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0 FACULDADE MERIDIONAL - IMED CURSO DE DIREITO NATÁLIA FREIRAS DA SILVA A DISTINÇÃO ENTRE USUÁRIO E TRAFICANTE NA APLICAÇÃO DA LEI 11.343/06 NA COMARCA DE PASSO FUNDO: TÉCNICA OU ARBÍTRIO JUDICIAL? Passo Fundo 2015

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FACULDADE MERIDIONAL - IMED

CURSO DE DIREITO

NATÁLIA FREIRAS DA SILVA

A DISTINÇÃO ENTRE USUÁRIO E TRAFICANTE NA APLICAÇÃO

DA LEI 11.343/06 NA COMARCA DE PASSO FUNDO: TÉCNICA OU

ARBÍTRIO JUDICIAL?

Passo Fundo

2015

1

NATÁLIA FREIRAS DA SILVA

A DISTINÇÃO ENTRE USUÁRIO E TRAFICANTE NA APLICAÇÃO DA LEI

11.343/06 NA COMARCA DE PASSO FUNDO: TÉCNICA OU ARBÍTRIO

JUDICIAL?

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à

Escola de Direito da Faculdade Meridional -

IMED, como requisito parcial para obtenção do

grau de Bacharel em Direito, sob a orientação da

Profª. Drª. Marília De Nardin Budó.

Passo Fundo

2015

2

NATÁLIA FREIRAS DA SILVA

A DISTINÇÃO ENTRE USUÁRIO E TRAFICANTE NA APLICAÇÃO DA LEI

11.343/06 NA COMARCA DE PASSO FUNDO: TÉCNICA OU ARBÍTRIO

JUDICIAL?

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à

Escola de Direito da Faculdade Meridional -

IMED, como requisito parcial para obtenção do

grau de Bacharel em Direito, sob a orientação da

Profª. Drª. Marília De Nardin Budó.

Aprovada em 19 de Novembro de 2015.

_________________________________________________

Prof. Dr. Marília De Nardin Budó

_________________________________________________

Profª. Me. Raquel Tomé Soveral - _________

_________________________________________________

Prof. Me. Gabriel Ferreira dos Santos - _________

Passo Fundo/RS

2015

3

Agradeço e dedico este trabalho à minha família,

por tudo que fizeram e fazem por mim. Ao meu parceiro,

por ser sempre meu porto seguro, especialmente nos

momentos de preocupação. Aos meus amigos pelo apoio,

ajuda e principalmente por não soltarem a minha mão

ante minhas ausências. À minha orientadora Marília, por

clarear meus caminhos do início ao fim, acreditando e

incentivando meus avanços. Por fim, a todos que torcem

pelo sucesso das minhas pesquisas e pela minha

aprovação. Muito obrigada!

4

“Os grandes parecem grandes porque

estamos ajoelhados. Levantemo-nos!” (Pierre

Joseph Proudhon).

5

RESUMO

Esta pesquisa foi desenvolvida com foco na política de drogas brasileira e sua

aplicabilidade na cidade de Passo Fundo sob a ótica da criminologia crítica. O objetivo central

do trabalho foi obter conhecimento científico específico sobre o tema de drogas ilícitas,

especialmente no que tange à aplicação da lei de drogas em vigor. A pesquisa bibliográfica

consiste no estudo da criminologia crítica através das teorias a ela inerentes, bem como o

surgimento do proibicionismo das drogas ilícitas e os efeitos que reproduz na sociedade. A

legitimidade do sistema penal é ponto relevante do trabalho, uma vez que é nela que se

baseiam os discursos repressivos. O referencial teórico do estudo serviu de base para a

realização de pesquisa empírica na cidade de Passo Fundo, que consiste na análise de

sentenças de crimes considerados tráfico de drogas. Para tanto, foram coletadas todas as

sentenças de natureza de tráfico no ano de 2014, totalizando 37 sentenças. Ante a análise e

cruzamento de dados, buscou-se responder quais os métodos que os juízes utilizam na

diferenciação de usuários e traficantes de drogas e se existe algum tipo de técnica ou se é, na

verdade, arbítrio judicial. A pesquisa de campo possibilitou evidenciar na prática que o

sistema penal atua, através de suas agências, de modo seletivo, direcionado especialmente aos

indivíduos dos extratos sociais mais pobres e vulneráveis.

Palavras-chave: Drogas Ilícitas. Seletividade penal. Pesquisa empírica. Sentenças de tráfico

de drogas.

6

ABSTRACT

This research was developed focused on Brazil's drug policy and its applicability in

the city of Passo Fundo from the perspective of Critical Criminology. The leading aim of this

paper was to obtain specific scientific knowledge about the illegal drugs’ subject, especially

the application of drugs laws. The bibliographic research consists on the study of Critical

Criminology, and its theories, as well as, the appearance of prohibition of illicit drugs and the

effects it cause in society. A relevant point of the paper is the criminal justice system's

legitimacy, since the repressive speeches are based on it. The theoretical framework of this

study was the basis for the empirical research conducted in the city of Passo Fundo, which is

the analysis of sentences about crimes that are considered drug traffic. Therefore, were

collected and analyzed all drug traffic sentences of 2014, totaling 37 sentences. With the

analysis and the cross-checking aimed to answer which methods are used by judges to

differentiate drug users from drug dealers, if there is any technique for that or if in reality it is

only judicial discretion. The field research allowed to view in practice that the criminal

system acts selectively, through its agencies, especially against poorest and most vulnerable

individuals.

Keywords: Illicit Drugs. Criminal Selectivity. Empirical Research. Drug Traffic Sentences.

7

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 8

1 DROGAS E SELETIVIDADE PENAL: ASPECTOS INTRÍNSECOS À ATUAÇÃO

DO SISTEMA PENAL NA APLICAÇÃO DA LEI 11.343/2006 ....................................... 11

1.1 A SELETIVIDADE COMO CARACTERÍSTICA ESTRUTURAL DO SISTEMA

PENAL ................................................................................................................................. 11 1.2 DROGAS ILÍCITAS: A DEMONIZAÇÃO DO SÉCULO ............................................ 23

2 “LA LEY ES COMO LA SERPIENTE: SOLO PICA A LOS DESCALZOS” .................. 33

2.1. PERCURSO DA PESQUISA: EM BUSCA DO DISCURSO JUDICIAL SOBRE AS

DROGAS .............................................................................................................................. 33 2.2 A PUNIÇÃO COMO REGRA E A INOCÊNCIA COMO EXCEÇÃO .......................... 40 2.2.1 LEGITIMAÇÃO DA REPRESSÃO JUDICIAL DO INIMIGO DA SOCIEDADE ............................. 41 2.2.2 A LINHA TÊNUE DIVISORA DOS EXTREMOS: A IDENTIDADE DOS “NARCOTRAFICANTES”

DE DROGAS ............................................................................................................................ 46 2.2.3 CONDIÇÕES E FRUTOS DO TRÁFICO ............................................................................... 49 2.2.4 “DOIS PESOS E DUAS MEDIDAS”: OS DOIS EXTREMOS DA POLÍTICA DE DROGAS ............. 52

CONCLUSÃO ......................................................................................................................... 58

REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 60

APÊNDICE 01 ........................................................................................................................ 62

8

INTRODUÇÃO

No estudo da atual política de drogas brasileira, que adota o proibicionismo, é

imprescindível atentar para o funcionamento do sistema penal e da sua atuação através das

agências formais: a Polícia, Delegacia, Ministério Público e o Poder Judiciário. Com o

aprofundamento científico na matéria é possível evidenciar as diversas áreas que abarcam o

tema, como a saúde, psicologia, segurança, política, entre outras. Dentre todas as

possibilidades de estudo desse tema tão relevante está a criminologia crítica que é a ciência

adotada nessa pesquisa.

É consabido que na aplicação das leis penais pelo sistema punitivo brasileiro, incide

fortemente a figura da seletividade penal. Essa seletividade está enraizada de maneira

relevante na abordagem da Política de Drogas do Brasil, precisamente quando da aplicação da

“Nova Lei de Drogas” como é conhecida a Lei 11.343/2006. Isso se dá principalmente ante a

estrutura social, das funções reais e declaradas do sistema penal no exercício do controle

social.

Além disso, a política de drogas ao ser aplicada e tratada por essa lei causa grandes

efeitos: primeiro, pela subjetividade em seus dispositivos que possibilita ao julgador decidir

discricionariamente sobre quem é ou não merecedor de reprimenda. E mais, possibilita

enquadrar as mais diversas condutas em qualquer uma das reprimendas previstas, tanto de uso

como no artigo 28, quanto de tráfico, inserto no artigo 33, ante a inexistência de taxatividade.

Segundo, porque o Estado, ao eleger as drogas como inimigas da sociedade, legitima suas

arbitrariedades e violências através de seus falsos discursos.

Entende-se que esse ponto, merece abordagem ampla e robusta para pesquisar o que há

por detrás da política de drogas. Quais são seus efeitos. Como o tema é tratado politicamente,

socialmente, processualmente.

Este objeto de estudo será desenvolvido com base no material bibliográfico e informações

úteis ao seu estudo. Entretanto, levantou-se a necessidade de um alcance mais pragmático do

tema, insurgindo a possibilidade de pesquisa empírica acerca do assunto.

Essa pesquisa consiste na coleta de informações e elementos contidos nas sentenças de

tráfico de drogas da cidade de Passo Fundo. Sob a ótica da criminologia crítica, buscar-se-á

encontrar como se dá a atuação do sistema penal nesta Comarca. Além disso, o objetivo é

responder questões como: quais os critérios utilizados pelos juízes nas sentenças

condenatórias das varas criminais da Comarca de Passo Fundo para a diferenciação entre

9

usuários e traficantes na aplicação da Lei 11.343/2006? As decisões condenatórias são

tecnicamente fundamentadas com base em quais argumentos? Quais são os elementos que

influenciam as decisões condenatórias por tráfico, desclassificatórias para uso e absolutórias?

Sendo assim, a pesquisa de campo auxiliará na busca de esclarecimentos sobre o modo

com que o tema é tratado em nossa região, da aplicação da Lei 11.343/06 e aspectos

extrínsecos ao direito material.

Uma vez que se possui a noção do modo com quem a política de drogas opera o assunto,

bem como a maneira com que as agências de criminalização formam e conduzem o sistema

penal e sua aplicação, caberá esclarecer em quais critérios as decisões dos juízes de primeiro

grau são baseadas e se sofrem efeitos desses fenômenos citados. Importante desvendar se na

distinção entre usuários e traficantes, os julgadores utilizam uma determinada técnica ou

elaboram suas decisões arbitrariamente, conforme cada caso, levando em consideração

elementos extrínsecos ao delito e atinentes ao réu.

Outro ponto a ser analisado é se através da Lei é possível discernir as definições de

condutas consideradas de usuários das de traficante. Ou seja, as tipificações, precisamente

encontradas nos artigos 28 e 33 da Lei 11.343/06, possuem taxatividade necessária para

aplicações fiéis à norma, de forma pontual e distinta?

Diante das informações analisadas e das obras estudadas através de pesquisa

predominantemente qualitativa e interpretativa, será possível ir de encontro ao modo com que

a norma é efetivamente aplicada na Comarca de Passo Fundo, relacionando efeitos e

consequências advindas de tal aplicação. Assim, tendo em vista os métodos e critérios

utilizados pelos julgadores, apontar-se-á se estes quesitos são biológicos – extrínsecos ao tipo

penal aplicado - ou baseados realmente no caso concreto.

A questão das drogas ilícitas é um tema de grande relevância mundial, tendo em vista o

crescimento exacerbado das campanhas internacionais de luta contra as drogas e também

quanto à descriminalização e legalização de algumas substâncias atualmente consideradas

ilícitas. De fato, no que se refere às normas proibicionistas que prevalecem mundialmente,

com um leve contato já é possível vislumbrar os efeitos e as consequências de suas

aplicações. Isso porque no sistema penal, incide fortemente a seletividade penal, que se dá

através de estereótipos morais e discursos legitimadores de poder.

Ao passo que a Lei 11.343/06, regulamenta a política de drogas adotada no Brasil,

quando da sua aplicação os direitos fundamentais de determinados indivíduos acabam sendo

violados, principalmente o direito à igualdade. Esta violação se dá no momento em que o

sistema penal passa a atuar, a partir da seleção de indivíduos, baseada em estereótipos,

10

preconceitos, classes sociais, gênero, entre outros, para decidir quem são os agentes

merecedores de intervenção penal.

Assim, diante desses elementos se procederá ao estudo e pesquisa do tema. A legitimidade do

sistema penal, o estudo do desvio e da criminalidade se efetivará desde a Escola Clássica até o

rompimento de paradigma, causado pela teoria do etiquetamento (labelling approach) bem como

pela pesquisa empírica desenvolvida.

Para tanto, no primeiro capítulo abordar-se-á o estudo da criminologia e da legitimidade do

sistema penal. Os principais tópicos enfrentados se referem à criminologia positivista e o

rompimento de paradigma. Além disso, a síntese histórica do assunto bem como os efeitos causados

pela política de drogas no Brasil serve para compreender em um panorama macro a pesquisa

empírica na modalidade micro.

No segundo capítulo a pesquisa empírica será exposta com seus subsídios, a fim de elucidar os

resultados encontrados. No primeiro tópico encontra-se a estrutura organizacional da pesquisa de

campo e os métodos utilizados para a extração e cruzamento de dados. No tópico dois aloca-se o

conteúdo extraído da análise dos documentos e da correlação entre essas informações e o material

bibliográfico utilizado.

11

1 DROGAS E SELETIVIDADE PENAL: ASPECTOS INTRÍNSECOS À ATUAÇÃO

DO SISTEMA PENAL NA APLICAÇÃO DA LEI 11.343/2006

A questão das drogas é, sem sombra de dúvida, um assunto que causa muita discussão

nas mais diversas áreas nacional e internacionalmente. É imprescindível entender,

inicialmente, a partir de qual momento a questão passou a ser tratada como um “problema”. A

política de drogas é um tema complexo que deve ser abordado atentando principalmente aos

diversos elementos e teorias que o compõem. Das mais variadas maneiras de abordagem do

tema, a criminologia crítica permite a análise consistente do assunto porque abarca uma série

de teorias esclarecedoras e progressistas dos elementos.

No primeiro tópico deste capítulo, haverá a exposição das teorias que definem o

sistema penal, suas funções reais e declaradas, tendo sua legitimidade como objeto de crítica

com base nas teorias criminológicas. Posteriormente, a criminologia crítica será o centro da

pesquisa, onde o estudo dos seus institutos será aprofundado. O controle social será estudado

com ênfase na modalidade formal, esclarecendo as teorias do desvio, da reação social e

etiquetamento, a criminalização primária e secundária e os efeitos do controle social como

gerador de desigualdades.

No segundo tópico, o estudo será voltado à política de drogas e seus efeitos. Abordar-

se-á a evolução histórica do proibicionismo das drogas mundialmente e sua inclusão na

política de drogas brasileira, o percurso das normatizações de drogas no Brasil e a política de

drogas como forma de controle social exercido pelo sistema penal.

1.1 A SELETIVIDADE COMO CARACTERÍSTICA ESTRUTURAL DO SISTEMA

PENAL

O estudo da política de drogas pelo viés da criminologia crítica impõe a necessidade

de conhecer a atuação do sistema penal. Além disso, possibilita entender os princípios da

legitimidade e legalidade penal como definidores de uma atuação legítima e racional desse

instituto. A ideologia da defesa social e o controle social formal e informal também serão

enfocados para entender as funções reais e declaradas do sistema penal.

A criminologia positivista será estudada com o fim de entender o rompimento do

paradigma etiológico causado pela teoria do etiquetamento. A teoria do desvio e o fenômeno

12

de criminalização serão imprescindíveis para a construção do saber sobre essa teoria e o

controle social através da seletividade penal.

O sistema penal pode ser definido como uma complexa manifestação do poder social,

sendo que sua legitimidade pode ser entendida como a característica outorgada por sua

racionalidade1, ou seja, o exercício do poder planejado racionalmente. É dizer que o poder

social não é algo estatístico que se “tem”, mas sim um exercício (ZAFFARONI, 2001).

Sendo assim, não basta as normas definirem o que é legítimo e legal de forma racional

(coerente e verdadeira) se a aplicação através do sistema se exerce de forma distinta.

A atuação do sistema penal de forma racional requer uma fundamentação

antropológica filosófica básica ou ontologia regional do homem. Esta fundamentação impõe a

consideração do homem como pessoa, ou seja, ao adotar esta lógica da fundamentação

antropológica, afirma que “o direito serve ao homem e não ao contrário”, por isso, se

estabelece uma crítica referente à coerência interna do discurso jurídico-penal e a não

contradição de seus enunciados entre si. Argumentos como “assim diz a lei”, “a faz porque o

legislador quer” implicam a confissão do fracasso de qualquer tentativa de construção

racional, elemento legitimador do exercício de poder do sistema penal (ZAFFARONI, 2001).

O discurso jurídico-penal é implementado através das normas, mediante os enunciados

da dogmática, o fundamento e a obtenção de uma programação do “dever ser”, ou seja, o

ideal. Entretanto, existem dois elementos imprescindíveis para que este discurso seja

socialmente verdadeiro, sendo um deles abstrato e o outro concreto. O abstrato poderia

denominar-se “adequação de meio a fim” e o concreto de “adequação operativa mínima

conforme planificação” (ZAFFARONI, 2001).

Nesse sentido, a definição exata dos níveis de verdade social:

Abstrato: valorizado em função da experiência social, de acordo com o qual a

planificação criminalizante pode ser considerada como o meio adequado para a

obtenção dos fins propostos (não seria socialmente verdadeiro um discurso jurídico-

penal que pretendesse justificar a tipificação da fabricação de caramelos entre os

delitos contra a vida). Concreto: que deve exigir que os grupos humanos que

integram o sistema penal operem sobre a realidade de acordo com as pautas

planificadoras assinaladas pelo discurso jurídico-penal (não é socialmente

verdadeiro, um discurso-penal, quando os órgãos policiais, judiciais, do ministério

público, os meios massivos de comunicação social, etc. contemplam passivamente o

homicídio de milhares de pessoas (ZAFFARONI, 2001, p.18)).

1 O autor define que a expressão racionalidade requer precisão, por ensejar relevante margem de equívoco,

definindo-a de acordo com o estudo como a discussão referente à coerência interna do discurso jurídico penal e

ao seu valor de verdade quanto à nova operatividade social (ZAFFARONI, 2001, p.16).

13

A racionalidade do discurso jurídico-penal é insustentável e essa insustentabilidade é

clarividente, vez que este não cumpre nenhum dos requisitos de legitimidade. A inexistência

de racionalidade afasta a legitimidade do sistema penal que atua através do exercício de poder

de seus órgãos, sendo que a racionalidade e a legitimidade tornaram-se “utópicas” e

“atemporais”: não se realizarão em lugar algum e em tempo algum (ZAFFARONI, 2001).

Denota-se, portanto, que a legitimidade do sistema penal se alcança com a aplicação

das leis de forma racional pelo sistema penal, tendo por objeto central o homem, respeitando

seus requisitos sem controvérsias. Ao passo que, o sistema penal não respeita o princípio da

legalidade, pelo fato de ser passível de arbitrariedades e corrupções de suas agências penais,

ele acaba por sendo deslegitimado (BARATTA, 2002).

Na atualidade, é comum descrever a operacionalização do sistema penal de forma

diversa ao que os discursos jurídico-penais supõem que eles atuem, ou seja, as normas se

baseiam em “realidades inexistentes” e seus órgãos operacionalizadores, que deveriam levá-

las a termo, não o fazem. Na América Latina isso se vislumbra, facilmente, através de uma

mera observação superficial (ZAFFARONI, 2001).

Neste ponto, impende destacar:

A dor e a morte que nossos sistemas penais semeiam, estão tão perdidas que o

discurso jurídico-penal não pode ocultar seu desbaratamento, valendo-se de seu

antiquado arsenal de racionalizações iterativas. Achamo-nos, em verdade, frente a

um discurso que se desarma ao mais leve toque com a realidade. É bastante claro

que, enquanto o discurso jurídico penal racionaliza cada vez menos – por

esgotamento de seu arsenal de ficções gastas - os órgãos do sistema penal exercem

seu poder para controlar um marco social cujo signo é a morte em massa

(ZAFFARONI,2001 p. 12-13).

Os sistemas penais apresentam características estruturais próprias de seu exercício de

poder como se fossem marcas de sua essência, não podendo ser eliminadas sem a supressão

do próprio sistema, sendo que “a seletividade, a reprodução da violência, a criação de

condições para maiores condutas lesivas, corrupção institucionalizada, a concentração de

poder, a verticalização social, mas estruturais, do exercício de poder de todos os sistemas

penais” (ZAFFARONI, 2001, p. 15).

Por fim, ao explicar a aplicação do poder pelo sistema penal, o autor Zaffaroni define:

14

[...] o sistema penal não respeita a legalidade porque, para o verdadeiro e

fundamental exercício de poder (o exercício de poder positivo configurador

disciplinante) a própria lei se ocupa de renunciar à legalidade, concedendo

amplíssima margem de arbitrariedade a suas agências. [...] examinamos violações à

legalidade que operam dentro da arbitrariedade ou renúncia planificada pela própria

lei. No entanto, além destas violações, verifica-se na operacionalidade social dos

sistemas penais latino-americanos, um violentíssimo exercício de poder à margem

de qualquer ilegalidade. A estas violações devem ser acrescentadas a corrupção, as

atividades extorsivas e a participação nos benefícios decorrentes de atividades como

o jogo, a prostituição, o contrabando, o tráfico de drogas ilícitas. Dados, geralmente

não registrados nos informes dos organismos de direitos humanos, apesar de

pertencerem à inquestionável realidade de nossos sistemas penais marginais. [...]

Conclui-se que, além de o exercício de poder do sistema penal não respeitar nem

poder respeitar a legalidade, na operacionalidade social de nossos sistemas penais, a

legalidade é violada de forma aberta e extrema pelo altíssimo número de fatos

violentos e de corrupção, praticados pelos próprios órgãos do sistema penal.

(ZAFFARONI, 2002, p. 28).

É nesse ponto que cumpre destacar a teoria da defesa social, que está amplamente

associada à questão da legitimidade por pressupor a realidade ideal do sistema penal, que

atuaria principalmente para o alcance e garantia dos direitos individuais e coletivos. Esta

teoria idealiza o sistema penal como remédio e solução de todos os problemas da sociedade.

Entende-se que essa teoria foi herdada pelas Escolas Positivistas e da Escola Clássica

e readequada ao passo das novas exigências políticas na passagem do estado liberal clássico

ao estado social. A ideologia da defesa social pode ser construída através dos seguintes

princípios, elencados pelo autor:

a) Princípio de legitimidade. O Estado, como expressão da sociedade está legitimado

para reprimir a criminalidade, da qual são responsáveis determinados indivíduos.

Isto se leva a cabo através das instâncias oficiais de controle do delito (legislação,

polícia, magistratura, instituições penitenciarias). Todas elas representam a legítima

reação da sociedade, dirigida tanto ao rechaço e condenação do comportamento

individual desviante, como à reafirmação dos valores e normas sociais. b) Princípio

do bem e do mal. O delito é um dano para a sociedade. O delinquente é um elemento

negativo e disfuncional do sistema social. O desvio criminal é, pois, o mal, a

sociedade constituída, o bem. c) Princípio de culpabilidade. O delito é expressão de

uma atitude interior reprovável, porque contraria os valores e normas, presentes na

sociedade, mesmo antes de serem sancionadas pelo legislador. d) Princípio da

finalidade ou da prevenção. A pena não tem, ou não tem somente a função de

retribuir, mas a de prevenir o crime. Como sanção abstratamente prevista pela lei,

tem a função de criar uma justa e adequada contramotivação ao comportamento

criminoso. Como sanção concreta, exerce a função de ressocializar o delinquente. e)

Princípio da igualdade. A criminalidade é a violação da lei penal e, como tal, é o

comportamento de uma minoria desviante. A lei penal é igual para todos. A reação

penal se aplica de modo igual aos autores de delitos. f) Princípio do interesse social

e do delito natural. O núcleo central dos delitos definidos nos códigos penais, nas

nações civilizadas, representa ofensa de interesses fundamentais, de condições

essenciais à existência de toda a sociedade. Os interesses protegidos pelo direito

penal são interesses comuns a todos os cidadãos. Apenas uma pequena parte dos

15

delitos representa violação de determinados arranjos políticos econômicos, e é

punida em função da consolidação destes (BARATTA, 2002, p.42).

A definição da ideologia da defesa social parece ser a junção de todos os progressos

realizados pelo direito penal moderno, mais que um elemento técnico ou que o sistema

legislativo e dogmático, este conceito tem uma função justificante e racionalizante

(BARATTA, 2002).

Esta definição fomenta a ilusória forma de resposta ideal aos delitos. Sustenta-se

através de seu discurso, que se trata de intervenção de forma racional e científica do Estado no

indivíduo, definindo assim as funções declaradas do sistema penal, ou seja, legitima o Direito

Penal como ferramenta e alternativa de tratamento dos delitos.

Considerando isso, é imprescindível buscar a compreensão de como se dá a atuação do

sistema penal para identificar, se na prática os fatos corroboram com esse discurso ideológico.

Pautando-se da criminologia crítica, é essencial analisar o desvio e a reação social,

para depois adentrar no tema do controle social e o estudo da criminalização, pautando-se

teoria do etiquetamento, esta que é responsável pelo rompimento do paradigma etiológico,

herdado da Escola Positivista.

Antes compreender esta teoria, como um rompimento de paradigma, é necessário

resgatar o pensamento da criminologia positivista e do paradigma etiológico, para vislumbrar

o modo distinto com que as duas correntes conduzem a matéria criminal.

A criminologia positivista era considerada como uma ciência capaz de explicar a

criminalidade, tendo como objeto de estudo, as causas do crime e o agente. A criminalidade

era considerara um fenômeno natural, ontológica e pré-constituída do Direito Penal, sendo

que suas causas poderiam ser identificadas, segundo a teoria do médico Lombroso, no próprio

criminoso. Essa identificação se daria através de aspectos individuais, físicos e sociais

(ANDRADE, 2003).

Assim, se tem o discurso autônomo cujo objeto não é propriamente o delito

considerado na sua forma normatizada, mas o homem delinquente sendo “diferente” dos

demais e clinicamente observável. A função da criminologia é reduzida à explicação casual

do comportamento criminoso, supondo um caráter complementar, determinado do

comportamento criminoso e da diferença entre criminosos e não criminosos (BARATTA,

2011).

Com paradigma, se buscava descobrir o que o homem faz e por que faz, o distinguindo

dos demais indivíduos da sociedade com estigmas determinantes da criminalidade. Sendo

16

assim, a criminalização depende de características intrínsecas ao indivíduo, considerando o

Direito Penal como única forma, estuda os indivíduos desviantes baseando-se em perguntas

como: por que fazem isso? Como podemos explicar sua transgressão das regras? Que há neles

que os leva a fazer coisas proibidas? Há ainda a simplificação da definição do desvio,

considerando como desviante “tudo que varia excessivamente com relação à média”, ou

ainda, definir o desvio como “algo essencialmente patológico, revelando a presença de uma

doença” (BECKER, 2008).

Ao definir os indivíduos como perigosos e distintos dos demais indivíduos os

estigmatiza, ou seja, através de um método científico define o “bem” e o “mal”, sendo o

primeiro composto pelas pessoas normais, a maioria, e o “mal” pelos sujeitos perigosos,

antissociais, anormais, sendo esses a minoria (ANDRADE, 2003).

Sendo assim, o positivismo busca as causas do crime no homem criminoso, ignorando

toda a estrutura da sociedade onde vive.

A atribuição de estereótipo era usada para reproduzir a ordem estabelecida, que

ignorava as relações estruturais e contribuía para caracterizar, através da canalização da

agressividade à essa classe, as tensões internas do sistema que produzem legitimação por

meio de repressão, configurando a criminalização da classe baixa (DE CASTRO, 2005).

Este processo de definição é perfeitamente vislumbrado quando estudamos o desvio.

Os grupos sociais fazem regras definindo situações e comportamentos apropriados a estas

regras, constituindo algumas ações como certas e outras como erradas. Quando essas regras

são impostas, a pessoa que supostamente tenha a infringido, é considerada um outsider ou

seja, indivíduo desviante das regras do grupo (BECKER, 2008).

Diante dos inúmeros tipos de regras, as que são relevantes são as relacionadas aos

delitos. Isso pelo fato de que é por meio de regras formais que o Estado, através das suas

agências, exerce seu poder e controle. Entretanto, é importante frisar a existência de acordos

informais, como tarefas de indivíduos do todo ou de um determinado grupo a que a regra se

aplica. Regras informais podem não ser efetivadas por falta de imposição, mas algumas delas

são operantes e efetivas por meio de imposição (BECKER, 2008).

Outro ponto relevante é o grau em que uma pessoa é considerada desviante. Uma

infração de simples pode ser considerada com tolerância, quando considerada próxima da

realidade do grupo ou punida severamente na mesma lógica, sendo que o próprio violador da

regra pode aprovar a regras que infringiu, como no caso das infrações de trânsito (BECKER

2008).

17

Exemplo disso é um indivíduo que pode ter convicção de que deve ter prudência e

responsabilidade no trânsito, porém, pratica atos que não condizem com o que pensa. Sendo

assim, quando um indivíduo pratica um desses atos ele é considerado um indivíduo normal,

tendo violado a Lei de forma aceitável aos olhos de seus julgadores.

Ao passo que diferentes condutas são consideradas desviantes pelos diversos grupos

sociais existentes, certo que existem variáveis neste processo de julgamento. A concepção

estatística do desvio define como desviante tudo que varia excessivamente à média. Esta

concepção simplifica o problema, ignorando aspectos relevantes da natureza do desvio, pois

faz uma análise heterogênea (BECKER, 2008).

A concepção do desvio como uma patologia, o define como uma doença, utilizando

ótica médica pensando no desvio como um produto de doença mental, sendo exemplos disso

o homossexual e um viciado em drogas. Da mesma forma, esta concepção situa a fonte do

desvio dentro do indivíduo, também ignorando o processo do julgamento (BECKER 2008).

Os processos desviantes podem ser identificados ainda como sintomas de

desorganização social. Definem entre a sociedade quem promove estabilidade, sendo

portanto, funcionais e os que rompem a estabilidade sendo portanto, disfuncionais. O que se

busca entender são os objetivos e metas de um grupo que geralmente é política. A concepção

funcional do desvio limita nossa compreensão por ignorar este aspecto político (BECKER,

2008).

Outra concepção de desvio é a falha em obedecer as regras do grupo. Isso pelo fato de

que quando algum grupo impõe uma regra a seus membros é presumível a identificação de

uma violação. Entretanto, esta concepção não é capaz de apontar quais regras devem ser

tomadas como padrão de comparação com o padrão de comparação à média e ao julgamento

desviante. Ou seja, se existem vários grupos e as pessoas podem fazer parte de mais de um

grupo, concomitantemente, podem acabar infringindo as regras de um em razão do outro

(BECKER, 2008).

Neste percurso, é importante abordar a teoria da anomia desenvolvida por Robert

Merton trabalhada por Baratta em sua obra onde se estuda os fins culturais e o acesso aos

meios institucionais. Essa teoria propõe interpretar o desvio como resultado da estrutura

social, tão normal quanto o comportamento que se dá conforme as regras. Além disso,

considera-se que a estrutura social, além de ter efeito repressivo, tem também um efeito

estimulante ao comportamento do indivíduo (BARATTA, 2002).

Sendo assim:

18

A estrutura social produz novas motivações que não se deixam reconduzir a

tendências inatas. Os mecanismos de transmissão entre a estrutura social e as

motivações do comportamento conforme e do comportamento desviante são da

mesma natureza. Observando a situação em que se encontram os indivíduos no

contesto da estrutura social, se verifica que os comportamentos singulares são tanto

conformistas como desviantes (BARATTA, 2002, p. 62).

Na teoria da anomia, afasta-se todo o tratamento individualista abordado na teoria

positivista. Ou seja, se desloca, mais uma vez, o centro do estudo para a estrutura e não ao

indivíduo. Isso é considerar que o desvio é fruto da sociedade.

Outro ponto relevante a ser enfrentado nessa teoria, é a contradição entre estrutura

social e cultura. A cultura de uma sociedade propõe aos indivíduos diversas metas e modelos

que configuram motivações de seu comportamento. Sendo assim, é através dessas metas e

modelos de comportamento institucionalizados que se definem os meios legítimos para o seu

alcance. Daí insurge a divergência entre os fins culturalmente reconhecidos como válidos e os

respectivos meios legítimos para seu alcance. Essa desproporção nasce basicamente na

origem dos comportamentos desviantes (BARATTA, 2002).

Especificamente, a desproporção acontece quando a estrutura econômico-social, ao

oferecer a possibilidade de acesso às modalidades legítimas para o alcance dos fins, das

metas, o faz com graus diversos. Isso se dá, principalmente, com base em sua posição política

e social, mas sim, um elemento funcional ineliminável da estrutura social. A anomia define-

se, portanto, como sendo a crise entre a estrutura cultural (que define as metas e os meios) e

ante as possibilidades de acesso legítimo, uma vez evidente a desproporcionalidade

(BARATTA, 2002).

A estrutura social não permite, pois, na mesma medida, a todos os membros da

sociedade, um comportamento ao mesmo tempo conforme aos valores e às normas.

Esta possibilidade varia, de fato, de um mínimo a um máximo, segundo – tem-se

dito – a posição que os indivíduos ocupam na sociedade. Isto cria uma tensão entre a

estrutura social e os valores culturais e consequentemente diversos tipos

fundamentais de respostas individuais – conformistas ou desviantes – às solicitações

resultantes do concurso combinado dos valores e das normas sociais, ou seja, dos

“fins culturais” e dos “meios institucionais” (BARATTA, 2002, p.64).

19

A partir dessas definições é que se considera que o impulso para um comportamento

desviante, origina-se da desproporcionalidade ou da discrepância entre os fins culturais e

meios institucionais, tidos como legítimos (BARATTA, 2002).

Neste norte, quando se pergunta quem infringiu uma regra, as características e motivos

intrínsecos ao indivíduo pressupõe que eles constituem uma categoria homogênea porque

cometeram o mesmo ato desviante. Ao abordar o assunto, nessa concepção, ignora o fato de o

desvio ser criado pela sociedade. Quando se afirma que o desvio é criado pela sociedade não

se quer dizer que ele está diretamente ligado à situação social do desviante ou a fatores sociais

que estimulem sua ação, mas sim, atribuí-lo aos grupos sociais que o criam ao fazer as regras,

cujas infrações serão consideradas como desvio. É considerar que um ato só é desviante se

assim for considerado, pela reação dos demais indivíduos (BECKER, 2008).

Entende-se, que o desvio se dá a partir das reações que um determinado ato de uma

determinada pessoa gera nos demais indivíduos de um grupo social. Nesse ponto, fica

evidente que a figura de desviante é atribuída através de um rótulo, uma etiqueta. Muitas

vezes, entretanto, as pessoas podem ser rotuladas como desviantes sem sequer ter infringido

uma regra, noutras a mesma conduta poderá restar despercebida e livre de julgamentos.

É dizer: a intensidade do tratamento de uma conduta como desviante depende, além de

outros pontos, de quem comete o ato e de quem se sente prejudicado por ele (BECKER,

2008).

Becker, explica este fenômeno de forma satisfatória:

Regras tendem a ser aplicadas mais a umas pessoas do que a outras. Estudos de

delinquência juvenil deixam isso muito claro. Meninos de áreas de classe média,

quando detidos, não chegam tão longe no processo legal como os meninos de bairros

miseráveis. O menino de classe média tem menos probabilidade, quando apanhado

pela polícia, de ser levado à delegacia, e é extremamente improvável que seja

condenado e sentenciado. Essa variação acontece, ainda que a infração original da

norma seja a mesma nos dois casos. De maneira semelhante, a lei é diferentemente

aplicada a negros e brancos. Sabe-se muito bem que um negro que atacou uma mulher

branca tem muito mais probabilidade de ser punido que um branco que comete

homicídio (BECKER, 2008, p.25).

Ao estudar o desvio, através da criminologia crítica é recuperar a análise de questões

objetivas, funcionais e estruturais que se originam na sociedade capitalista, interpretando os

fenômenos do desvio separadamente, conforme tratem de condutas subalternas ou condutas

de classes dominantes (cifra negra, crime do colarinho branco, crime organizado, crimes dos

poderosos). É dizer que, tendo em vista os aspectos desiguais e do nexo funcional que existe

20

entre os mecanismos seletivos do processo de criminalização, a realidade social constitui-se

pelas relações de produção, propriedade e poder, definindo a moral dominante (ANDRADE,

2003).,

Para isso ficar mais claro, é necessário adentrar na teoria do etiquetamento,

entendendo como se dá os processos de criminalização das condutas consideradas desviadas.

Partindo da afirmativa que o desvio e a criminalidade não são qualidades essenciais da

conduta ou uma entidade ontológica preconstituída à reação social e penal, mas uma

“etiqueta” atribuída a determinados sujeitos através dos processos formais e informais de

definição e seleção (ANDRADE, 2003).

Baratta explica a teoria do etiquetamento:

[...] esta direção de pesquisa, parte da consideração de que não se pode compreender

a criminalidade se não se estuda a ação do sistema penal, que a define e reage contra

ela, começando pelas normas abstratas até a ação das instâncias oficiais (polícia,

juízes, instituições penitenciárias que as aplicam) e que, por isso, o status social de

delinquente pressupõe, necessariamente, o efeito da atividade das instâncias oficiais

de controle social da delinquência, enquanto não adquire esse status, aquele que,

apesar de ter realizado o mesmo comportamento punível, não é alcançado, todavia,

pela ação daquelas instâncias. Portanto, este não é considerado e tratado pela

sociedade como “delinquente”. Nesse sentido, o labeling approach tem se ocupado,

principalmente, com as reações das instâncias oficiais de controle social,

consideradas na sua função constitutiva em face da criminalidade. Sob este ponto de

vista, tem estudado o efeito estigmatizante da atividade da polícia, dos órgãos de

acusação pública e dos juízes (BARATTA 2002, p. 86; grifos do autor).

Segundo Alessandro Baratta, ao tratar da teoria de Lemert, o fenômeno do desvio é

dividido em primário e secundário. Ou seja, no desvio primário, o fenômeno se dá relacionado

diretamente com os fatores sociais, culturais e psicológicos, advindos da reação social com as

agências informais de controle. No que diz respeito ao desvio secundário, baseia-se na relação

dos efeitos produzidos pela intervenção do sistema penal, principalmente através da pena,

relação com as agências formais de controle. De fato, entende-se que ao passo que a pena

falha onde deveria ter um efeito reeducativo, ela acaba por determinar uma consolidação da

identidade de desviante, ocorrendo, desta forma, a autodefinição das pessoas, objeto da reação

social (BARATTA, 2002).

Portanto, a principal característica do rompimento de paradigma é entender que o

desvio é uma construção da sociedade, que deve ser estudada sociologicamente, partindo da

análise da ação do sistema penal e das interações da sociedade.

21

Nem todo desvio é criminalizado, sendo que a teoria do etiquetamento é justamente

para explicar o que leva uma conduta ser considerada desviante. Ou seja, pelo interacionismo

simbólico, entende-se que o comportamento só é criminalizado, se for assim rotulado e

considerado pelos grupos da sociedade (BARATTA, 2002).

É necessário frisar, que os interesses da formação e aplicação do direito penal não são

interesses de todos os cidadãos de uma sociedade, mas sim, daqueles que detêm o poder de

influência nos processos de criminalização. A criminalidade é uma realidade construída

através da criminalização, sendo, portanto. o direito penal e a criminalidade que têm natureza

política voltada à proteção de interesses políticos e econômicos em conflito entre os grupos

sociais (BARATTA, 2002).

A criminalização deve ser entendida tendo como pressuposto necessário, o significado

de controle social e suas modalidades. O controle social pode ser informal ou formal. O

controle social informal é aquele exercido pelos grupos sociais como família, escola, religião

e meios de comunicação social. Conforme a teoria marxista tem como função a adaptação dos

indivíduos na cultura capitalista, onde a disciplina para produção é imprescindível para a

continuidade do sistema. Esse controle não se dá independente da classe social, por isso,

também, deve ser interpretado considerando a função materialista (BUDÓ, 2013).

Pode-se concluir, que o controle social possui uma unidade funcional, “dada por um

princípio binário e maniqueísta de seleção. A função do controle social formal e informal, é

selecionar entre os bons e maus, os incluídos e os excluídos: quem fica dentro, quem fica fora

do universo em questão e sobre quais recai o peso da estigmação (ANDRADE, 2005, apud,

BUDÓ, 2013, p. 40).

O controle informal se exerce através das interações sociais informais do indivíduo

com os grupos da sociedade, mas também existe o controle social institucionalizado que é

aquele exercido pelo sistema penal através das suas agências.

A relação entre o controle social informal e o formal, consiste basicamente na ideia de

que quando o primeiro falha, o segundo entra em ação. As duas modalidades atuam juntas

para reproduzir a realidade social existente (BUDÓ, 2013).

A polícia, o judiciário e a penitenciária são as agências formais do sistema penal. É

através delas que o controle social formal é realizado. Essa modalidade de controle é aquela

onde é exercido institucionalmente, operando somente com sanções negativas e de forma

altamente discricionária. Dentre essas agências, a que mais se destaca é a policial, tendo em

vista que são seus agentes que exercerão a definição das condutas e dos indivíduos que

merecem sua intervenção. Nesse processo, o fator da seletividade se evidencia pelo fato de a

22

vigilância e atuação policial se voltarem, especialmente, contra os setores excluídos sendo a

sua operacionalização baseada em estereótipos e preconceitos (BUDÓ, 2013).

A agência judicial, posteriormente à ação da agência policial, é responsável pela

decisão de quais indiciamentos terão prosseguimento judicialmente, através do oferecimento

da denúncia e quais serão arquivados (Ministério Público). Esse processo também ocorre de

forma seletiva, ao definir quem é passível de intervenção penal e quem não é. A atuação da

agência judicial se dá da mesma forma, uma vez que a norma penal é abstrata, aberta e repleta

de lacunas, totalmente passível de discricionariedade (BUDÓ, 2013).

As raízes dessas lacunas se dão no processo de criminalização primária. Nela existe a

seleção criminalizadora nas diversas formulações dos tipos penais que definem as condutas

consideradas criminosas. Os conteúdos e “não conteúdos” da lei são relacionados com os

valores predominantes que refletem, onde se dá ênfase e tutela ao patrimônio privado e

orienta-se para atingir as formas de desvio típicas de grupos socialmente mais débeis e

marginalizados (BARATTA, 2002).

Ao falar da seletividade na criminalização primária, pode-se dizer que:

Uma lei de tendência leva a preservar a criminalização primária, às ações

antissociais, realizadas por integrantes das classes sociais hegemônicas ou que são

mais funcionais às exigências do processo de acumulação do capital. Criam-se,

assim, zonas de imunização para comportamentos cuja danosidade se volta

particularmente contra as classes subalternas (BARATTA, 2002, p. 176).

A criminalização secundária atua e consigna o caráter da primária de forma seletiva

através de preconceitos e estereótipos, que guiam tanto os órgãos investigadores quando os

judicantes (BARATTA, 2002).

Sendo assim, é evidente que a violência do sistema penal recai sobre os setores mais

vulneráveis da população, sendo nas favelas, morros ou bairros pobres. O exercício do poder

dos órgãos do sistema penal, atual, de maneira tão violenta que supera índices de mortes dos

homicídios dolosos entre desconhecidos praticados por particulares (ZAFFARONI, 2001).

Nesse sentido:

...Nossos sistemas penais agregam mais mortes, exercendo uma violência sem

paralelos. Há mortes em confrontos armados (alguns reais e a maioria simulada, ou

seja, fuzilamento sem processo). Há mortes por grupos parapoliciais de extermínio

23

em várias regiões. Há mortes por grupos policiais ou parapoliciais que implicam a

eliminação de competidores em atividades ilícitas (disputa por monopólios de

distribuição de tóxicos, jogo, prostituição, áreas de furtos, roubos domiciliares, etc.

Há mortes anunciadas de testemunhas, juízes, fiscais, advogados, jornalistas, et. Há

mortes de torturados que “não aguentaram” e de outros em que os torturadores

“passaram do ponto”. Há “mortes exemplares” nas quais se exibe o cadáver aos

familiares, praticadas por grupos de extermínio pertencentes ao pessoal dos órgãos

dos sistemas penais. Há mortes por negligência de pessoas alheias a qualquer

conflito [...]. Há mortes violentas em motins carcerários de presos e de pessoal

penitenciário. Há mortes por violência, exercida contra presos nas prisões. Há

mortes por doenças não tratadas nas prisões. Há mortes por taxa altíssima de

suicídio entre os criminalizados e entre o pessoal de todos os órgãos do sistema

penal, sejam suicídios manifestos ou inconscientes. Há mortes... (ZAFFARONI,

2001, p.124).

Uma vez que a atuação do sistema penal recai sobre os mais vulneráveis, mantém a

estrutura as estruturas com a garantia de interesses capitalistas do Estado e das classes

dominantes. Essa atuação causa sérios danos aos preceitos constitucionais, principalmente os

da igualdade de intervenção mínima, por criar a criminalidade e direcioná-la aos indivíduos

integrantes dos extratos sociais mais pobres.

1.2 DROGAS ILÍCITAS: A DEMONIZAÇÃO DO SÉCULO

Cabe trazer um brevíssimo resgate histórico da política de drogas, partindo do modelo

internacional até o modelo adotado pelo Brasil. Neste tópico, apontar-se-á uma breve linha de

tempo para entender como surgiu o proibicionismo das drogas e como este modelo acabou

sendo implementado no país. É importante entender essa etapa, para que a análise do assunto

seja mais abrangente e precisa.

As primeiras “guerras” envolvendo a questão das drogas, como por exemplo, as

“guerras do ópio”, consistiam basicamente em disputas pela lucratividade das substâncias,

sendo travadas inclusive “batalhas” com argumento de livre comércio. Além disso, o

surgimento do proibicionismo se deu principalmente com o início da Revolução Industrial, a

partir da necessidade de mão-de-obra produtiva, composta por uma carga horária diária de

aproximadamente 12 horas de trabalho. Assim, as drogas “entorpecentes” eram indesejáveis,

tendo em vista seus efeitos. Por essa razão, a Liga das Nações (embrião da atual Organização

das Nações Unidas) convoca uma reunião para a formação da comissão de Xangai, em 1909,

para resoluções acerca do ópio (ZACCONE, 2007).

24

Impende salientar, portanto, que de fato o proibicionismo nasceu ligado diretamente à

questão econômica, uma vez que, somente ante uma ameaça dos entorpecentes à lucratividade

é que o ocasionou, sem qualquer menção inicial, a questões relacionadas à saúde, segurança,

entre outros, fato que se estendeu pelas gerações posteriores, mantendo-se até hoje.

Na década de 50, a discussão do assunto passa a ser no sentido de apontar as

características e estereótipos dos indivíduos envolvidos com substâncias ilícitas. Sobre o

assunto, Rosa Del Olmo, na obra com grupos marginais da sociedade. Nos Estados Unidos,

acreditava-se que a concentração das drogas ilícitas localizava-se nas regiões mais pobres das

cidades, geralmente vinculadas aos negros e/ou porto-riquenhos e aos emigrantes mexicanos,

associada também à violência, agressividade e criminalidade. Na Inglaterra, o tema era

abordado como uma ameaça social, tendo em vista a sua vinculação com a emigração negra

das Antilhas e do oeste da África, sendo eles, inclusive, considerados depravados sexuais. No

mesmo norte, seguia o entendimento dos países da América Latina acerca do assunto.

(OLMO, 1990).

Daí, o poder estatal utilizou a criminalização do consumo de drogas como uma saída

satisfatória no que tange a retirada dos marginalizados dos centros urbanos, deslocando-os à

periferia. Isso foi usado com o fim de deslocar seus problemas para as regiões marginais, não

sendo necessário o enfrentamento da situação de desemprego e nem o convívio com esses

indivíduos. Assim, a equiparação entre consumidor e delinquente teve o efeito de punição das

classes baixas, sem fazer o mesmo com os respectivos empresários das drogas (DIETER,

2011).

Neste período, fica demonstrado, portanto, o surgimento dos estereótipos morais, ao

associar o tema das drogas a grupos considerados como marginais e perigosos, tendo

geralmente como integrantes, pessoas pobres dos extratos sociais.

Nos anos 50, surgem novos entendimentos referentes ao tema, abordados inicialmente

pela Organização Mundial da Saúde e pela ONU, os quais apontavam que a droga deveria

passar a ser tratada como problema de saúde pública, difundindo, desta forma, o surgimento

do modelo ético- jurídico e médico-sanitário para enfrentá-la (OLMO, 1990).

Nas palavras de Dieter, ao apontar a instauração do discurso médico-jurídico:

Muitos fatores influenciaram esta nova posição, dentre elas o fato de que o consumo

não se limitava mais a grupos minoritários, mas alcançava, pela primeira vez em

grande escala, aos jovens da classe média. Persiste a dicotomia entre bem e mal, mas

o foco da culpa se desloca aos corruptores que incitavam o consumo, uma vez que,

no parecer dos juízes e da “sociedade” estes jovens das classes média e alta não

25

poderiam ser considerados delinquentes. Em outras palavras, em um jogo de

retórica, a culpa é deslocada ao distribuidor, o qual disseminaria a doença entre

jovens inocentes (DIETER, 2011, p. 105).

Neste trecho, é perceptível o fato de que o discurso médico jurídico só surgiu após o

aumento significativo de jovens de classe média envolvidos com entorpecentes. Ou seja, neste

ponto, a partir da lógica da teoria da diferenciação é que passa a se abordar o tema em outra

perspectiva, nada mais nada menos que: quem é o usuário e quem é o traficante?

Outro ponto relevante, é que no final do século 60 os Estado Unidos começaram a

propagar campanhas antidrogas em muitos países da América Latina, com a provável intenção

de incorporação de legislações antidrogas sob sua influência (DIETER, 2011).

Através do modelo médico jurídico, que na década de 70 se desenvolveu o modelo

jurídico-político, o qual culmina com a declaração de guerra às drogas e a explosão dos

movimentos de lei e ordem. Assim, o traficante é visto como inimigo enquanto ao usuário são

alternativas descriminalizantes que vão da multa ao tratamento médico compulsório. O

consumo de entorpecente passa a ser tratado como uma questão de segurança nacional

(ZACCONE, 2007, p.88).

A função dos movimentos de lei e ordem (MLO’s) era de densificar o combate à

criminalidade. Esses movimentos surgiram como campanhas de resistência à contracultura e

salvaguarda dos princípios éticos, morais e cristãos da sociedade ocidental. A ideologia

adotada pelas MLOs, além de transmitir ao senso comum a impressão de perigo constante e

eminente, era no sentido de atuação do sistema penal, através de leis punitivas, o único

instrumento capaz de resolver o problema da crescente criminalidade (CARVALHO, 2010).

É importante entender o papel desempenhado pelos movimentos de lei e ordem no

estudo relacionado às drogas. Isso principalmente, porque estes instrumentos foram os

principais responsáveis pela disseminação da ideologia de que a questão dos entorpecentes era

além de inimigo externo, por influência dos Estados Unidos, também o inimigo interno da

sociedade, daí surgindo o sentimento de medo.

Esses movimentos, criados e disseminados pelos Estados Unidos, mesmo tendo como

funções declara a defesa da saúde pública e da luta contra o uso e dependência dessas

substâncias. Na verdade essas não eram suas funções reais.

Os Estados Unidos elegeram a heroína e a maconha como substâncias mais perigosas,

estas que eram produzidas nos países de terceiro mundo. O discurso muda quando se fala nas

demais drogas produzidas pelos países industrializados como o álcool e o tabaco. Essas

26

substâncias não apareceram nas campanhas de guerra às drogas e nem sequer foi destinado

um controle efetivo sobre elas. As empresas farmacêuticas dos países desenvolvidos

produzem 89% dos medicamentos vendidos no mercado internacional e atingem 8 bilhões de

dólares anuais sendo que administram e distribuem produtos nocivos à saúde (DE CASTRO,

2005).

A indústria farmacêutica de países industrializados é extremamente lucrativa e é por

isso que também não faz parte do discurso de guerra às drogas. Interessante que esse discurso

é baseado na tutela da saúde pública, porém os mesmo países que levantam as bandeiras das

campanhas distribuem medicamentos muito mais danosos à saúde, denunciando os objetivos

reais.

O lucro da criminalização das drogas e suas guerras provêm também das indústrias

derivadas, que fornecem materiais informativos para as campanhas de consciência. Os

tratamentos divulgados como saída e salvação das drogas e a própria repressão policial

também geram lucros. É correto afirmar, portanto, que o caráter destrutivo atribuído às drogas

gera benefícios e lucros pro Estado (DE CASTRO, 2005).

No Brasil, a criminalização das drogas foi regulamentada primordialmente na edição

ao Código Penal Brasileiro do ano de 1890, onde o artigo 159 previa: “expor à venda, ou

ministrar substâncias venenosas sem legítima autorização e sem as formalidades prescritas

nos regulamentos sanitários”. Este dispositivo previa aplicação de pena de multa. O tema

sofreu alterações aproximadamente no ano de 1932, onde passou a comportar também a pena

“prisão celular”. Somente a partir da década de 40 é que surge uma política proibicionista

sistematizada, onde se incluiu o termo “entorpecentes”, prevendo ainda punição carcerária e

determinações no que tange a fatores intrínsecos ao tema. A partir desse momento, surge um

novo modelo de repressão, iniciando a luta contra as drogas no Brasil (CARVALHO, 2010).

O modelo médico-sanitário-jurídico adotado, introduziu a ideologia da diferenciação,

a qual consiste basicamente na diferenciação entre consumidor e traficante, rotulando-os

respectivamente, como doente e delinquente (CARVALHO, 2010).

Nos anos 70, a Lei 5.726/71, sancionada sob a ótica internacional de luta contra as

drogas, assume o papel de descodificar o tema no Brasil, pois desta vez - diferentemente da

redação do art. 281 do Código Penal que previa a punição exclusiva do comerciante -

diferenciou o usuário do traficante, porém, sancionou pena de prisão para ambos os casos. A

legislação preservou também o modelo médico-jurídico da década de sessenta (CARVALHO,

2010).

27

Sobre a teoria da diferenciação, Rosa Del Olmo afirma que a questão das drogas era

tratada como se houvesse uma luta entre o bem e o mal, baseando-se nos estereótipos morais,

enfatizando perfeitamente os dois extremos do tratamento do corruptor e do corrompido:

O problema da droga se apresentava como “uma luta entre o bem e o mal”,

continuando com o estereótipo moral, com o qual a droga adquire perfil de

“demônio”, mas sua tipologia se tornaria mais difusa e aterradora, criando-se pânico

devido aos “vampiros” que estavam atacando tantos “filhos de boa família”. Os

culpados tinham de estar fora do consenso e ser considerados “corruptores”, daí o

fato de o discurso jurídico enfatizar na época, o estereótipo criminoso, para

determinar responsabilidades. Sobretudo o escalão terminal, o pequeno distribuídor

seria visto como o incitador ao consumo, o chamado Pusher ou revendedor de rua.

Este indivíduo geralmente provinha dos guetos, razão pela qual era fácil qualificá-lo

de “delinquente”. O consumidor, em troca, como era de condição social distinta,

seria qualificado de “doente” graças à difusão do estereótipo da dependência, de

acordo com o discurso médico que apresentava o já bem consolidado modelo

médico-sanitário (OLMO, 1990, p.34).

Dessa forma, o que se evidencia é que, a partir da teoria da diferenciação que se

definirá o destino do indivíduo envolvido com drogas dependendo, dentre outros critérios,

principalmente da sua classe social.

Nesse ponto, a autora Luciana Boiteux, em sua obra “A Nova Lei de Drogas e o

Aumento de pena do Delito de Tráfico de Entorpecentes”, acertou no exemplo prático trazido

para apontar a teoria:

“(...) basta imaginar a hipótese de dois garotos de dezoito anos negociando a compra

de droga considerada ilícita: se a polícia os flagrasse no momento em que o vendedor

(pobre, que precisa vender a droga para sobreviver) entregasse a mercadoria ao

usuário (rico, que tem dinheiro de sobra para poder comprar droga sem traficar) este

iria ser encaminhando para o Juizado Especial e não poderia ser preso de jeito

nenhum, enquanto o outro estaria sujeito a uma pena mínima de cinco anos

(BOITEUX, 2009, p. 16).

Importante salientar que o a teoria da diferenciação é o ponto fundamental para se

entender a construção, aplicação e interpretação da política de drogas no Brasil, desde o seu

surgimento até os dias atuais.

A Lei 6.368/76 rompeu os modelos implementados tanto na Lei anterior, 5.726/71

quanto o Decreto-Lei 385/68, pois além de alterar o procedimento, acabou diferenciando o

tratamento do porte de drogas ilícitas e do comércio de drogas ilícitas, ainda que com penas

28

similares, determinando também em seu 10º artigo a internação hospitalar, o que expressa a

manutenção do modelo médico-jurídico-político (CARVALHO, 2010).

Houve certa distinção na graduação de pena que se dará entre 03 a 15 anos. Assim, o

principal efeito foi a criação de um inimigo interno, com elaboração de políticas de segurança

pública genocidas. Essas políticas voltadas para a criação de guerras internas, abarcam a

perseguição do vício, confundindo dependência com crime e obscuridade, na definição de

usuário e traficante. Além disso, nasce a associação para o tráfico que pune rigorosamente e

igualitariamente o pequeno comerciante e o grande distribuidor (varejista e atacadista

respectivamente) (DIETER, 2011).

Neste período, se introduzira efetivamente no Brasil a ideologia de que as drogas eram

o inimigo interno, além de externo da sociedade, possibilitando e legitimando o controle

social militarizado, originado durante o regime militar, sendo clara a diferenciação de

indivíduos considerados pobres e ricos (CARVALHO, 2010).

Entendendo basicamente o surgimento do proibicionismo no Brasil, bem como os

elementos que contribuíram para a sua definição, é necessário o estudo das campanhas

legitimadoras da guerra às drogas.

Essas campanhas, que ocorrem simultaneamente nos países latino-americanos, são

fatos sócio-políticos que vão além das motivações explícitas, sendo elas uma forma de

controle. Ao citar o exemplo dessas campanhas, Lola de Castro afirma que

Ficou claro que a campanha era útil não apenas para fins políticos internos, ao

desviar a atenção de problemas locais mais importantes, ao produzir o consenso

necessário para a adoção de medidas autoritárias e desacreditar movimentos e

instituições, mas também para fins estratégicos na dominação internacional. [...]

Quando uma campanha é contra as drogas, ela adquire especial caráter (meio de

ficção científica, meio história de assombração, que a própria droga tem (DE

CASTRO, 2005, p. 171).

O principal exemplo de controle social exercido no caso das drogas é quando se

tornam mais gravosas, ainda que inconstitucionais, as ocorrências em ralação a elas. Sendo

assim, os danos gerados pelas drogas são, na verdade, mais um efeito da sua política e não dos

males que a farmacologia é capaz de gerar. Esse controle social é exercido através da

aplicação da política de drogas pelo sistema pena, com a utilização de estereótipos. Assim, os

indivíduos que possuem diferentes ideologias e valores políticos dos dominantes serão

vinculados ao vício e ao crime (DE CASTRO, 2005)

29

Necessário frisar que a Constituição de 1988 tornou mais rígido o tratamento de

usuários e traficantes, tornando o delito de tráfico inafiançável e insuscetível de anistia ou

graça, não exercendo efetivo controle na expansão punitiva do Estado (art. 5º, XLIII da

Constituição Federal). Porém, dispôs sobre a criação de juizados especiais criminais para

processar as infrações penais de menor potencial ofensivo, definindo-o também, como

tratamento jurídico para usuários (art. 98, I, Constituição Federal) (DIETER, 2011).

No que tange ao modelo repressivo adotado, imprescindível mencionar a “Operação

Rio” que se deu em 1994 com a finalidade de eliminação do tráfico de drogas dos morros

cariocas. Ao contrário do que se pensava, a opinião pública aceitou e acreditou na eliminação

dos conflitos pela força militar. Este foi um ponto marcante na concretização do tipo ideal

bélico de repressão penal militarizada, consignando o estereótipo dessa militarização como

instrumento de controle do crime (CARVALHO, 2010).

Segue o comunicado da Coordenação de Operações de Combate ao Crime Organizado

no Rio de Janeiro:

“A coordenação das operações de Combate ao Crime Organizado no Rio de Janeiro

informa ao público, em prosseguimento ás ações que já vinha desenvolvendo, com o

objetivo de reduzir a níveis toleráveis os índices de criminalidade na cidade, iniciou

nesta madrugada, com efetivo combinado de Forças Armadas e Policiais, operações

nos complexos do Dendê e da Mangueira. Nessas ações, conduzidas de forma

meticulosa, estão sendo cumpridos todos os dispositivos legais, com o cuidado de

que no curso das mesmas seja preservada a integridade da população ordeira do

local. É oportuno enfatizar que o resultado da operação não deverá ser avaliado pela

quantidade de armas apreendidas ou de criminosos capturados no final das ações.

Ele será medido pela significativa redução do nível de violência, resultante do

reestabelecimento da presença do poder público na área e a consequente

tranquilidade que a comunidade local voltará a desfrutar. A coordenação das

operações salienta, ainda, que a Segurança Pública, apesar de ser um dever do

Estado, é um direito e responsabilidade de todos os cidadãos. Em consequência,

apela à população em geral para uma atitude de cooperação com as ações

desenvolvidas, bem como com a compreensão e a tolerância com os eventuais

transtornos que venham a ser causados nas regiões envolvidas nas operações

(Coordenação das Operações de Combate ao Crime Organizado no Rio de Janeiro)

(CARVALHO, 2010, p.49).

O discurso implementado pelo comunicado, cumpriu a função legitimadora da atuação

do sistema penal. Isso porque transmitiu a sensação de que a operação seria efetivamente

conduzida das normas e, além disso, resolveria os problemas ora citados.

30

Entretanto, conforme notícias acerca da operação na Mangueira, poucas horas após as

desocupações realizadas pelas Forças Armadas2 o comércio de entorpecentes retomara suas

atividades, frustrando as expectativas a ela direcionadas. Além disso, o fracasso da operação

se consignou pelo insucesso no controle do tráfico e diversas violações e lesões aos direitos

fundamentais da população, residentes nas áreas de ocupação (CARVALHO, 2010).

Na época, o General Câmera Senna justificou as violações realizadas dizendo

“infelizmente alguns direitos constitucionais estão sendo prejudicados. Eu reconheço que está

havendo um cerceamento das liberdades. Nós não somos um batalhão de assistentes sociais. É

impossível evitar um ou outro excesso. É preciso, às vezes, ser duro, ríspido, na ponta da

linha” (FOLHA DE SÃO PAULO, 21.11.94, apud CARVALHO, 2010, p. 50).

É exatamente nesse ponto que se evidencia a utilização do discurso de legitimidade do

sistema penal anteriormente abordado. Ou seja, ao passo que a Operação Rio era considerada

e disseminada através da ideologia de defesa social, como uma forma de “resolução dos

problemas de violência causados pelas drogas”, na prática não cumpria com a função

declarada.

Posteriormente, com o advento da Lei 11.343/2006, foi a forma com que o Brasil

atualizou o diagnóstico e a projeção da nova forma de repressão, sendo que desta forma criou

um mecanismo, o qual corrobora totalmente com o projeto global de luta às drogas

(CARVALHO, 2010).

A “Nova Lei de Drogas”, como é conhecida a Lei 11.343/2006 é um dos temas

mais discutidos na atualidade por pesquisadores relacionados às mais variadas áreas de

atuação, como a do Direito, da Saúde, Segurança, da Política, entre outras. Isso se dá,

principalmente, por possuir grande relevância para a sociedade, uma vez que abarca uma série

de elementos que influenciam diretamente na vida e nos direitos dos indivíduos passíveis e

não passíveis de sua aplicação.

Importante apontar que as principais mudanças ocorridas na Lei 11.343/2006, foram

no que tange à separação do tipo relacionado ao usuário e ao traficante de drogas, o aumento

da pena mínima de tráfico de drogas para 05 anos (a qual na Lei anterior era de 03 anos) e

torna menos severa a punição do usuário, que passa a ter pena distinta da pena de prisão

(DIETER, 2011).

2 Em 24 de novembro, tropas da Marinha, Exército e das Polícias Militar e Federal ocuparam sete morros

cariocas [...]. Após trinta e seis horas da primeira ocupação do morro da Mangueira, a operação foi considerada

plenamente exitosa, constatação que levou as Forças Armadas afirmar a libertação da favela. Segundo o porta-

voz da Operação, Coronel Ivan Cardoso, a mangueira tornara-se “uma área limpa do crime organizado”, na qual

o “Exército fez o trabalho de pacificação[...]”. A mesma estratégia de ocupação foi utilizada no Complexo do

Alemão, Mineira, Barbante, Juramento, Zinco, Morro do Dendê e Dona Marta (CARVALHO, 2010, p.49).

31

O artigo 33 da Lei de Drogas, define tráfico de drogas as condutas de

Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à

venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever,

ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem

autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena -

reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500

(mil e quinhentos) dias-multa. § 1o Nas mesmas penas incorre quem: I - importa,

exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece,

tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem

autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-

prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas; II - semeia,

cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação legal

ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação

de drogas; III - utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade,

posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize,

ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal

ou regulamentar, para o tráfico ilícito de drogas. § 2o Induzir, instigar ou auxiliar

alguém ao uso indevido de droga: Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa

de 100 (cem) a 300 (trezentos) dias-multa. § 3º Oferecer droga, eventualmente e sem

objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos a consumirem: Pena -

detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.500

(mil e quinhentos) dias-multa, sem prejuízo das penas previstas no art. 28. § 4o Nos

delitos definidos no caput e no § 1o deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de

um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde

que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades

criminosas nem integre organização criminosa. (BRASIL, Lei Federal nº. 11.343, de

23 de agosto de 2006. Brasília, ago. 2006).

Esse dispositivo que contém, em seus mais de 23 verbos nucleares, todas as condutas

definidas pelo legislador como configuradoras de tráfico de drogas ilícitas abarcando

inclusive exportação e importação, cultivo, induzimento ao uso, oferecimento. Além disso,

define as penas e multas pela violação da norma e finalmente a figura do tráfico privilegiado

onde se prevê uma redução de pena para os delitos previstos no parágrafo primeiro do mesmo

dispositivo legal.

Para DIETER, o principal problema desta nova abordagem de tratamento dos crimes

de consumo e tráfico de drogas é:

[...] como a lei não especifica qual o fim sob o qual o dolo vai incorrer para incidir

no tipo previsto no artigo 33, há uma – inconstitucional – inversão do ônus da prova.

Isso porque para ser enquadrado no artigo 28 (consumidor, não sujeito a pena de

prisão) é necessário portar a droga para fins de consumo, e se no artigo 33 (posse)

estão presentes os mesmos verbos nucleares do artigo 28, sem especificar qual o fim

a que se destinaria a atividade, o pressuposto da lei de drogas é que inicialmente

quem possui drogas está enquadrado no artigo 33, de pena muito mais grave. Então,

o réu, para ser enquadrado no artigo 28 teria que demonstrar o fim de consumo na

droga que portava. Ora, o ônus da prova se deslocará ao réu, ele terá que demonstrar

32

haver incidido no delito menos grave, sendo que o certo era o órgão acusatório

demonstrar que o réu teria incidido na conduta mais grave. Como as penas são

diametralmente diferentes, num passe de mágica observamos um flagrante atentado

ao princípio da presunção de inocência. (DIETER, 2011, p. 115)

Fica claro que a Lei não diferenciou taxativamente as condutas de uso e tráfico de

drogas, permitindo enquadramentos arbitrários por parte do sistema penal em qualquer um

dos tipos previstos, conforme cada caso, cumprindo ao réu provar que é usuário para não ser

submetido à reprimenda mais grave que é o tráfico.

Nesse ponto, impossível falar desse controle quando da aplicação da norma sem trazer

os apontamentos feitos pelo Delegado de Polícia Orlando Zaccone em sua obra, já

mencionada, “Acionistas do nada: quem são os traficantes de drogas.” Em sua vasta

experiência como agente do sistema penal, Zaccone retrata exatamente o que vislumbra em

sua carreira no que tange aos indivíduos autuados como traficantes de drogas:

Como delegado de polícia, atuando há pouco mais de seis anos na capital, acabei por

encontrar uma realidade diversa daquela que nos é apresentada, diariamente

enquanto ‘verdade’. Os criminosos autuados e presos pela conduta descrita como

tráfico de drogas são constituídos por homens e mulheres extremamente pobres, com

baixa escolaridade e, na grande maioria dos casos, detidos com drogas sem portar

nenhuma arma. Desprovidos do apoio de qualquer ‘organização’, surgem,

rotineiramente, nos distritos policiais os ‘narcotraficantes’, que superlotam os

presídios e casas de detenção. O sistema penal revela assim o estado de

miserabilidade dos varejistas das drogas ilícitas, conhecidos como “esticas”,

“mulas”, “aviões”, ou seja, aqueles jovens (e até idosos) pobres das favelas e

periferias cariocas, responsáveis pela venda de drogas no varejo, alvos fáceis da

repressão policial por não apresentarem nenhuma resistência aos comandos de

prisão (ZACCONE, 2007, p.11)

A partir disso, depreende-se que os indivíduos que praticam uma conduta para dar

suporte ao tráfico (aviãozinho, esticas, mulas) através do repasse de drogas na favela, vão ser

submetidos ao mesmo tratamento penal do que aquele que comanda os negócios produz a

droga e também dos empresários que financiam a produção e o comércio destas substâncias,

respondendo ao mesmo tipo legal (ZACCONE, 2007).

Portanto, a política de drogas é um instituto de controle institucionalizado pelo sistema

penal e consequentemente reprodutor das desigualdades. A partir da lei material que deixa

várias lacunas e padronização de condutas, o indivíduo é facilmente inserido nos seus

dispositivos, tonando-se passíveis de suas graves reprimendas.

33

2 “LA LEY ES COMO LA SERPIENTE: SOLO PICA A LOS DESCALZOS”3

No capítulo anterior foram abordadas questões envoltas à Lei de Drogas bem como

seu estudo através da criminologia crítica. Após o surgimento do tema e das correntes

positivistas onde o proibicionismo criou força, bem como o entendimento de aspectos

históricos, evidencia-se que a ruptura de paradigma trazido pela teoria do etiquetamento e da

reação social foi fundamental para mudar o modo de enfrentamento da questão das drogas.

Contudo, isso não diz exatamente sobre o mundo judicial: as transformações realizadas no

campo da criminologia não foram seguidas pela prática judicial, de modo que as funções

declaradas da pena seguem sendo consideradas como se funções reais fossem.

Para compreender a apropriação da política criminal de drogas pelo poder Judiciário,

optou-se por buscar a compreensão do tema de forma prática através de pesquisa empírica.

Neste capítulo, abordar-se-á o tema através dos elementos coletados na pesquisa de campo

realizada, relacionando-os efetivamente, com os elementos teóricos até aqui desenvolvidos.

2.1. PERCURSO DA PESQUISA: EM BUSCA DO DISCURSO JUDICIAL SOBRE AS

DROGAS

Adentrando especificamente na pesquisa empírica realizada, é importante descrever

inicialmente sua estrutura, organização e os métodos utilizados no seu desenvolvimento.

O método de procedimento utilizado nessa etapa foi o monográfico, o qual é

instrumentalizado através das técnicas de pesquisa bibliográfica e documental - provenientes

de informações extraídas da pesquisa empírica desenvolvida nas sentenças das varas criminais

da cidade de Passo Fundo – RS (LAKATOS, 2004).

Com isso, buscou-se um alcance qualitativo da pesquisa em determinado número de

sentenças analisadas, objetivando-se o encontro dos elementos em que são baseadas as

decisões, para se alcançar a conclusão sobre as contradições encontradas entre a norma, o

sistema penal e os direitos de cada indivíduo passível de sua aplicação.

O objeto da pesquisa de campo consiste nas sentenças de crimes enquadrados como

tráfico de drogas oriundos da Comarca de Passo Fundo. O objetivo da pesquisa empírica é o

3 A frase de um camponês de El Salvador, referida por José Jesus de La Torre Rangel, aqui difundida por LÊnio

Streck em “Crime e sociedade estamental no Brasil: De como la ley es como la serpiente; solo pica a los

descalzos”, disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/images/stories/cadernos/ideias/178cadernosihuideias.pdf

acesso em: 23.11.2015.

34

de identificar o modo com que a política de drogas é exercida na cidade de Passo Fundo

através do discurso judicial. Na sede do Poder Judiciário desta Comarca, são julgados os

crimes cometidos também nas cidades de Coxilha, Ernestina, Mato Castelhano e Pontão. A

sede de Passo Fundo conta com três varas criminais, sendo uma delas a vara do Júri, e

também com uma vara do Juizado Especial Criminal (JECRIM)4.

Inicialmente, o intuito era realizar a coleta de sentenças nas três varas criminais dessa

Comarca. Entretanto, na 1ª vara criminal, que é a vara do júri, surgiram algumas dificuldades.

Primeiro, por haver grande rotatividade de juízes e, consequentemente, uma dificuldade de

acesso aos documentos. Para que as sentenças fossem analisadas, além da autorização do juiz

diretor do foro, também foi necessário o consentimento do juiz titular da vara no momento da

prolação das decisões. Esse fato impossibilitou o acesso aos arquivos porque – segundo

informações do diretor do foro – as sentenças só poderiam ser disponibilizadas pelo juiz que

as publicou, e os juízes que atuaram na 1ª vara foram transferidos para outras cidades, sendo

inviável o contato. Tendo em vista, porém, que a primeira vara possui pouca demanda de

processos da natureza de tráfico de drogas, esse fator não prejudicou o trabalho.

A pesquisa incidiu sobre crimes da natureza de tráfico de drogas, sem uma precisão de

dispositivo legal, englobando todos os assuntos assim definidos e considerados. A partir

desses critérios, foram coletadas 37 sentenças prolatadas na 2ª e 3ª varas de Passo Fundo.

O recorte temporal foi o ano de 2014, por configurar o ano integral mais recente

antecedente ao início da análise. A coleta das sentenças a serem analisadas iniciou-se no mês

de janeiro de 2015. Para tanto, utilizou-se a totalidade de arquivos disponibilizados e

conferidos pelo Fórum de Passo Fundo nas respectivas varas criminais. A coleta das sentenças

se deu diretamente no Fórum de Passo Fundo sob autorização do Juiz diretor do foro que

permitiu acesso e uso dos documentos de todas as varas criminais da Comarca.

As sentenças foram analisadas inicialmente com o auxílio do software WEFT QDA.

Esse programa é basicamente uma ferramenta de análise textual que viabiliza a criação de

categorias de dados e cruzamento das informações destacadas no texto. Isso facilitou o

trabalho de extração de partes relevantes e desconsideração de informações inúteis,

alcançando-se, assim, interpretações precisas para fim de uma teoria e conclusão sobre o

assunto pesquisado.

4 Informação disponível em:

http://www.tjrs.jus.br/site/poder_judiciario/Comarcas/Comarcas_e_municipios_jurisdicionados/(Acesso:

25.09.2015)

35

A análise das sentenças consistiu na leitura, marcação e categorização do seu inteiro

teor, contendo relatório, decisão, individualização e dosimetria da pena. As informações

contidas no relatório da pesquisa foram extraídas, unicamente, das sentenças analisadas e da

consulta no site do Tribunal de Justiça sob o número do processo, não havendo em nenhum

caso consulta aos autos dos processos. Nesse ponto, foi extraído o máximo de elementos

possíveis para a obtenção de uma análise qualitativa e quantitativa e cruzamento de

informações, sendo elas divididas por categorias para finalmente serem relacionadas com o

referencial teórico desenvolvido no trabalho.

As informações coletadas no site do Tribunal de Justiça, a partir do número dos

processos analisados, foram: espécie de defesa constituída, data de início do processo, data da

prisão e soltura do réu e resultado da apelação em segundo grau, quando existente. Tais

informações são essenciais para vislumbrar as seguintes questões: se o acusado possui

advogado privado ou defensor público, a duração do processo entre início da instrução e

prolação de sentença, duração de tempo que o réu ficou preso durante a instrução e se a

decisão de primeiro grau é ou não mantida integralmente em 2ª instância.

As sentenças foram analisadas extraindo-se os dados relevantes e dividindo-se o

conteúdo em categorias para facilitar o cruzamento de dados e utilização das informações.

Essas categorias foram criadas no momento da leitura e análise das sentenças e conforme a

necessidade de divisão de temas definidos pelas circunstâncias do fato, características

pertinentes ao indivíduo e elementos processuais.

As categorias são:

a) Circunstâncias do fato: dividida nos valores local do fato, modo de

abordagem/captura, reação do acusado no momento do fato relatada pelos polícias, verbo

nuclear do tipo imputado. Nessa categoria buscou-se identificar inicialmente o local do fato,

para determinar uma geografia do controle de drogas em Passo Fundo, bem como se o

indivíduo foi apreendido em local próximo da sua residência, se é um local central ou

marginal. Quanto à reação do acusado no momento do fato, baseou-se no depoimento

prestado pelos polícias em juízo. Esse elemento foi utilizado para esclarecer se houve

resistência à prisão, confronto físico ou verbal, se o indiciado aduziu algo em sua defesa ou se

assumiu a prática de algum fato criminoso. O verbo nuclear do tipo imputado foi analisado

para definir, ante os diversos tipos penais que a Lei 11.343/2006 – especificamente o artigo 33

– em qual deles a conduta do indiciado foi encaixada pela denúncia. Esse ponto é fundamental

para demonstrar se há ou não facilidade de enquadramento de indivíduos nas condutas

dispostas pela norma.

36

b) Drogas supostamente apreendidas em posse do acusado: são referentes à

quantidade, ao tipo e às condições de armazenamento. Em relação às drogas apreendidas no

momento do fato, a quantidade e o tipo da droga foram averiguados para auferir se existe um

critério subjetivo para delimitar a hipótese de a droga ser destinada ao uso próprio ou não.

Além disso, é importante destacar o tipo de substância para investigar se há distinção no

tratamento e na proporcionalidade da reprimenda.

c) Demais materiais supostamente apreendidos em posse do acusado: a análise foi em

relação à apreensão de dinheiro no momento do fato, apetrechos ou utensílios relacionados ao

consumo ou preparação de drogas. Esses dados são cruciais para apontar quais são os tipos de

objetos que merecem, sob a ótica dos agentes e do julgador, serem assim considerados. O

dinheiro apreendido contribuiu para averiguar se esse fator foi efetivamente utilizado como

argumento para a condenação. Serviu ainda para referir se o fato de o acusado ser preso

portando objetos que presumam a hipótese do uso influenciam na decisão do julgador.

d) Elementos do flagrante: versão apresentada no momento da abordagem/captura e se

houve concessão de liberdade provisória. A classe “modo de abordagem ou captura” foi

estipulada para definir aspectos relevantes, como a situação de flagrância, a atuação dos

policiais que efetuaram a abordagem e o motivo que os levou a abordarem determinado

indivíduo. Aqui surge a hipótese da denúncia anônima, abordagem de rotina ou atitude

suspeita. Essa categoria é relevante para elucidar a exposição do indivíduo ao sistema penal e

eventuais características ou atitudes consideradas merecedoras de atenção por parte dos

agentes da polícia. É importante mencionar que a configuração do polo ativo dessa categoria

recai, especificamente, na figura do policial. Isso se dá pelo fato de o tráfico de drogas

pressupor a situação de flagrância ou a de busca, sendo que nas duas hipóteses só restam

efetivadas através de policiais (civis ou militares). Adentrando especificamente nos elementos

atinentes ao flagrante foi investigada, através das informações mencionadas nas sentenças, a

versão do flagrado em fase de inquérito. Esse fator é oportuno para a comparação entre as

versões apresentadas em fase de instrução processual, sob o amparo do contraditório e

assistência de procurador, com a da fase inquisitorial. A concessão da liberdade provisória foi

averiguada nessa fase para efeito de delinear o tempo que o indiciado permaneceu preso.

e) Categorias relacionadas ao réu: idade, raça, escolaridade, endereço, classe social,

primário ou reincidente, identificado como usuário, usuário autodeclarado. Quanto ao biotipo

do acusado foram coletadas informações referentes a idade, raça, escolaridade, classe social e

usuário de drogas. Esses elementos foram extraídos com a finalidade de caracterizar o

indivíduo para melhor abrangência e análise dos casos. Isso viabilizou uma possível

37

aproximação da realidade social que estão inseridos. Algumas dessas informações não foram

identificadas de forma objetiva no preâmbulo das sentenças, realizando-se esse levantamento

a partir da correlação entre elementos contidos no relatório, nos depoimentos prestados, na

fundamentação da sentença e no interrogatório do acusado. É dizer: a idade ou data de

nascimento para apuração, endereço, primariedade ou reincidência foram explicitamente

citadas no conteúdo textual das sentenças. Por outro, a escolaridade, raça, classe social ou

condição de usuário de drogas foram coletadas com base em trechos e demais subsídios

contidos no material analisado. Para identificar a classe social a que um indivíduo pertence

coleta-se tal informação através de critérios subjetivos, como: desemprego, condições em que

vive etc. Nas sentenças, alguns trechos contribuem com esse tipo de identificação, sendo que

existem menções desses critérios autorizadores da lógica de conclusão.

f) Elementos processuais: compõem as seguintes subcategorias: versão do réu em

juízo, versão dos policiais em juízo, depoimentos de testemunhas (exceto policiais), tese da

defesa e tipo de procurador constituído para o acusado. Os elementos processuais foram

abordados na pesquisa considerando a análise das versões apresentadas pelo acusado tanto na

fase de inquérito quanto judicial. Esse ponto é indispensável para verificar se existem versões

contraditórias entre as versões prestadas e se essas contradições foram utilizadas para

beneficiar o acusado ou desacreditar sua versão dos fatos. Na maioria dos casos, o acusado

não possui acompanhamento técnico de advogado ou defensor público na fase do inquérito,

portanto, esse fator possibilita a visualização se existe diferença nas suas versões em virtude

do acompanhamento de procurador. Outro fator analisado é a espécie de defesa constituída

pelo acusado, se pública ou privada. A partir desse dado, podemos evidenciar a condição

financeira do acusado em contratar um advogado ou ser defendido pela Defensoria Pública.

Os depoimentos das testemunhas compõem uma categoria relevante na análise das

sentenças, porque é através desses depoimentos que se extraem as informações subjetivas e

objetivas que formam as interpretações. Outro ponto marcante dessa categoria é que, nos

casos analisados, a decisão é formada com base nas informações prestadas pelas testemunhas.

Sendo assim, foram separados em duas categorias os depoimentos das testemunhas de

acusação e de defesa. Objetiva-se com essa categoria, a valoração atribuída pelo julgador às

duas espécies de depoimentos prestados. A outra categoria processual classificada diz respeito

à tese utilizada pelo procurador na defesa do acusado. Será identificado com base nessa

categoria quais foram os argumentos de defesa que foram utilizados e se restaram rechaçados

ou acolhidos pelo julgador.

38

g) Decisão fundamentada da sentença: argumentos utilizados para absolvição do réu,

argumentos utilizados para condenação do réu, argumentos utilizados para majoração da pena,

doutrinas utilizadas, desclassificação para uso, aplicação da minorante de tráfico privilegiado,

substituição de pena por restritiva de direitos, pena base, pena definitiva, regime aplicado,

pena de multa, decisão de segundo grau (mantida ou reformada). Quanto às categorias

extraídas da análise da decisão fundamentada do julgador, no que se refere à absolvição,

dosimetria da pena e aplicação de regime, são de fato as categorias fundamentais para a

pesquisa. Em função dos argumentos utilizados pelo julgador no que tange ao resultado da

decisão o tema foi dividido em duas categorias, sendo elas: argumentos para absolvição do

acusado e argumentos para condenação. Baseando-se nessas classes de informações, verificar-

se-á quais são efetivamente os argumentos que compõem a decisão do julgador em crimes de

tráfico de drogas. Outra questão a ser sanada é se esses argumentos são padronizados ou

específicos ao caso. E por fim, a valoração do meio de prova: quais provas são mais acolhidas

e rechaçadas pelos julgadores.

Argumentos utilizados para majoração da reprimenda e aumentos de pena também

foram alocados em uma classe de informações. No mesmo sentido das demais classes

referentes à argumentação, essa é para questionar quais critérios utilizados para majorar a

pena e aumentar a reprimenda e se esses argumentos são padronizados ou operados

arbitrariamente conforme o caso. Da mesma forma, e com os mesmos objetivos foram

analisados os argumentos de diminuição ou substituição da pena.

No que tange à dosimetria da pena, os itens avaliados foram a pena base, para

evidenciar quais os argumentos utilizados para sua fixação e também a pena definitiva, para

vislumbrar a modificação entre as fases de aplicação.

Outros dados pesquisados foram quanto ao regime de pena aplicado, com o objetivo

de esclarecer quais são os regimes aplicados nos casos concretos bem como os argumentos

utilizados e a aplicação da pena de multa. Essas classes são importantes para identificar a

situação de liberdade ou prisão do acusado quando da sentença.

Ainda no que se refere à argumentação do julgador, buscou-se identificar a linguagem

que utiliza na fundamentação das sentenças e também elementos relevantes nesse ponto que

formam uma categoria de informações homogêneas.

h) Fatos relevantes: Nessa classe, foram alocados alguns fatos inusitados entre as

sentenças que poderiam gerar ponderações relevantes. Ou seja, argumentos, táticas, trechos

que consta em uma ou duas sentenças que não possibilitariam uma análise mais elaborada,

mas que são dignos de menção.

39

E, finalmente, foram analisadas de forma subjetiva as questões gerais do processo no

que diz respeito ao tempo de duração da instrução até a sentença, tempo em que o acusado

permaneceu segregado e se a decisão foi mantida ou reformada em segundo grau.

Cumpre destacar que os dados de segundo grau não foram aprofundados, limitando-se

somente a auferir, de maneira sucinta e objetiva, se a decisão foi mantida ou reformada. Nesse

ponto, não houve levantamento aprofundado de informações, cruzamento de dados ou

interpretações minuciosas. O que foi feito foi a simples verificação no texto do acórdão, se

houve a referida manutenção ou não.

O fato de os dados terem sido extraídos através das categorias supramencionadas, não

significa que serão abordados isoladamente ou restritamente à elas. Ou seja, as informações

provenientes de uma categoria interligam-se às de outras, tanto pelo cruzamento de dados

quanto pela correlação e dependência entre as informações.

Além disso, esses grupos de dados denominados categorias, foram utilizados para

organizar e delimitar a coleta de dados. Serviram de base para a formação dos grupos finais de

resultados. Ou seja, a partir dessas categorias organizacionais obteve-se o resultado da análise

que foi classificado nos seguintes critérios: “Legitimação da repressão judicial do inimigo da

sociedade”; “A identidade dos “narcotraficantes” de drogas”; “A linha tênue divisora de

extremos” e “Dois pesos e duas medidas: os dois extremos da política de drogas”, que serão

abordadas no tópico subsequente.

Importante esclarecer que quando da exposição dos resultados obtidos na pesquisa de

campo, sob hipótese alguma serão reveladas informações pessoais, profissionais e processuais

dos indivíduos processados.

Para esse fim, se estipulou um método simples de identificação das sentenças, juízes

julgadores, réus e testemunhas, através de números e letras aleatórios. As sentenças foram

numeradas de 01 a 37 (apêndice 01), os juízes foram designados “A”, “B” e “C”, réus foram

denominados de “AA”, “AB”, “AC”. Assim sucessivamente. Quanto às testemunhas, foram

designadas as letras “X”, “Y”, “W” e “Z” quando necessária sua menção, isso por não haver

necessidade de distinção entre elas. Nem todos os dados serão utilizados efetivamente, mas

para o caso de serem citados e também a critério de organização do trabalho, a atribuição

dessas nomenclaturas simbólicas foi necessária.

Sendo assim, após o mapeamento e esclarecimentos dos métodos de pesquisa,

estrutura e organização, torna-se possível aprofundar-se nos respectivos resultados obtidos

bem como na interdisciplinaridade a ela inerente.

40

2.2 A PUNIÇÃO COMO REGRA E A INOCÊNCIA COMO EXCEÇÃO

Após a investigação de todo o material analisado, evidenciou-se uma padronização de

argumentos técnicos e informais, sendo que em poucas decisões houve efetivamente uma

fundamentação diferenciada. Em alguns casos, argumentos utilizados na fundamentação

pareciam inclusive não condizer com o caso concreto, restando incoerentes com o restante do

conteúdo textual do documento. Entretanto, como o objetivo da pesquisa não tange aos

aspectos dogmáticos e dissertativos, cabe fazer menção a esse fator tão somente para fins

informativos e também na justificativa quanto à escassez de informações e subsídios.

A análise comportou 37 sentenças, onde a denúncia imputava o delito previsto no

artigo 33, com algumas incidências do artigo 34, 35 e dois casos de desclassificação para o

artigo 28, todos da lei 11.343/2006.

A saber, nas sentenças estudadas, as condutas imputadas pela acusação aos réus foram

formadas usando os verbos nucleares do tipo em conjunto, sendo que em todos os casos foram

definidos com mais de um dos modos contidos no preceito normativo. A maior incidência foi

respectivamente as condutas de “guardar”, “vender”, “ter em depósito”, “trazer consigo” e

“transportar”.

Nos casos de arremesso de drogas para dentro do Presídio Regional de Passo Fundo,

onde a conduta não está prevista no tipo penal, ela é enquadrada da mesma forma no tráfico

de drogas, elevando em consideração outros verbos nucleares como, por exemplo, o de

fornecer, tendo em vista que o fim a que se destina a droga seria em tese o consumo pelos

apenados.

Ainda no que se refere ao dispositivo de tráfico, quanto à modalidade privilegiada do

§4º impende destacar que ainda que o artigo comporte vedação à conversão de pena de prisão

em restritivas de direitos, tal vedação foi declarada inconstitucional pela resolução nº 5 do

Senado Federal no ano de 2012, com base no julgamento de Habeas Corpus de nº 972565.

5 RESOLUÇÃO Nº 5, DE 2012. Suspende, nos termos do art. 52, inciso X, da Constituição Federal, a execução

de parte do § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. O Senado Federal resolve: Art. 1º É

suspensa a execução da expressão "vedada a conversão em penas restritivas de direitos" do § 4º do art. 33 da Lei

nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal

Federal nos autos do Habeas Corpus nº 97.256/RS. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Congresso/RSF-05-2012 Acesso em: 10/10/2015.

Segue o voto do Ministro Ayres Britto, relator da decisão: "12. Confirmo, então, que o centrado desafio temático

deste voto é saber se a proibição estabelecida pela nova lei, isto é, a Lei 11.343/06, encontra ou não encontra

suporte no sistema de comandos da Constituição Federal. O que demandará elaboração teórica mais cuidadosa

41

A declaração de inconstitucionalidade de tal vedação foi pautada basicamente no

direito de individualização de pena do condenado, disposta no artigo 5º, XLVI da

Constituição Federal, que leva em consideração os aspectos objetivos do fato com a atuação

do acusado de forma subjetiva, sendo o juiz competente para aplicar a sanção que considerar

justa. Esses argumentos vieram corroborados pelas teses de defesa da conversão de pena em

privativa de direitos.

2.2.1 Legitimação da repressão judicial do inimigo da sociedade

Imprescindível abordar os diversos argumentos que servem para legitimar o discurso

justificador da atuação repressiva contra as drogas ilícitas.

A legitimação da atuação judicial contra as drogas, parte de uma percepção

socialmente compartilhada pelos próprios magistrados e juristas em geral, de que a vítima do

crime de tráfico é o Estado. Um dos trechos que ilustra esse ponto é o que segue: “As

consequências são graves, pois prejudiciais à saúde pública. A vítima, o Estado e os cidadãos,

não tiveram participação no evento” (Doc. 26).

Nesse ponto, o bem jurídico tutelado seria a saúde pública, sendo a sociedade e o

Estado totalmente irresponsáveis pelo envolvimento do indivíduo com esse tipo de delito.

Ao assumir essa postura repressiva e eximir tanto a sociedade quanto o Estado da

parcela de culpa, o julgador ignora toda e qualquer estrutura social que forma a

criminalização. Ignora que a criminalização primária tem raízes estruturais que defendem os

interesses das classes dominantes e que a criminalização secundária desenvolve seu papel em

consonância com a seletividade a partir dos estereótipos, os mesmos estereótipos e padrões

para a perfeita compreensão da natureza e do alcance da garantia constitucional da individualização da pena. (...)

13. Leia-se a figura do crime hediondo, tal como descrita no inciso XLIII do art. 5º da Constituição Federal: (...).

14. Daqui já se pode vocalizar um primeiro juízo técnico: em tema de vedações de benefícios penais ao preso,

ou, então, ao agente penalmente condenado, o Magno Texto Federal impõe à lei que verse por modo igual os

delitos por ele de pronto indicados como hediondos e outros que venham a receber a mesma tarja. Sem

diferenciação entre o que já é hediondo por qualificação diretamente constitucional e hediondo por descrição

legal. Isonomia interna de tratamento, portanto, antecipadamente assegurada pela nossa Constituição. 15. Um

novo e complementar juízo: embora o Magno Texto Federal habilite a lei para completar a lista dos crimes

hediondos, a ela impôs um limite material: a não-concessão dos benefícios da fiança, da graça e da anistia para

os que incidirem em tais direitos. É como dizer, a própria norma constitucional cuidou de enunciar as restrições a

ser impostas àqueles que venham a cometer as infrações penais adjetivadas de hediondas. Não incluindo nesse

catálogo de restrições a vedação à conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direitos. Ponto

pacífico. Percepção acima de qualquer discussão ou contradita. 16. Insista-se na idéia: no tema em causa, a

Constituição da República fez clara opção por não admitir tratamento penal ordinário mais rigoroso do que o

nela mesma previsto." (HC 97256, Relator Ministro Ayres Britto, Tribunal Pleno, julgamento em

1.9.2010, DJe de 16.12.2010) Disponível em:

http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumario.asp?sumula=1271, acesso em 20/10/2015.

42

morais que formam o desvio. Denuncia na fundamentação da sentença a ideologia positivista

de que o criminoso é criminoso por si só, sem nenhuma causa ou efeito da sociedade6.

Assume o discurso midiático de guerra às drogas e luta contra o consagrado inimigo

interno da sociedade, ratificando o crack como o demônio do século: “da droga apreendida

"crack" sua imensa nocividade, sendo, inclusive, objeto de atuais e intensas campanhas de

combate a nível estadual e nacional” (Doc. 29).

Para tudo isso, a saúde pública insere nesse discurso, a função declarada do Estado,

tendo-a como objeto de tutela com afirmação de que “o tráfico de substância entorpecente,

sabidamente, oferece perigo à saúde pública e visa atingir especialmente à população jovem,

que não tem noção dos malefícios causados pela droga” (Doc. 18) e que “as consequências

são graves, pois prejudiciais à saúde pública (doc. 24)”.

Para consolidar o argumento de que a saúde pública que embasa a guerra às drogas ao

analisar o pedido de diminuição de pena postulado pela defesa, o juiz “X” definiu que:

[...] aquele que trafica este entorpecente, em virtude do baixo custo na

comercialização, o que ocasiona maior número de usuários, contribui para a

disseminação das consequências prejudiciais à saúde pública, bem como para a

ocorrência de outros delitos, em especial patrimoniais, decorrentes dos efeitos

gerados pela droga no consumidor. Em suma, esses dados, em conjunto, impedem,

na espécie, a diminuição da pena. Assim, é o que basta para condenar (Doc.14).

E, por fim, utiliza a definição de Nelson Hungria sobre as drogas, quando ainda

vigente o artigo 281 do Código Penal, como sendo “cada vez mais atual”:

A ação continuada dos entorpecentes é devastadora: embota a inteligência, arruína o

caráter, embrutece a alma, envenena o cérebro, adormece a vontade e o senso moral,

atinge o indivíduo na sua vitalidade, lesando a sua própria capacidade de procriação

sadia. (in: Comentário ao Código Penal, vol. IX, Edição Revista Forense, p. 127)

(Doc. 14)

O juiz “B” utiliza ainda, em quase todos os casos, com o fim de rechaçar

benefícios assegurados pela norma. Um exemplo claro encontrado nos documentos analisados

é a quando não entende ser justa a aplicação da minorante de tráfico privilegiado contida no

6 Vide p. 10

43

artigo 33, parágrafo 4º. Esse instituto, além de apresentar um regime de pena diverso da

restritiva de liberdade, também foi proposto com a função de diferenciar a reprimenda do

indivíduo que é primário, portador de bons antecedentes e que não se dedique à organização

criminosa.

Presume-se que, conforme esse dispositivo diferencia-se o pequeno e grande

traficante. Mesmo assim, em alguns casos mesmo o acusado tendo direito ao benefício este

não acabou sendo o entendimento do juiz, vez que fundamentou o indeferimento da aplicação

com os seguintes argumentos:

Destaca-se, no ponto, que a alteração de conceitos a palavras inseridas na legislação

brasileira, de forma a ler "deverão" onde consta o verbo "poderão" parte de uma

hermenêutica infundada, criada por juristas que se auto-atribuem o poder de mudar a

lei, preocupados tão-somente em diminuir penas sem dimensionar as consequências

geradas por essa prática no seio da sociedade. Não foi por acaso que a legislação

trouxe em seu corpo uma expressão e não a outra. Haverá casos, certamente, em que

embora implementados os requisitos, ainda assim, seja inadequada a redução da

pena. Destarte, entender a causa de diminuição de pena como de aplicação

obrigatória sempre que implementados os requisitos legais, importa em adotar

interpretação contra legem, rechaçada pelo direito, com o único intuito de beneficiar

o réu. O que deve ser aqui considerado diz respeito à determinação legislativa que

veio a aplacar/mitigar a repressão penal do crime de tráfico ilícito de entorpecentes.

Não é desarrazoado afirmar que a punição insuficiente para um crime de extrema

gravidade e reprovabilidade equivale à impunidade. Ou, em outras palavras,

equivale a não aplicação do comando constitucional de criminalizar. Na verdade, o

legislador banaliza a punição do tráfico, nesse particular, ao tempo em que a

Constituição aponta explicitamente para o outro lado, isto é, para uma atuação eficaz

do Estado na repressão do tráfico de entorpecentes. Dito de outro modo, a

Constituição Federal da República do Brasil estabelece diretrizes de política

criminal a serem, necessariamente, seguidas quando da edição de leis penais no

exercício da atividade legiferante (Doc. 14).

Para indeferir a benesse mesmo quando é de direito do réu, o julgador utilizou também

a teoria da proteção deficiente autenticando e enfatizando assim, a sua postura repressiva ante

os crimes que envolvem drogas ilícitas.

Primeiro porque se trata de dispositivo inconstitucional e, ainda que a diminuição

fosse adequada ao princípio da proporcionalidade, na visão da proibição de proteção

deficiente, a análise de sua aplicação estaria adstrita à análise do julgador. Ao prever

a regra do artigo 33, parágrafo 4º, da Lei 11.343/06, o legislador criou situação de

proibição deficiente, infringindo o princípio da proporcionalidade. A Constituição

Federal elencou o tráfico ilícito de entorpecentes como crime hediondo (art. 5º,

XLIII), exigindo do legislador uma reprimenda mais severa. Contrariamente ao

disposto na Carta Constitucional, o dispositivo do artigo 33, parágrafo 4º permite a

imposição de pena de até um ano e oito meses (se aplicada a redução de dois terços)

para um traficante de drogas, o que revela evidente afronta ao princípio da

proporcionalidade [...] Apenas para elucidar: a pena mínima para um crime de furto

qualificado é de dois anos de reclusão, com previsão de redução em caso de pequeno

44

valor do bem e primariedade do réu. O parâmetro utilizado pelo legislador foi esse:

furto privilegiado. A comparação é absurda: impossível é comparar a gravidade do

crime de tráfico de drogas com um furto privilegiado. As negativas conseqüências

sociais desse delito e, especialmente, a imperativa repressão determinada pelo

Constituição Federal tornam impossível tal exegese. Pretendeu evitar, nessa esteira,

a concessão de indevida redução de pena, evitando que a pena imposta se torne

insuficiente à prevenção e repressão do delito (Doc. 02).

Além disso, denuncia a sua postura, que diferencia gradualmente o crime de tráfico

com os demais crimes elencados pela legislação. Ao fundamentar o afastamento de um

benefício assegurado na própria norma, o julgador compara o crime de tráfico com um crime

de furto, assentando ser incomparável a gravidade de um com o outro.

Outro ponto relevante é a consideração da denúncia anônima como elemento hábil a

justificar a ação dos agentes do sistema penal. O deslocamento dos agentes penais e as

circunstâncias da abordagem dos indivíduos em 26 casos se deu em razão de denúncias

anônimas ou patrulhamento de rotina. Em cinco casos os indivíduos foram supostamente

flagrados arremessando drogas para dentro do Presídio Regional de Passo Fundo, em dois, foi

em cumprimento de mandado de busca e apreensão e em um os policiais foram deslocados

com base no setor de inteligência policial. O poder de polícia e as justificativas para suas

transgressões também aparecem respaldados nas fundamentações dos julgadores.

Em sede de alegações finais, em vários casos houve a alegação da defesa que o

ingresso dos policiais nas residências teria se dado sem o respectivo mandado. Essas

alegações foram rejeitadas com os seguintes argumentos:

[...] inicialmente, a preliminar de nulidade da busca e apreensão por ausência de

mandado não prospera. O tráfico de drogas é crime permanente e, como tal,

despicienda a expedição do mandado de busca e apreensão, sendo lícito o ingresso

de policial militar na residência do agente, a qualquer hora do dia ou noite, a fim de

fazer cessar a conduta criminosa e apreender substância entorpecente. No caso dos

autos, os policiais militares estavam realizando patrulhamento em face de denúncias

ocorridas em local referido como ponto de tráfico de drogas, quando avistaram dois

sujeitos em atitude suspeita. Ao realizaram sua abordagem em frente a casa de um

deles, o réu AC colocou objetos que tinha nas mãos em sua boca, correspondentes a

oito trouxinhas de cocaína. Ato contínuo, ingressaram na residência e localizaram as

substâncias entorpecentes e os demais objetos apreendidos. Destarte, inexistente

qualquer nulidade na atitude dos policiais, tampouco afronta ao art. 5º, XI,

considerando o flagrante perpetrado. Note-se que referido dispositivo constitucional

é claro ao dispor ser a casa "asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo

penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou

desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial." Na

espécie, se estava diante de flagrante delito, justamente uma das hipóteses que

excepciona a inviolabilidade de domicílio. Por tal razão, afasto a preliminar de

nulidade levantada na tese defensiva (Doc. 16).

45

Sendo assim, desconsiderou-se a invasão de domicílio com base em um de flagrante

que se efetiva depois do ingresso sem mandado, no qual os agentes abordaram o acusado em

frente a sua residência, baseado em denúncia anônima em uma suposta “atitude suspeita”

sendo isso suficiente para a invasão.

Nesse caso, existiu a apreensão de drogas, mas e nos demais casos onde a polícia

invade residências de pessoas inocentes e justifica esse poder na legalidade? Alia-se a isso a

denúncia anônima que serve como justificativa para as abordagens, perseguições, invasões de

domicílio, também justificadas pelo julgador nos seguintes termos:

Ademais, salienta-se inexistir irregularidade quanto ao fato de a investigação ter se

desencadeado a partir de denúncias anônimas relatadas pelos policiais. Coaduna-se

com o entendimento de que a notitia criminis sem qualificação apresenta-se possível

no atual ordenamento jurídico pátrio. A Constituição Federal considera livre a

manifestação do pensamento, vedando o anonimato (artigo 5º, inciso IV). Por certo,

uma denúncia vinda de fonte não identificada não serve como prova, entretanto,

mostra-se viável para desencadear a investigação pela Autoridade Policial. E,

ausente violação de direitos constitucionais no curso das investigações, como nos

autos, não há falar em nulidade, pois a função destes agentes de segurança pública é,

exatamente, perquirir e coibir a prática de ilícitos. Nesse ponto, importante destacar

que as informações anônimas apresentam-se de grande valia para o combate ao

tráfico, vez que, por demais sabido, as testemunhas não revelam a identidade pelo

risco de morte. Outrossim, a partir dos relatos dos informantes, policiais realizaram

investigações, que apontaram, sem dúvidas o tráfico de drogas (Doc. 26)

Além disso, ratificou as afirmações dos policiais no sentido de serem capazes de

identificar e diferenciar quem são os usuários ou traficantes de drogas: “a partir das

informações de pessoas da região, soube diferenciar quem era usuário de quem era vendedor,

eis que a acusada estaria vendendo drogas no local há meses (Doc. 02)”.

Teve direito, inclusive de inversão do ônus probatório: “O acusado não trouxe

qualquer testemunha para comprovar sua versão.” (Doc. 19). Nesse ponto, fica perceptível

que não existe presunção de inocência, mas sim de culpa, onde é o acusado quem deve

comprovar que é inocente e não o órgão ministerial às suas imputações.

Por fim, o fato de na maioria dos casos não ter existido investigações prévias e

campanas por policiais é plenamente justificável pelo julgador da seguinte forma: “Sinala-se

que a ausência de prévias investigações no local ou campanas por parte dos policiais não

desqualificam a prova produzida no processo, pois suficiente e robusta para um edito

condenatório” (Doc. 11).

46

Ou seja, o simples fato de o acusado portar a droga comprova a traficância. Não são

necessários outros elementos para assegurar a mercancia, o lucro auferido, distribuição

efetiva, relações negociais em geral, mas sim o simples e puro porte de substâncias ilícitas.

Diante da análise do discurso legitimador utilizado nas sentenças, evidencia-se que são

baseados no argumento de tutela da saúde pública e que é usado principalmente para ratificar

a ação policial, justificando suas possíveis violações de direitos.

Assim, na atuação policial realizada no processo de criminalização secundária7, além

de ter o consentimento dos juízes, suas ações são justificadas e seus frutos usados como base

para as condenações.

2.2.2 A linha tênue divisora dos extremos: a identidade dos “narcotraficantes” de drogas

Os considerados narcotraficantes possuem, de forma geral, definições socioculturais

preponderantes. O endereço dos acusados e do local do fato são dados apontados

objetivamente no relatório da sentença, onde o julgador transcreve os termos da denúncia.

Nos documentos analisados, com exceção de três casos, os acusados residem em regiões da

cidade, consideradas de classe baixa.

Essa consideração é baseada em uma pesquisa realizada sobre a estruturação urbana de

Passo Fundo. Elaborada pelo arquiteto Diego Ferretto que elaborou um mapeamento dos

níveis de renda por localidade. O estudo constatou que existe uma escala decrescente desses

níveis do centro para a periferia sendo que na área central da cidade seus residentes possuem

o maior nível de rendimento que é em média R$3.000,00 mensais (FERRETTO, 2012).

Logo em seguida, a região localizada ao sul da região central onde estão os bairros

Lucas Araújo e Rodrigues, a renda média é de R$2.000,00 e R$2.500,00. Os bairros

Boqueirão, Cruzeiro, Fátima, Luiza, Nenê Graeff, Planaltina, Petrópolis, Santa Maria, São

Cristóvão, Vera Cruz e Vila Mattos o rendimento médio é de R$1.500,00 e R$2.000,00. E

finalmente os bairros Roselândia, São José, São Luiz Gonzaga, Valinhos, Victor Isler, os

rendimentos são de até R$1.500,00, sendo que os índices mais baixos foram registrados nos

bairros Zacchia, Santa Martha e Integração que são respectivamente R$1.110,00,

R$1.180,00,00 e R$1.210,00 mensalmente, sendo, portanto, a classe predominante a classe

baixa (FERRETTO, 2012).

7 Vide p. 17

47

As camadas de alta renda localizam-se no centro da cidade, que abrange também o

Bairro Vergueiro, no Bairro Lucas Araújo, Boqueirão, Rodrigues e Fátima. Os índices são

respectivamente 58,37%, 7,73%, 7,02%, 6,28% e 4,29% (FERRETTO, 2012).

Com esses apontamentos, evidencia-se que, na maioria dos casos e onde foram

disponibilizados esses dados, os acusados condenados residiam em bairros de classe baixa de

baixa renda. Frise-se que nenhum dos condenados residia em bairros de classe alta, o que

demonstra que a massa de condenados e presumivelmente de indivíduos pobres. Os dados

podem ser visualizados no Quadro 1 abaixo:

QUADRO1: Distribuição geográfica dos locais de residência nos casos de condenação e absolvição8.

SENTENÇA CONDENATÓRIA

Bairro Número de casos

São Luiz Gonzaga 4

Vera Cruz 4

Zacchia 3

Operária 3

Cruzeiro 2

Vila Isabel 2

Bom Jesus 1

Ipiranga 1

Petrópolis 1

Pontão 1

Valinhos 1

Victor Issler 1

SENTENÇA ABSOLUTÓRIA – CONSUMO

Bairro Número de casos

Centro 1

Lucas Araújo 1

Boqueirão 1

Fonte: Dados organizados pela pesquisadora através da análise do corpus da pesquisa.

Um ponto marcante da análise consiste no fato de que, nas absolvições em razão da

quantidade, em que todos os réus residiam nos bairros de classe alta, sendo eles Centro, Lucas

Araújo e Boqueirão (12, 23 e 31). Frise-se que a quantidade de drogas era superior do que as

apreendidas, nos casos de condenação e que as condições de flagrância eram basicamente as

mesmas, fato que será abordado adiante.

Sendo assim, o local onde vivem os acusados é elemento capaz de apontar a sua

realidade social. De fato, esse é requisito preponderante para determinar do resultado da

sentença. Isso fica evidente quando as absolvições e desclassificações foram proporcionadas

somente para acusados que residiam em bairros de classe média e alta da cidade, muitas vezes

8 Em 10 casos a informação estava indisponível.

48

não sendo valorada, como feito nas condenações, a quantidade e natureza das drogas

apreendidas.

Além disso, os acusados de tráfico são reconhecidamente usuários de drogas, sendo

que isso vem apontado tanto nos depoimentos das testemunhas quanto nos interrogatórios dos

acusados. O fato de o acusado ser usuário em nada o beneficia ou distingue seu tratamento

dos demais. Ou seja, mesmo restando demonstrado nos autos que existe a figura de consumo

próprio, a tese de desclassificação é rechaçada nos seguintes termos:

O fato da ré ser usuária de drogas em nada desconfigura o exercício do tráfico ilícito

de substância entorpecente. Corriqueiro que o traficante pratique o comércio para

sustentar o próprio vício, tratando-se, portanto, de condutas harmonizáveis. Lembre-

se que não foi encontrado cachimbo ou instrumento diverso que sinalizasse o uso de

crack. Deduzir que um usuário contumaz de crack; que sustenta o seu vício há quase

dez anos; posicionado em uma região estigmatizada pela venda e pelo consumo de

entorpecentes; e que, além de tudo isso, detinha quantidade expressiva de crack; não

passe de um simples usuário, é acreditar no inusitado, naquilo que não costuma

ocorrer. Ora, é de se admitir que a experiência possibilite a mensuração do risco de

abordagem policial, a dizer o mínimo, que um indivíduo assume nessas

circunstâncias. Tanto assim que, usuários calejados geralmente são abordados com

pouca quantidade de droga, uma porque compram pequenas quantias e outra porque

não mantém estoque, eis que consomem tudo aquilo que conseguem adquirir em um

só tempo. Com isso, não é de se acreditar que a acusada estivesse, aos poucos,

consumindo a droga adquirida. Ressalta-se: a droga apreendida se tratava de crack,

substância que domina as funções cognitivas, mormente a de hígido raciocínio,

rapidamente levando à dependência física e psíquica (Doc. 02)

Evidencia-se, nesse trecho, do argumento utilizado uma contradição muito relevante.

Isso porque o próprio discurso legitimador usado para fundamentar a repressão às drogas,

utiliza como objeto central a saúde pública. Entretanto, nesse caso em que a acusada é usuária

há “quase dez anos” em momento algum se cogita um tratamento adequado ao objeto de

discurso – a saúde pública. Pelo contrário, pune-se com repressão e prisão uma considerada

dependente química inclusive com o uso dessa alegação em seu desfavor como quando afirma

que “a traficância também ficou demonstrada por outros meios de prova”. Talvez a declaração

do usuário seja mesmo o maior deles (Doc. 03).

Interessante colacionar a transcrição do juiz de parte do interrogatório de uma ré que

rebate a imputação de tráfico:

Comentou que havia cachimbo no local e que, se fosse traficante, não moraria em

uma casa caindo aos pedaços. Questionada sobre a existência de outro processo pelo

mesmo crime, no qual também figura como acusada, negou já ter sido presa ou

49

processada, reiterando não ter sido interrogada em outro processo. Após mostrar as

mãos para a câmera, afirmou fumar cigarros... Justificou ter comprado cem reais em

drogas porque no local "era muita briga, muita matança" e tinha medo de sair de

noite; por isso, comprou muita droga, pois consome bastante (Doc. 02).

Na sua alegação, a ré foi categórica ao afirmar e demonstrar que é somente usuária de

drogas. E mais: que é extremamente pobre e que possuía a quantidade de droga - que no caso

era 6,07g de crack e que foi considerada como grande quantidade pelo julgador – somente

para garantir seu consumo, mesmo assim restou condenada sem direito à desclassificação para

uso e nem redução de pena (Doc. 02).

O discurso legitimador de saúde pública cai por terra quando se está diante de diversos

usuários de drogas que não possuem tratamento diverso ao de punição. Portanto, a

consideração do indivíduo como traficante é inerente aos estereótipos morais, uma vez que se

formam em considerações do indivíduo e não do fato, evidenciando-se na prática a teoria

etiquetamento.

2.2.3 Condições e frutos do tráfico

Já está claro que não é qualquer tipo de crime e qualquer tipo de pessoa que merecem,

aos olhos do sistema penal, a repressão e responsabilização penal. Na análise empírica, o

terceiro degrau da estrutura punitiva da política de drogas na cidade de Passo Fundo diz

respeito à quantidade, natureza e forma de acondicionamento das substâncias ilícitas. Na

prática, a quantidade de drogas e tipo de drogas apreendidas, variaram bastante nos casos

investigados. Algumas apreensões foram de quantidades ínfimas e em poucos casos a

quantidade ultrapassou 100g. No geral, a quantidade de drogas portada foi em média de 10g.

Mesmo assim, afirmações como “no caso, a quantidade da droga é expressiva. Graves

as consequências, ante a disseminação que a droga vem alcançando no meio social” foram

utilizadas para condenar o réu e também para agravar a reprimenda. Esse trecho, por exemplo,

foi extraído das sentenças 09 e 14, onde as quantidades eram respectivamente 13,8g de crack

e 10,25g de crack (Docs. 09 e 14).

Foram utilizados inclusive termos como “narcotraficantes”, que ainda que possua o

mesmo significado, causa a impressão de um “grande traficante”, quando a quantidade de

drogas era abaixo de 10 gramas. Outro ponto relevante é que além de argumento para

condenação, a quantidade foi utilizada também como “circunstância relevante na fixação da

50

pena-base (art. 42)”, utilizando-se o artigo 42 da Lei 11.343/2006 (doc. 26) onde afirma-se

que:

[...] a quantidade e da natureza da substância objeto do crime na individualização de

pena: distinções baseadas no volume ou natureza da substância comercializada, na

organização ou empreitada solitária do narcotraficante, no reduzido ou considerável

âmbito territorial do tráfico, devem repercutir na valoração jurídica do fato, mas

encontram campo adequado a este sopeso na dosimetria da pena privativa de

liberdade. (Docs. 10, 11, 15)

A natureza da droga e a forma de acondicionamento foram utilizadas como argumento

de prova de tráfico e também para majorar a pena. O acondicionamento da droga foi

mencionado como circunstância caracterizadora de tráfico, sendo que quando fracionada já

estaria destinada à venda. O crack foi um tipo de droga citado nas decisões, embasando a

improcedência de redução de pena e de majoração da pena, sendo definida, portanto, como

substância mais grave e danosa para a sociedade. “Argumentos como a natureza da droga,

qual seja, o crack, mostra-se como um impeditivo para o reconhecimento da minorante, em

face dos resultados gravosos trazidos à sociedade pelo seu uso” (Doc. 14), consolidam o crack

como droga sobressalente às demais.

Quando se trata de maconha, o entendimento é outro: “Nesta senda, considerando que

a droga apreendida foi apenas a substância vulgarmente conhecida como “maconha”, mas

também levando em consideração a grande quantidade em poder do acusado, entendo que é

caso de redução em 1/3 (Doc. 18)”. Mesmo quando apreendida em maior quantidade sua

repressão ainda é mais amena.

Destaque-se que o crack, por ser uma droga barata, é consumida por pessoas de baixa

renda, pessoas pobres. O consumo de cocaína é muito caro, sendo que o estereótipo é o mais

propriamente de consumidor (ANIYAR DE CASTRO, 2005).

O outro ponto de valoração efetiva é o meio social em que o acusado está inserido,

isso porque como se verá adiante, no caso onde uma quantidade maior de cocaína foi

apreendida (12 e 20) se considerou a natureza e não a quantidade para efeito de

desclassificação para uso.

A quantidade e a natureza das drogas apreendidas nos casos de absolvição ou

desclassificação foram 12,25g cocaína (Doc. 12), 38g maconha (Doc. 13), 8,4 crack (Doc.

20), 4,06g maconha (Doc. 23) e 3,61g crack e 12,39g totalizando 16g (Doc. 31).

51

Entretanto, no que tange às condenações, surge uma curiosidade quanto à quantidade

de drogas apreendida e considerada destinada ao tráfico. Isso porque, em alguns casos, a

quantidade de drogas era bem menor que aquelas consideradas como “pequena quantidade”

para fim de absolvição.

Sabe-se que a Lei de Drogas não prevê quantidade taxativa para distinção entre o

crime de porte para consumo com o de tráfico ilícito de drogas. Sendo assim, essa distinção

fica a critério do julgador sem nenhum parâmetro para seguir, tendo que utilizar outros

elementos subjetivos para formar sua decisão, incidindo como visto também nos itens

anteriores, a seletividade. Dentre os fatores até aqui expostos, um elemento bastante utilizado

na fundamentação da caracterização de tráfico é a apreensão de dinheiro em posse do acusado

no momento do fato. O uso dessa premissa foi feito em mais da metade dos casos (em 19

casos). O acusado porte de dinheiro pelos acusados foi interpretado pelos julgadores como

fruto da mercancia de drogas.

Esse pressuposto aparece tanto com a simples menção de que o dinheiro fracionado

em notas de baixo valor é um critério caracterizador de tráfico como:

Com efeito, o conjunto probatório analisado (depoimentos dos policiais militares,

local onde encontrado o réu, quantidade de substância apreendida, juntamente com

dinheiro em notas pequenas) afasta qualquer dúvida de que o acusado tinha em

depósito, para a venda, as substâncias entorpecentes apreendidas, incidindo, por

conseguinte, no delito do art. 33 da Lei nº 11.343/06 (Doc. 36).

Ou, ainda, como objeto de uma suposição que considera a classe social do acusado

como inadmissibilidade de ele portar determinada quantia em dinheiro:

Chama a atenção que a depoente, bem como o próprio acusado, confirmaram que

“AD” estava desempregado, mas recebendo cerca de R$ 700,00 (setecentos reais) de

seguro-desemprego. Todavia, mesmo auferindo essa parca renda mensal, o réu

possuía condições de manter seu vício em maconha, cocaína, além de ter em casa

mais de R$ 1.400,00 (mil e quatrocentos reais) em dinheiro... Além disso, foi

apreendida a quantia de R$ 1.430,20 (mil quatrocentos e trinta reais e vinte

centavos) fracionada em notas de pequeno valor, que demonstram ser originários da

traficância de drogas (Doc. 15)

Intrigante é o fato de que nos casos de desclassificação e absolvição que

disponibilizaram a informação de apreensão de quantia em dinheiro, esse pretexto não foi

utilizado. Isso demonstra um critério de seleção, ao passo que se o acusado pobre ou de baixa

52

renda, como no caso citado, portar uma quantia – que nem precisa ser alta – de dinheiro no

momento do fato, isso é utilizado como meio de prova contra ele – simplesmente porque ele é

pobre e não é típico ter condições de ser dono daquele montante.

Por fim, a última circunstância relevante na argumentação das sentenças é referente

aos objetos considerados oriundos da mercancia e apetrechos para uso e preparação de drogas

ilícitas e ao acondicionamento. Essas circunstâncias foram aplicadas com a mesma lógica da

do dinheiro, servindo para assentar a existência de tráfico de drogas: “Ademais, a forma como

o crack foi encontrado, embalado em pequenas porções, além de duas giletes e uma tábua,

instrumentos utilizados para a separação da droga, demonstram que a substância era utilizada

para a comercialização e não para o consumo pessoal” (Doc. 08) e ainda:

Com efeito, o conjunto probatório analisado (depoimentos dos policiais militares,

quantidade de substância apreendida, juntamente com aparelhos de dvds, celulares,

CD player, aparelho MP4, rádio portátil) afasta qualquer dúvida de que o acusado

tinha em depósito, para a venda, as substâncias entorpecentes apreendidas,

incidindo, por conseguinte, no delito do art. 33 da Lei nº 11.343/06 (Doc. 19)

Quanto ao acondicionamento de drogas: Acrescenta-se que a maconha estava separada

e embalada em plástico filme, o que demonstra o seu destino mercantil e a sua aptidão para o

consumo (Doc. 09).

Com a análise desses critérios usados para apontar a mercancia de drogas com o fim

da caracterização do crime de tráfico, denota-se que qualquer argumento é considerado pelos

julgadores como indício robusto de autoria e materialidade, dispensando-se a necessidade de

produção de provas mais firmes e robustas.

2.2.4 “Dois pesos e duas medidas”: os dois extremos da política de drogas

Aqui cabe correlacionar as absolvições, condenações e desclassificações com os

levantamentos obtidos em relação à quantidade e a natureza das substâncias. Esse cruzamento

de dados se deu da seguinte maneira: foram selecionados dois casos de uma das varas

criminais, denominada (“X”) sendo descartados os casos de apreensão de maior quantidade de

drogas e casos de pequena quantidade onde haviam sido apreendidos apetrechos e objetos

utilizados como argumento de incidência de tráfico. O objetivo foi fazer a relação entre dois

53

casos similares, mas com realidades socioculturais distintas, com o fim de evidenciar se há ou

não distinção efetiva nos julgamentos.

No caso 01, o acusado é primário, seu endereço não foi especificado, mas o local do

fato foi no bairro Petrópolis em uma boate denominada “Lecke Lecke”. No momento do fato,

o acusado foi abordado portando a quantidade de 4,80 g de crack e 2,15g de maconha,

totalizando 6,95g de drogas. Ele aduziu que a droga não era dele, mas sim de outra pessoa,

sendo que só estava guardando-a. Assumiu ser usuário de drogas e que estava com a

quantidade encontrada em troca de ganhar algumas pedras de crack para consumir. O

argumento de condenação foi no sentido de que mesmo o acusado sendo usuário de drogas

não o exime da responsabilidade, sendo que o tráfico foi efetivado com a posse. Segue a

fundamentação quanto à autoria e à imputação de tráfico:

AA, que silenciou em sede policial (fl. 19), reconheceu, em juízo, a precisão das

imputações, admitindo que vendia drogas no local, com argumentos que muito se

assemelham ao dos milicianos, inclusive em relação a detalhe importante, qual seja,

ao fato de que as drogas apreendidas pertenciam, na realidade, a X. Apesar dos

entorpecentes serem de outrem, a responsabilidade penal do acusado não é afastada,

uma vez que era quem levava a efeito o comércio ilegal, pouco importando, assim, a

propriedade das substâncias encontradas. Certo é, porém, que esta particularidade

colaborará, em comunhão com outros fatores, para que a pena sofra certa minoração,

à luz do parágrafo quarto do artigo 33 da Lei de Drogas. O fato do acusado ser

usuário de drogas em nada desconfigura o exercício do tráfico ilícito de substância

entorpecente, mesmo não sendo o real proprietário das porções de drogas

encontradas. Corriqueiro que o dependente químico pratique o comércio para

sustentar o próprio vício, tratando-se, portanto, de condutas harmonizáveis. (Doc.

01)

O depoimento do policial que efetuou a prisão do acusado corroborou com a versão

dele no sentido de que as drogas não eram dele. O agente afirmou, inclusive, que essa terceira

pessoa possivelmente se aproveitasse dos viciados e dependentes químicos para "despachar

droga", o que vai ao encontro daquilo que o acusado alegou, ou seja, de que “X” dava

pequena quantidade de entorpecentes ilícitos ou cerveja aos usuários, desde que estes

vendessem as suas drogas e assumissem a propriedade delas, em caso de abordagem policial.

Além disso, o policial afirmou que conhecia o acusado e, como ele era morador de rua,

não teria dinheiro para portar "tantas drogas", e que ouviu ele falar que os entorpecentes eram

de outrem e que ganhava apenas duas ou três "pedras" e/ou uma cerveja para cuidar e vender

a droga. Disse que o acusado era morador de rua e cuidava de carros, bem como também era

54

dependente químico, acrescentando que, quando ele é abordado, geralmente alguma coisa é

encontrada na posse dele, mas que, no dia do fato, o acusado alegou que a droga não era sua.

A defesa, por seu turno, alegou em favor do acusado que ele praticou o ato para a

manutenção de seu vício, concluindo que o fato não atingiu a tipicidade material exigida pela

norma penal incriminadora. Subsidiariamente, em caso de condenação, pleiteou a aplicação

de pena mínima e a redução "prevista no artigo em comento, em seu grau máximo",

possibilitando a aplicação de pena restritiva de direito.

As teses da defesa foram completamente rechaçadas pelo julgador. Quanto à

desclassificação do delito e quanto à tipicidade material, afastou as hipóteses, afirmando a

existência de provas firmes que elucidam tanto a materialidade quanto a autoria do delito,

dizendo que o legislador determina que elementos tais como a natureza e a quantidade de

substância apreendida devam ser considerados pelo juiz para fins de verificar a configuração

ou não do tráfico. Afirmou que no caso dos autos, esses dados tornaram-se fundamentais para

a caracterização do crime mais grave, pois se trata de apreensão de 4,80 gramas de "crack",

fracionados em dezoito pedras, e de 2,25 gramas de "maconha", embalada em plástico branco

(fl. 10). Acrescentou finalmente, que essa circunstância, somada à prova oral produzida e à

confissão espontânea do réu, é suficiente para a tipificação do fato ao crime capitulado no

artigo 33 da Lei nº 11.343/06 (Doc. 01).

Note-se que a quantidade e a natureza foram utilizadas como argumento fundamental

para condenação, mas um ponto intrigante é no que tange à prova oral produzida e à suposta

confissão do acusado. Isso porque, conforme a prova oral baseada na palavra dos policiais que

efetuaram a prisão do acusado, este é usuário de drogas, conhecido pelos policiais por outras

abordagens de posse de drogas. Além disso, o acusado, em audiência, não confessou a prática

de tráfico, mas sim o porte das drogas e a sua dependência química dessas substâncias.

O réu foi condenado pelo crime de tráfico de drogas e, após uma longa fundamentação

e posicionamento contrário à aplicação da minorante de tráfico privilegiado, considerando-a

inclusive inconstitucional, entendeu por aplicá-la. Esse elemento foi contraditório, sendo que

ante a leitura de todas as teses utilizadas pelo julgador para rechaçar tal instituto, sua

aplicação foi no mínimo surpreendente. A pena definitiva foi de 02 anos e 06 meses de

reclusão com regime de cumprimento inicial fechado. Mesmo o acusado cumprindo os

requisitos para a conversão de pena de prisão em restritiva de direitos, o privilégio foi

indeferido com base no argumento de hediondez do tipo penal.

55

Nesse caso não foram realizadas investigações prévias, campanas ou coleta de provas

de mercancia, mas sim, pautou-se na abordagem e revista do acusado com a consequente

posse das substâncias.

Em contrapartida, no caso 12, não estava disponível a informação se o acusado é

primário ou reincidente, mas em interrogatório afirmou já ter passagem por roubo. A

residência do réu localiza-se no Centro de Passo Fundo. Conforme a denúncia, a Polícia Civil

recebeu informações de que o acusado traficava drogas com o auxílio de um adolescente que

estaria guardando armas de fogo em sua residência, as quais utilizava para tirar fotos e postar

no facebook. Após auferirem a veracidade das imagens mencionadas houve expedição de

mandado de busca e apreensão na residência do acusado. No local, policiais civis localizaram

6.5g de cocaína, sendo que conforme a denúncia, a droga estava acondicionada em plásticos,

embaladas em forma de buchas, prontas para a comercialização. Junto com a referida droga

também foram localizados manuscritos e celulares considerados relacionados à venda de

drogas.

Ao ser interrogado, “AD” confirmou que a droga estava na sua residência, porém,

disse que as acusações não eram verdadeiras. Informou que trabalha como segurança,

inclusive já prestou serviço no Ministério Público. Disse ser usuário de cocaína desde os 12

anos de idade e trabalhar de carteira assinada. Explicou que costumava comprar cinco, seis,

sete buchas de cocaína para consumir durante a noite. Informou que pelo fato de trabalhar

durante a noite andava armado, mas esclareceu que as postagens no facebook referiam-se a

balas de revólver e não drogas sintéticas, sendo que só postou as imagens para proteger sua

família. Ratificou que nunca foi traficante, mas sim viciado em cocaína. Explicou que o

objeto que aparece na foto com duas crianças era uma lanterna que ganhou de uns amigos

policiais, mas confirmou que havia fotos do revólver que utilizava para trabalhar. Esclareceu

que sempre comprava boa quantidade de droga, a qual era utilizada durante a semana.

Ratificou que à conversa do facebook sobre as "123 balinhas", eram balas de revólver, e que

teria se expressado mal, pois não se referiam a drogas sintéticas. Disse que tem uma

condenação por roubo, o qual se envolveu quando era muito novo. Continuou, afirmando que:

[...] em virtude dos efeitos da droga, "viajava" na internet. Explicou que o papel

encontrado pela polícia não estava com a droga, mas no seu bolso, e que a cocaína

apreendida não estava escondida, pois quando os agentes públicos chegaram estava

fazendo uso da substância. Mencionou que conhecia vários policiais e que vários

deles também são usuários. Informou acreditar que seu nome foi indicado como

traficante em razão de ser usuário confesso. Ao Ministério Público falou que os

56

nomes e valores descritos no papel eram de colegas que lhe deviam dinheiro que

havia emprestado. Disse que cheirava seis/ sete buchas por semana e que pagava

cerca de R$ 30,00 (trinta reais), R$ 40,00 (quarenta reais), até R$ 50,00 (cinquenta

reais) por bucha. Explicou que ganhava fixo um salário mínimo, mas também

trabalhava com bicos. À Defesa informou que uma vez fumou maconha com seu

sobrinho, mas que nunca forneceu droga a ele (Doc. 12).

Os policiais que cumpriram o mandado de busca ratificaram os termos da denúncia,

sendo que um deles acrescentou somente que no momento do ingresso o acusado confirmou

que vendia a droga, mas que sua namorada não tinha conhecimento disso. Informou que já

teriam recebido denúncia anônima de que “AD” estaria traficando cocaína e drogas sintéticas,

mas como ainda não tinham feito nenhum pedido, foram deslocados para auxiliar a Delegacia

de Proteção à Criança e ao Adolescente.

O acusado foi absolvido das acusações, sendo que a decisão foi fundamentada com os

seguintes argumentos:

Embora os policiais civis tenham relatado sobre a existência de denúncias anônimas

as quais atestavam que “AD” estaria praticando o tráfico de drogas, e o perfil do

facebook do acusado justificadamente atrair os olhares da polícia quanto à

possibilidade de estar cometendo infrações penais, não houve a comprovação de

outros elementos capazes de confirmar o fato denunciado. De inopino, verifica-se

que não houve qualquer investigação prévia atestando a prática do comércio ilícito

de entorpecentes pelo acusado. Para embasar um decreto condenatório, necessária a

existência de outras diligências que trouxessem maior respaldo probatório, seja por

campanas, abordagem de usuários, interceptação telefônica, relatório de

movimentação no local, dentre outras possíveis e ao alcance da polícia. Sabe-se que

as declarações dos policiais gozam fé pública. No entanto, entendo que devem vir

corroboradas por outros elementos probatórios, o que não se verificou no caso

telado. Os policiais civis ouvidos em juízo apenas foram os responsáveis pela

apreensão da droga no interior da residência. No que tange à droga apreendida, tem-

se que, pelo interrogatório do acusado e pelas afirmações das testemunhas “AC” era

usuário confesso de cocaína, não sendo possível caracterizar o tráfico de

entorpecentes (Doc. 12).

É gritante a diferença de tratamento entre os casos expostos. Nesse caso, o réu estava

sendo acusado de tráfico de drogas com diversos meios de provas trazidos aos autos. Fotos e

postagens no facebook que demonstravam a autoria do delito sendo, que havia imagens dele e

de familiares com arma de fogo e publicações mencionando que tinha “balas para adoçar”. O

juiz fundamentou sua decisão em inexistência de materialidade e autoria, inexistência de

prova robusta a corroborar a palavra dos policiais e, ainda, a tese de que o acusado possuía a

droga para fins de consumo, ignorando as demais provas do processo.

57

Sendo assim, os depoimentos policiais que assentaram a autoria na pessoa do réu

também foram rechaçados pelo juiz, o mesmo que tanto condenou com base somente nesse

meio de prova. E, pior, condenou como no caso comparado (01) um indivíduo extremamente

pobre, uma vez que é morador de rua, dependente químico, cujas testemunhas de acusação

não corroboraram com a versão da incidência de tráfico, mas sim de uso de drogas, sendo

inclusive conhecido dos policiais como antigo usuário.

Como analisado, as principais circunstâncias definidoras de quem será considerado

usuário e quem será considerado traficante estão diretamente relacionadas às características

intrínsecas ao indivíduo, considerando a classe social, tipo e quantidade da droga de forma

subsidiária e pautando-se em estereótipos. Quando se diz que “La ley es como la serpiente

solo pica a los descalzos” é afirmar que ela só atinge indivíduos vulneráveis à sua aplicação.

Uma vez que o sistema penal é direcionado e aplicado nos extratos sociais mais pobres,

evidencia na prática a teoria do etiquetamento, onde é feita a seleção de indivíduos passíveis

de intervenção penal.

58

CONCLUSÃO

Com o desenvolvimento desta pesquisa foi possível inteirar-se, através do estudo crítico,

como se dá a atuação do sistema penal no combate às drogas. Para isso, foi necessário

desenvolver pesquisa teórica sobre a política de drogas e os motivos de sua existência. O

sistema penal e sua operacionalização foram desenvolvidos nessa pesquisa pelo viés da

criminologia crítica com as teorias que a compõem.

A pesquisa bibliográfica permitiu contato com os mais importantes temas envoltos ao

assunto. A definição do sistema penal e seu funcionamento pelo discurso de defesa social em

contrapartida às suas funções reais de controle social. As agências de controle penal e sua

operacionalização regada de estereótipos e preconceitos que recaem sobre a população

desprivilegiada.

O estudo consistiu também no resgate histórico do tema das drogas e os efeitos que a

repressão penal gera na sociedade.

Além da pesquisa teórica, houve a necessidade e possibilidade de vislumbrar a política de

drogas sendo colocada em prática pelo sistema penal, principalmente através da agência

judicial. Isso foi possível através de estudo de campo realizado na cidade de Passo Fundo

tendo como objeto todas as sentenças do ano de 2014 relacionadas à posse de drogas.

Essa análise empírica foi o caminho que levou à obtenção de respostas e resultados

práticos do assunto relacionando-os com a teoria e as hipóteses levantadas no seu início. A

análise do discurso legitimador do julgador na prolação das sentenças estudadas foi

fundamental para o alcance dos objetivos do trabalho.

Sendo assim, foi possível concluir que a distinção entre usuários e traficantes de drogas é

realizada de forma arbitraria e discricionária. As lacunas existentes nos tipos penais dos

artigos 28 e 33 da Lei 11.343/2006, uma vez que abrangem diversos tipos de condutas,

permitem ao julgador enquadrar os indivíduos tanto na figura de usuário quanto na de

traficante, denunciando as consequências da ausência de taxatividade. Os critérios para essa

distinção são baseados em características do indivíduo, sendo diretamente influenciados pelo

meio e modo que vivem. E mais: os aspectos intrínsecos ao indivíduo e sua realidade social se

sobressaem em relação aos elementos objetivos.

O trabalho foi de suma importância para conhecimento acerca do assunto e do que há por

detrás dessa política proibicionista. Também para entender que suas funções declaradas

59

disseminadas através do discurso de tutela à saúde e à segurança não correspondem com a real

função do proibicionismo.

Há de fato uma contribuição científica da pesquisa uma vez que possibilita evidenciar

empiricamente como é o tratamento da questão das drogas na cidade de Passo Fundo,

deixando desde já o desejo do prosseguimento da pesquisa com a expansão dos campos

estudados.

60

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62

APÊNDICE 01

PROCESSO DOC. DEFESA INICIO

PROCESSO

DATA DA

PUBLICAÇÃO

DA

SENTENÇA

021/2.14.0001346-0 1 ADVOGADO 14/02/2014 04/06/2014

021/2.13.0007968 -0 2 DEFENSORIA 08/08/2013 27/01/2014

021/2.14.0006468-5 3 ADVOGADO 15/07/2014 27/10/2014

021/2.13.0009394-2 4 DEFENSORIA 16/09/2013 02/06/2014

021/2.14.0004391-2 5 ADVOGADO 09/05/2014 27/08/2014

021/2.13.0005468-8 6 DEFENSORIA 07/06/2013 02/06/2014

SEM NÚMERO 7

021/2.12.0003442-1 8 ADVOGADO 30/04/2012 15/07/2015

021/2.14.0002115 -3 9 ADVOGADO 07/03/2014 10/10/2014

021/2.10.0003150 -0 10 DEFENSORIA 04/05/2010 13/01/2014

021/2.12.0004654 -3 11 DEFENSORIA 30/05/2012 04/02/2014

21/2.14.0005116 -8 12 DEFENSORIA 02/06/2014 24/09/2014

021/2.13.0008424 -2 13 DEFENSORIA 26/08/2013 29/01/2014

021/2.13.0008945 -7 14 DEFENSORIA 05/09/2014 13/01/2014

021/2.13.0010891 -5 15 DEFENSORIA/ADVOGADO 28/10/2013 11/06/2014

021/2.11.0005572-9 16 ADVOGADO 06/06/2011 28/10/2014

021/2.14.0002128-5 17 ADVOGADO 10/03/2014 17/10/2014

021/2.13.0002537-8 18 DEFENSORIA 26/03/2013 06/11/2014

021/2.13.0013149-6 19 DEFENSORIA 18/12/2013 19/11/2014

021/2.11.0010593-9 20 DEFENSORIA/ADVOGADO 20/10/2011 24/10/2014

021/2.11.0010385-5 21 DEFENSORIA 13/10/2011 21/10/2014

021/2.13.0003135-1 22 DEFENSORIA 11/04/2013 17/04/2014

021/2.13.0009685-2 23 DEFENSORIA 24/09/2013 07/05/2014

021/2.13.0009057-9 24 DEFENSORIA 09/09/2013 21/05/2014

021/2.13.0008285-1 25 DEFENSORIA 19/08/2013 23/05/2014

021/2.13.0005759-8 26 DEFENSORIA/ADVOGADO 14/06/2013 11/06/2014

021/2.13.0008154-5 27 DEFENSORIA 14/08/2013 17/06/2014

021/2.14.0002116 -1 28 DEFENSORIA 07/03/2014 10/07/2014

021/2.13.0006978-2 29 DEFENSORIA/ADVOGADO 16/07/2013 07/08/2014

021/2.13.0001823-1 30 DEFENSORIA/ADVOGADO 07/03/2013 15/09/2014

021/2.10.0006862-4 31 DEFENSORIA/ADVOGADO 13/08/2010 15/07/2014

021/2.13.0005760-1 32 ADVOGADO 14/06/2013 16/04/2014

021/2.13.0001013-3 33 ADVOGADO 13/02/2013 05/03/2014

021/2.14.0002128-5 34 ADVOGADO 10/03/2014 17/10/2014

021/2.12.0004122-3 35 ADVOGADO 17/05/2012 04/01/2013

021/2.13.0006849-2 36 ADVOGADO 10/07/2013 04/12/2014

021/2.13.0012866-5 37 ADVOGADO 11/12/2013 06/06/2014