narrativas de uma pesquisa bordadas em tapetes: … · pensamento abissal 3 que nega e excluiu...

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NARRATIVAS DE UMA PESQUISA BORDADAS EM TAPETES: CRONOTOPOS, A RELAÇÃO ESPAÇOTEMPO Sonia Regina dos Santos – UERJ/RJ AG. Financiadora – FAPERJ “Vazo meu discurso sobre elementos de liberdade e escravidão. Se me foi possível tecer tapetes, ao menos que me seja facultada esta outra urdidura, de fios semivisíveis, fornecidos em códigos por vezes inescrutáveis e, se possível, que eu chegue ao bordado da fala, supremo requinte de quem maneja agulhas de enredar e prender”. (Nilma Gonçalves Lacerda). A epígrafe acima foi retirada do livro Manual de Tapeçarias e, é de certa forma uma pista dos resultados de uma pesquisa que realizei e busquei, compreender quais eram as concepções de negritude/afrobrasilidade de um grupo. Trata-se de uma turma de jovens e crianças que na época integravam o Coral Vozes do Amanhã do CIEP Santos Dumont, localizado na cidade de Petrópolis, Região Serrana do Estado do Rio de Janeiro. No decorrer do ano de 2008, eu tive a oportunidade de conhecer o professor- regente e a turma de estudantes durante um encontro promovido pelo Grupo de Pesquisa: Narrativas e memórias e atualizações identitárias em contextos educativos, para a realização de uma oficina do corpo com dois artistas plásticos, no Palácio de Cristal e logo após, uma visita ao Centro Cultural Raul de Leoni, onde acontecia a exposição de quadros de um dos artistas. Enquanto os estudantes esperavam para o início da oficina, eles cantarolavam algumas das músicas que fazem parte do repertório do coral. Eu comecei a prestar atenção nas letras das músicas e percebi que a maioria das letras valorizava a história e cultura dos povos africanos e afro-brasileiros. Algumas indagações inquietaram-me na época: como esses estudantes definem o que é ser um sujeito negro ou branco? Como as relações raciais se estabelecem nestes contextos? Como esses sujeitos se apropriam do espaçotempo escolar e como interagem entre si e com outros atores que circulam na escola? A valorização da história e da cultura dos povos negros estaria também presente em outros espaçostempos ou apenas acontece nas ações do coral?

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NARRATIVAS DE UMA PESQUISA BORDADAS EM TAPETES: CRONOTOPOS, A RELAÇÃO ESPAÇOTEMPO

Sonia Regina dos Santos – UERJ/RJ AG. Financiadora – FAPERJ

“Vazo meu discurso sobre elementos de liberdade e escravidão. Se me foi possível tecer tapetes, ao menos que me seja facultada esta outra urdidura, de fios semivisíveis, fornecidos em códigos por vezes inescrutáveis e, se possível, que eu chegue ao bordado da fala, supremo requinte de quem maneja agulhas de enredar e prender”. (Nilma Gonçalves Lacerda).

A epígrafe acima foi retirada do livro Manual de Tapeçarias e, é de certa forma

uma pista dos resultados de uma pesquisa que realizei e busquei, compreender quais

eram as concepções de negritude/afrobrasilidade de um grupo. Trata-se de uma turma

de jovens e crianças que na época integravam o Coral Vozes do Amanhã do CIEP

Santos Dumont, localizado na cidade de Petrópolis, Região Serrana do Estado do Rio de

Janeiro.

No decorrer do ano de 2008, eu tive a oportunidade de conhecer o professor-

regente e a turma de estudantes durante um encontro promovido pelo Grupo de

Pesquisa: Narrativas e memórias e atualizações identitárias em contextos educativos,

para a realização de uma oficina do corpo com dois artistas plásticos, no Palácio de

Cristal e logo após, uma visita ao Centro Cultural Raul de Leoni, onde acontecia a

exposição de quadros de um dos artistas.

Enquanto os estudantes esperavam para o início da oficina, eles cantarolavam

algumas das músicas que fazem parte do repertório do coral. Eu comecei a prestar

atenção nas letras das músicas e percebi que a maioria das letras valorizava a história e

cultura dos povos africanos e afro-brasileiros.

Algumas indagações inquietaram-me na época: como esses estudantes definem o

que é ser um sujeito negro ou branco? Como as relações raciais se estabelecem nestes

contextos? Como esses sujeitos se apropriam do espaçotempo escolar e como

interagem entre si e com outros atores que circulam na escola? A valorização da história

e da cultura dos povos negros estaria também presente em outros espaçostempos ou

apenas acontece nas ações do coral?

Em busca de respostas para as minhas indagações, me inseri na escola daquela

turma de estudantes, como professora voluntária de Literatura Afro-brasileira e de

artesania de bordar tapetes.

De acordo com JESUS(2009), “a escola é o ponto de encontro e embate das

diferenças étnicas, podendo ser instrumento eficaz para diminuir e prevenir o processo

de exclusão social e incorporação do preconceito pelas crianças”1

Busquei estar na escola desses sujeitos em questão. Uma vez inserida naquele

espaço, pude observá-los nos seus movimentos, nas suas falas, nas interações uns com

outros no cotidiano escolar e desenvolver a minha pesquisa em educação.

Para saber como se davam as práticas e possíveis ocorrências na escola,

considerei suas complexidades, contradições, rupturas e permanências dos padrões no

cotidiano do grupo do coral formado por crianças e jovens, cujas idades variavam

entre oito e Dezesseis anos e cursavam o Ensino Fundamental. Então, elaborei um

projeto de pesquisa intervenção, com o objetivo deprovocá-los, a narrarem suas

histórias, memórias e experiências vividas dentro e fora da escola.

Benjamin (1996),nos alerta que todo ser humano precisa narrar para estabelecer

comunicação com os outros, ou seja, socializar-se para não se transformar numa pessoa

pobre de experiência comunicável. O autor quando nos traz essa questão, na verdade

faz referências sobre as narrativas para exemplificar a “Pobreza da Experiência” dos

combatentes da Guerra Mundial. Esses sujeitos retornavam praticamente mudos do

campo de batalha. E, se algo era narrado ou difundido nos livros, nos jornais ou em

outros meios de comunicação, o contexto do qual faziam alusão era o da Grande

Guerra.

Do ponto de vista de Walter Benjamin, as narrativas dos combates nada tinham

em comum com as experiências de cada sujeito. O que cada um tinha em si de si

mesmo, para o autor, eram experiências que se tornavam ricas quando transmitidas de

boca em boca. Vejamos:

A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos. Entre estes, existem dois grupos, que se interpenetram de múltiplas maneiras. A figura do narrador só se torna plenamente tangível se temos presentes dois grupos. “Quem viaja tem muito que contar”, diz o povo, e com isso imagina

1JESUS, Elisângela Maria de. ESCOLA: ESPAÇO PARA A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DA CRIANÇA disponível em: http://africanidadesaraucaria.blogspot.com/2009_09_01_archive.html. Consultado em 08/08/2010.

como alguém que vem de longe. Mas também escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece suas histórias e tradições. (p, 198). .

A partir das minhas leituras de Walter Benjamin, pude perceber os estudantes

do Coral Vozes do Amanhã, não como os grupos salientados pelo autor mas, como

um terceiro grupo ou seja, narradores com experiências de guerras constantes de

sobrevivência, de luta pela vida na comunidade onde moram e estudam. Narradores

que experienciam tensões e conflitos no/do cotidiano como muitos daqueles que estão

inseridos em comunidades periféricas. E, em maioria sãosujeitos que sentem/sentiram

na própria pele , o preconceito, a discriminação e o racismo.

Literatura e experiências narráveis

O ato de narrar experiências, sentimentos, fatos ocorridos nos possibilita o

encontro com “o outro”. Desta forma pensei as narrativas desse grupo de estudantes

como produção de conhecimento e possibilidade de reconhecimento da alteridade.

No decorrer do desenvolvimento do meu projeto de pesquisa intervenção com o

grupo, a Literatura Afro-Brasileira Infanto-Juvenil serviu-me de suporte para

problematizar questões relativas ao silenciamento e apagamento das narrativas das

populações negras que perduraram e ainda perduram na nossa sociedadedurante

séculos.

Enquanto, o projeto esteveem prática, busquei de alguma forma conscientizar os

estudantes a terem olhares e escutas atentas para se desviarem das armadilhas do

“perigo de uma única história - Adichie (2010),”2relacionadas principalmente as que

encontramos nos nossos caminhos e se debruçam sobre a temática das populações

negrasque,ainda aparecem resumidas nos livros didáticos e abordadas dentro do

contexto da escravidão.

A Literatura Afro-brasileira Infanto-Juvenil compartilhada na sala de aula com

aquele grupo de jovens e crianças, também foi uma forma de conscientizá-los de que o

povo afro-brasileiro é possuidor de outras histórias, fora daquelas contadas pela

sociedade dominante que sempre se estruturou nos padrões eurocêntricosdevido ao

2ADICHIE, Chimamanda. “O perigo de uma única história”. Disponível em:http://www.osurbanitas.org/osurbanitas9/Chimamanda_Adichie.pdf

pensamento abissal3 que nega e excluiu saberes, histórias e culturas porque os

considera do Outro.

Como educadora, pensei/penso a educação com a finalidade de socializar

pessoas e aescola é compreendida como o principal espaço da formação humana. Mas,

a escola,esse espaço tem necessidade de ações para uma releitura das próprias

teoriaspedagógicas e das políticas públicas para o ensino-aprendizagem dos estudantes e

promoção do que Santos(2008, p.27) chama de“expansão do domínio das experiências

sociais já disponíveis”: os saberes populares, as populações negras, as mulheres etc,

revertem o imaginário de subalternidade, ausência, vitimização porque também são

produtores de arte, tecnologia, de conhecimento.

Interessada em ter a turma do Coral Vozes do Amanhã como sujeito da minha

pesquisa, elaborei meu projeto que pudesse ajudá-los a reconfigurar suas identidades e

não terem no seu dia a dia, suas histórias negadas e silenciadas com suas vivências,

experiências que certamente também eram carregadas de sentidos. Além, de pensar a

necessidade de provocar a emergência de narrativas e para ter escuta atenta para o dito

e percepção para o não dito pelos componentes do coral.

A metodologia por mim utilizada para o desenvolvimento do projeto consistiu

em fazer uso de textos literários afro-brasileiros de infanto-juvenil e o incentivo à

artesania como forma de registrar o que estavasendo narrado pelos textos e, as possíveis

narrativas produzidas pelos estudantes. Uma provocação para saber o que, eles teriam a

dizer na sala de aula. Que me possibilitasse dialogar com alguns teóricos das ciências

humanas.

O projeto foi colocado em prática com a preocupação de elaborar algo que

pudesse dar consistência a minha pesquisa. Algo que trouxesse de forma narrada a

realidade daqueles sujeitos.A minha experiência como artesã me ajudou dar seguimento

ao processo.

Certeau (1994) nos ensina que: “O caminhar de uma análise inscreve seus

passos, regulares ou ziguezagueantes, em cima de um terreno habitado há muito

tempo”. Portanto, era preciso sair da incerteza para “o começar”; encontrar o fio certo,

3Santos (2010): Nos chama atenção para o pensamento ocidental moderno que consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis, sendo que estas últimas fundamentam as primeiras. Trata-se de um pensamento abissal. Pois, as distinções invisíveis são estabelecidas por meio de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o "deste lado da linha" e o "do outro lado da linha". E, nega a coopresença do outro lado da linha: “cada saber só existe dentro de uma pluralidade de saberes, nenhum deles pode compreender-se a si próprio sem se referir aos outros saberes”.

tecer bem a trama, atar os nós para ter escuta para as narrativas daquela turma de jovens

e crianças, com seus saberes, suas histórias, suas memórias e experiências de vida.

Foram muitos meses de provocações a partir do compartilhamento dos textos e a

artesania de bordados. As narrativas literárias produzidas por autores contemporâneos

como: Conceição Evaristo, Gercilga de Almeida, Geni Guimarães Sonia Rosa e outros

que se debruçam sobre a temática das populações afro-brasileiras me auxiliaram nesta

empreitada.

Penso que é essa literatura dos nossos autores afro-brasileiros que traz novos

elementos que resignificam as Histórias e Culturas dos sujeitos negros e os colocam

como protagonistas de suas histórias; rompe com os padrões eurocêntricos de

representação das populações negras destacados na arte literária clássica, e possibilita

aos leitores a tomada de conhecimentos de assuntos antes invisíveis para muitos. Pois,

por muitos séculos foram silenciados, apagados ou abordados de modo perverso na

História Oficial do nosso país.

O primeiro texto que compartilhei com os estudantes, foi o conto Metamorfose

da obra A Cor da Ternura de Geni Mariano Guimarães, por considerá-lo bastante

relevante e indo ao encontro das questões que eu pretendia abordar junto com os

estudantes e acreditava não se diferenciar em muito da vida real daqueles sujeitos.

Trata-se um texto narrativo, onde é possível observar a riqueza do ouvir e contar

histórias da própria escritora. Geni Mariano Guimarães ficcionou o cotidiano de suas

experiências de vida até se tornar professora por causa da promessa que havia feito a

seu pai para livrá-lo das durezas da vida, do trabalho duro na lavoura e fazer com que

ele, dela se orgulhasse por ter uma filha professora.

A artesania como provocação de narrativas orais e escritas

Uma vez por semana durante os anos de 2008 a 2009, o meu projeto de pesquisa

intervenção esteve em prática com a turma do Coral Vozes do Amanhã e, através do

compartilhamento de textos e a artesania que se fez com agulhas, muitos fios e

pequenos pedaços de tecidos, memórias e narrativas, posso dizer que tive êxito com a

pesquisa.

Coral Vozes do Amanhã

Não demorou muito

narrarem suas ações cotidianas, suas histórias, experiências

dentro e fora do espaço escolar.

O projeto foi uma “arte de fazer” (CERTEAU

forma positiva deu resultados no decorrer das oficinas. Neste sentido,

(1992):

Na realidade, não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveisou desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida. (p, 95).

Em algumas narrativas

do locutor dirigidas ao interlocutor.

tinham um destinatário, um auditório social (

textuais no decorrer das oficinas

4Bakthin (2004) , teoriza a noção de “destinatário”, já que a palavra de alguém sempre se dirige a um “outro” mesmo que este seja imaginário e menciona que toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e doum em relação ao outro. Através da palavra, definorelação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se sobre mim numa extremidade, na outra do locutor e do interlocutor. (p, 113).

Coral Vozes do Amanhã – Apresentação para A TV Escola em 2009

Não demorou muito tempo para que, os estudantes sentirem-se

idianas, suas histórias, experiências, seus saberes e fazeres

dentro e fora do espaço escolar.

ma “arte de fazer” (CERTEAU 2008), por mim enc

forma positiva deu resultados no decorrer das oficinas. Neste sentido, recorro a

Na realidade, não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveisou desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas

u concernentes à vida. (p, 95).

Em algumas narrativas, pude perceber a relação dialógica das palavras escritas

ao interlocutor. Pois aquelas produções, ora orais, ora escritas

um destinatário, um auditório social (eu, a professora que lhes pedia produções

textuais no decorrer das oficinas)4.

Bakthin (2004) , teoriza a noção de “destinatário”, já que a palavra de alguém sempre se dirige a um outro” mesmo que este seja imaginário e menciona que toda palavra comporta duas faces. Ela é

determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, Isto é, em última análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se

bre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor. (p, 113).

Apresentação para A TV Escola em 2009

e à vontade para

, seus saberes e fazeres

2008), por mim encontrada e de

recorro a Bakthin

Na realidade, não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas

a relação dialógica das palavras escritas

Pois aquelas produções, ora orais, ora escritas

eu, a professora que lhes pedia produções

Bakthin (2004) , teoriza a noção de “destinatário”, já que a palavra de alguém sempre se dirige a um outro” mesmo que este seja imaginário e menciona que toda palavra comporta duas faces. Ela é

determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela ouvinte. Toda palavra serve de expressão a

me em relação ao outro, Isto é, em última análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apoia

sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum

Sobre vozes, escutas e bordados

As narrativas escritas foram bem significativas para a minha pesquisa. Porém,

foram as orais que mais revelaram o cotidiano escolar e um pouco da comunidade

periférica dos estudantes. De forma, que busquei refletir sobre o Benjamin (1996),

salienta:

A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio artesão – no campo, no mar e na cidade -, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. (p. 205).

Então, pensei nas narrativas, num certo sentido, como uma forma artesanal de

comunicação com a qual o grupo de estudantes intercambiou comigo suas experiências.

Foi um modo de puxar os fios, tecer diálogos para que as narrativas florescessem e com

as linhas de seus bordados (no sentido benjaminiano), imprimiram suas marcas –os

estudantes puderam ter que puderam ter voz.

Fios ideológicos tecendo textos e tapetes

A necessidade de narrar tem a ver com o fato de sermos sujeitos de linguagem,

pela linguagem, na linguagem. Através da linguagem transmitimos e adquirimos

cultura. Sem linguagem não se estabelecem as relações sociais. Como nós, sujeitos, ela,

a linguagem está sempre em movimento, inacabada. 5

À medida que o tempo foi passando, a turma do coral, já habituada com os

encontros semanais, sentiu-se mais a vontade para narrar fatos de sua vida pessoal.

Alguns alunos falavam também de situações que experienciaram na escola junto aos

colegas e também com professores.

Nessas trocas entre o Eu e o Outro, o Outro e o Eu, pude perceber a categoria

alteridade conceituada por Bakthin (1990), a partir dos textos literários escritos. Para o

autor, quando escrevemos, temos no horizonte um interlocutor, dizemos a ele o que

5Bakthin (2004) : Toda essência da apreensão apreciativa da enunciação de outrem, tudo o que pode ser ideologicamente significativo tem sua expressão no discurso interior. Aquele que apreende a enunciação de outrem não é um ser mudo privado da palavra, mas ao contrário um ser cheio de palavras interiores. Toda a sua atividade mental, o que se pode chamar o “fundo perceptivo”, é mediatizado para ele pelo discurso interior e é por aí que se opera a junção com o discurso apreendido do exterior. A palavra vai à palavra. (p, 147).

construímos e o Outro entende e pode fazer outra construção em cima do que foi escrito

e nos retorna.

Três tapetes foram bordados no decorrer das oficinas. O primeiro deles recebeu

o título de “Palmares”, influenciado pelo texto

época da Semana da Consciência Negra em 2008.

O segundo tapete foi uma reprodução do texto literário

Angola, cuja narrativa está voltada para a história de uma menina negra que

muito infeliz, sem amigos, por causa da cor de sua pele.

que sempre lhe contava as histórias de seu povo e

África.

construímos e o Outro entende e pode fazer outra construção em cima do que foi escrito

rês tapetes foram bordados no decorrer das oficinas. O primeiro deles recebeu

influenciado pelo texto Zumbi, que com eles compartilhei na

época da Semana da Consciência Negra em 2008.

O Tapete Palmares

O segundo tapete foi uma reprodução do texto literário Bruna e a Galinha d’

Angola, cuja narrativa está voltada para a história de uma menina negra que

infeliz, sem amigos, por causa da cor de sua pele. Bruna tinha uma avó

ontava as histórias de seu povo e do panô da galinha que

O Tapete Bruna e a Galinha d’Angola

construímos e o Outro entende e pode fazer outra construção em cima do que foi escrito

rês tapetes foram bordados no decorrer das oficinas. O primeiro deles recebeu

Zumbi, que com eles compartilhei na

Bruna e a Galinha d’

Angola, cuja narrativa está voltada para a história de uma menina negra que sentia-se

tinha uma avó africana

do panô da galinha quetrouxera da

Trata-se de uma narrativa bastante rica, com elementosque dão possibilidades de

interpretação e reinterpretação na sala de aula. Um exercício da memória do que é

oriundo da África. Além, de todo um contexto do sujeito afro-brasileiro enfrentando

problemas por causa do seu pertencimento, sua identidade e que na maioria das vezes

se vê obrigado negociar a sua inserção na sociedade e, o que parecia sem sentido para

muitos, se transforma.

A emergência de experiências narráveis.

O terceiro tapete foi bordado a partir de uma proposta que apresentei aos

estudantes. Sugeri que bordassem um tapete, a partir de uma história que deveria ser por

eles escrita. A turma foi dividida em três grupos e, cada grupo com uma tarefa

específica. Um grupo faria o início do texto, outro grupo o meio e o terceiro faria o

final desde que tivessem o cuidado para dar coerência, de modo que os outros

pudessem dar continuidade ao texto.

Os estudantes produziram um conto grupo que recebeu o título de “A Menina

que tinha o sonho de conhecer seu pai”. É uma narrativa cuja personagem principal tem

11 anos, é negra com cabelos encaracolados e olhos verdes e seu nome é Jennifer –

filha de pai alemão e mãe angolana.

A menina mora no Brasil em Mato Grosso numa área bastante extensa, numa

mansão com muitos animais de estimação e cercada de muito verde. Porém, a

personagem não conhece o pai porque sua mãe saiu de Angola (grávida da menina e

sem que o namorado soubesse), quando o país enfrentava o contexto guerras civil. O

rapaz retornou para a Alemanha sem saber da gravidez.Porém, antes de partir deu

dinheiro para que, ela vivesse no Brasil de modo confortável.

Jennifer - Desenho de uma das estudantes da turma do coral Vozes do Amanhã

Além dessas características da personagem do conto, os estudantes trouxeram

outras representações na escrita: a personagem é de classe média, devido a sua posição

social, suas práticas assemelham-se as de uma menina burguesa. Ela está matriculada

em vários cursos como: natação dança idiomas entre outros, que a obriga repensar o que

realmente quer para que seu ensino regular na escola não seja prejudicado. Porém, o

que a personagem realmente deseja é conhecer seu pai.

O conto foi reproduzido num tapete. Assim, como este último tapete finalizei

as oficinas com a turma do coral. Os tapetes foram bordados por muitos estudantes que

os transformaram em textos, intertextos, interdiscursos que dialogaram com outros

textos. Ao mesmo tempo, esses bordados são textos únicos produzidos por aqueles

sujeitos com suas experiências e memórias singulares e coletivas incorporadas aos

objetos produzidos, os textos, os discursos de si próprio ou de outrem.

O Tapete A menina que tinha o sonho de conhecer seu pai.

Além de pensar as narrativas bordadas nos ta

os tapetes como cronotopo

processo de bordá-los, aconteceram ações no espaço e

importantes, que me permitiram entender ou interpretar o que foi narrado pelos sujeito

com os quais compartilhei literatura afro

espaçotempo, dialoguei com o autor citado acima, que me possibilitou pensar o

significado da experiência para constituí

insere quem as narrou.

Entendo que os tapetes são espaçostempos

executavam os bordavam,

dias depois da escrita do conto ter sido encerrada,

constou-nos na sala de aula

assassinado por traficantes da comunidade

de idade e sua irmã tinha poucos meses de vida.

Desconfiei que naquela escrita do conto eu

elementos da história real vivida por aqueles estu

atenta para as narrativas orais que surgiu depois do texto do conto ter sido finalizado.

6No cronotopo artístico-literário ocorre a fusão dos indícios espaciais e temporais num todo e concreto. Aqui o tempo condensaintensifica-se, penetra no movimento do tempo, do enredo e da história. Os índices do tempo transparecem no espaço, e o espaço revesteséries e a fusão de sinais caracterizam o cronotopo artístico. (BAKHTIN

O Tapete A menina que tinha o sonho de conhecer seu pai.

e pensar as narrativas bordadas nos tapetes como texto, também penso

cronotopo 6no sentido bakhtiniano do termo. Pois, enquanto se deu o

los, aconteceram ações no espaço e no tempo que são elementos

que me permitiram entender ou interpretar o que foi narrado pelos sujeito

mpartilhei literatura afro-brasileira na sala de aula.E, nessa relação

espaçotempo, dialoguei com o autor citado acima, que me possibilitou pensar o

significado da experiência para constituí-la, vinculada à história e à cultura nas quais s

s tapetes são espaçostempos. Pois, enquanto

os bordavam, se desenrolam ações principais de suas vida

ta do conto ter sido encerrada, a menina que deu o título ao mesmo

na sala de aula, um drama ocorrido na sua vida. Narrou que seu pai

por traficantes da comunidade onde moravam, quando tinha um ano e meio

de idade e sua irmã tinha poucos meses de vida.

Desconfiei que naquela escrita do conto eu pudesse encontrar mais pistas,

elementos da história real vivida por aqueles estudantes e passei a ter uma escuta mais

atenta para as narrativas orais que surgiu depois do texto do conto ter sido finalizado.

literário ocorre a fusão dos indícios espaciais e temporais num todo e concreto. Aqui o tempo condensa-se, comprime-se, torna-se artisticamente visível; o próprio espaço

se, penetra no movimento do tempo, do enredo e da história. Os índices do tempo transparecem no espaço, e o espaço reveste-se de sentido e é medido com o tempo. Esse cruzamento de séries e a fusão de sinais caracterizam o cronotopo artístico. (BAKHTIN - 1990, p. 211).

O Tapete A menina que tinha o sonho de conhecer seu pai.

petes como texto, também penso

no sentido bakhtiniano do termo. Pois, enquanto se deu o

tempo que são elementos

que me permitiram entender ou interpretar o que foi narrado pelos sujeitos

sala de aula.E, nessa relação

espaçotempo, dialoguei com o autor citado acima, que me possibilitou pensar o

e à cultura nas quais se

. Pois, enquanto os estudantes

vidas. A exemplo,

a menina que deu o título ao mesmo

Narrou que seu pai fora

quando tinha um ano e meio

encontrar mais pistas,

dantes e passei a ter uma escuta mais

atenta para as narrativas orais que surgiu depois do texto do conto ter sido finalizado.

literário ocorre a fusão dos indícios espaciais e temporais num todo compreensivo se artisticamente visível; o próprio espaço

se, penetra no movimento do tempo, do enredo e da história. Os índices do tempo entido e é medido com o tempo. Esse cruzamento de

1990, p. 211).

Outra menina, por diversas vezes (em conversas informais), mencionou não

gostar de seu cabelo por ser duro e dar trabalho para arrumar e, acrescentavaque

gostaria de ter o cabelo igual ao de sua irmã - encaracolado e macio, pois o dela era

duro e precisava fazer prancha todos os dias para que os fios ficassem mais lisos. Bem,

a personagem do conto era negra e com os cabelos encaracolados.

Muitos pontos da escrita me remeteram ao processo histórico de valorização

do negro africano, porém miscigenado com o europeu e um deles é o fato da

protagonista do conto ter nascido no Brasil, mas é como se não fosse brasileira. Sua

mãe é angolana e seu pai é alemão, o que dá outra identidade para a menina do conto,

um entrelugar – nem uma coisa nem outro. Vejamos Hall (2000):

(...) as identidades não são nunca unificadas; que elas são, na modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas; que elas não são, nunca, singulares, mas multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicos. As identidades estão sujeitas a uma historicização radical, estando constantemente em processo de mudança e transformação (HALL, 2000, p.108).

Pareceu-me claro que o grupo de crianças que deu início a escrita da narrativa,

criou uma personagem deu sentido ao que elas gostariam de vivenciar. Uma

personagem com uma parte do mundo imaginário e outra parte do mundo real de duas

meninas que integraram os grupos. A narrativa traz histórias semelhantes às narrativas

orais dessas meninas, com seus dramas individuais com histórias que se cruzam e se

contrapõe.

Bakthin (2010) ensina que:

[...] cada elemento de uma obra é dado na resposta que o autor lhe dá, a qual engloba tanto o objeto quanto a resposta que a personagem lhe dá (uma resposta a resposta); neste sentido, o autor acentua cada particularidade da sua personagem, cada traço seu, cada acontecimento, e cada ato de sua vida nós respondemos axiologicamente a cada manifestação daqueles que nos rodeiam; na vida porém, essas respostas são de natureza dispersa, são precisamente respostas a manifestações particulares e não ao todo do homem, a ele inteiro; e mesmo onde apresentamos definições acabadas de todo o homem – bondoso, mau, bom, egoísta, etc. -, essas definições traduzem a posição prático-vital que assumimos em relação a ele, não o definem tanto quanto fazem um certo prognóstico do que se deve e não se deve esperar dele, ou, por último, trata-se apenas de impressões fortuitas do todo ou de uma generalização empírica precária; na vida não nos interessa o todo do homem mas apenas alguns de seus atos com os quais operamos na prática e que nos interessam de uma forma ou de outra. (p, 4).

Na busca por um diálogo do pensamento bakhtiniano com a produção da turma

do coral, penso que não houve distância entre os autores e a personagem do conto. O

conto foi composto por grupos distintos e ao fazer a análise da escrita, percebi o quanto

foi importante compreender cada parte do conto: o início, o meio e o final. Marcas de

histórias, memórias e identidades que ficaram. Penso que como texto de alguma forma

registradas nos tapetes por eles bordados.

Ao colocar em prática o meu projeto de pesquisa intervenção sobre o qual se

assentaram as minhas observações por objetivar, provocar a produção de narrativas na

sala de aula, pude constatar que ainda temos muitos caminhos para serem percorridos

para que as histórias e manifestações culturais do povo negro se façam presentes e

valorizadas nas escolas brasileiras.

Penso que, a arte literária afro-brasileira em muito poderá contribuir para com

afirmação dos estudantes negros e mestiços. Pois, alguns autores que se debruçaram

sobre a temática para compor suas obras porque pela e com a literatura, eles

vislumbraram um espaço possível de luta contra a discriminação racial e promotora de

uma subjetividade africana ou afro-brasileira, de modo que outros sujeitos não tenham

que sentir-se envergonhados de terem as mesmas ascendências.

Bhabha(2007) nos ensina que: “O que se interroga não é simplesmente a

imagem da pessoa, mas o lugar discursivo e disciplinar de onde as questões de

identidade são estrategicamente colocadas (p.81)”.

Acredito que coloquei em prática uma metodologia inovadora que contribui

para que estudantes e professores possam criar e aprender em grupo, revelar suas

habilidades, refletir que é possível em grupo construir conhecimentos e ações

pedagógicas bem significativas no cotidiano escolar. As minhas ações na sala de aula

somadas com as de muitos outros educadores poderão contribuir para que a escola

reconheça estudantes afro-brasileiros e de outras ascendências como sujeitos do

processo de ensino e aprendizagem da educação para as relações étnico-raciais e da

história e da cultura afro-brasileira e africana.

REFERÊNCIAS:

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2004.

______. Estética da criação verbal. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

______. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 5. ed. São Paulo: Ed.

Unesp, 2010.

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I. Magia e técnica, arte e política. 6. ed. São

Paulo: Brasiliense, 1993.

______. Obras escolhidas II. Rua de mão única. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.

BHABHA, HOMI. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.

BRAIT, Beth (Org). Bakhtin: conceitos chave. São Paulo: Contexto, 2005.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Rio de Janeiro: Vozes,

2008.

GUIMARAES. Geni Mariano. A cor da ternura. 9. ed. São Paulo: FTD, 1994.

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WOODWARD, K. Identidade e diferença: A perspectiva dos estudos culturais.

Petrópolis: Vozes, 2000. p.103-133.

LACERDA, Nilma Gonçalves. Manual de tapeçaria. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

SANTOS, Boaventura de Sousa . A Gramática do tempo: para uma nova cultura

política, 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008.

SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Org.). Epistemologias do

Sul. São Paulo: Cortez, 2010.

VOLOSHINOV, V. N.; M. M. BAKHTIN. Discurso na vida e discurso na arte. In:

VOLOSHINOV, V. N. Freudianism: a marxist critique, apêndice. New York: Academic

Press, 1976. (Trad. inédita de Cristóvão Tezza do artigo "Discourse in Life and

Discourse in Art").

Sites consultados:

<http://www.youtube.com/results?search_queryO+perigo+da+unica+hist%C3%B3ria&

aq=f>.