culto tradicional japonês. É a primeira religião do Japão.

15

contemporâneo tomando-a como infinita e inesgotável a serviço do homem o que acarretou

graves problemas ecológicos, a exemplo do desastre em Minamata7.

Os ndembo8, estudados por Turner (1974) demonstram através de seus ritos uma

relação direta do grupo com seu ambiente pelos valores atribuídos a este através do tipo de

trabalho que se realiza em Zâmbia: o povo “[...] combina a agricultura de enxada com a caça,

à qual lhe atribuem alto valor ritual” (TURNER, 1974, p.17). Assim, o estudioso ao

descrever as representações de rituais como o Isoma identifica que compõem o processo de

ritualização desses povos desde longos períodos de reclusão na floresta e utilização de locais

sagrados como rios, riachos, árvores à concepção de que do meio natural se dá o processo

curativo ou se intensifica ainda mais os males acometidos. Contudo, Turner (1974) dá uma

denotação polissêmica aos símbolos rituais. Os elementos simbólicos estão relacionados a

elementos empíricos da experiência, ou seja, ao conhecimento e à existência.

É interessante notar que o próprio princípio de revelação está corporificado num símbolo medicinal ndembo, usado no Isoma. É a árvore musoli [...] da qual são tiradas também as folhas e pedaços da casca. Ela é largamente usada no ritual ndembo, estando seu nome ligado às propriedades naturais. Produz grande quantidade de pequenos frutos, que caem no chão e atraem para fora do esconderijo várias espécies de animais comestíveis que podem, então, ser mortos pelo caçador. Ela, literalmente, faz com que eles aparecem. Nos cultos de caça, seu emprego como remédio destina-se a fazer os animais aparecerem ao, até então, infeliz caçador. Nos cultos relativos às mulheres, é usada para “fazer as crianças aparecerem” a uma mulher estéril. Como tantos outros casos, há na semântica deste símbolo a união da ecologia ao intelecto, cujo resultado é a materialização de uma idéia. (TURNER, 1974, p. 42-43)

A experiência dos aborígenes australianos revela uma natureza como sendo o seu

outro tendo grande significação espiritual de preservação e equilíbrio, pois “[...] o respeito que

tem por ela é, antes de mais, um sentimento religioso. A sua mitologia ensina-lhes que

nasceram da terra”. (PONS, 1993 p.119). Conforme nos descreve Pons (1993) a seguir, foi

também o conhecimento a respeito do seu meio natural que os levaram à sobrevivência,

mesmo nas condições mais precárias:

[...] contrariamente ao que muitas vezes se pensa, os aborígenes não estão reduzidos a um papel passivo ou reactivo face ao ambiente; estão dele dependentes, evidentemente, porque não podem fazer outra coisa, mas também o influenciam, modelando-o e modificando-o. O instrumento mais eficaz é sem dúvida o fogo. Ao queimar grandes extensões de matagal para apanhar a caça, favorecem o desenvolvimento de determinadas espécies

7Cidade do Japão. Na década de 1950 centenas de pessoas foram envenenadas por Mercúrio pelo consumo de peixes contaminados provenientes da poluição da Baía de Minamata. A substância tóxica fora despejada no ecossistema por indústrias locais de fertilizantes. 8 Grupos estabelecidos na África Central.

16

animais e vegetais, em detrimento das suas concorrentes menos bem adaptadas. (PONS, 1993, p.118)

Tal experiência, segundo o autor contribuiu para despertar a consciência ecológica no

país que, historicamente recebeu forte influência do processo colonizador inglês. A

dilapidação do meio natural ali se deu de forma agressiva e devastadora graças ao

desenvolvimento econômico predatório.

Contribuiu para isso, a visão depreciativa da natureza advinda de uma concepção

britânica de mundo. Assim, o meio natural australiano foi tido como feio, passivo e selvagem

gerando por longo tempo um sentimento de conquista, alienação, desprezo estético e

espiritual explicitado em poesias e obras de arte que agressivamente equiparavam as

paisagens australianas ao fim do mundo.

Tamanha devastação despertou a necessidade de busca de um sentimento de

identidade verdadeiramente australiana. Assim, a retomada a uma reaproximação com a

natureza se deu pelo exemplo dos aborígenes que detêm o ambiente natural como patrimônio

comum de todos. (PONS, 1993)

“[...] Enquanto a natureza não estiver integrada na sua cultura, o homem permanece

um turista ou um exilado” (PONS, 1993, p.126). Neste sentido, Leff (2001) esclarece que é o

habitat natural o lugar em que se simboliza a natureza.

A cultura simboliza seu ambiente em mitos e rituais, reconhece seus recursos naturais, imprime significados às suas práticas de uso e transformação. Assim, o habitat se define ao ser habitado; O habitat é, pois o território habitado, engendrado pela coabitação das populações humanas com seu meio, por suas formas de fazer o amor com a natureza. (LEFF, 2001, p.283)

1.3 PATRIMÔNIO: A NATUREZA CULTIVADA

O patrimônio cultural é, pois uma condição natural do homem: “[...] as sociedades

humanas desenvolveram ao longo do tempo um patrimônio do saber [...] não quer dizer que

os homens saltaram da natureza pra cultura [...] desenvolvem a sua natureza”.

(GONÇALVES, 2005, p. 92)

As relações homem/mundo constituem valor simbólico na medida dos sentimentos e

atitudes de pertença constituídas no espaço, lócus em que se estabelecem.

17

O lugar é o quadro de uma referência pragmática do mundo, do qual lhe vêm solicitações e ordens precisas de ações condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações de espontaneidade e da criatividade [...] A cultura, forma de comunicação do indivíduo e do grupo com o universo, é uma herança, mas também um reaprendizado das relações profundas entre o homem e seu meio. (SANTOS, 2001, p.322 / 326).

Diegues (2000; 2001), ao analisar as comunidades de pescadores tradicionais no

Brasil demonstra que as mesmas constroem relações de identidade pelos estreitos vínculos

com os ecossistemas estabelecendo, portanto, relações simbólicas com o seu meio ambiente.

Como exemplo, Cunha (2000) coloca-nos a influência da ordem natural sobre o tempo de

trabalho, no caso do ritmo do ciclo da pesca artesanal: “[...] os pescadores seguem a

mobilidade das espécies em cada safra. Um tempo, tal como o peixe, gira, faz a roda do

tempo: acaba e renasce de modo cíclico” (CUNHA, 2000, p.104). Por isso há o tempo da

tainha, da pescada, do siri, do caranguejo.

A água é lócus de produção social e simbólica, pois está “[...] na natureza e, a um só

tempo, na cultura [...] nos mitos e na história. [...] no dia e na noite, nas estações [...]: águas de

janeiro, primeiras águas, nas águas de março, que fecham o verão [...] nas celebrações da vida

e da morte[...] no batismo”. (DIEGUES, 2000, p.16) Já num sentido mais universal, o

simbolismo aquático sugere magicamente possibilidades de existência implicando em

“morte”, numa perspectiva de dissolução e renascimento, de renovação já que o contato, tanto

pela imersão como pela emersão constituem fatores de regeneração da vida. (ELIADE, 2008)

Sendo marco cultural, a água suscita imagens, multiplicidades e ambiguidades de

sentimentos que revelam uma conexão com a natureza. Dessa forma, a água pode ser

apropriada ora como masculina (no caso da água salgada), feminina (no caso da água doce)

ora como vetor de purificação, ora de desolação, terror no caso de viagens marítimas, ora

representa separação, ora tem propriedades curativas, ora possibilidade de recomposição. A

água apresenta-se como mãe da gravidez e do parto; na tradição afro-brasileira personificada

em Iemanjá é mãe-mulher “[...] que guarda nas águas de seu ventre, seu precioso tesouro [...]

a mãe deixa cair na praia da vida seu filho nascendo.” (LABERGE, 2000, p.39)

A água é manifestação do sagrado em quaisquer sistemas religiosos, pois tem como

função lavar os pecados e purificar (ELIADE, 2008). Para o homem religioso a natureza

estará sempre imbuída de um valor sagrado porque o mundo9 (o cosmos) é uma criação

9 “[...] o mundo é um universo no interior do qual o sagrado já se manifestou e onde, por consequência, a rotura dos níveis tornou-se possível [...] o momento religioso implica o momento cosmogônico porque o sagrado estabelece a ordem cósmica.” (ELIADE, 2008, p.33)

18

divina. Dito de outra forma, a sacralidade se manifesta através da natureza, “[...], pois o

sobrenatural está indissoluvelmente ligado ao natural; [...] a Natureza sempre exprime algo

que a transcende”. (ELIADE, 2008, p.100)

O culto ao senhor Bom Jesus do Iguape praticado ainda hoje em São Paulo é, por

exemplo, uma manifestação religiosa que expressa através dos ex-votos marítimos10 um

relacionamento mítico entre o homem e as águas do mar. Os ex-votos representam geralmente

cenas de temor diante do mar revolto e ameaçador das frágeis embarcações revelando, pois os

perigos da vida marinha. (DIEGUES, 2000).

Tal simbologia remete-nos também à origem da concepção cristã que permeou o

imaginário ocidental sobre as águas marítimas. O mar nesta visão é sempre um meio de difícil

acesso, ameaça de morte, pois na “[...] cosmologia bíblica o oceano aparece como lugar de

tormentas, de catástrofes, do caos, sacrilégios e das punições” (DIEGUES, 2000, p.17),

ambiente de seres monstruosos e maléficos. O mar foi representado pela sua

imprevisibilidade, cheio de turbilhões e flutuações, requerendo coragem e sacrifício para

adentrá-lo, e, só por intermédio da vontade de Deus, o Criador, poderia ser contido.

Na Bíblia existe uma oposição entre Deus e o Oceano. Este combate é o de Deus contra o Mal, um princípio diferente do que é humano e divino. [...] O mar, no entanto, pela vontade divina, podia passar de obstáculo a caminho libertador para o povo judeu, como ocorreu em sua fuga para o Egito. (DIEGUES, 2000, p.161)

Por isso, o Oceano Atlântico à época das Grandes Navegações foi tão comumente

conhecido por ser um “Mar Tenebroso”. Não raro, os marinheiros europeus católicos

lançavam ofertas ao mar para acalmar as turbulências. Era constante a invocação de santos e

promessas, a exemplo de São Nicolau, devoção francesa dos tripulantes do navegador francês

Jean de Lery. A presença de demônios nos navios europeus era indubitável nos mares do

mundo cristão, pois causava mortes, tempestades, naufrágios e para combatê-los mantinha-se

a conexão com o sagrado por meio dos ritos como benção de barcos e procissões solenes nos

portos e missas que precediam a partida. (DIEGUES,2000)

O patrimônio cultural constituído é, pois uma construção histórica e simbólica na

relação entre o homem e a natureza. Lemos (1985) descreve a classificação Hugues de

10 Definido em Diegues (2000) como “objetos, ou ainda práticas de sentido religioso ofertadas aos seres sobrenaturais e, particularmente aos santos em retribuição às graças recebidas” (DIEGUES, 2000, p.157) No caso dos ex-votos marítimos, estes se apresentam por meio de pinturas retratando cenas dos perigos vividos no mar ou por meio de esculturas de barcos oferecidos à invocação.

19

Varine-Boham que desdobra em três categorias os elementos pertencentes ao campo do

patrimônio, a saber:

A primeira categoria compreende os recursos naturais, ecossistemas e todos os

elementos pertencentes à natureza como cachoeiras, rios, mares entre outros – o habitat

natural. A segunda categoria compõe o saber/fazer, integra o conhecimento e técnicas

apreendidas no desenvolver da capacidade de sobrevivência do homem em seu ambiente.

Compreende, pois, o saber construir, costurar, pescar, confeccionar entre outros. À terceira

categoria aplicam-se objetos, artefatos e construções obtidas a partir do ambiente e do

saber/fazer como computadores, carros, casas entre outros.

O patrimônio agrega, portanto, bens tangíveis interligados aos intangíveis

açambarcando valores, crenças, hábitos e costumes e todo o conhecimento legado, transmitido

de geração a geração.

A extensão do campo do patrimônio tem aproximado os seus componentes [...] o cultural e o natural, os quais se tornam complementares, sinérgicos e, assim, indissociáveis. Neste sentido, é importante observar que a natureza, além de provedora de recursos, se apresenta como marco cultural, contribuindo fundamentalmente para a definição de uma identidade local, regional, nacional. Desse modo, a distinção entre as classes cultural e natural de patrimônio tende a ser superada: já é por si mesma cultural variando temporal e espacialmente. (FILHO, 1999, p.183-184).

Outrossim, os bens culturais agregam manifestações de toda ordem moral, política,

econômica, mágica e espiritual. Conforme a Convenção para Salvaguarda do Patrimônio

Imaterial, documento publicado pela UNESCO em sua 32ª sessão, o patrimônio intangível é

importante fonte de diversidade cultural e garantia do desenvolvimento sustentável e assim o

define:

Entende-se por patrimônio cultural imaterial as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. Para os fins da presente Convenção, será levado em conta apenas o patrimônio cultural imaterial que seja compatível com os instrumentos internacionais de direitos humanos existentes e com os imperativos de respeito mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos, e do desenvolvimento sustentável”. (BRASIL, 2006, Art.2, p.04).

20

Sob este prisma, o patrimônio intangível está agregado ao sentido do coletivo e

manifesta-se, em particular, nas tradições e expressões orais, expressões artísticas, práticas

sociais, como rituais e atos festivos, conhecimentos e práticas relacionadas à natureza e

técnicas artesanais tradicionais. Assim, integra o patrimônio cultural o conjunto de bens

materiais e imateriais quais sejam referência à memória, à ação e à identidade de elementos

formadores de uma dada cultura.

Contudo, Gonçalves (2009) eleva a intangibilidade do patrimônio à categoria de

pensamento. O patrimônio é menos um símbolo que uma manifestação, menos um ato de

comunicação que de ação dos ideais e dos valores de cada contexto existencial. Na esfera

religiosa, o patrimônio é um fato social que faz, por exemplo, a mediação entre o homem e o

sagrado, presente e passado, mortos e vivos. Prenhe de significados, o patrimônio intangível

é extensão moral dos que o detém sendo inerente ao conjunto social e cósmico que sublima

sua condição de indivíduos. (GONÇALVES, 2009)

1.4 FESTA E FESTAS RELIGIOSAS

[...] Eis-nos por um instante convocados à evidência, para sermos lembrados ou para que algo ou alguém – uma outra pessoa, um bicho, um deus – seja lembrado através de nós, para que então alguma coisa constituída como sentido de vida e ordem do mundo, seja dita ritualmente através de nós, que, festejados, somos durante a brevidade de um momento especial enunciados com mais ênfase: somos símbolo.

Carlos Rodrigues Brandão

1.4.1 Ritos, Rituais

Ritos11 são celebrações, atos que ensejam a transposição de um universo cotidiano ao

extraordinário, constituem uma conexão com um mundo “especial”, pois “[...] não há

sociedade sem uma ideia de um mundo extraordinário, onde habitam os deuses, e onde em

geral, a vida transcorre num plano de plenitude, abastança e liberdade” (DA MATTA, 1983,

p.32)

Segalen (2005, p.08) atenta para o “deslocamento do campo ritual do centro social

para sua margem” na sociedade moderna. Esta, orientada pela técnica e eficácia banaliza o

conceito de rito como se o mesmo pertencesse exclusivamente às “sociedades primitivas”.

11 Uma definição de rito remete-o como sendo um “Ato mágico que tem por finalidade orientar uma força oculta no sentido de uma ação determinada” Disponível em: http://www.dicio.com.br/rito Acesso em 30/11/2012.

21

Os ritos deixaram de ocupar um papel central na sociedade contemporânea porquanto

foram dissociados das ações que acompanharam naturalmente as sociedades de outrora a

exemplo da dança, do batismo, do casamento, do matrimônio, da morte que demandavam em

atos públicos e hoje se consagram mais como privados. (SEGALEN, 2005)

Todavia, os ritos são elementos da natureza humana e tem como característica

principal “[...] a sua plasticidade, a sua capacidade de ser polissêmico, de acomodar-se à

mudança social, [...] é universal na medida em que toda a sociedade tem uma grande

necessidade de simbolização” (SEGALEN, 2005, p.09/10)

O rito ou ritual é um conjunto de atos formalizados, expressivos, portadores de uma dimensão simbólica. O rito se caracteriza por uma configuração espaço-temporal específica, por seu curso a uma série de objetos, por sistemas únicos de comportamento e linguagens específicos e por signos emblemáticos, cujo sentido codificado constitui um dos bens comuns de um grupo (SEGALEN, 2005, p.30)

Tal definição incide na dimensão coletiva - o ritual é fonte de sentido para quem

compartilha. As manifestações rituais podem marcar rupturas e descontinuidades, momentos

críticos em momentos individuais e sociais. Nesta premissa, sua eficácia social está no fato

de ser a essência do ritual a aliança entre o tempo individual e o tempo coletivo. (SEGALEN,

2005)

Os rituais estão presentes no dia a dia das sociedades em quaisquer tempo e lugar, são

a marca de uma vida social. São eventos, ações sociais tanto formais como informais, sendo

simples ou refinados, festivos, profanos ou religiosos que comunicam algo implicitamente e

explicitam o que há de comum em dado grupo. (PEIRANO, 2003)

Por meio do ritual identificam-se “[...] aspectos de uma sociedade que dificilmente se

manifesta em falas, depoimentos e discursos. [...] podemos observar aspectos fundamentais de

como uma sociedade vive, se pensa e se transforma - o que não é pouco” (PEIRANO,

2003,50-51). Nesta perspectiva, os ritos ou rituais serão sempre ressignificados ou redefinidos

enquanto existirem diferenças culturais e tanto quanto a natureza humana demandar

simbolização refletindo modos de vida, de pensamento e de ação.

[...] o ritual é um fenômeno especial da sociedade, que nos aponta e revela representações e valores de uma sociedade, mas o ritual expande, ilumina e ressalta o que já é comum a um determinado grupo. [...] Rituais são bons para transmitir valores e conhecimentos e também próprios para resolver conflitos e reproduzir as relações sociais”[...] O ritual é um sistema cultural de comunicação simbólica. (PEIRANO,2003,p.10/11).

22

No tocante a experiência religiosa o rito revela alguma necessidade humana a partir

de aspectos da vida individual e social: “[...] todas as religiões podem ser sociologicamente

analisadas por evidenciar seu vínculo com as estruturas sociais de que procedem e explicam

seu desenvolvimento” (SEGALEN, 2005, p.16).

Nessa premissa Mauss (2001) enfatiza os ritos12 como práticas de simbolização que se

traduzem pelo ato de crer em um efeito. É o caso da prece (oração), um fenômeno

eminentemente religioso que se configura como um rito oral que tem como principal objetivo

a ação sobre o sagrado para a modificação dos seres que o regem.

Dessa forma, mesmo a prece sendo um ato mental (base cognitiva), seu sentido é

pensamento e ação, pois na expressão de sentimentos e ideias religiosas desempenha função

de força, é “[...] ,uma petição brutal, um cântico rezado, um ato de fé, confissão, louvor,

súplica, um hosana.”(MAUSS,2001,p.229) Assim, a prece “põe em movimento poderes

religiosos” em benefício de si próprio ou de outrem. Neste ínterim, o rito entendido enquanto

ato prescritivo faz-se também em circunstancias determinadas e isso é o que notoriamente

garante sua eficácia, mesmo quando toda ela

[...] se torna pura adoração, quando todo o poder parece reservado a um deus, como na oração católica, judia ou islamita, ainda é eficaz, pois é ela que incita o deus a agir em tal ou tal direção.[...] há oração todas as vezes que estivermos na presença de um texto que mencione expressamente um poder religioso[...] Na falta desta[...] se o lugar, as circunstâncias, o agente do rito tiveram um caráter religioso, isto é, se for realizado num lugar sagrado, no decurso de uma cerimônia religiosa ou uma personalidade religiosa( MAUSS,2001,p.270)

Van Gennep (2011) concebe o rito como elemento socialmente relevante. Os ritos são

celebrações intrínsecas às manifestações religiosas, mas são, sobretudo, fenômenos

recorrentes em quaisquer planos do mundo social e revelam tanto crenças como condições

físicas ou status sociais simbolizados. São etapas, sua finalidade é a passagem de um estado a

outro sendo a mudança, sua verdadeira essência: “[...] o indivíduo modificou-se, porque tem

atrás de si várias etapas, e atravessou diversas fronteiras” (VAN GENNEP, 2011, p.24)

Os ritos possuem mecanismos, significações. Os ritos de passagem são ciclos

celebrativos de momentos circunstanciais de vida aliadas também aos ciclos da natureza. O

momento de transição, de passagem de um estágio a outro se configura como “liminar”. Dá-

se, por exemplo, a passagem do profano ao sagrado e vice-versa, da condição de solteiro a

casado, da gravidez ao parto, da estação primaveril ao verão dentre outros, enfim, a vida 12 Mauss (2001) define os ritos como “[…] atos tradicionais eficazes que versam sobre coisas ditas sagradas”. (MAUSS, 2001, p.269)

23

imprime vários limiares: o nascimento, a adolescência a maturidade, a velhice, a morte e a

outra vida, para o que crê. (VAN GENNEP, 2011)

[...] Finalmente, a série de passagens humanas liga-se mesmo em alguns povos à das passagens cósmicas, às revoluções dos planetas, às fases da lua. Há nisso a idéia grandiosa de ligar as etapas da vida humana às da vida animal e vegetal, e depois, por uma espécie de advinhação pré-científica, aos grandes ritmos do universo. (VAN GENNEP, 2011, p.160)

Por fim, o rito “[...] dá asas ao plano social e inventa, talvez, sua mais profunda

realidade.” (DA MATTA, 1983, p.31). Seu sentido, reporta-nos o autor, é dramatizar o mundo

como forma de tomada de consciência deste, seu discurso é simbólico porque imprime um

plano ideológico haja vista salientar certos elementos do mundo em detrimento de outros em

situações especiais.

1.4.2 Festas

A festa é um meio de organização social, a concretização da necessidade de convívio

grupal para troca de sentimentos e ou experiências. É momento de dinâmica sociocultural em

que uma coletividade reafirma, de modo lúdico, as relações culturais e a cultura que lhes são

próprias.13 A festa é ainda uma manifestação de identidade coletiva como propõe Del Priore

(1994), uma celebração, uma expressão ritualística de uma mentalidade, de uma cultura que

reflete seus ideais e utopias.

Festar é também um ato de efervescência coletiva porque instaura e constitui outro

mundo, outra forma de experienciar a vida social, marcada tanto pelo lúdico como pela

exaltação dos sentidos e das emoções.14 Na festa conservam-se tradições porque há repetição

de certos valores e comportamentos remanescentes, já que implica certa continuidade em

relação ao passado como discute Hobsbawm (1984).15

Perscrutar um ato festivo “[...] deve levar em consideração a armadura que a

ritualização dá à existência humana” (OZOUF, 1976, p.17), pois nele se identificam trajes,

gestos, gostos, objetos que fazem parte de uma simbologia capaz de renovar uma emoção e,

portanto, revela a necessidade particular de retomar o tempo pretérito. (OZOUF, 1976).

Outrossim, representa quebra de cotidiano, unidade de um grupo e, sendo produto de uma

realidade social expressa conflitos e tensões ao mesmo tempo em que atua sobre eles. Assim,

a festa é o espaço de “[...] múltiplas territorialidades em que a hegemonia das representações é

13 (THINES, G; HEMPEREUER, 1984, p.09). 14 (PEREZ, 2002, p.15-58). 15 (HOBSBAWM, 1984, p.09).

24

construída por meio de qualificações e desqualificações, de lembranças e esquecimentos”

(BEZERRA, 2007, p.176).

Enquanto objeto de estudo, a festa permite o conhecimento de diversas dimensões da

sociedade na qual está inserida, pois “[...] através dela, poderá espiar uma rica miríade de

práticas, linguagens e costumes, desvendar disputas em torno de seus limites e legitimidade,

ou da atribuição de significados, sentir as tensões latentes sob as formas lúdicas” 16.

Amaral (1998) avalia que através da festa o homem tende a renovar-se rompendo,

“reabastecendo a sociedade de energia, de disposição para continuar” (AMARAL, 1998).

Portanto, define a festa como sendo mediadora entre a realidade e o ideal, entre o criador e a

criatura, entre o individual e o coletivo, entre o passado e o presente, entre o ser e o não ser,

entre natureza e cultura. Desta forma, a festa transforma “em pontes os opostos tidos como

inconciliáveis” (AMARAL, 1998, p.52).

Sendo uma linguagem [...] a festa é não só um fenômeno social [...] é uma das expressões mais completas e perfeitas das utopias humanas de igualdade, liberdade e fraternidade.[...] como os fonemas na linguagem, os elementos da festa[...] são elementos de significação[...] São elaborações do espírito em nível inconsciente, expressas através de mitos que fundamentam a festa, da música, da alimentação e da dança, quando ela existe, e sua repetição em regiões geograficamente distantes e mesmo entre povos diferentes nos levam a imaginar que, de modo semelhante ao caso da linguagem, os fenômenos visíveis são o produto de algumas leis gerais, embora ocultas”. (AMARAL, 1998, p. 50-51)

A gênese da festa brasileira, eminentemente religiosa, foi constituída aos moldes dos

colonizadores europeus que tinham como finalidade tornar eficaz o processo de colonização a

ser legitimada pela Igreja e pelo Estado: “[...] o rei e a religião, numa aliança colonizadora,

estendiam o seu manto protetor e repressor sobre as comunidades, manto este que apenas por

ocasião das festividades coloria-se com exuberância” (DEL PRIORE, 1994, p.15).

Nesta perspectiva, as procissões de santos eram infindáveis e salientavam a essência

sacro-profana das festas. No contexto colonial, a festa foi diluidora de tensões sociais e aos

poucos, apropriadas aos moldes das populações locais como índios, negros e os novos

colonos através das promessas e de milagres que se tornaram arraigadas à cultura popular.

[...] todas as festas não apenas atualizam mitos, como revivem e colocam em cena a história do povo, contada sob seu ponto de vista. Ela é, desde os primeiros tempos da colonização um dos lugares ocupados pelo povo na história brasileira, talvez uma de suas primeiras conquistas reais, e nela ele se vê e se representa em papéis ativos. Desfilando pelas ruas a riqueza de suas relações com outros grupos, o privilégio de suas relações com as divindades todas que ouvem suas preces e lhe entregam

16 (CUNHA, 2002, p.12)

25

milagres, ele se reconhece. Como se reconhece em força nas massas que caminham por grandes avenidas empurrando carros alegóricos com símbolos de sua história, empurrando a própria história, em toda a sua riqueza levando em frente suas paixões e utopias. (AMARAL, 1998, p.274).

Constituída pela diversidade étnica, a festa “à brasileira” imprime sua identidade em

espaços múltiplos: música, danças, religião, artes dentre outros. Nesse pressuposto, o

carnaval segundo Da Matta (1993) é uma festa exclusivamente profana e insere-se

ciclicamente como ritual extraordinário de equilíbrio de vida do brasileiro, uma forma

diferente e alternativa visão de si mesmo.

O carnaval reflete a complexidade da sociedade brasileira haja vista que canaliza em

um tempo excepcional a dramatização das agruras de um cotidiano desigual, hierárquico,

convencional, opressor, excludente e caótico. A passagem deste estado de coisas dá-se em

forma de orgia, sexualidade, alegria e brincadeira, configurando-se num culto à liberdade e a

um naturalismo edênico de sedução.

Esse festar brasileiro revela uma de suas tantas faces que é segundo o autor, a

ideologia preponderante na sociedade de uma lógica em que a natureza é vista como

prodigalidade, paraíso/mãe, fonte de recursos inesgotáveis: “[...] um cenário onde os encantos

levam de vencida as dificuldades e onde a natureza e as criaturas teriam sido criadas para o

prazer e a alegria do homem.” (DA MATTA, 1993, p.133)

Durkheim (1996) busca o entendimento das formas elementares da vida religiosa a

partir de características que são comuns e inerentes a quaisquer religiões17. Neste sentido, as

crenças (pensamentos) e ritos (movimentos) são os pilares de uma vivência religiosa. O

fenômeno religioso é um construto ideal de sociedade, pois “[...] a sociedade ideal não está

fora da sociedade real, faz parte dela [...], uma sociedade não é constituída pela massa dos

indivíduos que a compõem [...] mas, pela ideia que ela faz de si mesma.” (DURKHEIM,

1996, p.467) Há, pois, a necessidade de por coletivamente em eficácia a visão de mundo pela

exaltação da fé, entendida como potência espiritual a agir na vida moral.

Nesse postulado, a festa apresenta-se como ato recreativo da religião envolta de ritos

e simbologias que exprimem forças reais para a vida em momentos de exaltação onde a

sociedade busca uma renovação espiritual; Tem por função, o restabelecimento de um valor

17 Para Durkheim (1996), as religiões expressam uma realidade, um aspecto da natureza humana com suas razões lógicas, sendo um sistema de representações. Tem como característica a ideia do sobrenatural que é o plano do misterioso, do incognoscível, do onipresente, de uma força invisível e onipotente que em tudo age. A religião é um todo formado de partes complexas de dogmas, ritos e mitos, é uma coisa eminentemente social. “A sociedade é a alma da religião”. As forças religiosas são forças humanas, forças morais. (DURKHEIM, 1996, p.462-465)

26

moral, nela “[...] mudam as condições da atividade psíquica, as energias vitais são

superexcitadas, as paixões ficam mais intensas, as sensações mais fortes [...] o homem não se

reconhece.”(DURKHEIM,1996,p.466)

É uma experiência que revela essas necessidades existenciais aos níveis individual e

coletivo porque se suspende a rotina do trabalho, da vida pública para o momento de repouso,

de encontro com o outro num grau excepcional do que normalmente se dá: “o homem torna-se

outro”, transforma-se e transmuda o meio que o cerca.

[...] As representações que ele tem por função despertar [...] são tão necessárias ao bom funcionamento de nossa vida moral quanto os alimentos para o sustento de nossa vida física, pois é através delas que o grupo se afirma e se mantém – e sabemos até que ponto este é indispensável ao indivíduo. (DURKHEIM, 1996, p.417)

O autor aponta que o rito não deve ser apreendido como um jogo, “é vida séria”, já

que o irreal e o imaginário imbricam-se no sentimento do fiel participante em busca de seu

reconforto. Assim, ao final do rito em que se dá o “restabelecimento moral”, o retorno à vida

profana dá-se,

[...] com mais coragem e ardor, não somente porque pusemos contato com uma fonte superior de energia, mas também porque nossas forças se revigoram ao viver, por alguns instantes, uma vida menos tensa, mais agradável e mais livre. [...] É por isso que a idéia mesma de uma cerimônia religiosa desperta naturalmente a idéia de festa. Toda festa mesmo que puramente leiga por suas origens, tem certos traços da cerimônia religiosa, pois sempre tem por efeito aproximar os indivíduos, pôr em movimento as massas e suscitar um estado de efervescência, às vezes até de delírio. [...] O homem é transportado para fora de si, distraído de suas ocupações e preocupações ordinárias. (DURKHEIM, 1996, p.417)

Dessa forma, é na festa que os ritos materializam as crenças tornando-as ativas porque

são partilhadas, havendo uma necessidade intensa de estar em conjunto, de exprimir o mundo,

de externalizar, “[...] de revigorar, a intervalos regulares, os sentimentos coletivos e as ideias

coletivas que fazem sua unidade e sua personalidade.” (Durkheim, 1996, p.472) Nesse

contexto, os ritos constituem uma ação prescritiva, são, via de regra, normas de conduta

diante das coisas sagradas, uma forma de estabelecer o comportamento perante o sagrado.

Caillois (1988) concebe a festa como uma necessidade social e sacral em todo e

qualquer tempo, toda e qualquer civilização. A festa é um movimento sagrado de

transgressão porque se apresenta como interrupção da vida ordinária, em que as regras sociais

são momentaneamente suspensas. Tem como característica fundamental a agitação sem igual

em que se “libertam os instintos do indivíduo, recalcados pelas necessidades de existência

organizada, e desemboca ao mesmo tempo numa efervescência, [...] enchente da vida

coletiva”. (CAILLOIS, 1988, p.124)

27

A festa é recurso ao sagrado (força) como necessidade subjetiva de sentimento e

respeito a algo transcendente, fora da razão humana, fonte de força e de toda a eficácia

existencial:

O sagrado pertence como uma propriedade estável ou efêmera a certas coisas (os instrumentos do culto), a certos seres (o rei, o padre), a certos espaços (o templo, a igreja, os lugares régios), a certos tempos (o domingo, o dia de Páscoa , o natal, etc.). Nada há que não possa tornar-se sua sede e revestir assim aos olhos do indivíduo ou de uma coletividade um prestígio sem igual. [...] Por muito evoluída ou por muito grosseira que a concebamos, a religião implica o reconhecimento desta força com a qual o homem deve contar. (CAILLOIS, 1988, p.20/22)

Conforme o autor, a festa inaugura novos tempos “[...] do mesmo modo que a natureza

inaugura um novo ciclo.” (CAILLOIS, 1988, p.99) Tudo o que existe deve ser então

rejuvenescido, renovado, restaurado sendo preciso recomeçar a criação do mundo com

preenchimento de função do sentido da vida sempre no limiar entre sagrado e profano e vice-

versa, seja pela evocação aos antepassados, seja pela passagem de um status social a outro, do

caos à ordem e da ordem ao caos, a comemoração do nascimento e a solenidade da morte a

suspensão do tempo ordinário e a regulação pela infração.

Na sua forma plena, com efeito, a festa deve ser definida como um paroxismo da sociedade que ela purifica e renova ao mesmo tempo. Ela é o seu ponto culminante [...] Ela aparece como o fenômeno total que manifesta a glória da coletividade e a retempera no seu ser [...]é o momento em que se vive o mito e o sonho. Existe-se num tempo, num estado, em que a única obrigação é desprender-se e despender-se a si mesmo. (CAILLOIS, 1988, p.122/123).

As manifestações religiosas mediam a relação do homem com o sagrado não só pelas

crenças que as reafirmam como também pelos ritos que são os meios que as concretizam na

prática:

[...] As cerimônias religiosas transtornam a alma dos fiéis. [...] Na realidade, a festa é frequentemente tida pelo próprio reino do sagrado. O dia de festa, o simples domingo, é antes de mais um tempo consagrado ao divino, em que o trabalho é interdito, em que se deve repousar, gozar e louvar a Deus. (CAILLOIS, 1988, p.97).

Do mesmo modo, a festa religiosa é para Eliade (2008) um reencontro com a

dimensão sagrada entendida como plenitude da vida. Nesta mesma dimensão reconecta-se

periodicamente com a presença de deuses, ou um Deus, mesmo que invisível. A festa é um

tempo sagrado visto que busca a reatualização constante de um tempo mítico, causa primeira

da realidade. Um tempo original em que o homem religioso pode estar periodicamente na

presença da divindade por ele proclamada e com quem apreendeu os modelos de conduta e

valores morais, com quem obteve orientação e força para continuar no mundo profano.

28

Para o cristão, a festa consagra-se por um tempo santificado, um tempo litúrgico18 em

que o calendário sagrado repete ciclicamente os acontecimentos da vida de Cristo. O marco é

o seu nascimento “[...] porque a encarnação funda uma nova situação do homem no Cosmos

[...] uma nova dimensão da presença de Deus no mundo.” (ELIADE, 2008, p.97)

Passos (2002) assinala os sentidos da festa na vida. A festa é, para o autor, uma

ligação entre o indivíduo e a coletividade, um objeto de múltiplos olhares na busca do

entendimento da experiência humana porque emociona, faz pensar, rememora tradições,

evoca o trabalho, anuncia conflitos e promove a união:

No cenário da festa, vozes e imagens se integram. Há uma conjunção solidária do presente com o passado. [...] Pôr em cena gestos, versos, sabedorias e memórias, é uma forma de evocar o próprio mistério do viver. A intimidade do ser. [...] As festas marcam o tempo. O eco das vozes arrastam pessoas, temas, lugares. Memória, esquecimento, perdão vão sendo recortados na moldura da festa. Diligência de busca e procura. “Relembramentos” da vida. De vidas. Entre a dureza do presente e o sonho de um futuro melhor, as festas ajudam a entender os arranjos do sentir, do viver e do agir. (PASSOS, 2002, p.09-10).

No contexto da elaboração festiva concernente ao catolicismo popular, Passos (2002)

toma a festa enquanto manifestação cultural e religiosa que evoca a memória coletiva. O

catolicismo popular revela a apropriação de uma tradição europeia imposta que sendo

reinterpretada, reinventada tomou forma própria no ideário popular.

[...] o catolicismo popular é uma forma de exprimir os sentimentos e emoções das camadas populares. Torna presente o ausente no cotidiano da vida. Através das diversas manifestações, o povo conquista seu espaço, organiza-o e o recria. Sob muitos aspectos, é um meio de fazer valer seus valores, seus desejos e utopias. É uma forma que as camadas populares têm para fazer valer sua história de vida. [...] Permeado por um discurso menos elaborado e mais modesto, procura dar sentido à existência, organizar a visão de mundo, entender e explicar os diversos problemas (PASSOS, 2002, p.181).

A festa pode ser definida como um “ritual complexo” (ALVES, 1980) entendendo-a

como um conjunto de práticas rituais que combinam princípios básicos sequenciais e

desdobramentos decorrentes: “esses princípios são dados pela existência de valores

significativos e símbolos representativos dos diferentes grupos que participam do

acontecimento, e indicativos de comportamentos, atitudes e ideais opostos, ainda que

complementares” (ALVES, 1980,p.101).

18 Deriva de liturgia: “Conjunto das cerimônias e preces ordenado pela autoridade espiritual competente; ritual”. É o conjunto de ritos da Igreja Católica. Vide: http://www.dicio.com.br/liturgia. Acesso em 29/11/2012.

29

O ritual da festa engloba momentos que não fazem parte da rotina, situações

extraordinárias em que se verificam categorias que se complementam e que operam

simultaneamente como exemplos o sagrado (o ato religioso instituído) e profano (popular),

ordem e desordem, solidariedade e ou diferenciação, formalidades e ou informalidades:

[...] essa compreensão exige um sistema codificado capaz de comunicar o significado dos fatos narrados e /ou vividos, os dramas representados, os acontecimentos atualizados bem como o valor simbólico dos instrumentos e agentes em ação. [...] A multiplicidade de símbolos, de gestos simbólicos, de uma verbalização específica, enfim, o conjunto de elementos que compõe a Festa de Nazaré nos permitem avançar no sentido de mostrar que nesse momento extraordinário, operam categorias que possibilitam, anualmente, a sociedade regional atualizar sua cognição sobre sua própria existência, e a dos indivíduos em particular, ou como integrantes de uma coletividade (ALVES,1980,p.25/29).

Outrossim, a festa do Círio de Nazaré em Belém, revelou ser uma manifestação de

coesão, de identidade regional paraense reconhecida pela sociedade local através de símbolos,

de um código culinário, de uma linguagem (orações, canções e rezas) e gestualidade próprias

(oferendas) e de um “jeito típico” de comemorar; é uma manifestação de solidariedade , pois

sendo uma “performance ritual permite que as pessoas, ainda que reconhecendo o poder

sacralizado, e a hierarquia demonstrada, vivam momentos de intensa alegria, de contato

direto, de superação de barreiras sociais e suspensão momentânea de diferenças”

(ALVES,1980,p.102)

A procissão é elemento obrigatório de todo o ritual de culto a um santo padroeiro:

“[...] a força simbólica do santo que é festejado está precisamente, no fato de que ele surge

como um aglutinador de forças ou situações que em tempos normais seriam conflitantes, ou

no mínimo diferenciadas” (ALVES, 1980, p.46). Desse modo, o percurso de uma procissão

torna-se um espaço social que permite conexão com a dimensão sagrada bem como consagra

relações de grupo socioeconomicamente distintos como o poder eclesiástico, o poder político,

o poder militar e o povo. É no momento da procissão que se identifica metaforicamente

através da promessa, do sacrifício e das orações os aspectos conectivos, cognitivos com o

social e o sacral.

A corda, por ser um lugar em que as pessoas se unem pela promessa que cada um faz à santa, é um local privilegiado para a emergência de uma atitude comunitária. [...] Na corda, as diferenças sociais se neutralizam e é comum ver indivíduos que desfrutam de posições sociais privilegiadas desempenharem um mesmo papel no ritual e compartilharem do mesmo sacrifício de ir descalço.[...] Essa é a expressão simbólica mais visível do despojamento na situação do sacrifício. Numa extensão de 120 a 150 metros, a corda constitui uma espécie de parede humana que circunda o centro da procissão. [...] A corda é o elo entre o povo e a santa (ALVES, 1980, p.46-47).

30

De igual modo, Da Matta (1983) entende a procissão. Porém, insere as festas de

padroeiro ou “festas de santo” num discurso hierarquizante do sagrado sob o monopólio da

Igreja. A legitimação deste controle se dá por meio de rituais a exemplo das missas que

reproduzem o alto nível de rigidez e de representatividade: de um lado, o sacerdote que liga

Deus aos homens por uma hierarquia divina; de outro a hierarquia do padre que liga os

homens entre si.

[...] a mediação entre o povo e o santo é realizada pelas autoridades que carregam o santo no seu andor e estão mais próximas dele.[...] o encontro e a convivência dos diversos elementos descontínuos da estrutura social sob a égide da Igreja, corporação que tem o monopólio das relações com o espiritual. As festas religiosas, assim, por colocarem lado a lado e num mesmo momento o povo e as autoridades, os santos e os pecadores, os homens sadios e os doentes, atualizam em seu discurso uma sistemática neutralização de posições, grupos e categorias sociais, exercendo uma espécie de Pax Catholica. (DA MATTA, 1983, p.51/55)

Sob o rito da procissão, a hierarquização do sagrado se subtrai, mas não se dissipa já

que permanecem as estruturas da autoridade somadas aos demais grupos, porém, “[...] ao

mesmo tempo em que o santo homenageado está num andor e separado do povo por sua

natureza e pela mediação das autoridades que o cercam, ele caminha com o povo e dele

recebe na rua (e não na igreja) suas orações, cânticos e piedade” (DA MATTA, 1983, p.51)

Esses festejos evidenciam forte cunho de “identidade cultural” constituída pelos fiéis

católicos que homenageiam seus santos haja vista que a “[...] a festa religiosa [...] exige uma

ordenação muito rígida [...] controlada pelo grupo religioso [...] que propõe simbolicamente, a

presença de uma hierarquia em nome do sagrado”. (D´ABADIA, 2010, p.19)

No âmbito dessas festas de santos19 padroeiros no Brasil, Brandão (1978) entende-as

como uma expressão de sentido e sentimento de identidade de uma comunidade, “é o

reconhecimento de um nós local” 20. A festa é o acontecimento primordial de um lugar em

que se dá a manutenção das tradições vivas, um culto coletivo ao “santo”, “[...] uma espécie

de representante [...] objeto de homenagem e referência durante os dias da Festa”

(BRANDÃO, 1978, p.49) por meio de rituais públicos.

Entrementes, o modo como o povo se organiza para homenagear seus padroeiros

revela mudanças na rotina da comunidade local como na própria vida de quem nela está

19 Rosendhal (1996) define os santos como sendo “[…] representações fundamentais do catolicismo popular, seres pessoais e espirituais dotados de poderes sobrenaturais. Estando no céu, podem intervir junto a Deus em favor dos homens, graças aos méritos que adquiriram na vida. Os santos[...] se fazem presentes na terra por meio de sua imagem[...] estão ao alcance de qualquer fiel sem a intervenção de especialistas eclesiásticos. (RHOSENDHAL,1996,p.72) 20 (BRANDÃO, 1989, p.08)

31

diretamente envolvido, instaurando uma estrutura da ordem simbólica da festa, pois se

definem personagens, relações e novos papéis sociais para administração do acontecimento.

Neste ínterim, dá-se também uma influência maior da Igreja no comportamento coletivo, já

que esta estabelece um tempo de vida litúrgica como forma de legitimar a entrada da

instituição religiosa nas manifestações populares “[...] até os limites permitidos por sua

posição na sociedade.” (BRANDÃO, 1978, p.126)

Portanto, é indubitável a importância das festas enquanto manifestações culturais que

sob ritos ou rituais simbolizam as relações humanas, seus valores e práticas existenciais, os

ideais e representações do meio ambiente vivido. Sendo um fenômeno social, a festa

configura-se como patrimônio que se consolida pela sua celebração coletiva, uma propriedade

exponencial e singular de expressão em que pese a relação entre o homem e a natureza e, por

conseguinte a relação homem/homem.

1.5 MEMÓRIA

[...] A memória é retenção do passado atualizado pelo tempo presente. [...] Articula-se com a vida através da linguagem[...] é matéria-prima para o conhecimento histórico[...] é reflexão do homem sobre sua vida e seu tempo[...] é tempo de criação, de imaginação, de registro das tradições[...] é o elo temporal dotado de poder, informação e representação.

Lucila Delgado

A memória é uma base cognitiva que resguarda certas informações para

concatenação de atos, comportamentos e mentalidades. É a soma de “funções psíquicas” em

que o homem imprime, atualiza e representa o seu passado. (LE GOFF, 1982)

Na dinâmica do relembrar, estimulado por sinais exteriores, o homem memorioso reconstitui referências concretas, que se reportam a acontecimentos e a processos relativos ao âmbito da vida privada [...] a memória, não sendo um simples ato de recordar, revela os fundamentos da existência, fazendo com que a experiência de vida integre-se ao presente. (DELGADO, 2006, p.40/60).

Ato de construção permanente, a memória pressupõe um contexto social real tomado

como referência idiossincrática. Tem como função dar suporte de duração ao fluxo do tempo

contínuo imbuindo a experiência de vida em significados. (CANDAU, 2011; HALBWACHS,

2006). Porquanto, é uma dinâmica da vida afetiva e mágica como anuncia Nora (1996), pois

32

“[...] não se acomoda a detalhes que a confortam; ela se alimenta de lembranças vagas,

telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensível a todas as

transferências, cenas, censura ou projeções” (NORA, 1996, p.09) unindo o passado ao

presente e ao futuro.

As noções “históricas” como datas, fatos, narrativas, livros, modos de ser e de pensar

são meios de referência individual e coletiva, porém sempre passarão pelo crivo da

seletividade pelo qual o indivíduo ou grupo despertou interesses, preocupações ou

impressões, pois, a recordação de dado acontecimento se dá “[...] porque sentíamos que a

nossa volta todos se preocupavam com ele. [...] é da própria lembrança, em torno dela, que

vemos de alguma forma raiar seu significado histórico.” (HALBWACHS, 2006, p.82)

Memória é o ato pelo qual se constroem elaborações mentais de cunho individual,

porém compartilhadas à vivência de um plano coletivo haja vista que a dimensão pessoal da

existência está envolta, desde o nascimento, às redes de “solidariedades múltiplas” porque se

toma sempre como base referencial o outro, os outros, tal como nos descreve Halbwachs

(2006),

Nossas lembranças [...] nos são lembradas por outros. [...] Isso acontece porque jamais estamos sós. Não é preciso que outros estejam presentes, materialmente distintos de nós, porque sempre levamos conosco e em nós certa quantidade de pessoas que não se confundem. [...] Outras pessoas tiveram essas lembranças em comum comigo. Mais do que isso, elas me ajudam a recordá-las e, para melhor me recordar, eu me volto pra elas, por um instante, adoto seu ponto de vista, entro em seu grupo, do qual continuo a fazer parte, pois experimento ainda sua influência e encontro em mim muitas ideias e maneiras de pensar a que não me teria elevado sozinho, pelas quais permaneço em contato com elas. (HALBWACHS, 2006, p.30/31)

Candau (2011) elucida que a memória é uma construção social porque se evoca o

passado para buscar sentidos ao reivindicar lembranças que fundamentem determinados

discursos, é uma enunciação produzida por membros do grupo a despeito de um passado

comum a todos. Neste sentido, a memória é coletiva, um “jogo social”, uma representação21

que visa fundar, construir na dialética da lembrança e do esquecimento “quadros sociais”, haja

vista que a realidade engendra conteúdos do passado para sua reprodução. (HALBWACHS,

2006)

A memória coletiva [...] é o grupo visto de dentro. [...] Ela apresenta ao grupo um quadro de si mesma que certamente se desenrola no tempo, já que se trata de seu passado, mas de tal maneira que ele sempre se reconheça

21 Conforme Gil Filho (2008), o conceito de representação transcende à simples observação e opinião a respeito do mundo. Trata-se de uma “visão de mundo” que, internalizada expressa de forma articulada modelos organizacionais gerados a despeito de dada realidade.

33

nessas imagens sucessivas. A memória coletiva é um painel de semelhanças, é natural que se convença de que o grupo permaneça que tenha permanecido o mesmo, porque ela fixa sua atenção sobre o grupo e o que mudou foram as relações ou contatos do grupo com os outros. O essencial é que subsistam os traços pelos quais ele se distingue dos outros e que estejam marcados em todo o seu conteúdo. (HALBWACHS, 2006, p.109/110)

O processo memorial é menos uma reconstituição fiel do passado que uma

reconstrução em contínua atualização existencial porque permite a retrospecção como base de

novos sentidos referenciais capazes de estruturar as representações, crenças e ideias no

indivíduo e no interior de um grupo, de uma sociedade, fornecendo balizas de orientação

identitária. (CANDAU, 2011; FERREIRA, 2006) Tal necessidade é premente porque visa a

garantia de transmissão de todo um “corpus memorial” 22 a fim de que o homem não “[...] se

perca no presente contínuo, caracterizado por não possuir raízes e lastros[...]”

(DELGADO,2006,p.60) de modo que a perda da memória implica a perda de identidade.

Esta constante reelaboração do passado é a “identidade em ação” que ao promover

lembranças em detrimento de esquecimentos dá-se tomada de consciência advinda de uma

demanda do presente já que o “[...] apelo ao passado é um constante desafio lançado ao

futuro, consistindo em ponderar hoje sobre o que foi feito e o que poderia ter sido feito”

(CANDAU, 2011, p.66) Assim, memória e identidade são elementos indissociáveis que se

retroalimentam para produzir uma trajetória, uma história de vida, pois que

[...] se a memória é geradora de identidade, no sentido de que participa de sua construção, essa identidade, por outro lado molda predisposições que vão levar os indivíduos a incorporar certos aspectos particulares do passado, a fazer escolhas memoriais. (CANDAU, 2011, p.19)

A memória é alicerce do sentimento de identidade23, pois suscita continuidade,

conexão, coerência de uma pessoa ou de um grupo em seu processo de reconstrução.

(POLLAK, 1992). Todavia, vale ressaltar que estando a memória coletiva associada à ideia

de representação, a concepção de unidade ou homogeneidade de grupo como é comumente

entendida é relativa e deve levar em consideração a partilha de individualidades memoriais

em prol de objetivos comuns em um mesmo “horizonte de ação” (CANDAU, 2011).

22 O “corpus memorial” a que se refere Candau (2011) são as crenças, costumes, saberes, doutrinas de um grupo ou sociedade. 23 Delgado (2006) avalia que o conceito de identidade é diverso e complexo. No entanto, define identidade como sendo “[...] representações coletivas contextualizadas e relativas a povos, comunidades, pessoas [...] encarna-se em expressões e formas originais específicas, traduzidas por identidades religiosas [...], de gênero, políticas, nacionais. [...]” (DELGADO, 2006, p.61) Candau (2011) ressalta a identidade (cultural ou coletiva) enquanto representação de pessoas, membros de um grupo: como se imaginam e percebem-se no tocante à sua origem, à sua história. É a construção de um discurso quer seja político quer seja ideológico.

34

Nessas bases, a memória apresenta uma noção de convergência entre os sentimentos

subjetivos, entre as representações individuais do passado de dada sociedade pautadas no forte

conhecimento recíproco entre os indivíduos da qual fazem parte sob um compartilhamento

tácito de eliminações, acréscimos e escolhas.

A evocação [...] implica em uma comunicação com o outro e, no curso desse processo, a lembrança individual, sem cessar, submetida às transformações e reformulações, perde seu caráter isolado, independente e individual. [...] Nesse sentido, a memória coletiva funciona como uma instância de regulação da lembrança individual. [...] Quando os caminhos tomados pelas memórias individuais se cruzam e se confundem, esse encontro confere alguma pertinência à noção de memória coletiva que, nesse momento, dá conta de uma permeabilidade de consciências, em certos casos excepcionais e provisórias, de sua fusão e da convergência perfeita entre as representações do passado elaboradas por cada indivíduo. Quanto maior essa convergência, maior será aquela das representações identitárias. [...] (CANDAU, 2011,p.49).

Por isso, é também pela memória que se configura o autorreconhecimento numa

dinâmica da perspectiva de alteridade, identificação e afirmação de semelhanças e diferenças

no próprio “corpus social” do qual se faz parte e deste em relação a outros grupos, já que

oferece suporte a existência plural de identidades, condição da vida humana. (DELGADO,

2006)

Um elemento intrínseco à memória é a contextualidade, entendida como operação de

consciência do presente que busca pelas tradições a conexão com dimensões do tempo

estruturante de uma perspectiva humana do ser histórico. Desta feita, tanto a memória como

a identidade configuram novos símbolos e “funções culturais” que orquestram

continuadamente a mobilização de um grupo. (DIEHL, 2002)

A tradição é uma via de estratégia identitária que reforça o pertencimento em comum,

pois é meio de transmissão fortemente elaborada de saber, uma forma de mobilização da

memória que não implica somente em legar, mas também receber conteúdos sob vivência

quer seja por meio de rituais, quer seja por costumes, quer seja por meio de regras

estabelecidas dentre outras formas. A tradição se legitima por reprodução de sentidos no

conferir ao passado uma lógica moldada à realidade presente para o grupo que a detém haja

vista partir de um plano imaginário. (CANDAU, 2011)

Todavia, a operação modular da memória esboça a correlação entre lembrança e

esquecimento que desvelam o seu caráter de seletividade e ação. Logo, o esquecimento

pressupõe “eliminações” feitas no processo elaborativo memorial tanto individual quanto

coletivamente seja por quaisquer motivações, quer seja uma perturbação de um passado

35

doloroso, conflituoso; quer seja um discurso político - ideológico que visa forjar discursos e

identidades ou mesmo uma necessidade singular de autoafirmação. Por isso, o esquecimento

é também uma estratégia memorial já que alude menos a um “fracasso” da lembrança que a

um fator de intensa representatividade porque visa inovar, reconstruir, refazer. (CANDAU,

2011; DELGADO, 2006)

A memória é seletiva. Nem tudo fica gravado. Nem tudo fica registrado. [...] As preocupações do momento constituem um elemento de estruturação da memória. [...] Cada vez que uma memória está relativamente constituída, ela efetua um trabalho de manutenção, de coerência, de unidade, de continuidade, da organização. (POLLAK, 1992 p.204/207)

A atividade memorial implica a necessidade humana de manifestar-se numa

dimensão espacial tomada como referência perene de suporte da memória tanto individual

como coletiva. Tamanha a sua importância como nos esclarece Nora (1993), o lugar de

memória é o lócus de uma “consciência comemorativa”, instiga a reprodução da lembrança

em detrimento do esquecimento, mesmo de “[...] aparência puramente material [...] só é lugar

de memória se a imaginação o investe de uma aura simbólica. Mesmo um lugar puramente

funcional [...] só entra na categoria se for objeto de um ritual”. (NORA, 1993, p.21)

Esses lugares a exemplo de museus, festas, santuários, paisagens, cemitérios,

ambientes naturais dentre outros são marcos testemunhais e balizas identitárias donde os

grupos se reconhecem e se afirmam. São lugares/símbolos (materiais e imateriais) posto que

funcionam como “detonadores” de consciência, de compartilhamento de ideias e sentimentos

de pertença, de entrelaçamento de memórias individuais e coletivas, de aglutinação de

diferenças, de cristalização de ideologias, de materialização de práticas. (NORA, 1993;

CANDAU, 2011; HORTA, 2008)

O espaço sagrado é um exemplo de lugar de memória, via de regra, memória de uma

identidade religiosa porque inspira pertencimentos e representações de um dado grupo

espiritual haja vista que se reconstitui visivelmente uma comunidade em lembranças e

pensamentos que reportam à épocas pretéritas de experiências partilhadas. Igualmente, esses

lugares da memória religiosa são demarcações mentais estabelecidas pelo homem religioso

como centros de conexão com a transcendência, o outro da existência. Portanto, são espaços

culturais com forte teor de referencial simbólico. (ROSENDHAL, 1996; BONNEMAISON;

2002)

Toda religião tem sua história, ou seja, uma memória religiosa feita de tradições que remontam a acontecimentos distantes, frequentemente no passado, e que ocorreram em lugares determinados [...] seria bastante difícil

36

evocar o acontecimento se não houvesse o lugar ocorrido. (ROSENDHAL, 1996, p.36)

O cristão busca evidenciar sua fé ao adentrar em uma igreja ou quaisquer espaços

fixos donde conjuntamente com outros fiéis partilham a experiência religiosa haja vista que

estes lugares suscitam na memória coletiva imagens, sentidos de um tempo mitológico,

princípio ordenador do Cosmos (mundo) donde se emana toda a origem da vida e, por

conseguinte um código de valores e normas de conduta. (ROSENDHAL, 1996; ELIADE,

2008)

O tempo festivo alusivo a um santo padroeiro, por exemplo, evoca o passado porque

sugere um calendário em que se propõe através de ritos a reatualização cíclica com o

acontecimento original do vínculo fundador da devoção concebida como protetora de dada

localidade. (ELIADE, 2008; ROSENDHAL, 1996; D’ABADIA, 2010)

Assim, os ritos enquanto atos repetitivos das hierofanias24 primordiais compõem uma

memória religiosa (ELIADE, 2008; ROSENDHAL, 1996; GIL FILHO, 2008) e, podem estar

associados a elementos da natureza onde o sagrado se manifestou a exemplo da água batismal

que no cristianismo, remete ao Rio Jordão como lugar de sua prática original.

[...] a água foi a primeira sede do Espírito divino [...] o “homem velho” morre por imersão na água e dá nascimento a um novo ser regenerado. [...] Para o cristão, o batismo é um sacramento, pois foi instituído pelo Cristo (ELIADE, 2008, p.111/112)

O patrimônio é uma dimensão da memória, uma vez que fortalece a identidade

estruturando-a e legitimando-a:

[...] a elaboração do patrimônio segue o movimento das memórias e acompanha a construção de identidades, seu campo se expande quando as memórias se tornam mais numerosas; seus contornos se definem ao mesmo tempo em que as identidades se colocam sempre de maneira provisória., seus referenciais e suas fronteiras; pode assim retroceder quando ligada a identidades fugazes ou que os indivíduos buscam dela se afastar. O patrimônio é menos um conteúdo que uma prática da memória obedecendo a um projeto de afirmação de si mesma. (CANDAU: 2011, p.163-164).

Nesta premissa, o patrimônio é uma ação representativa da memória e pode

apresentar-se como reivindicação desta diante das possibilidades de sua manipulação. O

próprio patrimônio histórico brasileiro estava restrito, há décadas, ao sentido material dos

bens culturais, estando relacionado a tudo que fosse edificado. Tanto, que “preservaram-se

igrejas barrocas, fortes militares, casas-grandes e sobrados coloniais, esqueceram-se das

senzalas, dos quilombos, das vilas operárias e dos cortiços.” (ORIÁ, 2002, p.131) Essa

acepção, segundo Oriá (2002) foi adotada como parte de uma política imposta pelo Estado

24 Conforme Eliade (2008, p.17) hierofania é “algo de sagrado se nos revela”.

37

Novo a fim de forjar uma identidade única para o país, excluindo as diferenças e a pluralidade

étnico-cultural de nossa formação histórica.

38

CAPÍTULO II

39

CAPÍTULO 2 - UNIVERSO DO ESTUDO: METODOLOGIA E PROCEDIMENTOS DA PESQUISA

2.1 CONTEXTO DE ESTUDO

2.1.1 Notas sobre as manifestações de Bom Jesus dos Navegantes em Sergipe

As festas brasileiras têm sua gênese na tradição ibérica. As procissões foram seus

principais rituais, meio pelo qual se propagou, desde o período colonial, a participação

popular. Assim, as procissões no Brasil foram um legado do cristianismo medieval e tinham

como pressuposto a catequese pelo

deslocamento [...] da história sagrada [...] com fins de propagação às maiorias, dos princípios do Evangelho[...] já no primeiro século da colonização.[...] ao provocar o aparecimento de dramas didático- religiosos [...] baseados nas vidas dos santos[...] das virtudes cristãs, denominado moralidades.[...]Essa passagem da representação ritual para formas quase declaradas de diversão coletiva se daria por uma espécie de transbordamento das festas litúrgicas do calendário religioso do interior das igrejas para as ruas (TINHORIÃO,p.67 /68)

Nesse contexto, as procissões fluviais e marítimas apresentam-se sob forma de um

catolicismo popular característicos de populações litorâneas e ribeirinhas, a exemplo do norte

e nordeste brasileiros, porque são apropriações das tradições religiosas que por meio do lúdico

expressam a fé e a devoção a santos (os intercessores celestes na terra) com símbolos (igrejas,

capelas e ermidas), imagens e ritos. (DIEGUES, 2000; AZZI, 2001)

Em Sergipe, as cidades de Aracaju, Propriá, Laranjeiras e Itaporanga foram elencadas

por Lima (1971) como palco de festas consagradas a Bom Jesus dos Navegantes tendo como

característica singular o rito da procissão em águas e com datas fixas ou móveis sempre

ocorrentes no mês de janeiro.

Britto (2010) apontou algumas manifestações alusivas a Bom Jesus dos Navegantes

celebradas em municípios sergipanos às margens do rio São Francisco. Estas são recorrentes

nos quatro domingos do mês de janeiro, a saber: Neópolis (1º domingo), Gararu (2º domingo),

Santana do São Francisco (3º domingo) e Propriá (4º domingo).

Na cidade de Propriá, a festa de Bom Jesus dos Navegantes é celebrada

tradicionalmente há mais de 90 anos. Britto (2010) afirma ser um evento de cunho religioso

oriundo da fé popular donde a “[...] igreja católica como precursora dessa fé, abrigou o festejo

e o conduziu dentro de seus ritos sagrados” (BRITTO, 2010, p.68).

40

O estudo citado elucida o caráter do evento no contexto das festas religiosas brasileiras

enquanto manifestações que ritualizam uma experiência social singular dos que as realizam a

exemplo do Rio São Francisco, espaço dessa manifestação festiva em que se estabelecem

relações sociais culturais, políticas e econômicas da vida cotidiana dos ribeirinhos.

O rio São Francisco é um espaço vivo, local das relações sociais e laço cultural. [...] Não é apenas um rio para o povo ribeirinho, ele é parte da história de vida deste povo. Ele é o rio da sobrevivência mesclado com as diversas histórias de fé. [...] acompanhamos algumas dessas histórias que fazem com que o romeiro compareça à festa não só por devoção mas com a finalidade de pedir proteção ao santo protetor dos navegantes, em especial aos navegantes do Velho Chico.(BRITTO, 2010,p.48/49).

Em Aracaju, a Festa de Bom Jesus dos Navegantes foi registrada no bairro Santo

Antônio desde 1856, um ano após a mudança da capital do Estado tendo como cenário central

de celebração o cortejo fluvial nas águas do rio Sergipe, rito que se repete até os dias atuais.

(NASCIMENTO, 2002)

O autor debruçou-se em uma temporalidade estabelecida até a primeira década do

século XX, ano da criação da diocese de Aracaju, marco da realização do processo de

romanização empreendido pela Igreja Católica do século XIX enquanto prática de controle e

homogeneização das manifestações religiosas em Sergipe. Neste ínterim, a festa adotou as

prerrogativas da Igreja Católica como a adesão a datas, delimitação de dias festivos e a

utilização do espaço da igreja para ritos como batizados, missas dentre outros.

(NASCIMENTO, 2002)

Conforme Santos (2012), a Festa de Bom Jesus dos Navegantes foi a principal

manifestação religiosa dentre as celebrações natalinas da capital sergipana até a primeira

metade do século XX. Analisa a festa considerando-a num contexto de elaboração de práticas

culturais locais aliadas às práticas de novos grupos do interior do Estado as quais vieram

constituir a nova cidade criada às margens do rio Sergipe. Nesta perspectiva, avalia

sociabilidades, representações e apropriações do ato festivo de outrora em que tradição e

modernidade assentam-se sob uma conotação popular dada à festa ao passo em “[...] que a

mesma foi apropriada pela elite política, tornando-se uma celebração oficial da província e,

posteriormente, do Estado de Sergipe”. (SANTOS, 2012, p.205)

Também em Aracaju foi registrada a ocorrência da festa do Bom Jesus no bairro

Atalaia pelo memorialista Mellins (2007) remontando-a aos anos 30 do século XX ao citar o

cenário do festejo nas proximidades do palácio de Veraneio do Governo na pracinha

41

Alcebíades Paes “ [...] em que se exibiam grupos folclóricos durante as festas de São João e a

Procissão de Bom Jesus dos Navegantes” (MELLINS,2007p.209/210)

2.1.2 Caracterização da área de estudo

A cidade de Aracaju assenta-se ao longo do rio Sergipe e do Oceano Atlântico, para o

leste. Ao norte, limita-se com o rio Poxim, ao sul, com o rio Vaza Barris e a oeste, com o

município de São Cristóvão25. Os bairros Farolândia e Atalaia situam-se na região sul da

cidade sendo atualmente um centro de atração turística por apresentar uma das praias urbanas

mais frequentadas em face da infraestrutura existente em toda a orla beira-mar.

Segundo Mellins (2007), a paisagem da Atalaia, até a primeira metade do século XX,

era de um típico ecossistema litorâneo como dunas, restingas e poucos manguezais. A

primeira ponte de cimento construída sob o rio Poxim na década de 30 do século XX facilitou

o acesso Centro- Atalaia: “[...] de ano para ano aumentava o número de veranistas, e as casas

de palhas iam sendo substituídas por construções de alvenaria.” (MELLINS, 2007, p.269)

[...] até os primeiros anos da década de 30, era uma praia de difícil acesso, habitada apenas por pescadores e sitiantes que após o recuo do mar, foram ocupando os terrenos e construindo as primeiras habitações para sua moradia. (MELLINS, 2007, p.267)

Conforme relatos de antigos moradores, a vida cotidiana de outrora naquela

localidade, dedicava-se a atividades de banho no rio Poxim, à prática de pesca e roçados:

[ ...] aqui era uma região também de muito produtor de côco. Os nativos daqui [...] tinham sítio de coco, você pode ver que ainda tem né. [...] . Ainda na Sarney, você ainda vê... hoje tá meio morto porque a especulação imobiliária tomou tudo, mas era muito coqueiro mesmo, muito coqueiral...[...] O pessoal tomava banho aí. Repare bem, isso já na minha época. Não passava mais navio. Quando eu vim pra cá há 40 anos, não passava mais navio e já tinha mangue, mas tinha uma área que o pessoal tomava banho ali. Eu me lembro de Helena Bandeira tomando banho, era uma prainha. C.10

[...] quando chegava perto da festa de Bom Jesus, [...] dizia: “Bom Jesus, ói tá perto da festa de vós! Vou te fazer minha tirada, viu?” [ ...] o côco rendia que era uma gracinha dava pra ele fazer a festa toda só com o dinheiro dos côcos. [...] Porque antigamente o povo vivia aqui de sítio e de roça, de pescaria... C.12

Nesse contexto, celebrava-se a Festa de Bom Jesus dos Navegantes, um ato religioso

cultuado pelos habitantes do bairro Atalaia e que tinha como característica o rito da procissão

fluvial no estuário rio Poxim, mais conhecido como “Maré do Apicum”. A maré, uma laguna,

“braço de rio” que foi, portanto, cenário dessa manifestação até o ano de 2005.

25 (PMA, 2001, p.29)

42

A formação deste estuário se deu consoante a uma dinâmica do rio Sergipe que,

apresentava no século XIX, uma configuração diferente da que se apresenta hoje: o encontro

do rio com mar entre a Atalaia Nova e Coroa do Meio.

Almeida (1984) comprova que outrora, esse encontro se dava extensamente por uma

ampla embocadura sendo que a margem direita do rio compreendia boa parte do que

corresponde atualmente ao bairro Atalaia, e esquerda, hoje, Coroa do Meio, por onde

desaguava maior volume de água e onde a ação do mar exercia maior influência. Logo, o

canal sul da barra do Cotinguiba era a principal via de entrada e saída de navios onde se

localizam os bairros citados. (ALMEIDA, 1984; MACHADO, 1989).

Desde o período provincial, os rios sergipanos já apresentavam dificuldades de

navegabilidade haja vista a mobilidade constante das entradas fluviais pelo fluxo e refluxo das

marés e dos ventos. O movimento das águas marítimas influenciava a entrada e saída de

embarcações nas barras fluviais sergipanas e em especial, a Cotinguiba da qual “[...] se

conheciam as dificuldades que o navio enfrentava tentando transpor a barra, de areia e por

isso sempre mutável [...] Evidenciava-se já então o nítido processo de assoreamento que

marcaria a sorte futura da barra.” (ALMEIDA, 1984, p.33)

O processo de assoreamento da barra sul do rio Sergipe formou dois grandes bancos

de areia, duas grandes crôas ou coroas que passaram a bloquear a ampla embocadura até então

dividindo o curso do rio na sua foz em dois canais ao norte, denominado Pontal do Propriá e

mais tarde Atalaia Nova e ao sul (Barra do Sul). A figura 2.1, é uma planta hidrográfica do

século XIX em que se observa a Barra da Cotinguiba26 e o encontro das águas fluviais com o

oceano. A ilustração da Barra pela orientação norte/sul mostra a formação dos bancos de areia

à margem esquerda do rio donde já se observa o processo de formação das áreas continentais.

O pontilhado na figura ilustra as áreas submersas.

26 Almeida, (1984) esclarece que a Barra da Cotinguiba era a denominação antiga que se dava ao rio Sergipe. No entanto, pontua a barra referida conforme documentação pesquisada na qual a Cotinguiba aparece como sendo o trecho mais próximo ao mar. (ALMEIDA, 1984, p.31)

43

Figura 2.1 Planta Hidrográfica da Barra e Porto de Aracaju- 1894 Fonte: Almeida (1984)

Posteriormente, o estreitamento desse canal e seu gradual fechamento foram

conseqüências de fatores erosivos naturais, pois na barra da Cotinguiba é que o rio Poxim,

desembocava suas águas “[...] nas proximidades da foz, nela carreavam os sedimentos que

vinha trazendo. Juntamente com as águas pluviais, ainda mais embaraçavam o curso do rio e

aumentavam a movimentação das areias”. (ALMEIDA, 1984, p.34)

O fechamento da barra sul inicia-se em período posterior à fundação da cidade de

Aracaju na segunda metade do século XIX. A pressão do rio em seu canal norte acentuou

uma vez que recebeu maior volume de água, houve a necessidade de retificação do rio para

44

legitimar o processo de transferência da capital onde estaria instalado o terminal portuário.

Essa retificação consistiu no alargamento e aprofundamento por meio de dragagens no canal

norte, antigo pontal do Propriá, para a passagem das grandes embarcações e navios (PMA,

2000).

[...] eram dois canais principais, sendo que o canal sul, fazia o escoamento das águas provenientes dos rios Poxim e parte do Sergipe, e o canal norte denominado de Propriá, somente as águas do rio Sergipe. Com o grande depósito de sedimentos ao longo do trecho da costa sul do rio Sergipe, o canal que ficava nesta posição, entrou em processo natural de assoreamento, e o canal localizado a norte passou a receber um volume bem maior de água. [...] Tal fato associado ao aterro da pequena faixa do rio existente, culminou com o fechamento do braço de rio, consolidando a península da Coroa do Meio ao continente, transformando-se num braço morto dos rios Sergipe e Poxim, o que é hoje chamado de Maré do Apicum. (PMA, 2000, p.6 e 7).

A obstrução total da barra sul, consolidada pela junção das Coroas (Crôa do Meio e

Crôa Nova) – atual bairro Coroa do Meio27 – fez com que estes bancos de areia se

transformassem em áreas continentais, região de vegetação rasteira.

A Maré do Apicum é assim uma laguna resultante do fechamento da barra sul

obstruída pela junção das coroas, resultado evolutivo da formação dos bancos de areia

estabelecidos ali até então, passando a ser banhado única e exclusivamente pelo rio Poxim.

Desde seu processo de edificação, em 1855, a cidade de Aracaju vem sofrendo

degradação pela prática de aterros de manguezais, ecossistema típico de regiões litorâneas, e o

despejo de esgotos sem tratamento nos mananciais hídricos, afetando o equilíbrio dos

ecossistemas tendo como consequência o impacto socioambiental. (VARGAS, 2001)

Conforme Almeida (2008)28 esta situação, é a prática de uma política, de uma mentalidade

que se consagrou há séculos na capital sergipana e perdura até os dias atuais.

Mediante a especulação imobiliária, a Atalaia enfrentou mudanças como a

descaracterização territorial e espacial que, sem planejamento e rede de esgotos, trouxe como

consequência, dentre outras, a poluição, o assoreamento do rio e o gradual desuso pelos seus

moradores.

27 Segundo Machado (1989) “Coroa do Meio é a denominação atribuída, atualmente, ao conjunto de “solos criados” sobre antigas coroas de depósitos flúvio-marinhos nas desembocaduras dos Rios Poxim e Sergipe no Oceano Atlântico, próximo ao balneário de Atalaia Velha. Essa área constitui-se num elemento fundamental do sítio urbano de Aracaju hoje, e sua origem se associa á dinâmica do litoral, que está também associada às variações atmosféricas e aos movimentos de transgressão e regressão marinha que conferem, àquelas fozes, o tipo de estuários de rias.” (MACHADO, 1989,p.168) 28 O estudo de ALMEIDA (2008) aborda sob uma perspectiva histórica os aterros dos manguezais aracajuanos. A autora ressalta a participação da esfera pública e privada no aterramento desses ecossistemas. No caso da Atalaia, a prática de aterros advém desde a década de 30 do século XX com a construção da estrada de acesso ao bairro através da primeira ponte sobre o rio Poxim. Elucida conflitos a exemplo da implantação do projeto bairro Coroa do Meio (década de 80 do século XX) e a invasão da “maré do Apicum” na década de 90.

45

No contexto da evolução urbana recente da cidade de Aracaju, a Atalaia insere-se a

partir das décadas de 60/70 do século XX por ocasião da implantação do Aeroporto Santa

Maria e do TECARMO com a chegada da Petrobrás. Porém, a região “[...] ainda é um núcleo

urbano sem configuração de continuidade com a zona urbana de Aracaju.” (LOUREIRO,

1983, p.69).

Diniz (1963) acrescenta que até a década de 60 do século XX a Atalaia era uma praia

balneária e lugar de veraneio.

A Atalaia Velha, praia balneária e cidade de veraneio, está situada no município de Aracaju, aproximadamente a 8 km da capital [...]Sua população efetiva é pequena e pobre; habita casas de adobe ou palha e vive da pesca, da venda de frutas em Aracaju, ou de pequenas lavouras.”(DINIZ,1963,p.41)

Esta fase é ainda caracterizada por Loureiro (1983) como a quarta etapa do

crescimento da cidade que obedece a uma tendência nacional no contexto da ditadura militar

em que o aparelho estatal interfere diretamente na economia e na configuração do espaço

urbano. Tal cenário desdobra-se a nível local pela descoberta do petróleo e pela aceleração do

“[...] mercado de terras e a produção de habitações [...] assumindo rapidamente formas

especulativas” (LOUREIRO, 1983, p.70)

MACHADO (1989) avalia que a cidade como todo passou por um rápido crescimento

físico a nível horizontal, a partir da formação das periferias, e a nível vertical mais para a zona

sul com a ocupação de espaços residenciais ainda semi-rurais que à época se deu a partir da

construção das Avenidas Hermes Fontes, Saneamento e Francisco Porto.

Foram criadas todas as condições possíveis para a dinamização do mercado imobiliário, ainda que para uma demanda seletiva, por razões da Petrobrás e suas conseqüências, mas também como reflexo do “boom econômico” deflagrado no país, em fins da década de sessenta, época do famoso milagre brasileiro. (MACHADO, 1989, p.56)

As décadas de 70 e 80 do século XX determinam o início e consolidação da

incorporação do bairro à zona de expansão urbana da cidade sendo alvo de especulação

imobiliária considerada área nobre de ocupação, o que contribuiu decisivamente para que a

região se tornasse zona de moradia permanente, estabelecendo-se definitivamente como

bairro. Ademais, o bairro passa a ser visto enquanto possibilidade turística em face da beleza

paisagística e seu potencial em elementos naturais, no caso do acesso às praias. (MACHADO,

1989).

46

Na gama de transformações pelas quais passava o Estado, contexto do

desenvolvimentismo nacional, o chamado Milagre Brasileiro instigou o processo de expansão

urbana pelo ramo da construção civil:

[...] O culto ao crescimento econômico a “qualquer preço”, o favorecimento à concentração urbana na capital espelham no bojo de sua insensatez, a mesma lógica das economias de aglomeração cujas consequências negativas estão cristalizadas na maioria das metrópoles brasileiras (LOUREIRO, 1983, p.105)

Esse é o quadro também elucidado por Ribeiro (1989) a exemplo da fundação da

Universidade Federal de Sergipe, do Distrito Industrial, a transferência da sede administrativa

do Nordeste da Petrobrás e a consequente oferta de emprego, o crescimento populacional,

estímulo ao mercado imobiliário e, portanto, do setor de construção civil impulsionando assim

o surgimento dos conjuntos habitacionais. Desse modo, a expansão da cidade foi rápida haja a

vista “[...] a transferência de áreas pertencentes ao Patrimônio da União para o município de

Aracaju em 1976; com sua regularização [...] houve uma expansão das construções em

direção ao sul.” (RIBEIRO, 1989, p.59)

Foram criados empreendimentos tendo obras viabilizadas pela SUDENE, COHAB,

BNH e Banco do Nordeste para construção de ruas, iluminação pública, abastecimento de

água, saneamento e drenagem “[...] facilitando o fluxo de transporte e o deslocamento da

população para o centro e outros bairros surgindo os primeiros loteamentos planejados,

atratores da classe média” (LOUREIRO, 1983, p.81).

Neste ínterim, alteraram-se significativamente na Atalaia as relações de uso da terra

que tinha uma função social utilizada nas tarefas diárias da comunidade como extração de

côco, coleta de variados frutos típicos, passagem livre para pesca nos rios e mangues. A partir

das obras públicas, da construção civil, há uma nova dinâmica. (MACHADO, 1989) O

surgimento dos Hotéis de luxo, calçadões, bares e restaurantes fez-e eminente concorrendo

para uma classificação determinada por Ribeiro (1989) como zona de elitização. Esta

classificação se deve ao elevado valor da terra e pela tendência de ocupação à homogeneidade

das classes média e alta.

A duplicação da principal via de acesso á área – Avenida Paulo Barreto de Menezes -, a implantação da avenida Atlântica margeando o oceano e a construção da nova pista de acesso através da Coroa do Meio, nos anos 70, foram elementos determinantes para o enorme crescimento demográfico desta área.[...] (RIBEIRO,1989,p.113/114)

A área destaca-se também, no já referido período, por ser uma zona de Especulação,

segundo Ribeiro (1989). Corresponde à Coroa do Meio, zona situada entre o rio Poxim e o

47

mar e que já possuía à época um projeto de urbanização29 “[...] tendo como objetivos ampliar

a oferta de terrenos visando atender a algumas faixas de população com alto poder aquisitivo,

implantar infraestrutura,[...] proporcionar novas e extensas áreas de lazer[...]”

(RIBEIRO,1989,p115). Tal fato é avaliado pela estudiosa como fator de emergência da

expulsão das favelas ali já existentes pela prefeitura da cidade.

Desta forma, até o final da década de 1980, a Atalaia torna-se moradia permanente

para os seus ativos veranistas e bairro consolidado na expansão urbana de Aracaju. À

paisagem natural típica do ecossistema litorâneo como dunas e restinga dá-se lugar os aterros

e construções das mais modernas casas e rodovias, calçadões e posteriormente ciclovias,

destacando-se ao longo do tempo uma grande pressão sobre o braço do rio Poxim, a Maré do

Apicum.

O contexto acima descrito apresenta-nos os problemas de favelização como aponta o

documento denominado Plano Estratégico Municipal de Assentamentos Subnormais

(PEMAS). O referido documento traça em 2001 um mapeamento e uma análise da situação

habitacional da cidade indicando serem historicamente as populações de baixa renda as mais

afetadas pelas más condições de moradia. Esta população, assentada em áreas de proteção

ambiental como manguezal e rios contribuíram também como fator de pressão aos

ecossistemas.

O diagnóstico das invasões e ocupações chamadas subnormais, conforme referido

documento deveu-se a uma política habitacional voltada exclusivamente às classes de alto

poder aquisitivo. No tocante às populações de baixa renda,

O assentamento subnormal é imposto como recurso [...] para atender às suas necessidades básicas de moradia. O contingente populacional aí envolvido, desassistido das ações do poder público, é forçado a morar em periferia, em condições extremamente precárias, sem calçamento, rede de esgoto, energia, água [...] Resulta do modelo [...] concentrador e excludente alimentando-se da desigualdade social, disparidade de renda, baixos salários, desemprego (PMA, 2001, p.92)

As mudanças estabelecidas foram realmente significativas, pois conforme Diegues

(1991)30 a ocupação das zonas litorâneas e costeiras alterou as relações básicas e tradicionais

de populações “[...]que vivam numa verdadeira simbiose como esses ecossistemas[...]Um [...]

29 Projeto/ bairro Coroa do Meio. 30Diegues (1991) faz um estudo sobre as comunidades litorâneas e os manguezais do Brasil traçando os impactos socioambientais decorrentes da atividade predatória desses ecossistemas dada a ocupação indevida dos mesmos. Cita em particular os estados do Nordeste como Pernambuco, Paraíba e Sergipe. Em Sergipe cita a criação do Bairro Coroa do Meio e o impacto degradante sobre o manguezal e apicuns ali existentes.

48

modo de vida em que atividades econômicas, sociais e cultuais dependem fundamentalmente

da existência do mangue e ciclos biológicos (marés, dos peixes)”(DIEGUES,2001,p.190/191).

A maré do Apicum é hoje um extenso manguezal visto de forma negativa uma vez que

foi secundarizado como um componente do espaço urbano, pois os canais e mangues de

“escoadouros dos esgotos e águas servidas passaram a ser percebidos como áreas sujas e

transmissoras de doenças [...] sinônimo de confusão, bagunça, zona de meretrício dentre

outros”. (VARGAS, 2002, p.04). Como vimos, o ecossistema sofrera ao longo do tempo forte

pressão dos aterramentos e favelização, contribuindo para a poluição e consequente

assoreamento.

A partir de 2005, a procissão consagrada a Bom Jesus dos Navegantes não mais

aconteceu via fluvial dada à falta de condições de navegabilidade da maré do Apicum e passa

a ocorrer somente via terrestre, porém seguindo a mesma direção da via fluvial, sentido norte

da igreja, e, já partir de 2011 tem o roteiro terrestre modificado pela nova configuração

territorial da Diocese de Aracaju que traçou outra delimitação ao espaço festivo da paróquia.

2.2 METODOLOGIA

A pesquisa que ora se apresenta caracteriza-se por sua abordagem qualitativa. Esta

opção justifica-se pela concepção de que o processo de investigação científica se dá pela

relação entre o pesquisador e seu campo de estudo em que a “visão de mundo de ambos está

implicada em todo o processo do conhecimento, desde a concepção do objeto aos resultados

do trabalho e sua aplicação.” (MINAYO, 1994, p.14) Logo, é uma abordagem que prioriza o

âmbito das relações humanas e seus valores adotando o tratamento de dados quais sejam

palavras escritas e orais, sons e símbolos na busca do entendimento de subjetividades.

(MOREIRA, 2004)

2.2.1 Instrumental da pesquisa

Privilegiou-se a História Oral. Para Meihy (1996) a História Oral é um procedimento

que, premeditado, produz conhecimento e envolve três elementos essenciais: entrevistador,

entrevistado e aparelhos de gravação: “[...] é um registro de experiências que se organizam em

projetos que visam formular um entendimento de determinada situação destacada na vivência

social.” (MEIHY, 2007, p.64) Esse procedimento enseja que entrevistado e entrevistador se

49

reconheçam colaboradores pelo sentido de participação espontânea concernente a ambas as

partes de modo que a entrevista é o resultado desse “encontro gravado.”

Ademais, sendo a entrevista o fazer da História Oral, esta, apresenta-se como

possibilidade de “estudos da memória, construção de identidade e formulação de consciência

comunitária.” (MHEIHY, 2007, p.24) Permite análise do fato social porquanto evoca o

passado na constante reconstrução e contínua atualização e renovação do tempo presente.

[...] a subjetividade deve ser entendida como inerente ao universo simbólico e ideológico do indivíduo e, conseqüentemente, do grupo ao qual pertence e que compartilha de suas memórias. Dessa forma, as reminiscências colaboram na constituição da memória histórica e permitem uma interpretação das representações, valores e costumes de um grupo ou de uma sociedade. (FREITAS, 2006, p.16)

A História Oral traz à tona vozes que documentam. Nesta mesma perspectiva,

Delgado (2006) concebe-a como campo multidisciplinar de investigação possuindo um

cabedal extenso de possibilidades: revela campos e temas de pesquisa, recupera memórias

locais e ou comunitárias, são alternativas para a falta de documentação escrita, possibilitam

evidências para o cruzamento de fontes e ou relatos, possibilita o conhecimento de histórias e

personagens anônimos dentre outros.

[...] Também dialoga e ou interage com a sociologia, antropologia e a psicanálise, como suportes para construção de roteiros de entrevista e para a condução de depoimentos. Finalmente, recorre à memória como fonte principal. [...] Ao se gravar [...] uma entrevista temática, o pesquisador está, de forma deliberada, inscrevendo-se no processo de registro do passado e de produção de documento sobre ele. (DELGADO, 2006, p.16/62).

No estudo da pratica festiva de Bom Jesus na Atalaia e suas alterações, a presente

pesquisa adotou as fontes orais como base de análise de dados para a compreensão das

relações entre o homem e a natureza atribuídas à festa. Buscou-se nessas fontes o grau de

representatividade das falas pelas experiências vividas. Estas, entendidas como visões de

mundo que comportam valores.

As mensagens compuseram um percurso narrativo e deram vazão ao sentimento

religioso nas práticas e ações da Festa de Bom Jesus como um valor simbólico da relação

homem-natureza na Atalaia.

50

2.2.2 Procedimento para coleta dos dados

Pesquisa de Campo

Nesta etapa da pesquisa, o trabalho de campo foi desenvolvido por meio de

instrumentais quais sejam a observação livre, registro e levantamento de fotografias,

entrevistas semiestruturadas conjuntamente ao diário de campo.

Na observação livre, o pesquisador destaca:

[...] um conjunto (objetos, pessoas, animais), [...] prestando atenção em suas características [...] Individualizam-se ou agrupam-se os fenômenos dentro de uma realidade que é indivisível, essencialmente para descobrir seus aspectos aparenciais e mais profundos [...] numa perspectiva de contradições, dinamismos e relações.(TRIVIÑOS,2008,p.153)

A observação foi empreendida no decurso do período festivo de Bom Jesus nos meses

de janeiro e novembro de 2011e contou com um roteiro (APÊNDICE A) aplicado no ápice da

festa, momento de ocorrência da procissão que correspondeu aos dias 16/01/2011 e

20/11/2011, respectivamente. Como descrito, registrou-se duas festas de Bom Jesus dos

Navegantes no já referido ano.

Nestes momentos tomou-se apontamento da programação festiva, seus rituais donde se

fez a identificação dos atos celebrativos e homilias, cânticos e preces; dos participantes

envolvidos, seu vestuário e expressões de sentimento, de fé e tensões. Observamos os

cenários e identificação dos pontos culminantes da festa: missa festiva e a procissão terrestre.

Além disso, estabeleceram-se contatos e tomada de indicações que compuseram a posteriori a

amostra dos participantes.

O registro fotográfico por meio de máquina digital fez-se ao longo de toda a pesquisa

de campo quer seja nos atos festivos quer seja nas entrevistas. Nos dias solenes, registraram-

se os rituais, os participantes, os espaços da festa (igreja, procissão, quermesse), os símbolos

materiais (andor, imagem votiva) e imateriais (pagamento de promessa). Já o levantamento

de fotografias relacionadas às épocas pretéritas da Festa de Bom Jesus deu-se no momento da

aplicação de entrevistas com os colaboradores para ilustração de aspectos da festa no passado

e presente fornecendo dados adicionais às falas e aos relatos.

Do ponto de vista das entrevistas adotou-se a modalidade de história oral temática,

sendo delimitada por relatos que não abrangem necessariamente a história de vida do

participante, mas um desdobramento dela, no caso desta pesquisa parte de sua vivência na

51

experiência religiosa da festa do padroeiro. Sob esta modalidade, as entrevistas foram

concebidas numa perspectiva de que cada pessoa

[...] fornece informações e versões sobre si próprios e sobre o mundo no qual vive ou viveu [...] um processo de recordação realizado por um sujeito individual, mas socialmente integrado. Dessa forma, os relatos e os testemunhos contêm em si um amálgama maior, do da inserção em uma comunidade específica. (DELGADO, 2006, p.72)

Desta feita, as entrevistas foram semiestruturadas, pois nesta técnica há a liberdade do

entrevistado responder a questões previamente determinadas assim como outras questões não

previstas e levantadas pelo pesquisador por ocasião do diálogo sendo questões

“suplementares” diante de alguma informação interessante. (MOREIRA, 2004) Assim, os

relatos “[...] podem ser numerosos, resultando em maiores quantidades de informantes, o que

permite uma comparação entre eles apontando divergências, convergências e evidências de

uma memória coletiva, por exemplo.” (FREITAS, 2006, p.22/23)

Participantes

As entrevistas foram realizadas no período de março a setembro de 2012 e contou com

uma amostra de vinte e dois participantes. Em pesquisa preliminar de monografia de

especialização tivemos contato com dois desses participantes, moradores antigos, os quais

foram àquela oportunidade, mencionados por outras pessoas do bairro, por serem mais

conhecedores de sua história.

A amostra por bola de neve (TURATO, 2003) permitiu-nos a adoção de critérios para

a escolha dos colaboradores. Assim, o contato com os moradores deu-se por recomendação e

indicação de outros moradores que, pelos seus crivos eram pessoas-chaves já que possuíam

alto nível de vivência e conhecimento sobre a Festa de Bom Jesus na Atalaia. Assim

procedeu-se sucessivamente com cada participante que por sua vez foi indicado por outros

entrevistados, a exceção dos párocos, sendo esta parte da amostra intencional por se tratar dos

líderes religiosos na localidade já que é a Igreja Católica a instituição promotora do evento.

Esta amostragem exigiu uma constante ida e vinda ao referencial teórico que foi se

reestruturando aos dados colhidos e aos perfis encontrados no levantamento de modo que se

delineou um grupo de colaboradores com “[...] vivenciamentos e conhecimentos empíricos”

(TURATO, 2003, p.365) no caso, o homem religioso, devoto a Bom Jesus, revelou-se estar

entre pescadores, paroquianos e fiéis perfazendo um grupo que, em sua maioria são de

moradores antigos aposentados que desde a infância e ou adolescência ou mesmo a idade

adulta participavam assiduamente do festejo.

52

Contávamos com mais um participante muito indicado por vários outros entrevistados,

este por certo teria muito a contribuir por ser um ativo colaborador da festa de Bom Jesus dos

Navegantes. Mas, após três tentativas sem sucesso não conseguimos já que o mesmo

encontrara-se em repouso, impossibilitado de compor este estudo. Assim, o esgotamento de

indicações e a reincidência de informações foram, portanto as condições de fechamento da

amostra.

O fato de pertencer ao lócus de estudo, como moradora, possibilitou melhor contato e

acessibilidade às pessoas tornando um diálogo mais espontâneo com os colaboradores. Foi

possível estabelecer relações de confiança e cordialidade: uns deram um tom mais solene à

entrevista, outros a viram como um momento de verdadeiro desabafo. Nas entrevistas

procuramos respeitar todas essas singularidades.

[...] a pesquisa [...] nos proporciona estes encontros como com Dona [B.O] que abriu as portas de sua casa para mim e recebeu-me muito bem, entre abraços e cheiros, igual fazia minha avó! Senti-me à vontade em sua casa simples, rica de simpatia, aconchego e brisa do mar! Diário de Campo em15/05/2012.

Acredito que fiz o possível para que o clima de espontaneidade do momento se instalasse [...] percebi o tom respeitoso e solene que seu [R.O] deu ao momento que estava sem camisa. Vestiu uma camisa de botão, fechou-a, sentou-se à minha frente dando sinal de que poderíamos, afinal, começar o trabalho. Diário de Campo em 05/05/2012.

Em contrapartida, o conhecimento do lócus demandou-nos um maior esforço no

sentido de aguçar a percepção do já “conhecido.”

As entrevistas foram gravadas e autorizadas previamente pelos participantes. Foram

marcadas em datas, horários e locais agendados conforme conveniência destes. Outro recurso

analítico neste expediente foi o diário de campo, válido para o corpo de dados levantados

através do apontamento de reflexões, possibilidades, questionamentos e registro de situações

que nortearam inclusive o processo de transcrição das entrevistas.

[...] Ao descrever fatos, situações, gestos e acontecimentos sobre uma realidade conhecida e mediada pela teoria, está já realizando um processo interpretativo, pois no Diário de Campo os fatos são narrados numa perspectiva que foge ao senso comum – científica, portanto. E quando mediada por embasamento teórico adequado, essa perspectiva pode se tornar dialética. (LOPES, 2002, p.141/134).

Ao final de cada entrevista, foi assinada carta de cessão de direitos autorais

(APÊNDICE B) pelo colaborador assegurando o uso de seu relato para fins de cunho

científico como é o caso desta pesquisa; Vale ressaltar que todas foram devidamente

53

autorizadas e todo o material colhido nesta fase subsidiou a análise de dados no tocante à

consecução dos objetivos específicos.

Foram estabelecidos dois roteiros (APÊNDICES C e D) de entrevista aplicados aos

moradores, e o outro aos párocos, antigo e atual. Esses roteiros tiveram algumas variantes de

perguntas no sentido de discriminar o papel dos participantes na festa, identificar as diferentes

versões, opiniões, bem como investigar as hipóteses elencadas e responder aos objetivos da

pesquisa. Os roteiros apresentaram questões abertas contendo cabeçalho como via de

introdução das entrevistas a despeito do perfil dos entrevistados: nome completo, local e data

de nascimento, idade, residência, ocupação e escolaridade. Para fins de registro, constaram

também local, data e duração das entrevistas.

2.2.3Tratamento dos dados

As entrevistas foram transcritas integralmente, agrupadas em fichas e arquivadas em

meio digital. O processo de transcrição respeitou a fala dos entrevistados, ajustando-as

somente em pontuação destacando a entonação dos diálogos, gestos e emoções preservando a

individualidade de cada colaborador a fim de que se garantisse a melhor compreensão das

mensagens.

Adotou-se a análise de conteúdo, um procedimento técnico que visa à exploração do

conteúdo relevante de mensagens orais, escritas ou qualquer via de estabelecimento de

comunicação tendo como princípio a inferência de conhecimentos relativos aos emissores, ao

fenômeno em estudo dentre outras condições da pesquisa com base em indicadores que

podem ou não serem quantitativos. (BARDIN, 1977; MINAYO, 1994)

Nesse processo, a técnica de categorização sugere a definição de categorias que “[...] são

rubricas ou classes, as quais reúnem um grupo de elementos (unidades de registo, no caso da

análise de conteúdo) sob um título genérico, agrupamento efetuado em razão de caracteres

comuns destes elementos” (BARDIN, 1977, p.117)

Os dados foram agrupados em matriz Excel (APÊNDICE E), programa Office da

Microsoft, o que possibilitou o cruzamento das respostas das entrevistas agrupadas em

conjunto permitindo a classificação de seus elementos constitutivos pelos desmembramentos

das falas em unidades, em categorias analíticas. As categorias delimitadoras da pesquisa

emergiram dos conteúdos das respostas interpretadas à luz do aporte teórico. (BARDIN,

1977; FRANCO, 2008)

54

A representatividade do sentido da festa de Bom Jesus dos Navegantes foi desvelada

com o cruzamento do eixo passado/presente. Por meio de inferências dos significados e

sentidos atribuídos pelas falas foi possível observar convergências evidenciadas pela presença

de indicadores (subcategorias) quais sejam religiosidade, tradição e patrimônio. Assim, foi

possível reagrupá-los em categorias de maior amplitude como sagrado e memória. (FRANCO,

2008)

O procedimento descrito demandou constante processo comparativo dos conteúdos das

entrevistas com a teoria. Também, identificamos que ambas as categorias entrelaçaram-se,

pois o sagrado perpassou em toda a temporalidade vivida na festa de Bom Jesus dos

Navegantes. A seguir, a figura 2.2 demonstra a enunciação das hipóteses pelas questões

aplicadas nos dois roteiros de entrevista estabelecidos.

Hipóteses Questões do Roteiro de entrevista com moradores

(1 a 16)

Questões do Roteiro de entrevista com o pároco

(1 a 13)

1. O rito da procissão fluvial no passado

estreitava a relação homem-natureza na festa.

2,3,4,6,10,14,16

1,2,3, 13

2. Mesmo sendo terrestre, a manutenção da

procissão atualmente indica uma

ressignificação da relação homem-natureza pelo

sentido religioso.

1, 5,8,9,11,12,15

4,5,8,9,10,11,12

Figura 2.2 Enunciação das hipóteses nos roteiros de entrevista.

Organização: Isabella Corrêa.

A categoria sagrado foi-nos subsidiada pelos teóricos Caillois (1988), Eliade (2008) e

Rosendhal (1996). Já a categoria memória foi-nos elucidada por Candau (2011), Delgado

(2006), Halbwachs (2006), Le Goff (1982), Nora (1996) e Pollak (1992). No tocante a

subcategoria tradição Candau (2011) e Hobsbawm (1984). De igual forma, a subcategoria

patrimônio deu-nos suporte analítico pelas contribuições de Candau (2011), Fonseca (2009) e

Gonçalves (2009).

55

Fiéis e pagadores de promessa do Bom Jesus

O perfil dos entrevistados propiciou a análise do nível de experiência religiosa vivida

na Festa de Bom Jesus dos Navegantes no que concerne às categorias memória e sagrado

auxiliando a apreensão do conjunto interpretativo das individualidades no contexto coletivo.

Neste universo, evidenciou-se o homem religioso na Atalaia e o vínculo entre religiosidade e

meio natural, no caso, o rio Poxim.

A amostra compreendeu vinte e dois colaboradores, dentre eles quatorze aposentados,

duas donas de casa, dois padres - o pároco antigo e o atual da Paróquia Bom Jesus dos

Navegantes – três profissionais liberais e uma estudante perfazendo um total de doze

mulheres e dez homens. Dentre estes, tem-se moradores antigos (pescadores, paroquianos,

fiéis e pároco antigo) e moradores recentes (pároco atual e dois paroquianos).

Figura 2.3 Ocupação atual dos entrevistados

Organização: Isabella Corrêa Fonte: Pesquisa de Campo, 2012.

No que concerne à faixa etária, nota-se que do total de vinte e dois entrevistados tem-

se a terceira idade como grupo majoritário perfazendo quinze pessoas. Os demais, em número

de sete, em idade adulta, conforme figura 2.4.

Figura 2.4 Faixa etária dos entrevistados

Organização: Isabella Corrêa Fonte: Pesquisa de Campo, 2012.

0 5 10 15

Estudante

Padre

Dona de casa

Serviços

Aposentado

0 2 4 6 8 10

30-50

51-60

61-70

70-84

56

Esse conjunto de entrevistados contém dez pessoas que se declararam nascidas na

Atalaia sendo oito da terceira idade e dois adultos. Ademais, os residentes não nascidos no

bairro são em número de oito, porém, são moradores há um período correspondente de vinte a

cinquenta anos na localidade. Um residiu por mais de trinta anos, dois em idade adulta são

recém-moradores, pois residem de dois a cinco anos e um participante em idade adulta não

mais reside, porém tem casa no bairro. Destacamos o forte potencial dos entrevistados em que

pese à categoria memória haja vista a experiência vivida destes na Festa de Bom Jesus dos

Navegantes ao longo do tempo variando de um período de cinco a setenta e cinco anos de

participação na festa.

Constatamos que os não nascidos (08) na Atalaia por morarem a muitos anos no

bairro, demonstraram vínculo tanto com a festa como a devoção ao padroeiro revelando níveis

estreitos de relacionamento com os moradores locais e certo nível de conhecimento e

participação em sua história, seus costumes e tradições da vida religiosa como se vê nos

relatos abaixo:

As primeiras lembranças que eu tenho é pela amizade que a gente criou, né, vai criando, vai conhecendo pessoas novas, né, o companheirismo das pessoas. [...] E inclusive é uma interação dentro da religião, né? C.10

E todos nós participávamos da missa e tudo, a história era essa. E na procissão, todo mundo ia junto, uns iam pela água, outros iam por terra. De lá desembarcava todo mundo pra vir por terra e todo mundo cantava junto. E tinha [...] banda de música no começo da procissão quando cheguei aqui [...] C.18.

A figura 2.5 a seguir, aponta o grau de escolaridade dos participantes no qual duas

pessoas responderam não ter estudado, porém são alfabetizadas. Há o predomínio de

colaboradores com escolaridade em nível fundamental menor (09), seguido do nível superior

(06), fundamental maior (03) e ensino médio (02).

Figura 2.5. Grau de escolaridade dos entrevistados

Organização: Isabella Corrêa Fonte: Pesquisa de Campo, 2012.

0 2 4 6 8 10

F. Menor

F. Maior

Médio

Superior

57

No tocante a este grau da amostra, identificamos diferenças quanto à demarcação

temporal nos relatos posto que “[...] o tempo é um símbolo social, [...] compreende a

internalização das experiências de vida por indivíduos” (DELGADO, 2006, p.80)

Os entrevistados com escolaridade em nível superior narram os fatos situando-os

precisamente em tempo histórico reportando-se ao calendário civil ou a acontecimentos

marcantes no bairro em relação ao Estado ao município e mesmo a realizações da Igreja

enquanto instituição.

[...] a paróquia da Atalaia começa a ser desmembrada por volta do ano de 1999, 1998. E a partir daí foram criando várias paróquias [...] Aí, [...] o percurso na história que se foi fazendo devido a criação de novas paróquias. [...] 2001 já é criada no mês de outubro a nova paróquia, que é a paróquia da Farolândia, paróquia Nossa Senhora Aparecida. Por isso, que foi criada em outubro que na festa da padroeira foi criada a nova paróquia. C.04

As balizas temporais dos demais entrevistados se reportaram predominantemente a

expressões tais como: “naquele tempo”, “nesse tempo”, “antigamente”, “desde a minha

idade”, “naquela época”, “hoje”, “agora”, “nos primeiros tempos”. Assim, identificamos

um recorte enfático da passagem passado/presente e presente/passado em constante

alternância nas falas. De igual forma registrou-se o balizamento temporal também pela alusão

a algum fato marcante para a localidade a exemplo “antes de ser paróquia”, “com a mudança

do padre”, “depois que a maré secou”: “[...] são [...] os tempos vivos, que comportam em si

referenciais identitários [...] são tempos prenhes de experiência. (DELGADO, 2006, p.46)

Dos vinte e dois participantes, dezoito declararam-se devotos a Bom Jesus dos

Navegantes, dois afirmaram não terem devoção alguma e, outros dois, no caso dos párocos

remeteram-se à Bom Jesus como o próprio Cristo, conforme as escrituras sagradas. Dentre os

motivos da devoção a Bom Jesus destacaram-se principalmente a tradição, a religião, e a fé.

Estas motivações justificaram sua participação na Festa do santo padroeiro na Atalaia:

Porque primeiro, era só a festinha [...] a tradição da festa de Bom Jesus dos Navegantes. É a que mais a gente ia... a procissão, todo mundo tinha aquele amor por Bom Jesus dos Navegantes e sempre fui por causa disso. A igreja que eu sempre frequentei, fui batizado nessa igreja, né? E frequentei o catecismo. C.01

Porque aqui eu consegui, diante da imagem, expressar a minha fé e recebi o retorno dos meus pedidos. C.22

[...] é uma perseverança dentro da religião que a gente exerce que é a religião católica. E como ele é o padroeiro da paróquia [...] os paroquianos participam, se faz presente em todas as ocasiões. C.18

58

Ao explicitar a trajetória de vida dos entrevistados atentou-se que estes se remeteram a

infância e adolescência como marco no tocante à sua participação na Festa de Bom Jesus.

Vale ressaltar que nem todos os colaboradores responderam haja vista não terem vivenciado

esta fase de suas vidas no bairro. As lembranças dos colaboradores explicitaram em primeiro

nível a interação com o rio pelo rito da procissão fluvial, conforme ilustra a figura 2.6 a seguir

e relatos apresentados respectivamente.

Figura 2.6 Ocupação na linha da vida: infância e adolescência

Organização: Isabella Corrêa. Fonte: Pesquisa de Campo, 2012.

As primeiras lembranças... Minha fia, antigamente a procissão era fluvial. [...] Aí tinha lá no Farol, meu pai mesmo cansou de colocar aqueles paus com aquelas bandeiras pra chegada de Bom Jesus. Papai participou muitas vezes! C.02

Oh, minha fia, eu comecei a participar desde pequena, né, que minha mãe ia sempre, ela nunca perdeu, minha vó nunca perdeu e ela me levava de pequena [...] E quando eu vim me lembrar de mesmo da Festa, eu devia ter assim de uns sete pra oito anos. [...] O senhor Bom Jesus ia numa lancha, ela toda enfeitada, ele assim naquele andor muito bonito, entendeu? E era banda de música tocando, a maré aqui era uma coisa mais linda que daqui a gente via a Coroa do Meio porque não tinha mato nem nada C.14

Desde garoto![...] . Antes, vinha com minha mãe, com pessoas mais velhas, [...] Quando eu comecei a andar sozinho, aos, 13 anos, sempre participei da procissão de Bom Jesus e era um espetáculo![...] A gente ficava muito pelo cais, ali era cheio de gente! Era um cordão só. Ali do Hotel Atalaia até a procissão [...] Não tinha mangue, era só o rio limpo! E ficávamos assistindo as canoas, antes da procissão, as canoas à vela, eu brincava muito e, no decorrer da procissão com as canoas a motor acompanhando [...]C.07

Outros relatos evidenciaram também a pesca enquanto vínculo com o meio natural.

Ademais, as atividades por vezes encontraram-se entremeadas. Os entrevistados praticavam a

pesca, iam para procissão, iam para a igreja e tomavam banho na maré do Apicum

concebendo-a como fonte provedora de recursos e meio de vida, uma natureza/mãe em toda a

sua prodigalidade (DA MATTA, 1993):

0 2 4 6 8

Cantora de novena

Missa

Banhos no rio

Catecismo

Pesca

Procissão Fluvial

59

Essa maré, essa maré aí era a mãe do povo da Atalaia. Até eu estava dizendo um dia assim, eu conversando comigo mesmo: muita gente daqui devia chegar de manhã cedo ali e dizer: “a benção, minha mãe!” [risos] Porque todo mundo achava comida! C.01

Pesca era uma cultura, era uma prática que a maioria fazia. Todo mundo aqui gostava de pescar, era bom! E tinha espaço pra pescar, tinha peixe.[...] os mais antigos falam que era melhor de pescar. Tudo isso acontecia aqui, hoje tá mais difícil. Diminuiu, o rio era largo, invasões que começaram do lado de cá, apertou o rio, era largo e fundo! C.07

[...] desde criança [...] minha mãe mais meu pai me levavam pra procissão, certo? E, nisso eu fui criando aquela fé no Bom Jesus dos Navegantes [ ...] E de lá pra cá, eu me lembro de bem de minha idade de dez anos. [...] De lá pra cá, eu coloquei na minha mente que Bom Jesus dos Navegantes faz muito milagre! E eu acompanho até hoje. C.03

Naquela época, o prazer da criança era ir pra igreja [...] Todos os domingos a gente ia pra igreja quando era na procissão também, a mesma coisa! Todo mundo se arrumava, meu pai toda uma vida [...] foi o chaveiro da Igreja! C.19

Inferiu-se neste segmento da amostra a conformação do homem religioso no tocante

aos nascidos no bairro. A tradição foi fator relevante pelo fato de serem conduzidos desde a

infância por familiares à festa e, por conseguinte à religião católica e à fé. Com isso, a

devoção na Atalaia esteve intrinsecamente relacionada ao meio natural e às atividades da

Igreja. A procissão fluvial, o catecismo e a missa foram ritos vivenciados. As motivações

pela tradição acima descritas forma corroboradas.

A figura 2.7 traça um panorama das atividades em idade adulta. Este panorama

condensa toda a amostra, incluindo atividades no passado e presente. Como a maior parte da

amostragem compõe pessoas da terceira idade, predominou a pescaria como atividade

primeira de outrora seguida de atividades exercidas junto à paróquia. Nestas últimas há

atualmente a participação efetiva de três colaboradores quer seja no terço dos homens, quer

seja na catequese incluindo o próprio pároco.

60

Figura 2.7Ocupação na linha da vida: idade adulta

Organização: Isabella Corrêa Fonte: Pesquisa de Campo, 2012.

Vale ressaltar que houve mais de uma resposta dada pelos participantes e que os

relatos apontaram a pescaria como uma prática cotidiana de outrora, sendo exercida não só

por pescadores, como donas de casa dentre outros moradores, como evidenciaram os relatos

abaixo transcritos.

Quando a maré tava cheia de tarde, aí ia todo mundo tomar banho na água alva [...] uma coisa mais linda! Pescar domingo mesmo! Eu pesquei, [...] pegava camarão de tardinha [...]Camarão, milongo. Dona Esbela, de redinha [...] E eu também mais comadre Preta! [risos] Pescando! C.11

[...] eu nasci pro mar, mas fui pro ar. [risos][...] Porque meu negócio é água, pescar, tal. Mas a natureza de Deus... então, fui pra aviação.[...] aí quando eu saía,[ ...] já tinha uma canoa, aqui na beirada da costa no mar.[...] Quando eu saía de lá, de manhã já ia esperar a canoa e tinha dois amigos, pra pegar uma rede pra vir arrastar aqui na praia ou [...] bater tarrafa aqui no rio Poxim. C.06

A figura 2.8 detalha as atividades dos participantes na terceira idade. Houve também

mais de uma resposta no caso de participantes que exercem mais de uma atividade, a exemplo

de uma senhora que declarou exercer atividades de costura e é paroquiana.

Figura 2.8 Atividade na Terceira idade

Organização: Isabella Corrêa Fonte: Pesquisa de Campo, 2012.

0 1 2 3 4 5 6 7

CostureiraProfessor

Balizador de AviãoEnfermeiroOrg. FestaMotorista

MarceneiroPároco

A.de pescadoresDona de casa

Atividades paroquiaisPescaria

0 1 2 3 4 5

Costureira/rezadeira

Asso. de pesca.

Donas de casa

Atividades paroquiais

Paroquianos

61

Identificou-se que os idosos em 50% declararam-se paroquianos, sendo quatro

envolvidos diretamente com as atividades31 da paróquia e quatro fiéis frequentadores assíduos

da igreja. Estes últimos vale ressaltar, declararam ter desenvolvido também em idade adulta

atividades diretamente relacionadas à igreja. Constatou-se que, ao longo do tempo continuou

e ampliou-se a inserção religiosa na experiência de vida das pessoas e, no tocante aos idosos

pescadores continuam a exercer vínculos na Associação de pescadores.

31 Apostolado da oração, ministros da eucaristia, terço dos homens, catequese.

62

CAPÍTULO III

63

CAPÍTULO 3 – CONFLUÊNCIAS: NATUREZA, SAGRADO E TRADIÇÃO NA MEMÓRIA DA FESTA DE BOM JESUS DOS NAVEGANTES

Este capítulo de cunho analítico privilegiou a experiência vivida na festa de Bom Jesus

dos Navegantes sobre a qual o homem religioso/memorioso da Atalaia evocou o passado

como princípio gerador de sentidos do tempo presente. Nesta premissa, buscou-se analisar as

relações entre o homem e a natureza na manifestação de Bom Jesus dos Navegantes pelas

categorias memória e sagrado. Este último perpassou toda temporalidade festiva da

experiência religiosa. Os resultados do estudo foram divididos em três seções. A primeira

demonstra as reminiscências sobre a origem da festa imbuída de significado religioso em

relação ao meio natural, transmitido por tradição e reproduzido nas práticas festivas ao longo

do tempo. As outras seções analisam a transição da festa pelas alterações e os consequentes

impactos sobre a localidade.

3.1 REMINISCÊNCIAS

É minha fia, tudo tem história! C.12

O povo daqui da Atalaia tem essa procissão como algo sagrado, como algo muito sério! [...] ela foi feita por uma necessidade![...] Antônio Alves, um dos patriarcas daqui vendo o mar avançando muito... tava avançando aqui na Coroa do Meio. Ele aí fez essa procissão. [...] Se esse avanço fosse contido, [...] surgiria a procissão de Bom Jesus [...] e assim aconteceu. Ele doou o terreno da Igreja, criou-se a procissão sempre margeando o rio. Bom Jesus dos Navegantes é margeando o rio, então [...] começou por aqui C.07.

A experiência religiosa remetida à Festa de Bom Jesus dos Navegantes na Atalaia

revela um conhecimento comum ali partilhado: as lembranças evocadas confluem menos para

uma temporalidade cronológica que para uma temporalidade festiva relacionada à

manifestação do sagrado na natureza como estatuto original do evento.

O sagrado, conforme elucidam Caillois (1988) e Eliade (2008) é o outro da realidade

humana, uma manifestação de transcendência da vida em que se dá a transposição do natural

ao sobrenatural. É uma perspectiva na qual se estabelece o misterioso, uma “[...] categoria de

64

sensibilidade [...] sobre a qual se assenta a vida religiosa [...] aquela que lhe impõe ao fiel um

sentimento de respeito particular, que presume a sua fé contra o espírito de exame, a subtrai à

discussão, a coloca fora e para além da razão.” (CAILLOIS, 1988, p.20)

Aventa-se a ocorrência da procissão fluvial na localidade a um período posterior a

189432 quando o povoamento da região condicionou-se à possibilidade do recuo do mar ainda

impreciso:

Aqui em frente no arco era a barra e os navios entravam por aqui. [...] fizeram uma promessa de Bom Jesus que se fechasse aqui, ficasse só o rio e a barra fosse por lá que era mais funda, que iam fazer essa Festa de Bom Jesus. C.06

[...] Dizem os moradores [...] o mar parece que estava pra invadir. [...] Então o senhor Antônio Alves que leva o nome da própria avenida fez um pedido a Bom Jesus, uma súplica. Ele entrou com cristo crucificado nas águas e pediu que se não acontecesse um desastre, ele construiria essa capelinha e dedicaria a Bom Jesus dos Navegantes. [...] a festa do Bom Jesus dos Navegantes, penso que aconteça desde exista a capela! É uma devoção do próprio povo local! Agora, faltam fontes! C.04

O fato a que se atribui à manifestação do sagrado refere-se à invocação33 feita nas

águas do mar por um antigo morador, Antônio Alves, diante do iminente fluxo e refluxo que

as águas oceânicas apresentavam na região. A promessa, segundo os relatos fora feita ao

Bom Jesus dos Navegantes nas águas e com a cruz em mãos para que o mar retrocedesse

definitivamente. Atendida com eficácia a invocação, tornou-se, portanto, o marco da

religiosidade, o padroeiro34 da localidade onde foi erigida uma capela em sua homenagem.

[...] É do sagrado, com efeito, que o crente espera todo o socorro e todo o êxito. As calamidades que o ameaçam, de que ele é vítima, as prosperidades que ele deseja ou lhe calham por sorte são por ele relacionadas com determinado princípio que se esforça por vergar à sua vontade ou coagir [...] Pouco importa o modo como ele imagina esta origem suprema da graça ou das provações: deus universal e omnipotente das religiões monoteístas, divindades protectores das cidades, das almas dos mortos [...] (CAILLOIS, 1988, p.22)

A hierofania primordial esteve na água em que o sagrado se revelou em súplica

atendida pela divindade que tudo pode no plano do misterioso. Neste plano, o sagrado

suscitou paradoxalmente temor e confiança porque o mar inconstante e agitado não mais

avançou, recuou, a água neste caso fora imbuída de conteúdo simbólico, pois

32 MACHADO (1989) apresenta em seu estudo documentos como uma carta náutica datada de 1894, encontrada no acervo da marinha enquanto registro do fechamento definitivo da barra sul do rio Sergipe. 33 “Ação de invocar, de chamar por alguém. Chamamento; Pedido de socorro; rogo. Liturgia, consagração, dedicação, proteção”. Ver em http://www.dicio.com.br/invocacao/ Acesso em 03/12/2012. 34 Padroeiro é o protetor, patrono de dada localidade, é a “[...] centralidade da fé, do território e da festa.”(D’ABADIA,2010,p.23)

65

[...] o ser humano, ao aceitar a hierofania, experimenta um sentimento religioso em relação ao objeto sagrado. Não se trata de uma veneração ao objeto enquanto tal, e sim da adoração de algo sagrado que ele contém e que o distingue dos demais. [...] uma realidade sobrenatural, para algo que não está ali. (ROSENDHAL, 1996, p.27)

O movimento das águas suscitou a constituição dessa simbologia; o perigo eminente

foi atribuído à inconstância do mar, principalmente em que pese à movimentação das barras35,

o conteúdo de um passado mais remoto sobre a Atalaia onde estava situada a barra sul da

barra da Cotinguiba.

O movimento das barras fluviais como já anteriormente explicitado nos estudos de

Almeida (1984) representava perigo para as navegações, pois tinham como característica a

mobilidade, formavam-se entre bancos de areia e nos momentos de temporais e enchentes das

marés “[...] um vento constante, soprando quase sempre do mar para a terra, formava uma

corrente de vazante contrária que movimentava as areias da costa e fazia mais temíveis as

barras existentes” (ALMEIDA, 1984, p.34)

[...] eram complexas as manobras para transpor a barra, situada, então ao sul da Coroa do Meio, num itinerário paralelo à praia do antigo farol e chegando ao mar aberto nas proximidades da Avenida Rotary. Era uma barra muito traiçoeira, principalmente para a grande quantidade de navios à vela que por ela passavam e que tinham reduzidas as suas possibilidades de direção diante dos ventos desfavoráveis ou de suas inesperadas alterações além de correntes e fundos inconstantes [...] ( PORTO,2003,p.130)

Nesse contexto, a promessa feita a Bom Jesus dos Navegantes esteve condicionada à

ocupação das margens ribeirinhas na Atalaia e nesta perspectiva esteve imbricada à influência

do meio natural como revela em seguida mais relatos ao se reportarem ao passado para

justificar a origem da festa:

É que o mar teve uma época, no século XIX, que o mar começou a avançar muito. Então tava ameaçando. Como as casas deles, ficavam do lado de cá da pista hoje, e ali passavam os navios, passavam ali onde tá beirando, margeando a estrada, hoje o asfalto. [...] eles tiveram medo do mar vim e tomar tudo, né? Tomar as casinhas deles ali. [...] Seu Antônio Alves o que dá o nome à avenida, que era os dos mais antigos aqui e que era tio até de seu Rosalvo [...] pegou o crucifixo, que é Jesus na Cruz e entrou no mar mais a mulher e fez uma promessa. Se o mar não invadisse que ele ia doar um terreno pra fazer uma igreja, uma capela. E ele fez realmente isso. [...] Aí se fazia essa procissão C.10.

Vejo o pessoal, os mais velhos falarem que foi uma promessa que fizeram por causa do mar. Isso. Dizem que isso aqui era mar [...] . Aí o mar foi

35 Bancos de areia que se formam na entrada dos estuários ao contato das águas doces do rio com as águas salgadas do mar. Foz. Entrada estreita de um porto. Disponível em http://www.dicio.com.br/barra/. Acesso em 14/09/2012.

66

recuando, recuando. [...] fizeram uma promessa pra ele não voltar mais e até hoje, graças a Deus não voltou mais. C.05

Esse tempo “mítico” foi, portanto a informação sobre primeiros tempos, donde se

verifica a necessidade de ordenamento do mundo entre os devotos, para conservar a

lembrança, tomada como base de sua referência. (CANDAU, 2011) Nesse ínterim, o

conhecimento sobre a origem da festa de Bom Jesus em Atalaia demonstra que a relação

homem-natureza nessa manifestação se estabeleceu pelo sagrado. A conexão se efetivou

pelos ritos da promessa e, posteriormente, da procissão. Além disso, essa dimensão religiosa

denota conforme os relatos já explicitados uma dimensão mítica atribuída à natureza, ante a

influência da maritimidade: uma força natural a ser contida, já que as águas representaram um

perigo a ser transposto por intervenção de outras forças sobrenaturais tal como nos reporta a

concepção cristã a respeito das águas oceânicas. (DIEGUES, 2000; PONS, 1993)

Todavia, a visão do sagrado demarcou-se também no meio natural após a formação

geológica da Maré do Apicum pela possibilidade de práticas cotidianas de sobrevivência

desde o passado. A maré é concebida pelas lembranças como fonte de alimento donde se

estabeleciam vínculos por meio do trabalho e de ritos já elencados. Tal concepção permeia

passado e presente nos relatos dos pescadores:

Esse rio no passado era um rio muito bom! Dava todo tipo de peixe![...] Não tinha um que fosse pescar pra vim de mão limpa! Até hoje é sagrado porque aí pra cima tem o rio Pomonga que tem muitos habitantes [...] esse pessoal deixa o rio deles mais fundo [...] pra vim pescar no nosso rio [...] Levam camarão, levam sardinha [...] enfim, mesmo poluído, mas leva. Nosso rio é rio sagrado. C.06

É um rio muito rico, esse rio! É o mercadinho dos pobres [...] Porque a pessoa que sai aí pra pescar se não conseguir pra vender, mas pra comer não volta sem nada não. C.16

3.1.1 O vivido na Festa do Bom Jesus

Sagrado e profano são elementos característicos das festas de santos padroeiros que

apresentam a cultura popular em sua dinâmica. O sagrado (a força, a virtuosidade) sempre se

opõe ao profano (a transgressão), porém eles coexistem e se complementam na lógica da

experiência religiosa. (PASSOS, 2002; ELIADE, 2008)

As lembranças evocadas denotam essas duas dimensões na festa de outrora: missas,

tríduos, batizados, comunhão, leilão, feirinhas, parque, bailes, fogos, apresentações de grupos

67

folclóricos (reisados, cheganças) no Cassino,36 corridas de canoa, banda de música e procissão

fluvial faziam parte da celebração festiva ao Bom Jesus dos Navegantes.

O leilão ensejava a dimensão lúdica da festa, uma forma de prévia dos dias festivos

que objetivava angariar recursos para a realização do evento donde se faziam arremates de

todo o tipo de objeto, produtos, comidas e bebidas:

Então a pessoa ficava sabendo que era o leilão, todo mundo dava uma coisa, um dava galinha, outro dava frango, outro dava uma dúzia de ovos, outro dava uma melancia. Quando era de noite todo mundo arrematava um tanto e aquele dinheiro era pra ajudar a Festa de Bom Jesus dos Navegantes. Todo mundo dava um pouco, era uma beleza. Naquele dia que tinha aquele leilão de noite [...] depois ainda tinha dança. [...] Ah, era muito bom! C.01

Na Igreja, os preparativos se davam com a catequese, formação de crianças para

primeira comunhão a serem realizada no dia festivo,

[...] passava o ano todo a gente ensinando a catequese às crianças. Quando era na semana da procissão, às vezes um mês antes... Digamos assim, a procissão era em janeiro, em dezembro era a formação das crianças que estavam preparadas pra se formar como cristão que se diz a religião. [...] aquele grupo que se formou na primeira comunhão, eu levava pra procissão. Os meninos acompanhavam o padre na canoa [...] acompanhando o santo por água com ele e desembarcava e vinham todos na frente. C.18

Nota-se que dentre as atividades relatadas há uma representação de cunho mais

popular atribuída à festa, pois nela combinavam “[...] rituais religiosos da Igreja Católica –

conservados e redefinidos popularmente pelas tradições locais – com eventos paralelos, de

caráter igualmente popular, e considerados [...] como festejos profanos”

(BRANDÃO,1978,p.37):

A festa de Bom Jesus que eu me lembro bastante é que era uma festa muito animada, existiam as feirinhas. Todas as feirinhas tinham sempre um barraco de palha paras se divertir, dançar um pouquinho e tal e... tinha Chegança na nossa praça, que ainda existe a praça. Não existe o Cassino, mas existe a praça. Então, existia a Chegança, Reisado que vinha de São Cristóvão, vinham mesmo do Mosqueiro. Tudo isso tinha, roda gigante, tinha balanços, tinha aqueles barcos. [...] e tinha que sair cedo para assistir as canoas saírem, as canoas de Sossô C.06

[...] A pracinha ali não era assim! Era quase só grama, né. Então vinha um pessoal, botava barquinho, carrossel e botava brinquedos, então era a animação. A gente ia pra missa, de volta já sabia. Tinham jogos [...] Tinha o

36 O Cassino era, segundo os colaboradores, uma construção de piso em cerâmica e teto em palha de formato quadrangular tendo ao centro, em desnível, uma pista de dança na pracinha (Praça Alcebíades Paes). Lá aconteciam as apresentações de folclóricas no calendário festivo de Bom Jesus dos Navegantes no bairro Atalaia.

68

pessoal de São Cristóvão, vinha com aquelas bolachinhas, ficava ao redor da igreja vendendo. Também uma tradição ali. Hoje, nem vem mais! C.19

[...] faziam uns butequinhos para todo mundo, era cachaça e comida. [...] e de noite tinha festa, reisado, dança, depois da procissão. C.01

A participação da Igreja no tocante à celebração festiva se dava pelos ritos da religião

católica oficial como missa, batizados, comunhão e procissão. Estas celebrações aconteciam

no domingo festivo pela manhã e à tarde a procissão com o encerramento no parque:

Tinha a missa, nove horas, tinha batismo, crisma, primeira comunhão. Agora de tarde tinha a procissão. [...] Era de barco, era de lancha. Tinha uma lancha grande que vinha da Barra dos Coqueiros, aquelas lancha que transportava o pessoal. [... ]antigamente todo mundo tinha canoa aqui. Era! Aí tinha aquela ruma de barco acompanhando a procissão. C.08

Bom, quando eu cheguei já tinha! E como vigário de São Pedro e São Paulo, eu já fazia a Festa de Bom Jesus dos Navegantes também com canoa, com grandes canoas no mar! Três canoa,s é! Tinha já! É! Foi bonito, o povo, todo mundo chegava de pé andando e voltava também conosco. [...] eu rezava a missa. Então, não eram outros padres, não. Não era fácil outro padre, não. Não tinha, não tinha C.15

Além disso, mesmo nestes rituais a organização das atividades se dava em torno de

algumas pessoas, os “agentes” da festa dos quais eram seu idealizador, Antônio Alves,

inicialmente e alguns outros moradores que sendo também incentivadores e financiadores,

deram continuidade às tarefas ao longo do tempo haja vista estarem diretamente relacionadas

às atividades da Igreja por serem, segundo os relatos, muito religiosos. Os casais Arthur e

Natália, Deomar (Dedé) e Alexandrina e Rosalvo Fontes, foram os nomes mais citados.

Alberto Azevedo (conhecido como Mero Gato), fora outro nome citado como incentivador da

festa.

Dedé, [...] era proprietário de muitas terras aqui no Saquinho ali pra trás e ele era funcionário da prefeitura. Então se dedicou também a igreja. A opinião dele dentro da Igreja de Bom Jesus da Atalaia era muito forte. Até quando ele morreu C.06

Era muito bonita a festa daqui, muito bonita! Os padres ficavam tudo aí na casa de meu avô! Aí era gente que eu nunca vi o dia todo! Meu avô botava não sei quantas pessoas pra trabalhar! Pra dar de comer aos padres, tudo. C.12

Nesse tempo, “Mero Gato” era uma pessoa que fazia parte também da festa, tudo! Ele não organizava [...] enfeitava s lugar que Bom Jesus ia saltar [...] Aí fazia aquelas bandeirolas e ficava bonito nas casas do farol. C.14

Meu padrinho Arthur que foi um dos que conduziu por muito tempo essa procissão olhava no calendário a maré tem que ser maré grande que ela tivesse cheia, no preamar como se chama em um horário assim de três e meia, quatro horas que era pra dar tempo a procissão sair e chegar onde saltava lá na Farolândia! Aí depois, finado Dedé, seu Dedé aqui coordenou por muito tempo![...] . Algumas vezes nós fomos pra lá, pra debater horário,

69

pra viabilizar, aportar aqui que não tinha mais condição! Já aconteceu isso! Mas, era uma associação. C.07

Vale ressaltar que somente em 1983 é que a capela foi elevada à condição de

paróquia37(ANEXO A) sendo até os dias atuais a única do Estado que possui como patrono

oficial38 de paróquia a invocação de Bom Jesus dos Navegantes. Num período mais anterior, a

capela encontrou-se sob júdice inicialmente das paróquias São José e São Pedro e São

Paulo39, posteriormente. Conclui-se que havia desse modo, um maior controle desses agentes

sobre a realização da festa, pois estes eram os propagadores da religião católica haja vista que

a Igreja atuava eventualmente na localidade até pelas dificuldades naturais de acesso ao centro

de Aracaju que só se fazia de barco:

[...] só tinha missa assim de mês em mês! Ás vezes de ano em ano, dependendo do padre. Porque era do São José até aqui. Depois ficou paróquia aí ficou São Pedro, São Paulo. Aí já foi [vindo] mais pra cá, né. Aí foi quando padre Luís chegou que passou a fazer mais igrejas, fez Farolândia, fez na Santa Tereza, fez na Terra Dura, fez na Coroa do Meio e aí foi desmembrando [...] o padre Luís há 39 quase 40 anos que padre fixou aqui foi que aí tinha missa toda semana! C.19

Que naquela época, Coroa do Meio estava totalmente separada ainda, né? Não tinha ponte, não tinha nada [...] naquela época, como vigário de São Pedro e São Paulo pegava uma canoa e trazia pro outro lado [...] Ah, usava um dia inteiro ida e volta! Então, chegando lá em Coroa do Meio só tinha 13 casas. Eu fui ver todas as 13 casas, de pé, né. Não tinha outra coisa! Agora, eu voltava pra Bom Jesus dos Navegantes de canoa. C.15

Os agentes, conforme destaca Brandão (2007) recriaram a ideologia católica da

docência da igreja, sob uma forma de catolicismo comunitário, pois realizaram o “[...]

trabalho cultural de recriar modos próprios de crença e atribuição de significados ao sagrado e

de usos de seus recursos [...]. O agente popular é [...] um aprendiz humilde dos atos dos

padres diante deste; mas um reinventor ativo e praticante autônomo quando longe deles”

(BRANDÃO, 2007, p.362/366)

A apropriação dos símbolos sagrados do catolicismo oficial fora já explicitado pelo

Cristo crucificado como representação do Bom Jesus dos Navegantes em Atalaia,

diferentemente de outras localidades em que se vê a imagem do Bom Jesus de braços abertos.

Pela fabulação popular [...] “os mesmos sujeitos celestes do ideário oficial são

redimensionados e reinventados.” (BRANDÃO, 2007, p.369)

37 Paróquia no Direito Canônico é uma circunscrição geográfica de uma diocese, é uma pequena porção de uma diocese, de um território sob a guia de um padre que é colaborador da ordem episcopal, do bispo. 38(CORRÊA,2004,p.22). Para ver a relação atualizada de paróquias oficiais sergipanas: http://www.arquidiocesedearacaju.org/?pg=paroquias Acesso em 05/12/2012. 39 Estas informações foram concedidas em entrevista com os párocos atual e antigo da paróquia Bom Jesus dos Navegantes.

70

A devoção ao Bom Jesus sofredor, já tradicional na península ibérica, ganhou mais força na colônia em consequência do período de dominação espanhola. Essa devoção ao Bom Jesus, dentro da perspectiva religiosa popular, era centrada no mistério da Paixão e Morte de Cristo. (AZZI, 2001, p.302)

Tal como já apresentado em outros relatos citados anteriormente, a promessa foi feita

em forma de invocação no mar com uma cruz, o Jesus sofredor, objeto que na Igreja Católica

representa a salvação, a redenção da humanidade. Depreende-se que para a localidade, Bom

Jesus apresentou-se com uma conotação mais mítica, é o seu santo protetor nas águas uma das

razões inclusive pelas quais a capela veio a ser edificada em direção leste, voltada para o mar.

Note-se:

Bom Jesus é pescador, filha! Ele tem que andar na água. Ele vivia no barquinho dele! Como é que ele pode sair do barquinho dele? Do lugar que ele viveu, pescando, pescador? C.05

Para a Igreja,

Não, não é um santo. É Jesus Cristo, Deus mesmo. Jesus Cristo é filho de Deus. Ele é... Mas, chamaram Jesus também como nosso padroeiro, né?Então o povo achava esses acidentes que vem com chuva e clima: “o mar vai se acalmar porque Deus está aqui e nós vamos fazer uma igreja aqui perto do mar!” Assim, começou Bom Jesus dos Navegantes e chamavam a igreja “Bom Jesus dos Navegantes” C.15

As versões locais da Festa de Bom Jesus dos Navegantes atestaram a procissão fluvial

como o ápice do momento festivo. Tanto, que as lembranças convergiram para o dia da

procissão como o momento de maior importância tendo como lugares de referencia do espaço

festivo a igreja (voltada em direção ao mar), o rio, a Praça Alcebíades Paes, as casas da

Marinha que eram a residência dos antigos faroleiros nas proximidades do hotel Atalaia e

ponto de desembarque da procissão fluvial, antigo farol e povoado Saquinho.

A casa de seu Arthur e dona Natália, que se situava à Avenida Beira Mar após o

povoado Saquinho, no percurso da procissão, era parada obrigatória do retorno à igreja para

orações em homenagem a estes que financiavam e organizavam o ato religioso por longa data

afinal, atuaram sobre ela graças à sua posição social local ou mesmo pela função que

exerciam tradicionalmente na festa. (BRANDÃO, 1978) Seu Arthur era um dos agentes mais

popularmente conhecidos porque era ele que arrumava o santo, ele que tomava conta C.05.

O período festivo sempre foi o mês de janeiro, o tempo de origem da promessa e do

evento e sem data fixa haja vista que estava em consonância com as condições de navegação

do braço do rio Poxim, e por causa disso, já se registrou procissões em fevereiro e março

71

devido ao fluxo das águas no rio Poxim. Portanto, a festa estabelecia-se ao tempo de “ordem”

local, o da Maré do Apicum:

A maré é quem dizia mais ou menos a data da procissão [...] tem que ser maré grande, que ela tivesse cheia, no preamar[...] Sempre a maré era quem dava o apito final! Porque ela quem dizia qual o horário que podia sair a procissão, aí por isso que mudava a data. C.07

O oceano estava passando pra cá! Meu avô fez uma promessa a Bom Jesus que se segurasse lá, ele fazia a festa de Bom Jesus. Aí fez uma igrejinha pequena, né, e comemorava Bom Jesus todo o ano no mês de janeiro [...]a promessa a Bom Jesus foi pro mês de janeiro, na primeira maré grande que tivesse C.12

O ápice da festa acontecia nos finais de semana com os tríduos40. O parquinho de

diversões montado na Praça Alcebíades Paes compunha o cenário da celebração popular

durante os dias de festa. Ocorriam apresentações de grupos folclóricos como Reisados e

Cheganças que vinham do Mosqueiro e até mesmo de outras localidades. Já na feirinha havia

o comércio de bebidas e frutas:

[...] a procissão de Bom Jesus antigamente [...] todo mundo ficava alegre porque ia para os tríduos e quando saía de lá tinha nessa praça daí, tinha barquinho, tinha roda gigante, tinha cavalinho! A gente se divertia muito! Eu mesmo andava demais, às vezes ficava até tonta de tanto andar. [risos] Na pracinha acontecia assim no dia dos tríduos e, principalmente no sábado, no domingo [...] Esses dias eram festivos. Quando terminava a procissão a pracinha enchia. Aí a pracinha agora não tem nada! C.02

A alvorada festiva no domingo era o prelúdio do “grande dia” da celebração pela

procissão votiva ao santo padroeiro. O cortejo fluvial vivamente na lembrança de seus

moradores era a anunciação da fé dos navegantes do Bom Jesus nas embarcações:

[ ...] aquelas canoas a motor que vinham da Barra dos Coqueiros pra cá, entendeu? E o povo de pés descalços [...] Outros, vestidos com aquela roupa branca [...] E eu sentia aquela fé daquele povo![...] E aquela tradição bonita, aqueles fogos, né, pelo mar, o rio cheio aí! O povo tomando banho aí e a canoa passando perto do povo! Eu mesmo já cansei de fazer isso também! C.03

Eu me lembro muito bem, era muito bonita, por dentro d’água, aquela banda de música, aqueles barcos muito bonitos. Aqueles barcos grandes que vinham da Atalaia Nova pra acompanhar, aqueles barquinhos pequenos de pano, né. E às vezes a gente conseguia uma vaguinha nos barcos, às vezes a gente ia por terra. Aí, ia até ali as casa dos faroleiros e dali a gente fazia o retorno e voltava até a Bom Jesus dos Navegantes C.05

40 Festa da igreja que tem duração de três dias consecutivos. Ver em: http://www.dicio.com.br/triduo/ Acesso em 27/12/2012.

72

A imagem em procissão fluvial saía da Igreja situada às margens da Maré do Apicum

no domingo à tarde, pois o horário de saída era o de preamar41 momento que se dava a subida

do padroeiro, ornamentado com flores, no barco em frente à Igreja, ao som de fogos de

artifício. A embarcação de maior porte transportava a imagem votiva juntamente com o padre

e os noviços da primeira comunhão. Em acompanhamento, cortejavam também outros barcos,

pois,

[...] tinha o pessoal aqui dos pescadores que iam com as tototós. Tinha aquelas também de motor que correm muito, né, que às vezes até perturbava porque jogava água quando elas passavam. [risos] Aí pronto! Depois quando eu já fiquei já adulta, eu passei a ser catequista e todo ano aí uma canoa comigo mais os meninos da primeira comunhão. C.19

A imagem era um crucifixo. Hoje, padre Genário fez a imagem do Bom Jesus dos Navegantes como ela é. Que ele disse que Bom Jesus dos Navegantes, é aquele que ele tem hoje. E na época era um crucifixo, na igreja aí tem um crucifixo grande do senhor morto que eles levavam como Bom Jesus dos Navegantes. Esse é que ia dentro do andor, enfeitado, bem enfeitado, muitas flores, aquele andor grande. E aí quando chegava à igreja de volta, por terra, o padre dava a benção. C.18

Outras embarcações menores fossem à vela ou a motor levavam fiéis ao cortejo

percorrendo pelo rio até as imediações do antigo Farol da Atalaia Velha e retornava, por via

terrestre, até a Igreja para a benção final. Num tempo mais recuado, segundo relatos, a

procissão fluvial alcançava as imediações do parque governador Augusto Franco pelo estuário

do rio Poxim donde retornava para o desembarque:

O trajeto saía da porta da igreja, vinha até depois da ponte! Fazia aquele retorno na Sementeira, mais ou menos ali. Pelo rio! C.19

No dia festivo, além da procissão, ocorriam banhos na maré e corrida de canoas. O

pagamento de promessa no rio também já se fazia registrada como demonstram as figuras 3.1,

3.2. e 3.3. A promessa, neste caso, denotou um rito de conexão com o rio Poxim pela

dimensão do sagrado.

41 Máxima altura alcançada por uma maré de enchente. Maré cheia, preamar. (ALMEIDA, 1984.p.26)

73

Figura 3.1 Pagamento de Promessa na Maré do Apicum durante a Festa de Bom Jesus dos Navegantes.

Fausto Cardoso Chagas. Década de 1960. Fonte: Acervo fotográfico de Dalila Chagas Corrêa.

Figura 3.2 Entrada nas águas: rito de pagamento de promessa. Festa de Bom Jesus dos Navegantes – Década de 1960.

Fonte: Acervo fotográfico de Dalila Chagas Corrêa.

Figura 3.3 Fausto Cardoso Chagas em pagamento de promessa na Maré do Apicum

Festa de Bom Jesus dos Navegantes – Década de 1960. Fonte: Acervo fotográfico de Dalila Chagas Corrêa

74

Com efeito:

Além de objeto de contemplação, a água é lugar de passagem ou travessia, é ponto de navegação, de deslocamento de um continente a outro, de contato corpóreo: o banho com significação sagrada ou profana realiza essa possibilidade, propiciando a ultrapassagem da emoção do olhar – da melancolia ou da alegria dos olhos. E quando se toca nas águas, mergulha-se em sonhos, purifica-se o corpo e a alma, ou quando simplesmente a estes fornece-se o gozo em ato lúdico. (DIEGUES, 2000, p.11)

Como se observa, as figuras comprovam a participação de grande fluxo de pessoas no

entorno da maré para assistir ao cortejo da procissão fluvial de Bom Jesus dos Navegantes.

Observa-se a ausência do manguezal e a extensão e volume de água do rio Poxim num

passado recente o que permitia a navegação de barcos à vela e de grande porte como também

atestam as falas dos moradores:

Ah, o rio era grande, era largo [ ...] Começava dali onde é o terminal, não é?[...] De ônibus, pois é! Aí, ia, seguia, mas muita água, o rio enchia. Até com a maré seca tinha água, né? Quando era cheio, então. Quer dizer, a procissão sempre era de acordo com a maré. Quando a maré... janeiro a maré tá grande[...] chama maré grande, então era quando tinha a procissão. E quer dizer, era muito rio, era muita água. [...] Tantas águas... Tinha saveiros! Sabe o que é saveiro? C.01

Neste mesmo percurso, fazia-se notável a presença de várias pessoas do bairro e

povoados próximos como Mosqueiro, Robalo, São José, Areia Branca no entorno da Maré

para apreciação dos barcos. O cortejo de cavalos vindos do Robalo e Mosqueiro revelavam

outra manifestação da festa num período mais remoto e finalizavam a procissão terrestre até a

chegada à Igreja. Pessoas de outras localidades participavam com seus barcos a vela, como

era o caso de visitantes que vinham da Barra dos Coqueiros e Atalaia Nova:

[...] vinha gente a cavalo. [...] Mosqueiro, Areia Branca, Robalo, Fazenda Nova. Vinha uma equipe imensa. Tudo à cavalo. Tinha um espaço que eram só eles na procissão. Digamos, o santo ia lá à frente, uma multidão, um espaço dos cavalos e mais gente. Nossa procissão era algo que merecia ser filmado pra ser mostrado hoje pra eles verem como era nossa procissão. [...] Talvez até botassem o pé no freio e parassem um pouquinho nas mudanças que eles estão fazendo. C.07

Vinha tanta canoa de lá da Barra dos Coqueiros prestigiar a procissão de Bom Jesus! C.02

O percurso terrestre iniciava-se entre a boca do Rio, hoje a ponte Juscelino Kubitschek

de acesso à zona sul e o Farol da Atalaia, mais precisamente nas imediações do Hotel Atalaia

onde se efetivava a descida da imagem votiva para o retorno à Igreja. Neste momento, várias

75

pessoas ali presentes acompanhavam a chegada com fogos de artifício e banda de música,

conforme se verifica nos relatos:

Ela descia lá onde “Mero Gato” botava bandeira, tudo, sabe? Aí descia e nós vínhamos andando. Era muito bonito. Fogos muito. Dava logo aviso quando ele ia sair, quando ele chegava. Tinha missa, senhor Bom Jesus era virado assim pra frente do mar! C.14

Chegava ali, muita gente, perto do Farol da Farolândia que tem umas casas ali de marinheiro, ali que Seu Mero Gato morava, ele trabalhava parece que na Marinha [...] E lá na frente de Mero Gato [...] tinha um espaço assim, limpo, a canoa parava dentro do rio, na beirada do rio, descia e nós voltávamos a pé com o santo no ombro. C.03

Os pescadores tinham como função na festa preparar os barcos, identificar as

condições de navegabilidade do rio para melhor horário de saída do cortejo, conduzir a

procissão fluvial e desembarcar a imagem do padroeiro (figura 3.4).

[...] nós só participávamos assim com as nossas canoas, embelezar o rio. Muitos pescadores daí. Só da nossa parte, tinham dez, doze canoas [...] e a gente fazia nossa festa, mas sempre cá em nosso Porto. Só na hora da procissão é que nós íamos lá botar o santo da igreja para canoa a motor que vinha fretada da Barra dos Coqueiros e nós pegávamos as nossas e aí acompanhava. Nossa participação era essa. C.06

Figura 3.4 Desembarque da imagem votiva de Bom Jesus dos Navegantes – Procissão fluvial Década de 1990. Observa-se a presença de manguezal em ambas as margens.

À esquerda, segurando o andor, o senhor Roberto Oliveira. Fonte: Acervo fotográfico de Roberto José de Oliveira

No percurso de volta à Igreja pela Avenida Beira Mar destacava-se o andor conduzido

por fiéis, dentre eles pescadores, paroquianos, tendo à frente o pároco. Participavam também

do rito, os veranistas e pessoas de regiões próximas como Mosqueiro e Robalo. O cortejo

terrestre que dali se estabelecia angariava uma massa de devotos vestidos em suas melhores

76

roupas, roupas brancas, devotos descalços em pagamento de promessa, como se observa na

figura 3.5.

[...]a gente trabalhava um ano pra quando chegar a Festa de Bom Jesus ter meu sapatinho novo, ter minha roupa nova. C.14

Figura 3.5 Percurso terrestre da procissão de Bom Jesus em retorno a Igreja.

Pároco Luís Lemper (em azul) à frente ao andor. À esquerda, mulher de branco e descalça em pagamento de promessa. –Década de 1990.

Fonte: Acervo fotográfico de Diná Maria Santos

Tem-se evidente a inserção popular na procissão de outrora e, por conseguinte, na

Festa de Bom Jesus dos Navegantes em que os papéis ali exercidos eram os mais diversos: os

que pagavam promessa, os que oravam e esperavam as bênçãos, os que a promoviam e

financiavam, os que a executavam, os que a apreciavam e os que se iniciavam dentro da

tradição. (figuras 3.6 A e B) Nestes papéis, estabeleciam-se solidariedades recíprocas entre os

participantes da festa: jovens, adultos, crianças e idosos:

[...]no dia da procissão o mangue era limpo[...] pra chegar o santo, pra realmente descer com a turma! E a turma descia da canoa com ele no ombro já e ali vinha os companheiros trocando, pra um não levar só! Uns pegavam, outros pegavam até chegar na Igreja, né! Hoje já não acontece mais isso! C.02

77

Figura 3.6 A. Andor carregado por fiéis na procissão de Bom Jesus em retorno a Igreja.

Década de1990. Fonte: Acervo fotográfico de Diná Maria Santos

Figura 3.6 B Cortejo terrestre de Bom Jesus em retorno a Igreja.

Década de 1990. Fonte: Acervo fotográfico de Diná Maria Santos

[...] a gente ia para a porta da igreja, tinha aquelas queijadinhas para a gente comprar. A gente já ficava pensando, quando vinha, para comprar aquelas bolachinhas de goma. [...] e queijada! C.09

A chegada à igreja fazia-se ao sabor das queijadas e bolachas de goma vindas de São

Cristóvão do povoado Pedreira. Ali, no entorno do templo em meio ao último rito religioso

que era a benção do santíssimo sacramento consumiam-se as iguarias trazidas pelas

vendedoras.

O conhecimento que a localidade evoca sobre seu passado encontra-se entrelaçado,

como se aferiu, ao surgimento da procissão, base da religiosidade ali efervescida e difundida

que perpassou a vida dos que ali se estabeleceram. Essa tessitura foi constituída pelo

78

processo de tradição, legada pelos seus agentes e compartilhada pela comunidade em

aceitação e reprodução de práticas que “[...] de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar

certos valores e normas de comportamento através da repetição” (HOBSBAWM, 1984, p.9)

Verificou-se nas lembranças a ênfase aos personagens, fundadores ou patriarcas, ou àquele

que tudo começou e a partir do qual se edificou o conhecimento histórico sobre o próprio

bairro.

Com efeito, evidenciaram-se também pelas lembranças evocadas que a procissão

fluvial apresentou-se na festa sob um cenário em que a beleza natural foi enfatizada pelas

descrições de um rio abundante pelo fluxo de suas águas e fonte de alimentos, uma paisagem

bucólica e romântica da Maré do Apicum bastante apreciada pelos moradores. (DA MATTA,

1993)

A última procissão fluvial de Bom Jesus dos Navegantes registrou-se em 2005 como

se observa na figura 3.7. Já se evidenciavam a extensão do manguezal em toda a margem do

“braço do rio” e as construções ali estabelecidas. As águas perenes denotam a perda de fluxo

(ver figura 3.1). A dificuldade de navegação na Maré do Apicum também se fazia presente,

pois neste ano o embarque e desembarque do andor se fez manifesto com barcos de pequeno e

médio porte para o transporte com poucas pessoas na tripulação.

Figura 3.7 Última Procissão Fluvial na Maré do Apicum. Janeiro, 2005

Fonte: Acervo fotográfico de Isabella Corrêa.

3.2 CONEXÕES E CONFLITOS: ENTRE O PASSADO E O PRESENTE DA FESTA

Atualmente, a procissão de Bom Jesus dos Navegantes manifesta-se via terrestre dada

a impossibilidade de navegação pelo assoreamento da Maré do Apicum. No lugar do rio

79

como se observou nas figuras 3.3 e 3.7 viu-se aflorar extenso manguezal (figura 3.8) que vem

se adensando ano após ano.

A paisagem festiva anteriormente descrita foi alterada com o crescimento demográfico

do bairro pela chegada de novos moradores, pelo potencial turístico ali implementado com a

orla, a construção e modernização de casas, de bares e atrativos para a praia que foram, aos

poucos, alterando o modus vivendi da localidade.

Na festa de Bom Jesus dos Navegantes, a dimensão profana como as apresentações

folclóricas no “cassino”, o parquinho e a feirinha montados na “pracinha”, a corrida de

barcos, jogos, bailes, bebidas já não acontecem há décadas. Tais atividades sucumbiram às

brumas do tempo, porém permanecem vivas nas lembranças dos mais velhos como já

mostrado anteriormente pelos relatos.

Figura 3.8 Assoreamento da Maré do Apicum - 2008

Fonte: Acervo fotográfico de Isabella Corrêa

As bases conflitivas da relação homem-natureza apresentaram-se inicialmente

relacionadas às tensões causadas pela degradação da Maré do Apicum que inviabilizou o

cortejo fluvial do padroeiro realizado em longa data. O aterramento desse braço de rio, a

poluição, as invasões no ecossistema de manguezal foram fatores de pressão à tradição da

festa.

Ademais, esses problemas elencados levaram a uma visão depreciativa do manguezal

ali florescido considerado pelos moradores como veículo de sujeira do rio pela lama,

empecilho ao fluxo das águas e, por conseguinte, da não realização da procissão:

Carregar Bom Jesus era muito bonito antigamente! Não tinha essa lama, não tinha nada, não tinha esses mangues todo pro lado de cá! Era areia e depois começava lama, o mar era fundo, era canoa, era tudo. A gente tomava banho que só aí! Era uma delícia! Hoje em dia, tá a bagaçada que você vê! Não é brincadeira não! C.02

80

Fizeram promessa, por incrível que pareça o mar afastou e a procissão continuou e até hoje, quer dizer, continua embora por terra! A procissão fluvial acabou por causa das erosões que aterraram o rio, os órgãos públicos não tiveram interesse em desobstruir o rio! Então, hoje não tem mais condição de fazer a procissão fluvial. Mas, é o que vem. A cidade cresceu, junto com o desenvolvimento vem destruição, né. [...] Esse rio aqui era ariado de fora a fora no cais. Hoje, é cheio de lama! C.16

Ah, o rio era maior, cheio, dava pra colocar muitos barcos e agora a maré secou, eu acho que foram as várias construções, invadindo, invadindo. Inclusive a Coroa do Meio ela foi se expandindo mais, crescendo, aí diminuiu o rio! C.17

Ói, antigamente a festa de Bom Jesus era por água. Hoje, não é mais por água! Não tem água pra puxar! O mangue tá tomando conta da maré toda. Não tem, só tem lama C.12

Convém acrescer que toda tradição tem como característica a invariabilidade de

práticas a fim de garantir laços com passado quer seja este real quer seja forjado. Visa à

reprodução simbólica dos sentidos, dos significados sendo uma estratégia de consolidação de

ideias, valores e projeções (HOBSBAWM, 1984). Desse modo, os elementos que conferiram

o caráter de tradicionalidade à festa do Bom Jesus dos Navegantes foram a repetição do ritual

da procissão fluvial no mês de janeiro com o cortejo terrestre de volta à igreja, o

conhecimento de sua antiguidade, a longevidade de sua devoção situando-a sempre na

lembrança dos primeiros tempos e das pessoas que organizavam e mantinham o evento

consoante à representação que faziam do meio natural. Dito de outra forma, a tradição foi a

base conectiva que reforçou a relação homem-natureza na festa.

A tradição lançou bases à formação de uma relação devocional na Atalaia e, por

implicar numa continuidade com o passado, tornou-se a base referencial da localidade.

(CANDAU, 2011; DELGADO, 2006) Essa assertiva concebida foi verbalizada pelos fiéis os

quais evidenciaram sua afetividade para com a festa, em especial com o rito da procissão

sendo o acontecimento mais importante elencado em suas vidas religiosas e na vida do bairro

donde a centralidade da fé e do festejo é o seu patrono Bom Jesus dos Navegantes, como se

nota nos relatos:

Pra mim é uma tradição melhor que a Atalaia teve. Era a coisa mais falada é a procissão de Bom Jesus, né?[...] . Então pra mim é uma tradição [ ...] não tinha outra coisa melhor, não tinha outra festa melhor que é a procissão de Bom Jesus. C.01

A tradição daqui dos católicos [...] Era, todo mundo era católico e a festa de Bom Jesus no bairro. C.11

Agora que está tirando, deixou de ser no mar pra poder ser por terra, né. Bom Jesus dos Navegantes sempre foi pelo mar... Agora, tirou pra ser por terra. Muita gente ignorou muito isso […] porque era tradição, né, mulher! Pelo mar e pronto! C.13

81

Figura 3.9 Procissão terrestre ocorrida em 2008 (Avenida Paulo Barreto) Ao fundo, o marco da Associação dos Pescadores da Atalaia

Fonte: Acervo fotográfico de Isabella Corrêa

[ ...] a gente já acostumou desde pequenininha, não é? Naquela: vamos para a igreja! Bom Jesus, Bom Jesus! Apesar de que eu amo também Maria. Mas, a gente é mais devoto de Bom Jesus porque foi o primeiro nome que a gente conheceu, Bom Jesus! E a gente via nas procissões, né, sentia a fé do povo, então faz com que a gente vá aprimorando as coisas e vai tendo fé também! C.19

Não obstante, esse mesmo sentimento conduziu a uma reapropriação do espaço festivo

em que pese à continuidade da orientação fluvial, embora somente terrestre até o ano de 2010

a procissão seguiu (ida e volta) o mesmo percurso de outrora. O restabelecimento do espaço

deve-se ao fato da necessidade que tem o homem religioso de estar imbuído de uma atmosfera

sagrada e, portanto, faz a distinção do “[...] espaço sagrado, do não sagrado. Os espaços são

demarcados pelo poder da mente de extrapolar muito além do percebido [...] os homens

procuram materializar seus sentimentos, imagens e pensamento neles.” (ROSENDHAL, 1996,

p.36) Nota-se, inclusive, nas figuras 3.9 e 3.6 (A) donde se alude a temporalidades festivas

distintas, que os devotos em acompanhamento ao andor revelam o fator de continuidade dos

papéis exercidos na procissão pela permanência dos sujeitos quer seja com o carregamento do

andor votivo quer seja pelo pagamento de promessa.

A igreja como espaço festivo também revelou ser outra base constituinte do

patrimônio religioso cuja última reforma empreendida se deu no aspecto estrutural entre os

anos de 2000 a 2002. A reforma mesmo tendo como justificativa a necessidade de ampliação

do templo que já não comportava a crescente demanda das pessoas nos atos religiosos

institucionais foi alvo de críticas. Para os moradores alterou significativamente suas

“características” postas com muita ênfase nos relatos, sobretudo pela mudança de sua

82

conformação anterior (ver ANEXO B) cujo altar e portas faziam-se orientadas em direção

leste, ou seja, para a Maré do Apicum e para o oceano cujo sentido original, conforme a

primeira capela dava-se em honra ao padroeiro:

A igreja era muito bonita. A igreja era virada pra o mar. A frente dela era pra maré. Aí veio uma arquiteta não sei de onde e fez uma igreja redonda que eu nunca vi uma igreja redonda, to vendo essa. [risos] Quer dizer, o padre celebra a missa com as costas pro mar, o que é errado. O santo fica virado pra cá, o santo tem que ser no meu entender, no que eu vi, era para o mar. C.05

Fizeram uma igreja que ainda não vi ninguém dizer que gostou daquela igreja, ninguém! Porque eu sei que senhor Bom Jesus é dono do mar, ele teria que ficar com os braços abertos pro mar, né? Mas, não, é de costas. Fizeram assim uma cruz na parede. Agora, o santo fica na chuva, no sol [...] Tá lá pra quem quiser ver! Não é um absurdo? O bichinho, a sol, sereno, à chuva? C.14

O fator conflitivo pelo qual a tradição apresentou grande sinal de tensão foi a mudança

do roteiro terrestre estabelecido em 2011 que não mais se realizou em orientação às águas da

Maré do Apicum. Seguia pela avenida até as proximidades do Hotel Atalaia, onde

antigamente descia o andor e retornava à Igreja.

Dentre as principais causas elencadas pelos moradores tem-se a chegada do novo

pároco e suas inovações, a intervenção da Diocese, a chegada de pessoas de “fora” que vieram

morar no bairro e inseriram-se na paróquia sendo “novas” na festa de Bom Jesus dos

Navegantes. Estas substituíram as pessoas mais velhas que, naturalmente foram deixando

suas atividades na igreja e na festa. Alguns destes eram antigos agentes do evento que por

“[...] sua vinculação afetiva e pessoal “aos costumes do lugar”, respondem pelos esforços de

preservação dos rituais de maior tradição [...] (BRANDÃO, 1978, p.45)”.

Vale ressaltar que foi um ano crítico na festa pela mudança de pároco posto que o

antigo aposentou-se e foi o marco de muitas transformações como a ocorrência de duas festas

alusivas ao Bom Jesus dos Navegantes em 2011 (janeiro e novembro) a respeito das

mudanças implementadas.

A mudança no percurso terrestre por parte da paróquia deveu-se ao reordenamento

geográfico concernente à configuração territorial instituído pela Diocese a qual traçou desde o

ano de 200142 uma nova delimitação à Atalaia no tocante ao campo de atuação religiosa:

Hoje, o nosso limite de paróquia vai do restaurante “Miguel” até a Petrobrás. Terminou a Petrobrás, terminou o nosso limite geográfico. [...] Então, essa é a nova circunscrição jurídica da paróquia. [...] O bispo

42 Informação concedida em entrevista com o pároco local.

83

zelando pelo povo cria novas paróquias. Porque novas paróquias significa um outro padre, uma outra assistência. [...] Então, a assistência é melhor para o benefício do povo de Deus. [...] Isso é uma coisa normal que tem na Igreja. [...]C.04

O desmembramento da extensão paroquial da Atalaia e a consequente alteração do

roteiro processional implicaram a supressão de maior parte dos espaços festivos tradicionais,

tidos como pontos de referência, lugares de memória religiosa da Festa de Bom Jesus dos

Navegantes. Hoje, esses lugares pertencem à circunscrição da Farolândia não sendo mais

contemplados pela passagem da Procissão. Os pontos já anteriormente descritos estão

situados à rodovia Paulo Barreto, direção norte/centro (percurso de ida) e à Avenida Beira

Mar (o antigo percurso de retorno), direção sul até chegar à Igreja, situada à rua Antônio

Alves. São eles: margem da Maré do Apicum, Associação dos Pescadores da Atalaia, antigo

Farol da Atalaia, povoado Saquinho e Praça Alcebíades Paes.

Figura 3.10. Roteiros da procissão de Bom Jesus dos Navegantes.

Fonte: http://maps.google.com.br/maps?hl=pt-BR&q=atalaia,+farolandia Organização: Rodrigo Lima

A figura 3.10 ilustra os roteiros da festa. O tradicional que ocorreu até 2005, o roteiro

de 2006 a 2010 o qual buscou aproximar-se do anterior respeitando a orientação do meio

natural (as águas) e os mais recentes- 2011 e 2012- que após o desmembramento da paróquia

movem a procissão para o sul percorrendo as ruas em orientação contrária à Maré do Apicum.

84

As figuras 3.11 e 3.12 ilustram a procissão de 2008, correspondentes ao segundo

roteiro ocorrente.

Figura 3.11 Cortejo alusivo a Bom Jesus dos Navegantes em 2008 (Avenida Paulo Barreto) Fonte: Acervo fotográfico de Isabella Corrêa

Figura 3.12 – Procissão terrestre ocorrida em 2008 (Avenida Beira Mar) Fonte: Acervo fotográfico de Isabella Corrêa

A festa de janeiro de 2011 teve como circuito processional a orientação contrária a que

antes se fazia compreendendo a Avenida Antônio Alves ponto de saída da Igreja em direção

sul: Rua Arício Guimarães Fortes (rua paralela ao terminal de ônibus da Atalaia), Rua Anísio

da Silva Tavares, Avenida Melício Machado, Avenida Monteiro Lobato (rua do Cemitério

Helena Alves Bandeira) e Rua Luiz Chagas ( onde está a lateral da Igreja, rua de chegada). A

figura 3.13 mostra a procissão nesse terceiro roteiro.

85

Figura 3.13 Procissão terrestre de Bom Jesus dos Navegantes – Jan.2011 Fonte: Pesquisa de Campo, janeiro 2011.

Conforme relatos dos fiéis, essa foi, sobremaneira, a maior mudança da festa, alvo

também de críticas entre moradores especialmente os mais antigos, dentre eles, colaboradores

e partícipes na Festa de Bom Jesus dos Navegantes ao longo da vida. Coletivamente, a

insatisfação foi demonstrada com faixas colocadas em pontos referenciais da festa no Bairro a

exemplo da Associação dos Pescadores da Atalaia donde se verifica na figura 3.14 em que se

lê: “A Atalaia tem história, aqui não é Farolândia! Exigimos respeito a cultura da nossa

comunidade!”

Figura 3.14 – Faixa de protesto na Associação dos Pescadores da Atalaia

Fonte: pesquisa de campo,janeiro 2011

No cenário celebrativo de janeiro de 2011 essa manifestação evidenciou

explicitamente uma memória ali reivindicada. Foi um ato deveras expressivo que denotou a

singularidade da procissão na festa de Bom Jesus dos Navegantes como um bem dos “filhos

da Atalaia” C.01, indubitavelmente o seu patrimônio.

86

Nesta dimensão tanto a faixa como as opiniões expressas pelos relatos em seguida

corroboram a necessidade de assegurar “[...] a continuidade de um processo de reprodução,

preservando os modos de fazer e o respeito a valores como o do ritual religioso.” (FONSECA,

2009, p.72):

Bom Jesus não é como política! Tá como uma política, não é? Não é não? Eu acho que Bom Jesus podia ir até onde fosse a festa, podia até o Saquinho ou pra lá do Saquinho, não tinha problema nenhum, né? Também quando tivesse a procissão da Farolândia podia vir pra cá [...] Mas não, tem essa separação![...] Achei isso extremosamente ruim! Achei tanto que nem fui esse ano! C.01

Logo que matou aí tudo, aí esse mangue todo que aterrou a Coroa do Meio com esses esgotos [...] , minha fia. Aí encheu tudo de lama como tá vendo, [...] . E aí pronto a procissão foi indo, foi indo, foi indo e agora tá uma tristeza que a nossa alegria aqui todo ano é a festa de Bom Jesus. E agora não está, botaram pra lá, disseram que aqui agora não é mais Atalaia! Aqui agora é Farolândia! Tão comendo a Atalaia! [riso] C.14

Ademais, constatou-se que houve uma repercussão coletiva no bairro no tocante às

reações mais veladas ao fato. Dentre elas a ausência das pessoas na igreja, sobretudo na

procissão em sinal de protesto, o desligamento da paróquia, a reclamação dos idosos pela

quebra do costume, outros por motivo da distância do deslocamento. A insatisfação com a

falta de uma atitude mais expressiva por parte dos fiéis frente à Igreja fez-se presente:

[...] Muita gente sente a dor e fica calado, tem vergonha de dizer. A maioria do povo reclamou e foi. Teve gente que adoeceu. [...] Então, quando foi o povo pro lado da Petrobrás, eu sozinho com meu Bom Jesus dos Navegantes vim pro lado do centro, né, que é acompanhando o rio. C.03

E diminuiu bastante. As pessoas estão discordando desse percurso que estão colocando agora. Tanto é que cada ano é um percurso. Eu acho que a procissão é o povo. Não é só o padre, nem aqueles que coordenam a igreja. É o povo! Então, eu acho que o povo deveria ser consultado![...] Eu aceito, mas não concordo. C.07

Na versão da Igreja, a motivação da mudança, para além da nova demarcação

paroquial, foi o fato de que a Festa de Bom Jesus dos Navegantes e mais especificamente a

procissão terrestre realizada por um único percurso não contemplava a todos os paroquianos.

Ademais, a falta de condições em fazer a procissão fluvial dada à poluição do rio já não mais

justificou a celebração pelo referido percurso. Novos tempos são, portanto, enfatizados para a

festa da Atalaia em que a ação paroquial adota como objetivo o incentivo à criação de uma

dimensão de comunidade religiosa em que pese à orientação dos praticantes da religião quer

seja com participação mais efetiva em missas aos domingos, quer seja nos movimentos, nas

pastorais para reforçar os laços vinculados às atividades da Igreja, como se verifica em

seguida:

87

Já aqui não é só devoção. É uma paróquia que antes era capela! Mas, agora é paróquia! Então, tem uma dimensão que em todo território o povo também. A gente vai para uma procissão para um outro território, claro que é a mesma Igreja. A divisão é pra melhor atender questão dos sacramentos. Mas, é a mesma Igreja. Mas, por que ir pra um lado onde tem outra parte do povo aqui? Não tem mais fluvial! Então, todo esse questionamento eu fiz, porque não fui eu que acabei! O fluvial quando cheguei aqui já tinha cinco anos que não existia mais na Maré do Apicum. Era só pela avenida [...] porque que a vida toda passou por aquela avenida. Mas, a gente tem que acompanhar o tempo, né? Agora, claro, digo e repito que se fosse possível que eu chegasse aqui e ainda tivesse fluvial eu ia continuar! É a tradição de um povo, né? [...] Mas, a poluição tomou conta, ninguém tomou conta da Maré do Apicum. C.04

Vale ressaltar que houve opiniões divergentes sobre a mudança43 em questão a

respeito de posturas a favor e indiferente ao acontecimento. Já outros manifestaram seu

posicionamento de resistência à mudança, pela continuidade de sua participação na festa, na

procissão, inclusive nos ritos da Igreja mesmo estando territorialmente circunscrito na

Farolândia:

Eu acho essa mudança muita adequada, sabe? No meu ponto de vista, como houve desmembramento que eu lhe falei que aqui eram muitas comunidades, né. [...] Repito, essa mudança de roteiro/trajeto é muito bom para que a Igreja tenha visibilidade! Que ela também percorra aqueles fiéis que estão afastados! Que estão digamos à margem! C.20

Ói, eu sou tradicionalista, né. Realmente, eu, veja bem, não concordei, mas aceitei porque o poder de decisão é do pároco, poder de decisão dele e o bispo. Então, cabe a mim [...] não concordar, mas aceitar. Não sou eu que vou mudar. É um padre jovem, entende que assim é melhor, está mais realístico. Então, as pessoas ou aceitam, ou o que vão fazer? Vai deixar a paróquia? Quer dizer, a gente não tá na paróquia por causa do padre, a gente tá na igreja por causa de Jesus, né, Então, [riso] é o que eu faço. C10

É o percurso mudou [...] mas vai se fazer o que ,né? Porque no começo até eu mesmo estranhei, veja! Eu que andava na igreja estranhei, achei estranho, né, porque a procissão toda a vida foi por aqui e, de repente, fica só para banda de lá! Mas, mesmo assim eu continuo participando até o dia que Deus quiser! C.02

Eu nasci aqui, me criei me batizei, me crismei, só não fiz casar. Mas, todo o sacramento que teve possibilidade de eu fazer, eu fiz. Engajei na Igreja, fui catequista e hoje eu sou. Já entrou padre, já saiu padre, já morreu padre que passou por aqui [...] Não é agora, na minha velhice como diz a história, que eu vou me transferir, vou pra outra igreja sendo mais longe. Porque diz que até o canal, até Miguel [...] é Farolândia! C.19

Na atualidade é a paróquia o único agente da festa de Bom Jesus sendo

exclusivamente a instituição idealizadora, promotora e organizadora do evento. Bom Jesus

43 Dos vinte e dois entrevistados/colaboradores, doze moradores antigos manifestaram o descontentamento pela mudança do roteiro tradicional, quatro declararam-se a favor, três afirmaram estarem indiferentes e três abstiveram-se de emitir suas opiniões.

88

dos Navegantes é uma festa da Igreja, né? Na Igreja. Então, é a Igreja que é a mentora. [...]

é que levanta o estandarte da Festa. É a grande protagonista da Festa [...] C.20 O pároco

delega a sua equipe de leigos, participantes dos movimentos pastorais da paróquia

responsáveis pelos preparativos da festa. São por ele coordenados grupos de patrocínio, de

procissão, ornamentação e divulgação que trabalham meses antecedentes ao evento e são

responsáveis pela elaboração festiva como organização, quermesse, elaboração do temário das

novenas, definição do roteiro, cartazes e divulgação do evento na mídia a exemplo da rádio

Cultura.

O “bazar dos Navegantes” é uma nova atividade, estratégia elaborada pela comissão

festiva tendo em vista angariar fundos financeiros a serem aplicados na compra de materiais

para a festa.

Já a quermesse tem o patrocínio de pontos comerciais, lojas do bairro e empresas

donde se realiza a venda de comidas, bingo e venda de camisas para o pagamento das

despesas com a festa. Costumeiramente, a quermesse ocorria no dia festivo após a procissão

e, atualmente passou a realizar-se na semana que a antecede e em outro espaço que não o

entorno da Igreja ocorrendo em praça adjacente ou outros espaços do bairro como escolas a

fim de não quebrar o sentido religioso.44

De igual forma acontece com os ritos, são presididos pela paróquia. A novena em

substituição ao antigo tríduo: [... ] é a adoração a Jesus sacramentado [...]o novenário em que

é celebrado o santo sacrifício da missa que é o cume da ação da Igreja, de toda a vida da

Igreja,[...] é a liturgia, a sagrada liturgia[...] sendo que no dia festivo tem além da missa

solene, a procissão. C.04. A novena acontece durante nove noites que antecedem o dia festivo

e nesse período ocorre adoração com orações proferidas e cantadas como é caso das

ladainhas. Em seguida tem-se a benção do santíssimo e a missa em cada noite possui uma

temática seguida nas homilias sendo celebrada por padres convidados de outras paróquias e

concelebrada pelo pároco local.

Declaradamente, o papel e orientação da Paróquia na festa é conduzir a comunidade

na religião oficial a qual tem como premissa a administração do sagrado situando-o num

tempo histórico da Bíblia, o tempo da existência de Jesus, o filho de Deus (CAILLOIS, 1988;

ELIADE, 1996) Por esse princípio, “o padre [...] lança mão, sobretudo das missas, para dirigir

mensagens pastorais [...]” (BRANDÃO, 1978p.117) A missa é, pois o rito celebrativo mais

44 Entrevista concedida em 27/12/2011 pelo pároco Genário Oliveira.

89

importante para a Igreja, sendo o auge do ato festivo, uma representação do sacrifício de Jesus

tornando o fato contemporâneo.

A mudança do roteiro da procissão não foi a única alteração ocorrente nas celebrações

da Festa de Bom Jesus dos Navegantes. Foi introduzida uma nova imagem votiva (figura

3.16) do padroeiro na última festa do mês de janeiro realizada em 2011. Observa-se que a

imagem de Cristo na cruz, tal como reproduzido na frente da igreja e reverenciado nos

andores das procissões até então foi substituído.

Como se observa na figura 3.15, o andor já não foi mais levado por fiéis a exemplo de

paroquianos e pescadores como se fazia anteriormente. Bom Jesus foi conduzido sobre

veículo patrocinado pela empresa Nassal.

Figura 3.15 – Procissão de Bom Jesus dos Navegantes na Avenida Antônio Alves. Jan.2011

Fonte: pesquisa de campo/janeiro 2011

A nova imagem de Bom Jesus dos Navegantes apresentou-se em um barco de madeira

e de braços abertos, enfeitados por muitas flores como rosas vermelhas e crisântemos,

ornamentação contratada por floricultura. Sua nova representação tem como indumentária

uma túnica branca e pano vermelho que significa a realeza45 do Cristo, rei do universo.

E eu vi flores em Bom Jesus. Lindas, maravilhosas. Bom Jesus ficou lindo, lindo, lindo, lindo.[...]Bom Jesus merece muito mais. É! Bom Jesus é maravilhoso! C.02

Esta inovação, como nos descreve o relato acima, foi apreciada por alguns moradores

antigos, fiéis ao padroeiro46.

45 Conforme informação concedida pelo pároco Genário O. Júnior em 27/12/2011. 46 É importante salientar que a mudança da imagem não foi item perguntado no roteiro da entrevista (Apêndice C), sendo manifesto espontaneamente por três moradores antigos a respeito das mudanças na festa.

90

Figura 3.16 – Nova imagem votiva de Bom Jesus dos Navegantes apresentada na festa de janeiro de 2011.

Fonte: pesquisa de campo/janeiro 2011

Outra atividade implementada em 2011 foi a banda de música puxando a procissão.

Em janeiro, foi a Filarmônica procedente da cidade de Ribeirópolis/SE:

Hoje, o padre Genário resgatou isso aí. A procissão agora de Bom Jesus dos Navegantes é com banda de música. E quando eu cheguei aqui também era banda de música, então a banda de música era quem cantava e todo mundo acompanhava. [...] a antiga banda era do quartel 28BC[...] C.18

Figura 3.17 – Filarmônica de Ribeirópolis puxando a procissão de Bom Jesus dos Navegantes/ jan.2011

Fonte: pesquisa de campo/janeiro 2011

Na comemoração de janeiro identificamos a presença das vendedoras de queijada,

procedentes do povoado Pedreira - São Cristóvão/SE (figura 3.18). Estas se declaram filhas e

netas de antigas vendedoras de queijada na festa de Bom Jesus dos Navegantes e estavam

91

surpresas com as mudanças, até porque esperavam participar da quermesse como

costumeiramente fazia todos os anos. Durante todo o dia, puseram-se em frente à Igreja, com

seus baldes e tabuleiros de queijada e bolachas de goma à espera do horário da procissão para

que efetivasse a venda dos produtos pela grande quantidade de pessoas no dia festivo, o que

conseguiram, de fato, ao término do evento.

Figura 3.18 – Vendedoras de queijada em frente a Paróquia Bom Jesus dos Navegantes. Festa de jan/2011 Fonte: pesquisa de campo/janeiro 2011

A transferência da data de janeiro para novembro foi outra alteração significativa.

Esta proposição, segundo a Igreja, foi posta em votação no período de um mês. De m total de

seiscentas assinaturas apenas oito foram contra tendo, portanto, o aval da Diocese. (ANEXO

C) Pela adesão, o tempo festivo passa a obedecer prioritariamente ao calendário litúrgico no

qual a celebração ao Cristo Rei tem como simbologia a preparação do advento, ou seja, a

vinda de Cristo. Conforme o pároco, a proposta surgiu da dificuldade de realização no mês de

janeiro por ser um mês de férias em que a comunidade paroquiana (pastorais) viaja ou recebe

parentes de fora. Além disso, como não havia uma data fixa para a festa, optou-se por inseri-la

no calendário litúrgico.

A data representa ciclicamente o encerramento das atividades do ano católico oficial

com a evocação da memória do nascimento de Cristo. Esta dimensão cíclica “[...] é uma

codificação altamente sintetizadora e com pretensões a ser universal”. (BRANDÃO, 1978,

p.119) Com isso, a festa de Bom Jesus dos Navegantes passa a ser uma festa cristológica,

celebrada quatro domingos antecedentes ao natal: [...] aonde vê a festa de Bom Jesus, é uma

festa de Cristo porque Bom Jesus é Cristo. Não é Bom Jesus e Cristo outra pessoa. Não, é

Cristo. Então, é a festa conclusiva do ano litúrgico, o coroamento de todo o ano litúrgico que

é o ano da Igreja em que se celebra paixão, morte e ressurreição. C.04

92

Apesar da aceitação quase unânime dos fiéis no referido documento, identificamos

ambiguidades em suas falas na tomada de decisão para com esta mudança. Outros foram mais

enfáticos na insatisfação com a transferência da data, como se observa em alguns extratos dos

relatos em seguida:

[...] todo mundo assinou foi SIM! Eu disse: ói, eu vou assinar sim, mas, ao mesmo tempo é NÃO porque desde que eu me criei e me batizei aqui era assim. C.08

Muita gente estranhou! Mas, foi feito um abaixo assinado. Por isso que o bispo concordou! Quer dizer que muitas pessoas assinaram, inclusive eu[...] assinei também a favor porque pela explicação que ele deu , né. Aí, só pelo que eu sei, parece que só cinco pessoas foram contra. O resto, tudo assinou a favor da data. C.02

Porque é o mês de Bom Jesus! Ele disse que não tem dia de Bom Jesus, mas toda a vida se festejou Bom Jesus, aqui, ali, acolá, lá longe... foi em janeiro, não foi em novembro![...] C.09

No cenário festivo do mês de novembro de 2011 a procissão terrestre já se fez

diferente do percurso da festa anterior de janeiro sendo mais uma mudança da Igreja para as

próximas festas: a mobilidade do roteiro processional por ruas que contemplem a

circunscrição paroquial iniciando no período noturno, a partir das 18:00 após a missa solene.

Figura 3.19 – Apostolado da Oração em Procissão noturna de Bom Jesus dos Navegantes

Celebração dos 25 anos de Apostolado no bairro. Ao centro com a bandeira, dona Ângela Silva Fonte: pesquisa de campo/novembro 2011

Notou-se que as vendedoras de queijada do povoado Pedreira/ São Cristóvão não mais

se fizeram presentes nesta nova data. Na Associação de Pescadores onde costumeiramente se

fazia uma festa à “parte” após a procissão de Bom Jesus dos Navegantes também não mais

aconteceu. A dimensão profana da festa na atualidade limita-se à quermesse, à banda de

música e aos fogos promovidos pela comissão festiva da paróquia durante a procissão.

93

3.3 O PRESENTE CONTIDO

“ Viver socialmente é passar, passar é ritualizar”

Roberto Da Matta

Bom Jesus dos Navegantes, contigo vou navegar! Toma-me o leme da vida e conduz o meu barco em alto mar! Cristo é o piloto na proa que leva a canoa nas ondas do mar .

Viva Bom Jesus dos Navegantes! Viva!

Cristo vive! Vive! Cristo reina! Reina!

Cristo impera! Impera!

Em dia de festa, põem-se a lume os sentidos do estar ali. A fé em Bom Jesus dos

Navegantes motiva os devotos para o evento donde se tem a oportunidade de professar

anualmente sua crença e reforçar o sentido da devoção expressando-a em coletividade.

Para os navegantes do Bom Jesus a fé é simbolizada no dia da festa sob os ritos da

qual dela se faz parte. Pratica-se a fé quer seja pelas preces silenciosas (individual e

coletivamente) quer sejam pela adoração, ofício, ladainha, missa solene, e hino. Manifesta-se

também em procissão e na benção do santíssimo. A missa solene é o rito antecedente a

procissão e a benção, o rito que a sucede: [...] no dia do domingo da Festa, o mais importante

é a missa. Acho que a missa, assim, tá chamando muita atenção porque o povo procura muito

no dia da Festa, o povo vê muito o dia da Festa. [...] E na procissão, nem se fala, né? [riso] .

E o povo gosta de procissão. C.21

Figura 3.20 – Benção do Santíssimo em frente a Igreja de Bom Jesus dos Navegantes.

Solenidade presidida pelo pároco Genário O. Júnior. Fonte: pesquisa de campo/novembro 2011

94

A procissão é, de fato, o ápice, rito pelo qual se estabelece conexão com a dimensão

espiritual porque possibilita o encontro com o Deus ao estar mais próximo do seu padroeiro,

seu modelo e plenitude de vida, mirando-o , saudando, tocando-o quando possível em

caminhada com o andor, agradecendo e até mesmo protestando47as mudanças ocorridas.

Nas ruas da Atalaia todos juntos sob fogos e em caminhada proclamam sua fé com

roupas brancas, em penitências com os pés no chão, com aplausos saudando vivas ao seu

protetor, com lágrimas incontidas porque, de uma forma ou de outra, concretiza-se o seu

significado: força, proteção, graças, socorro, esperança, renovação, vida:

[...] eu tenho grande fé em meu Bom Jesus dos Navegantes, meu Espírito Santo. E a procissão de Bom Jesus dos Navegantes pra mim é minha vida. Minha vida, porque me traz minha saúde, me fortalece, entendeu? C.03

A procissão de Bom Jesus dos Navegantes suscita estes sentimentos de fortaleza,

êxtase, júbilo pelo transbordamento com outrem porque “[...] o homem que tem uma

verdadeira fé sente a necessidade invencível de espalhá-la; para isso sai de seu isolamento,

aproxima-se dos outros, busca convencê-los [...].” (DURKHEIM, 1996, p.470) Em procissão

estabelece-se a exaltação de alegria em comunidade religiosa, é o momento de alcançar a

pureza do espírito ritualizando e rendendo homenagens:

Ah! Eu me sinto leve, me sinto feliz graças a Deus! Eu sinto uma benção. Ali a gente [...] não pensa nem nos problemas da vida. [...] Porque a gente tem que ter fé, né, minha fia? A gente está ali com Bom Jesus! Naquele momento a gente tem que, ao menos, [...] ser pura. [riso] C.09

Por isso, estar em procissão é o congraçamento em união e vontade de estar junto no

domingo para louvar, pedir, agradecer a Bom Jesus dos Navegantes. Na festa o lazer não mais

se expressa pelo lúdico como outrora se fazia, mas se apresenta pela satisfação do encontro:

você conhece pessoas, faz novas amizades.C.06 , reencontra “velhos conhecidos” que

cotidianamente não se vê: [...] é dia de festa![...] É o encontro de todos nós, né? C.08; Tem

pessoas que você só vê no dia da festa [...] quando termina a gente fica com saudade!

[riso]C.09

A procissão é também um ato de anunciar a religião porque se vê aflorar o sentimento

de ser católico pela continuidade do fiel que se reconhece pertencer, pelo rito, a uma

instituição legitimada socialmente no caso, a Igreja Católica (GIL FILHO, 2001) a qual

ideologicamente esteve presente desde os “tempos de origem” da festa no bairro. Note-se:

47 Refiro-me às palavras de protestos dirigidos à pesquisadora que foi vista por alguns fiéis como jornalista no percurso da procissão de novembro de 2011. Alguns fiéis dirigiam-se com expressões tais como: “Isso, tire fotos para a procissão voltar para onde era!” Díario de Campo em 25/11/2011.

95

Eu me apego a procissão de Bom Jesus dos Navegantes como um símbolo na minha fé. Porque se eu sou católica, eu tenho que ter algo que mostre que eu sou católica. [...] Então [...] Se eu escolhi ser católica, eu tenho que acatar aquilo ali com tudo que a religião nos oferece. C.18

Porque nasci católico, sou católico e vou morrer católico. Gosto muito da nossa Igreja [...] . C.06

Nos dias festivos, a Igreja também professa o seu sentido tanto na missa como na

procissão porque imprime sua pedagogia e afirma sua hierarquia para com o sagrado:

Que a procissão é dizer ao povo proclamar a nossa fé. Mas, o principal é a missa! Da missa, eu recebi o Cristo [...] A procissão são pessoas que caminham! Na Igreja tem esse sentido [...] lembrar ao povo que nós somos peregrinos nesta terra, estamos caminhando para visão de Deus, para participar da vida de Deus. [...] Então, na procissão eu professo a minha fé, mas lembro também que eu estou peregrinando, que minha vida é passageira aqui na terra. Então, por isso povo de Deus que caminha! Tem esse sentido a procissão, que muitos se esquecem, pensam que é só seguir uma imagem e não.... Tem que ter o sentido! C.04

A homilia solene enfatiza o significado do Cristo como patrono do bairro Atalaia

anunciado como aquele que conduz o fiel perante as dificuldades da vida. Estas são

comparadas às tormentas das águas: “A vida é a tua canoa, não é tua morada. Aqui estamos de

passagem para chegar a Cristo!” 48

No hino alusivo ao padroeiro (ANEXO D) entoado fervorosamente em procissão no

asfalto, as águas marítimas são simbolicamente enfatizadas como travessia donde se dá a

passagem ao plano do sagrado (o céu). Representam as dificuldades enfrentadas na vida na

qual Bom Jesus é o intercessor. Assim, a devoção assenta-se singularmente pela relação do

Bom Jesus com as águas sobre as quais atua como o santo, o protetor, o guia como exprimem

os relatos a seguir explicitados:

[ ...] neste mar revolto, né, nessas tsunames, da vida se a gente não tiver esse timoneiro que é Jesus, é difícil, é difícil pra caramba! C.20

[...] no nosso entender de simples pescador[...] ele é santo que protege a náutica. Ele é padroeiro dos navegantes, pescador e não pescador. C.07

Tem o poder das águas! Passei situação difícil nesse rio. Bom Jesus me segurou [...]C.03

Bom Jesus dos Navegantes é protetor dos pescadores [...] navega nas ondas do mar e a vida da gente é como se fosse também um mar. As ondas do mar vão e voltam. Né isso? Você tem aquele momento bom, alegre, de repente você tem aquela tribulação pela frente pra vencer, depois vai, acalma. É como se fosse o mar! Quando Jesus acalmou o mar que ele ia com os apóstolos, bem assim é a vida da gente! C.02

48 Palavras proferidas em homilia pelo Bispo Auxiliar Dom Henrique Soares da Costa na missa solene do domingo festivo de Bom Jesus dos Navegantes. 25/12/2012.

96

Na procissão de Bom Jesus dos Navegantes aglutinam-se todos estes sentidos, da

Igreja e dos fiéis. Dentre estes últimos, há ainda quem cumpre o sentido coletivo de fé, do

firmamento prometido em outrora posto que o conhecimento sobre o meio natural no qual se

vive ainda revela a força do sobrenatural a despeito da instabilidade geomorfológica da região

costeira:

A gente tem que acompanhar Bom Jesus! Pra onde ele for a gente tem que ir! [...] Bem assim quando o mar se afastou, né, com a promessa passou a não invadir mais depois da procissão. Retirando a procissão, ele pode voltar, não é nada difícil! Uma que barra é assim, ela é como se fosse uma areia movediça, né? Tanto ela cava, como ela aterra, né? Ela aterra e depois pode vir cavar e voltar! C.16

A procissão evoca também o saudosismo dos “bons e velhos” tempos da festa de Bom

Jesus. Entre os fiéis, comunga-se o desejo de retomada do cortejo fluvial com proposições

sugestivas para a limpeza do canal do Apicum por dragagem e revitalização verbalizando um

“[...] apego seletivo à natureza” (PONS, 1993, p.35) pela melancolia em relação à dilapidação

do meio natural em que pese às mudanças da festa:

[...] Bom Jesus é o dono das águas e repare: quando tiraram ele da procissão que era, ficou uma tristeza dessa! Eu acho que caiu o efeito, né. C.14

Ahhhh! Se eu fosse, digamos, o governador mandava tirar aquela lama de mangue da frente, limpar tudo para o rio crescer! Limpava tudo[...] para o rio voltar a ser aquele rio que era, para a festa de Bom Jesus voltar novamente...C.01

Vir por esse mesmo lugar, mesmo [...] que não entre pelo rio, [...] pelo menos beirando. Ver o marzinho que por muitos anos ele passou por aí. C.10

Essa nostalgia expressiva nos excertos das falas acima citadas pode ser depreendida

como um posicionamento crítico frente à insatisfação do tempo presente donde o sentido das

águas é ainda reivindicado pela manutenção da tradição. De igual forma, o desejo de retorno

do percurso terrestre margeando o estuário denota vivamente a lembrança da relação entre a

Festa e a Maré do Apicum, entre o homem e a natureza.

Contudo, a procissão de Bom Jesus dos Navegantes continua como um compromisso

de fé firmado com o padroeiro em que o coletivo manifesta simbolicamente sua homenagem

ano a ano, ciclicamente:

Se a procissão existe ali, está simbolizando, se é por ali, se é por acolá, não importa! Importa é que a procissão está acontecendo todos os anos, que sempre tem a procissão C.18

97

Para além do recorte memorial da pesquisa, a despeito de opiniões diversas e aceitação

diferenciada das mudanças, observou-se que num curto período, entre 2011 e 2012, as

inovações certamente imprimiram um novo marco na festa alusiva a Bom Jesus dos

Navegantes. O novo território da paróquia vai se firmando com outro trajeto da procissão.

Em 2012 (APÊNDICE F), a inserção da nova configuração da paróquia no bairro foi vista

também com procissão em carreata de carros, bicicletas e motocicletas percorrendo a orla da

praia, por toda a extensão da passarela do caranguejo no sábado festivo sendo, ao final,

celebrada uma missa no terreno onde será erguida a igreja de São Miguel Arcanjo, situado na

Avenida Deputado Clóvis Rollemberg, nas proximidades do antigo Hotel Parque dos

Coqueiros.

98

CONSIDERAÇÕES FINAIS

99

CONSIDERAÇÕES FINAIS

[ ...] viver é continuamente desagregar-se e reconstituir-se, mudar de estado e de forma, morrer e renascer. É agir e depois parar, esperar e repousar para recomeçar em seguida a agir, porém de modo diferente. E sempre há novos limiares a atravessar.

Van Gennep

No tempo passado eram festas dentro da festa de Bom Jesus dos Navegantes. A fé e a

tradição manifestavam-se pelas dimensões profana e sagrada da celebração ao padroeiro. Nas

lembranças, um cenário imbuído de referenciais - Igreja, Associação dos pescadores, Farol,

Praça Alcebíades Paes - vinculados a um só referencial, a Maré da Atalaia, onde se navegava,

pescava, brincava, festava, ritualizava em suas águas. Nestas bases, o sagrado se consolidou

na natureza pela devoção a Bom Jesus como um símbolo da relação entre o homem e o rio

visivelmente por ritos como promessas e procissão fluvial.

A passagem do passado ao presente enfrentado pelos moradores do bairro perpassou

por externalidades ali impostas sob dois marcos: o primeiro, pela degradação da Maré do

Apicum com assoreamento e poluição acelerados a partir das décadas de 1970/80, quando o

bairro se consolida no processo de expansão urbana recente da cidade de Aracaju. A

interrupção da procissão fluvial foi o corolário dessa transformação.

O segundo, o de maior impacto ressentido, deu-se recentemente pela mudança do

roteiro terrestre com o deslocamento territorial da paróquia o que inviabilizou os espaços

festivos tradicionais vinculados ao meio natural. Neste caso, a paróquia atribuiu também ao

assoreamento e poluição da Maré do Apicum a responsabilidade pela alteração da procissão.

Paralelo a esta, outras alterações foram instituídas pela Igreja em 2011, a exemplo da

introdução da invocação a Cristo Rei concomitante à de Bom Jesus dos Navegantes, a

mudança da data de janeiro para novembro, a mobilidade do percurso terrestre e o horário da

procissão de diurno para noturno. Ao comparar o posicionamento dos relatos e da paróquia

frente a estas mudanças pode-se afirmar que há de fato a administração exclusiva da

instituição sobre a festa trazendo-lhe nova configuração.

A reivindicação da tradição e a resistência perante as mudanças revelaram a festa

como sendo um patrimônio. Tanto, que as atitudes e práticas da festa continuam pelos ritos,

100

notadamente o da procissão terrestre que mesmo com roteiro indefinido move os fiéis ao seu

sentido religioso, a fé.

As tensões acima frisadas mostram o quão expressivo é a experiência religiosa na

Atalaia pelo simbolismo das águas tanto no passado como no presente abarcando toda a

temporalidade festiva. Todavia, o sentido da festa reproduz-se pela memória engendrada nos

sentimentos de pertença à devoção e à fé atribuídas ao padroeiro, que originariamente não é

um santo canonizado pela Igreja Católica por seus milagres, mas uma apropriação por

invocação popular.

No tempo presente, a natureza permanece no sentido da devoção, porém como um

símbolo pelo qual a fé se manifesta. Dito de outra forma, a natureza está metaforicamente

representada como meio de passagem ao plano do mundo espiritual, do sagrado e, portanto,

estabelece-se na atualidade exclusivamente no plano do transcendente. Mas, até quando?

Quanto ao futuro cabe-nos apenas indagar: que outras alterações na festa serão justificadas

pela degradação do meio natural?

Nossas hipóteses foram lançadas tendo como referencial a relação homem-natureza na

festa de Bom Jesus dos Navegantes. No entanto, com o desenrolar da pesquisa pautada

teórica e metodologicamente na memória, a relação homem-natureza per si, apresentou-se

numa posição transversal, posto que a centralidade dos relatos situou-se na fé e na tradição

enquanto sentido da festa. Como se observou nos relatos há uma representação idílica do

ecossistema no passado. (GONÇALVES, 2005).

No presente, a Maré do Apicum degradada está à margem da festa. Portanto, nossa

segunda hipótese aventada foi refutada, pois embora a relação homem-natureza tenha se

ressignificado isso não ocorreu pelo sentido religioso.

Tanto a natureza física quanto a natureza mítica, manifestas no sagrado foram fatores

determinantes para o surgimento da reverência a Bom Jesus dos Navegantes. A repetição da

festa e o seu desenrolar enquanto tradição, não eliminaram esses fatores, mas os tornaram

secundários frente à importância de se manter a continuidade de reverenciar e festar, com ou

sem o meio natural, pelo dia ou pela noite, independentemente de percurso, e de imagem

porque mesmo com a introdução da invocação de Cristo Rei, os fiéis continuam na festa.

Este estudo buscou analisar a festa de Bom Jesus dos Navegantes pela memória dos

fiéis e, pelo eixo passado/presente desnudou as motivações dos devotos e da Igreja, o

101

descontentamento para com as mudanças enfrentadas como também a real necessidade do

estar ali coletivamente em festa, festando em procissão.

Contudo, o jogo passado/presente revelou uma memória coletiva bastante significativa

no bairro em que a tradição foi o lastro pelo qual a festa se realizou por longa data. Uma

memória fortemente partilhada no que tange às relações cognitivas sobre a festa, observadas

nos conteúdos trazidos pelos entrevistados ao ponto de em determinados momentos serem

uníssonos.

A tradição transmitiu por gerações a devoção e seu sentido constituindo uma

identidade religiosa pela perspectiva de continuidade no tempo. Portanto, a procissão se

revela o marco da história da Atalaia, forma pela qual o homem religioso/memorioso se

representa na festa.

102

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Fernanda Cordeiro de. A história da devastação dos manguezais aracajuanos. Dissertação de mestrado – Programa de Desenvolvimento e Meio Ambiente- PRODEMA- São Cristóvão/UFS 2008.

ALMEIDA, Maria da Glória Santana de. Sergipe: fundamentos de uma economia dependente. Petrópolis, Vozes, 1984.p.261

ALVES, Isidoro Maria da Silva. O carnaval devoto: Um estudo sobre a festa de Nazaré em Belém: Petrópolis: vozes, 1980.

AMARAL, Rita de Cássia Mello Peixoto. Festa à brasileira: significados do festejar, no país que “não é sério”. Tese de Doutorado – Departamento de Antropologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas de São Paulo. São Paulo, 1998.

AZZI, Riolando. A Sé Primacial de Salvador: A Igreja Católica na Bahia (1551-2001). Vozes. Petrópolis/RJ. 2001.

BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Trad.Luís Antero Reto e Augusto Pinheiro: Lisboa (Portugal) Edições 70, 1977. 225 p.

BEZERRA, Amélia Cristina. Cidade, Festa e Identidade em tempo de espetáculo. In: ARRAES, Tadeu A.(org). Revista Itinerários Geográficos. Niterói:EDUFF,2007.

BONNEMAISON, Joel. Viagem em torno do território. In: CORRÊA & ROSENDHAL(org). Geografia Cultural: um século. Rio de Janeiro.EDUERJ.pg.83-116, 2002.

BOURG, Dominique (Dir.). Os sentimentos da natureza. Lisboa: Livraria Clássica, 1993. (Série perspectivas ecológicas nº 18).

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O Divino, o Santo e a Senhora. Rio de Janeiro: Companhia de Defesa do Folclore Brasileiro, 1978.

________________________. A cultura na rua. Campinas: Papirus, 1989.

_________________________.Os deuses do povo: um estudo sobre a religião popular. Uberlândia: EDUFU, 2007.

BRASIL, Ministério das Relações Exteriores. Convenção para salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. UNESCO (Paris, 2003): Brasília, 2006. Disponível em: http://unescodoc.unesco.org/images/0013/001325/13250por.pdf. Acesso em 10/10/2008.

BRITTO, Adelina Amélia Vieira Lubambo. A festa de Bom Jesus dos Navegantes em Propriá- SE: História de fé, espaço das relações sociais e laços culturais. Dissertação de Mestrado. Núcleo de Pós- Graduação em Ciência Sociais/UFRN. Natal, 2010.

CAILLOIS, Roger. O Homem e o Sagrado. Lisboa: Edições 70. (Perspectivas do homem)1988.

CAMARGO, Ana Luiza de Brasil. Desenvolvimento sustentável: dimensões e desafios. Campinas, SP: Papirus, 2003. (coleção Papirus Educação)

CANDAU, Jöel. Memória e identidade. Trad. Maria Letícia Ferreira. São Paulo: Contexto, 2011.

CHIZZOTTI, Antonio. Pesquisa qualitativa em ciências humanas e sociais. 2. ed. Petrópolis, Rj: Vozes,2008.

CORRÊA, Isabella Cristina Chagas. Guia das festas dos santos padroeiros de Sergipe. Monografia. Departamento de História. CECH/UFS, São Cristóvão/SE, 2004.

CUNHA, Clementina Pereira (org). Carnavais e outras f®estas: ensaios de história social da cultura. Campinas/SP: Editora da Unicamp. 2000

103

CUNHA, Lúcia Helena de Oliveira. Significados Múltiplos das Águas. In: DIEGUES, Antônio Carlos Santana (org). A imagem das águas. São Paulo: Hucitec, Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre populações Humanas e Áreas Úmidas Brasileiras. USP, 2000.

D’ABADIA, Maria Idelma Vieira. Diversidade e Identidade Religiosa: uma leitura espacial dos padroeiros e seus festejos no Estado de Goiás. Tese de Doutorado. Universidade Federal de Goiás. IESA, Goiânia, 2010.

DA MATTA, Roberto. Em torno da representação de natureza no Brasil: pensamentos, fantasias e divagações. In BOURG, Dominique (Dir.). Os sentimentos da natureza. Lisboa: Livraria Clássica, 1993. (Série perspectivas ecológicas nº 18).

_________,Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 4.ed. ZAHAR Editores.Rio de Janeiro,1983.

DELGADO, Lucila de Almeida Neves. História oral – memória, tempo, identidades. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

DEL PRIORE, Mary. Festas e Utopias no Brasil Colonial. São Paulo: Brasiliense, 2004.

DIEGUES, Antônio Carlos Santana O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: HUCITEC, 1996.

________, Antônio Carlos Santana (org). A imagem das águas. São Paulo: Hucitec, Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre populações Humanas e Áreas Úmidas Brasileiras. USP, 2000.

________, Antônio Carlos Santana. Ecologia Humana e Planejamento em áreas costeiras. 2.ed. São Paulo: Núcleo de Apoio à pesquisa sobre populações humanas em áreas úmidas brasileiras,USP,2001.

DIEHL, Astor Antônio. Cultura historiográfica: memória, identidade e representação. Bauru, SP: EDUSC, 2002.222p.

DINIZ, José Alexandre Felizola. Aracaju: síntese de sua geografia urbana. Tese de concurso para catedrático, Aracaju, 1963.

DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1996 (Coleção Tópicos).

EAGLETON, Terry. A ideia de Cultura. São Paulo: Editora UNESP, 2005.

ELIADE Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes,2008 (Tópicos)

ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Vol. 1, 2. ed. Rio de Janeiro: ZAHAR, 2011.

FERREIRA, Marieta Moraes (coord) Usos e abusos da História Oral. 8. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. 304p.

FILHO, Jenner Barreto, AMORIM, Nadia Fernanda Maia & LAGES, Vinicius Nobre. Cultura e desenvolvimento: a sustentabilidade em questão. Maceió: PRODEMA/UFAL, 1999.

FONSECA, Maria Cecília Londres. Para além da pedra e do cal: por uma concepção ampla de patrimônio cultural. In: ABREU, Regina &CHAGAS, Mário. Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lamparina,2009.pp59-79.

FRANCO, Maria Laura Publisi Barbosa. Análise de Conteúdo. Brasília, 3.3d. Liber: Livro Editora, 2008.

FREITAS, Sônia Maria de. História Oral: possibilidades e procedimentos. 2. ed. São Paulo: Associação Editorial Humanitas,2006.

GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas da pesquisa social. 4.ed. São Paulo: Atlas,1994.

104

GIL FILHO, Sylvio Fausto. Espaço sagrado: estudos em geografia da religião. Curitiba: Ibpex, 2008.

___________. Identidade religiosa e territorialidade do sagrado: notas para uma teoria do fato religioso. In: ROSENDHAL, Z. Corrêa (org). Religião, Identidade e Território. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2001.

GODOY, Arilda S. Pesquisa qualitativa: tipos fundamentais. Revista de Administração de Empresas. São Paulo, v.35, p.20-29, maio/jun.1995.

GONÇALVES, Carlos Walter Porto. Os (des) caminhos do meio ambiente. 12. ed.São Paulo: Contexto,2005 (Temas Atuais).

_____________________________. O desafio ambiental. Rio de Janeiro: Record,2004.

GONÇALVES, José Reginaldo Santos. O patrimônio como categoria de pensamento. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (orgs). Memória e Patrimônio: ensaios contemporâneos. 2.ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009.pp25-33.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.

HOBSBAWM, Eric. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.p.09.

HORTA, Maria de Lourdes. Os lugares de memória. In: SILVA, René Marc da Costa. Cultura Popular e Educação. Brasília: Salto para o Futuro/TV Escola/SEED/MEC, 2008. pp.111-118.

LABERGE, Jacques. As naturezas do pescador. In: DIEGUES, Antônio Carlos Santana (org). A imagem das águas. São Paulo: Hucitec, Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre populações Humanas e Áreas Úmidas Brasileiras. USP, 2000. pp.39-57.

LAGES, Vinícius Nobre. Agrobiodiversidade: entre natureza e cultura. In: FILHO, Jenner Barreto,AMORIM, Nadia Fernanda Maia & LAGES,Vinicius Nobre. Cultura e desenvolvimento: a sustentabilidade cultural em questão. Maceió: PRODEMA/UFAL,p.71, 1999.

LARRÉRRE, Catherine & LARRÉRE Raphael. Do Bom Uso da Natureza: para uma filosofia do meio ambiente. Trad. Armando Pereira da Silva: Stória Editores, 1997. Coleção Perspectivas ecológicas.

LEACH, Edmund. Cultura e Comunicação: A lógica pela qual os símbolos estão ligados. Trad. Carlos Roberto Oliveira. Rio de Janeiro: ZAHAR, 1978.117p.

LEFF, Enrique. Saber Ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. Trad.Lúcia Mathilde Endlichorth. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2001.

LE GOFF ,Jacques. História e Memória. Trad. Ruy Oliveira. Lisboa: Edições 70,1982.

LEMOS, Carlos A.C. O que é patrimônio histórico? São Paulo: brasiliense, 1985.

LIMA, Rossini Tavares. Folclore das festas cíclicas: carnaval, semana santa, Festa de Santa Cruz, São João, Natal. São Paulo. Vitale, 1971.185p.

LENOBLE, Robert. História da Idéia de Natureza. Lisboa: Edições 70,1988.

LOPES, Dulcelaine L. Diário de Campo: o registro da reconstrução da natureza e da cultura. In: WITHAKER, Dulce C. Sociologia rural: questões metodológicas emergentes. Presidente Wenceslau/São Paulo: Letras à margem, 2002.p.131-142.

LOUREIRO, Kátia Afonso S. A trajetória urbana de Aracaju em tempo de interferir. Aracaju, Instituto de Economia e pesquisas – INEP, 1983.115p. 49-70p.

MACHADO, Ewerton Vieira. Aracaju: paisagens e fetiches, abordagens acerca do processo de seu crescimento urbano recente. Dissertação de Mestrado: Santa Catarina, 1989.

MAUSS, Marcel. Ensaios de Sociologia.2.ed. São Paulo: Perspectivas, 2001

MELLINS, Murillo. Aracaju romântica que vi e vivi. Aracaju: UNIT, 2007.

105

MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. São Paulo: Edições Loyola, 1996.

________________________ História Oral: como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto, 2007.

MOREIRA, Daniel Augusto. O método fenomenológico na pesquisa. São Paulo: Pioneira Thompson Learnig, 2004.

MINAYO, Maria Cecília de Souza (org). Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1994.80p.

NASCIMENTO, Marcelo Carvalho de. Ecos de uma tradição: aspectos da Festa do Senhor Bom Jesus dos Navegantes (1856-1910). Monografia. Departamento de História. UFS/SE, 2002.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo: PUC-SP. Nº10. 1993p. 7-28

ORIÁ, Ricardo. Memória e Ensino de História. In BITTENCOURT, Circe (org). O saber histórico na sala de aula. 6. ed. São Paulo: Contexto,2002. (Repensando o ensino).

OZOUF, Mona. A festa: sob a revolução francesa. In: LE GOFF, Jacques. História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.

PASSOS, Mauro (org). A festa na vida: significado e imagens. Petrópolis, RJ: vozes, 2002.

PARDO, Maria Benedita. A arte de realizar pesquisa: um exercício de imaginação e criatividade. São Cristóvão: Editora UFS; Aracaju: Fundação Oviêdo Teixeira, 2006.90p.

PEIRANO, Mariza G.S. A análise antropológica de rituais. Brasília: UNB, 2000.

___________________. Rituais ontem e hoje. Rio de Janeiro: Zahar,2003.

PEREZ, Léa Freitas. Antropologia das efervescências coletivas. In: PASSOS, Mauro. A festa na vida: significado e imagens. Petrópolis, RJ: vozes, 2002.p.15-58.

POLLAK, Michel. Memória e identidade social. Tradução de Monique Augras. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1992. 200-212p.

PONS, Philipe. Japão: um apego seletivo à natureza. In BOURG, Dominique (Dir.). Os sentimentos da natureza. Lisboa: Livraria Clássica, 1993. (Série perspectivas ecológicas nº 18).

PONS, Xavier. Austrália: entre o terror e a beleza. In BOURG, Dominique (Dir.). Os sentimentos da natureza. Lisboa: Livraria Clássica, 1993. (Série perspectivas ecológicas nº 18).

PORTO, Fernando Figueiredo. Alguns nomes antigos do Aracaju. Aracaju: Gráfica Editora J. Andrade, Ltda, 2003.

PREFEITURA MUNICIPAL DE ARACAJU. Plano Estratégico Municipal de Assentamentos Subnormais. Programa Habitar Brasil/ BID. Secretaria Municipal de Planejamento. Aracaju/SE, 2001.

PREFEITURA MUNICIPAL DE ARACAJU. Projeto Ambiental da Reurbanização da Invasão da Coroa do Meio. Vol 8: Relatório Ambiental.. Secretaria Municipal de Planejamento. Aracaju/SE,2000.

RIBEIRO, Neuza Maria Góis. Transformações do Espaço Urbano: o caso de Aracaju. FUNDAJ, Editora Massangana, 1989.

RICHARDSON, Roberto Jarry. Pesquisa Social: métodos e técnicas. São Paulo: Atlas, 1989.

ROSENDHAL, Zeny. Espaço e religião: uma abordagem geográfica. Rio de Janeiro: UERJ, NEPEC, 1996. 92p.

SANTOS, Magno. As duas faces de Janus: a cidade de Aracaju nas festas de Ano Novo (1900-1950). Revista Outros Tempos. Vol.9, n.13,2012. (Dossiê História e Cidade)

SANTOS, Milton. Da totalidade ao lugar. São Paulo: Edusp,2001.

106

SANTOS & VARGAS. Usos da cidade e problemas socioambientais em Aracaju: algumas considerações históricas. In: MELO E SOUZA & SOARES (org). Sustentabilidade, cidadania e estratégias ambientais: a experiência sergipana. São Cristóvão: Editora UFS, 2008.

SEGALEN, Martine. Ritos y rituales contemporáneos. Trad.Alicia Martorell Linares. Madrid: Alianza Editorial, 2005.183p.

SOFFIATI NETTO, Arthur. As raízes da crise ecológica atual. Ciência e Cultura. Rio de Janeiro, Out.1987. pp.951-954

_______________________Da natureza como positividade à natureza como representação? Disponível em: http://infolink.com.br/~peco/soff_01.htm, acessado em 23/11/2012. PECO, 2000.

THINES, G; HEMPEREUER, Agnes. Dicionário Geral das Ciências Humanas. (S.l): Edições 70: lexis,1984.p.09.

THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação as plantas e os animais, 1500-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

TINHORIÃO, José Ramos. As festas no Brasil Colonial. São Paulo: Editora 34,2000.

TRIVIÑOS, Augusto N. S. Introdução à pesquisa em Ciências Humanas e Sociais: a pesquisa qualitativa em educação. 17ª reimpressão. São Paulo: Atlas,2008.

TUAN, YI-FU.Topofilia – Um estudo da percepão, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo/Rio de Janeiro, 1980: Ed. Difel (Trad. Lívia de Oliveira).

TURATO, Egberto. Ribeiro. Decidindo quais indivíduos estudar. In: _______ Tratado da metodologia da pesquisa clínico-participativa. Petrópolis: Vozes, 2000. p.351-368.

TURNER, Victor. O processo ritual. Petrópolis: Vozes, 1974.

VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem: estudo sistemático dos ritos da porta e da soleira, da hospitalidade, da adoção, gravidez e parto, nascimento, infância, puberdade, iniciação, coroação, noivado, casamento, funerais, estações. Mariano Ferreira (trad). 2.ed. Petrópolis: Vozes,2011.

VARGAS, Maria Augusta. Diagnóstico Ambiental de Aracaju. Prefeitura Municipal de Aracaju. Secretaria de Planjejamento- Programa Habitar Brasil BID. Aracaju, 2001.

_______________________-. A paisagem urbana e o meio ambiente de Aracaju. Revista Geoufs: Aracaju, v.1,n.1.jul/dez 2002.p.9-17.

VIERTLER, Renate Brigitte. (1999) A idéia de sustentabilidade cultural: algumas considerações críticas a partir da antropologia. In: FILHO, Jenner Barreto, AMORIM, Nadia Fernanda Maia & LAGES,Vinicius Nobre. Cultura e desenvolvimento: a sustentabilidade em questão. Maceió: PRODEMA/UFAL.

WORSTER, Donald. Para Fazer História Ambiental. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 4, n. 8, 1991, p. 198-215. Disponível em www.cpdoc.fgv.br/revista/org/85.pdf. Acesso em: 15/06/2008.

107

APÊNDICES

108

APÊNDICE A

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO E MEIO AMBIENTE – PRODEMA-UFS

MESTRADO EM DESENVOLVIMENTO E MEIO AMBIENTE

Roteiro de observação49

Pesquisador(a): Isabella Cristina Chagas Corrêa

1. Observação de ritos e atividades: missa, alvorada festiva, procissão, novenas/trezenas,batizados, quermesse. Descrever os eventos e horários de ocorrência,identificar os participantes dos atos celebrativos (ornamento e carregamento do andor, rezas, cantos, fogos). Observação do palco cênico da festa, de roupas e cores utilizadas, dos gestos de sentimento, de emoção particular como alegria, tristeza, euforia,objetos como bandeiras, velas, ornamentação do andor, tempo de duração dos ritos e ou da festa/procissão.

2. Observação da paisagem da festa: elementos de referência na festa (os lugares da festa – praça, rio,avenidas, mar). Estilo da Igreja,situação (no urbano, relevo, centralidade, com praça ou não); Posição da porta principal (N, S, L,O) e também se voltada para o rio, praça, prefeitura.; O entorno da Igreja – descrição das atividades de venda, comércio, comidas.

3. Apreciações pessoais: impressões, reflexões, dificuldades, limites, comparações.

49 Extraído do Caderno do pesquisador/Procultura, projeto financiado pela CAPES e Ministério da Cultura, pelo edital Procultura/2009 denominado "A Dimensão territorial das festas populares e do turismo: estudo comparativo do patrimônio imaterial em Goiás, Ceará e Sergipe", desenvolvido pela rede: Programa de Pós-Graduação em Geografia daUFC, Laboratório de Estudos e Pesquisas das Dinâmicas Territoriais – LABOTER, Programa de Pós-Graduação em Geografia do Instituto de Estudos Sócio-Ambientais da UFG e Grupo de Pesquisa Sociedade e Cultura do Núcleo de Pós-Graduação em Geografia da UFS.

109

APÊNDICE B

TERMO DE CESSÃO, AUTORIZAÇÃO E USO DE ENTREVISTAS50

Aracaju, ______ de_______ de 2012.

Declaro estar de conhecimento dos objetivos do trabalho de pesquisa intitulado “A relação homem-natureza nas manifestações religiosas: a Festa de Bom Jesus dos Navegantes”51, desenvolvido pela mestranda Isabella Cristina Chagas Corrêa, RG. 1306514, discente do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente – PRODEMA/UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE, sob orientação da professora Dra. Maria Augusta Mundim Vargas. Concordo participar da coleta de dados cedendo os direitos de minha entrevista gravada para a pesquisadora e para a Universidade Federal de Sergipe podendo usá-la integralmente ou em partes sem restrições de prazos e limites de citações ficando vinculado o controle à pesquisadora que tem a guarda da mesma. Concordo com a utilização dos dados e informações coletadas e por mim prestadas para divulgação dos resultados científicos quer seja em congressos, simpósios,quer seja em artigos e textos de outra natureza. Autorizo, portanto, a divulgação de minha identidade.

_______________________________________________________

Assinatura do entrevistado (colaborador)/R.G

50 Modelo adaptado de MEIHY, José Carlos Sebe e HOLANDA, Fabíola. História Oral: como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto, 2007. 51 Título à época do trabalho de campo.

110

APÊNDICE C

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO E MEIO AMBIENTE – PRODEMA-UFS

MESTRADO EM DESENVOLVIMENTO E MEIO AMBIENTE

Roteiro de entrevista com moradores antigos

Pesquisador (a): Isabella Cristina Chagas Corrêa

ENTREVISTADO:

LOCAL : DATA/DURAÇÃO

IDADE:

LOCAL E DATA DE NASCIMENTO:

RESIDÊNCIA:

OCUPAÇÃO: INSTRUÇÃO:

1 – Desde quando você participa da Festa de Bom Jesus? Por que participa? Como participa?

2 - Quais suas primeiras lembranças da Festa de Bom Jesus?

3- a) Quando teria iniciado a festa de Bom Jesus dos Navegantes no bairro Atalaia? b) Como era a Maré do Apicum no passado? Quais os usos que se faziam do rio antigamente?

4 – Houve mudanças na festa de Bom Jesus? Quais? O que achou?

5 - Em que momento você notou mudanças? A que você atribui?

6 – Que ritos fazem parte da Festa de Bom Jesus dos Navegantes? Que atividades foram

introduzidas e desde quando? Por que foram introduzidas?

7 - Quem participa da organização festiva de Bom Jesus dos Navegantes?

8 - O que é a Festa de Bom Jesus para você?

9 – Você é devoto de Bom Jesus? Por quê? Qual o sentido da devoção de Bom Jesus na sua vida?

10 - O que mais gosta na Festa de Bom Jesus?

11 - O que você sente quando está em procissão a Bom Jesus?

12- a) O que você achou da mudança no roteiro da procissão estabelecido nestes últimos dois anos? b) Houve alguma mudança no significado da festa para você? E para a comunidade? A que atribui as mudanças?

111

13- Como se dá a participação da Igreja na Festa de Bom Jesus?

14 – Que relação existe entre Bom Jesus e as águas? Você vê sentido nisso? Qual?

15 – Em sua opinião, a Festa de Bom Jesus une as pessoas? Por quê?

16- Você faria sugestão de alguma mudança na Festa de Bom Jesus? Qual

112

APÊNDICE D

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO E MEIO AMBIENTE – PRODEMA-UFS

MESTRADO EM DESENVOLVIMENTO E MEIO AMBIENTE

Roteiro de entrevista com pároco

Pesquisador (a): Isabella Cristina Chagas Corrêa

ENTREVISTADO:

LOCAL : DATA/DURAÇÃO

IDADE:

LOCAL E DATA DE NASCIMENTO:

RESIDÊNCIA:

OCUPAÇÃO: INSTRUÇÃO:

1 – Quem é Bom Jesus dos Navegantes para a Igreja? Sua invocação e seu ritual estão especificamente relacionados com as águas?

2 - Quando foi fundada a Igreja de Bom Jesus dos Navegantes?

3- Desde quando acontece a Festa de Bom Jesus dos Navegantes no bairro Atalaia?

4- Por que o dia consagrado a Bom Jesus é um ato festivo?

5- Por que houve mudança no dia festivo? Por que o dia de Cristo Rei?

6- Quem organiza e como se dá a organização e divulgação da Festa de Bom Jesus? Como é

feita a divisão das atividades e com que antecedência?

7- Há Patrocínio para a Festa? Quem patrocina? Como patrocina?

8- Por que a mudança da imagem votiva? Por que a mudança no percurso da procissão?

9 - Que ritos fazem parte da Festa de Bom Jesus dos Navegantes? Pode descrevê-los?

10 - Que atividades foram introduzidas e desde quando? Por que foram introduzidas?

11 - Qual o papel e orientação da Igreja com relação à festa?

12- Qual a importância da Festa para o bairro, para a comunidade votiva e para quem

organiza?

13 - Existe alguma forma de sincretismo na Festa? Qual? O que a comunidade católica acha

do sincretismo?

113

APÊNDICE E

EXCERTOS DA MATRIZ

COLABORADOR

SEXO

IDADE

LOCAL DE NASCIMENTO

M F

BAIRRO

O. BAIRRO O. CIDADE

SAQUINHO FAZ.NOVA ATALAIA BARROSO

C1 84

C2 63

C3 53

C4 31

C5 72

C6 73

C7 60

C8 79

C9 69

C10 66

C11 83

C12 80

C13 58

C14 77

C15 75

C16 62

C17 38

C18 61

C19 68

C20 61

C21 51

C22 53

114

RESIDENCIA ATUAL

OC. ATUAL

INSTRUÇÃO

SAQUINHO FAROLAND. VÁRZEA R. DA PAZ BARROSO ATALAIA OUTROS F. MENOR F.MAIOR E. MEDIO SUP.

APO

APO

MOTOR

PADRE

APO

APO

R.C

D. CASA

APO

APO

APO

APO

D. CASA

APO

APO

APO

ESTUDAN

APO

APO

APO

AUTO

APO

115

OCUPAÇÃO NA LINHA DA VIDA

CRIANÇA/ADOLESCENTE ADULTO 3ª IDADE

Frequentou o catecismo, pescava na maré. Enfermeiro. Terço dos Homens/Paroquiano.

Fez catequese, pescava com a mãe, procissão fluvial. Dona de casa, pescava. Apostolado da Oração/Paroquiana.

Passeava de barco, pescava, procissão fluvial. Motorista.

Pároco.

Passeava de canoa na Festa de Bom Jesus Balizador de aviões/Pescador/Pres. Associação. Tesoureiro da Associação de Pescadores.

Brincava de canoa na festa. Presidente da Assoc. P. Atalaia. Presidente Exec. Da Associação de Pesca

Paroquiana.

Paroquiana.

Participou do C. paroquial e da organiz. da festa. Paroquiano.

Frequentava o catecismo e procissão Dona de casa, banhos e pescaria na maré. Dona de casa.

Tomava banho, pescava na maré. Dona de casa Dona de casa.

Acompanhava a mãe nas Procissões F. Dona de casa. Dona de casa.

Pescava com a mãe e avó. Procissão F. Pescadora, dona de casa. Dona de Casa.

Padre missionário.

Pescava. Pescador, marceneiro. Diretor Náutico da Assoc. Pescadores.

Acompanhava a mãe nas procissões Professora, costureira.

Cantora de novenas no interior. Catequista. Costureira, rezadeira, paroquiana.

Ia para missa e procissão. Catequista. Apostolado de Oração/Paroquiana.

Ministro da Eucaristia/Paroquiano.

Professora de Catecismo.

Terço dos Homens.

116

RELAÇÃO DE BOM JESUS DOS NAVEGANTES COM AS ÁGUAS

SIM NÃO SENTIDO

Não tem mais o rio, só o mangue. Acabou, porque naquele rio sempre se fazia.

Bom Jesus é protetor dos pescadores, navega nas ondas do mar. A vida é como um mar, vai e volta. Tribulação e calma.

Tem o poder das águas! Passei situação difícil nesse rio. Bom Jesus me segurou, então ele tem alguma coisa com a água, com o mar.

Poderia relacionado ao evangelho, Jesus acalma as águas. [...] A proteção: muitos lugares o Cristo se apresenta de braços abertos, crucificado.

Bom Jesus é pescador, tem que andar na água. Como é que ele pode sair do barquinho dele?

Essa pergunta vou deixar no ar.

No entender de pescador [...] ele é santo que protege a náutica, Ele é padroeiro dos navegantes, pescador e não pescador.

Bom Jesus e Pedro. Pedro é o companheiro de Jesus. E Jesus fica pelas águas, né, caminha.

As procissões de Bom Jesus são navegadas, ele é das águas mesmo. “Você entra numa jangada:” Bom Jesus, me leve em paz."

É fé. É parte do evangelho quando Jesus caminha pelas águas.

Porque diz que Bom Jesus dos Navegantes, né? Não sei o significado não.

Já tem o nome de Bom Jesus dos Navegantes. Disse que Bom Jesus ia caminhando uma vez assim por cima d’água.

Porque ele sempre foi por mar.

Bom Jesus é o dono das águas e quando tiraram ele da procissão que era, ficou uma tristeza dessa. Eu acho que caiu o efeito né.

O povo, esses acidentes que vem com chuva e clima, "o mar acalma porque Deus está aqui! Vamos fazer uma igreja perto do mar!”

Bom Jesus é navegante! Andou na água. Então para os pescadores [...] a gente se sente bem quando tá acompanhando Bom Jesus e São Pedro.

Não, pode existir, agora eu ainda não vi por esse lado!

A procissão de Bom Jesus acontece é pela água. Aracaju, em Propriá no mês de janeiro. Se não, não existia a perseverança dessas procissões.

Passagem bíblica que ele andou pelas águas. De acordo com as passagens bíblicas a gente acredita.

Passagem bíblia ,o mar estava revolto, em perigo eminente. Jesus acorda e acalma o mar. Uma significação teológica.

Bom Jesus dos Navegantes, bonito se fosse nas águas. Porque água é vida né. Tanto faz para mim, o importante é não faltar a Festa.

A imagem relacionada às águas quando ele acalmou as tormentas. Nas águas, como na nossa vida. Então é nossa fé, nossa dedicação.

117

SUGESTÕES PARA A PROCISSÃO

Tirar o mangue, fazer limpeza do rio para que ele volte a crescer.

Mudança para o roteiro antigo era muito bonito!

Mudar o percurso, voltar o que era! Toda vida foi pra cá!

Fazer procissão também em carreata.

Voltava como era antes, assistir aqui da rodagem.

Sentido Farolandia, como antes. Se pudesse cavar a perna de rio e voltar.

Percurso anterior, dragagem, rio revitalizado, voltar a ser fluvial. Manter respeito a tradição [...] margeando o rio.

Não dou nenhuma sugestão.

Ser em janeiro como toda vida. É o mês de Bom Jesus. O resto está ótimo.

Não faria mais nada. Foi voto vencido, pesquisa, começou outro processo. Não tem o que fazer.

A procissão voltar pra onde era, não é nada demais.

Dragar o rio! Para a procissão ir por água, pela água! Se eu pudesse fazia isso!

Percurso. Saía da igreja pra cá... O mesmo percursozinho que era antigamente. Nós já estávamos acostumados com o percurso.

Mesmo lugar, que não entre pelo rio. Porque toda vida foi! Ao menos beirando o marzinho

Voltasse pra o lugar antigamente [...] da Igreja pra o Saquinho, [...] Mesmo que não possa ser por água, é uma tradição.

O percurso na maioria das casas é do povo rico, tem que estar no lugar do povo pobre, os fiéis de Jesus. O percurso que estava.

Queria que a procissão fosse em um rio, resgatar a tradição da procissão, do significado da procissão. o santo de ir pela água.

O roteiro de antes que tinha cinco pontos de referência. O povo já tava acostumado.

Eu mudaria o roteiro a cada ano, seria uma estratégia para atingir todo o bairro [...] A população precisa ter um sinal do sagrado.

Estou satisfeita com tudo.

Não. Analisar melhor para dar sugestão de mudança.

118

APÊNDICE F

IMAGENS DA FESTA DE BOM JESUS DOS NAVEGANTES. NOVEMBRO/2012

Carreata em procissão noturna pela Passarela do Caranguejo, orla da Atalaia.

Sábado festivo de novembro de 2012. Fonte: Acervo fotográfico de Isabella Corrêa

Missa celebrada em terreno onde será erguida a Igreja de São Miguel Arcanjo na

comunidade Atalaia Sul. Sábado festivo de novembro de 2012. Fonte: Acervo fotográfico de Isabella Corrêa

Procissão noturna do domingo festivo à Bom Jesus dos Navegantes/ novembro de 2012.

À esquerda, o pároco Genário de O. Júnior . À direita, o Sr. Rev. Bispo Auxiliar Dom Henrique Soares da Costa

Fonte: Acervo fotográfico de Isabella Corrêa

119

Fiéis em procissão noturna do domingo festivo à Bom Jesus dos Navegantes/ novembro de 2012.

Fonte: Acervo fotográfico de Isabella Corrêa

Imagem votiva de Bom Jesus dos Navegantes sendo conduzida em veículo do Corpo de Bombeiros.

Novembro de 2012. Fonte: Acervo fotográfico de Isabella Corrêa

120

ANEXOS

121

ANEXO A

DECRETO DE CRIAÇÃO DA PARÓQUIA BOM JESUS DOS NAVEGANTES – ATALAIA/ARACAJU-SE

122

ANEXO B

CARTAZ DA FESTA DE BOM JESUS DOS NAVEGANTES. JAN/2000

123

ANEXO C

DECRETO DE MUDANÇA DA DATA FESTIVA DE BOM JESUS DOS NAVEGANTES EM ALUSÃO A CRISTO REI

124

ANEXO D

HINO ALUSIVO A BOM JESUS DOS NAVEGANTES

Paróquia Bom Jesus dos Navegantes. Aracaju/SE

Quando as tormentas da vida surgem de repente/ Eu clamo o nome de Cristo pra me socorrer./ Navego em águas profundas com ele ao meu lado./ Cristo me leva ao rumo do bom viver.

Bom Jesus dos Navegantes, contigo vou navegar./ Toma-me mo leme da vida e conduz o meu barco em alto mar./ Bom Jesus dos Navegantes, contigo vou navegar./ Cristo é o piloto da proa que leva a canoa nas ondas do mar./ Cristo é o piloto na proa que leva a canoa nas ondas do mar. (Bis)

Sobe as velas da jangada e estica as Arraes./ Toma o rumo das águas e vai navegar./ Pois só descansa esse leme quem não tem coragem./ Só com Jesus na viagem é mais fácil chegar.

Quando os ventos são fortes ficamos sem leme./ Cristo entra em minha vida com remo de amor./ Nas desventuras da vida conduz meu destino./ E tudo então se transforma num mar de amor.

Bom Jesus dos Navegantes, contigo vou navegar./ Toma-me mo leme da vida e conduz o meu barco em alto mar./ Bom Jesus dos Navegantes, contigo vou navegar./ Cristo é o piloto da proa que leva a canoa nas ondas do mar./ Cristo é o piloto na proa que leva a canoa nas ondas do mar. (Bis)

De cais em cais ancorando nos portos da vida./ Sou passageiro do barco que leva os fiéis. Não desanimo da rota dos mares bravios./ Pois só com Cristo é tranquila a viagem pros céus.

Bom Jesus dos Navegantes, contigo vou navegar./ Toma-me mo leme da vida e conduz o meu barco em alto mar./ Bom Jesus dos Navegantes, contigo vou navegar./ Cristo é o piloto da proa que leva a canoa nas ondas do mar./ Cristo é o piloto na proa que leva a canoa nas ondas do mar. (Bis)

125

ANEXO E

IMAGENS DA PESQUISA DE CAMPO/2012

Apresentação da pesquisa na Associação dos Pescadores da Atalaia

Fonte: Pesquisa de campo/ abril- 2012.

À esquerda, Manoel Corrêa e pescadores da Atalaia na Associação dos Pescadores. Fonte: Pesquisa de campo/ abril- 2012.

Entrevista com a colaboradora Cristina em sua residência. Fonte: Pesquisa de campo/ maio- 2012.