as malas bordadas de apodi

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    168sala do artista popularMUSEU DE FOLCLORE EDISON CARNEIROS A P

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    Centro Nacional de Folclore e Cult ura Popular

    Iphan / Ministrio da Cultura

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    Presidncia da RepblicaPresidenta: Dilma Vana Rousseff

    Ministrio da CulturaMinistra: Ana de Hollanda

    Instituto do Patrimnio Histrico eArtstico Nacion alPresidente: Luiz Fernando de Almeida

    Departamento de Patrimnio ImaterialDiretora: Mrcia SantAnna

    Centro Nacional de Folclore eCultura PopularDiretora: Claudia Marcia Ferreira

    PARCERIA

    Associao de Amigos do Museu deFolclore Edison CarneiroPresidente: Lygia Segala

    PATROCNIO

    Ministrio da FazendaMinistro: Guido Mantega

    Caixa Econmica FederalPresidente: Maria Fernanda Ramos Coelho

    patrocniorealizao

    A CAIXA apoia o artesanato br asileiro

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    Setor de Pesquisa

    COORDENADORAMaria Elisabeth Costa

    Programa Sala do Artista Popular

    RESPONSVELRicardo Gomes Lima

    EQUIPE DE PROMOO E COMERCIALIZAOMarylia Dias, Magnum Moreira e Sandra Pires

    PESQUISA E TEXTONilton Bezerra

    EDIO E REVISO DE TEXTOSLucila Silva Telles

    Ana Cla ra das Ves tes

    CAPAMaria Rita Horta

    DIAGRAMAOLgia Melges

    FOTOGRAFIAS

    Francisco Moreira da Costa

    APOIO DE PRODUO

    Dirlene Regina Santos da Silva

    Manuela Kemper

    168sala do artista popularMUSEU DE FOLCLORE EDISON CARNEIROS A P

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    A Sala do Ar tista Popular, do Centro Nacional de Folclore e

    Cultura Popular/CNFCP, criada em maio de 1983, tem por objetivo

    constituir-se como espao para a difuso da arte popular, trazendo

    ao pblico objetos que, por seu significado simblico, tecnologia de

    confeco ou matria-prima empregada, so testemunho do viver e

    fazer das camadas populares. Nela, os artistas expem seus trabalhos,

    estipulando livremente o preo e explicando as tcnicas envolvidas na

    confeco. Toda exposio precedida de pesquisa que situa o artesoem seu meio sociocultural, mostrando as relaes de sua produo

    com o grupo no qual se insere.

    Os artistas apresentam temticas diversas, trabalhando matrias-

    primas e tcnicas distintas. A exposio propicia ao pblico no

    apenas a oportunidade de adquirir objetos, mas, principalmente,

    a de entrar em contato com realidades muitas vezes pouco familiares

    ou desconhecidas.

    Em decorrncia dessa divulgao e do contato direto com

    o pblico, criam-se oportunidades de expanso de mercado para os

    artistas, par ticipando estes mais efetivamente do processo de valorizao

    e comercializao de sua produo.

    O CNFCP, alm da realizao da pesquisa etnogrfica e de

    documentao fotogrfica, coloca disposio dos interessados

    o espao da exposio e produz convites e catlogos, providenciando,

    ainda, divulgao na imprensa e pr-labore aos artistas no caso de

    demonstrao de tcnicas e atendimento ao pblico.

    So realizadas entre oito e dez exposies por ano, cabendo

    a cada mostra um perodo de cerca de um ms de durao.

    A SAP procura tambm alcanar abrangncia nacional, recebendoartistas das vrias unidades da Federao. Nesse sentido, ciente do impor-

    tante papel das entidades culturais estaduais, municipais e particulares,

    o CNFCP busca com elas maior integrao, partilhando, em cada

    mostra, as tarefas necessrias a sua realizao.

    Uma comisso de tcnicos, responsvel pelo projeto, recebe e

    seleciona as solicitaes encaminhadas Sala do Artista Popular, por

    parte dos artesos ou instituies interessadas em participar das mostr as.

    M238 As malas bordadas de Apodi / texto de Nilton Bezerra.

    -- Rio de Jane iro : IPHAN, CNFCP, 2011.

    28 p. : il. -- (Sala do Artista Popular ; n. 168).

    ISSN 1414-3755

    Catlogo da exposio realizada no perodo de

    19 de maio a 26 de junho de 2011

    1. Mala confeco artesanal. 2. Artesanato em

    madeira Rio Grande do Norte. I. Bezerra, Nilton, org.

    II. Srie.

    CDU 684.45 (813.2)

    ASSESSORIA DE COMUNICAOMrcia Shoo

    PROJETO DE MONTAGEM EPRODUO DA MOSTRALuiz Carlos Ferreira

    Talita de Castro Miranda (assistente)

    PRODUO DE TRILHA SONORAAlexandre Coelho

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    As ma las bo rdada s de A podi

    NILTON BEZERRA

    Sbado dia de feira na cidade norte-riograndense deApodi, situada na regio do O este Potiguar, a 337km dacapital, prximo divisa com o estado do Cear. Na reali-dade, em Apodi, as feiras so dirias; essa verso semanal,conhecida como feirinha,

    possui estrutura mais modes-ta, distinta daquela realizadaaos sbados, agigantada pelaocupao parcial de seis ruas ecompreendida entre as primei-ras horas da manh e o incioda tarde. conhecida tambmcomo Feira da Pedra, emreferncia demolio doantigo mercado da cidade,no incio da dcada de 1950,quando os feirantes passaram,

    ento, a ocupar as caladas de pedra nas proximidades daconstruo destruda (Guerra, 1982). Outros dados apontamsua existncia como centenria (Guerra, 2000).

    Bem antes do sol nascer j possvel perceber a agitaodos feirantes, comerciantes e dos primeiros consumidores mo-tivados em realizar bons negcios. Em meio ao ajuntamentosimultneo de cores, sons, cheiros e gestos, na vitrine da feiralivre so privilegiados os produtos procedentes dos stios, termoutilizado para designar no apenas as propriedades rurais noentorno da cidade, mas tambm indicativo das pequenas lo-

    calidades e vilarejos prximos.

    Na esttica informal dasbarracas ou no cho delimi-tado com lonas plsticas ouesteiras de palha de carnaba,alterna-se uma diversidade degneros alimentcios e bensdurveis, avistam-se frutasregionais, gros, legumes, ver-duras, peixes, galinhas, cortesde carnes de boi, porco, bodee carneiro, doces, vassouras,roupas, chapus de palha,La

    goa

    deApodi

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    Jos realiza seis viagens entre idas e vindas; nos intervalosem que se ausenta as malas ficam expostas sem qualquervigilncia, exceto quando volta para casa em torno das 8hpara merendar e, nesse caso, conta com a gentil colabora-o de outros feirantes conhecidos, que se responsabilizamtemporariamente pelas malas, informando ao provvel com-prador sobre os preos, seu breve afastamento e a iminnciado retorno. Quando o transporte feito num carro de mo,as malas so carregadas de uma nica vez, reduzindo o des-locamento para apenas duas viagens, considerando o vai evem dos objetos. Sua participao na feira encerrada s 11h,

    antecedendo os ltimos movimentos dos demais feirantes econsumidores a deixa r o espao.

    exce o do irmo Joo Pi nheiro, que su spendeu su asatividades em 2008, at meados da dcada de 1980 existi-ram, em Apodi, outros maleiros realizando uma produoanterior e contempornea ao seu perodo de formao, entreos quais so lembrados os nomes de Bor, apelido de ummaleiro que atuou antes de 1970, Milton de Alfredo, quetrabalhou at 1978, e Marcos, aprendiz de Joo Pinheiro,com a produo compreendida de 1980 a 1984.

    O povo apodiense dispunha das malas para guardar rou-pas, redes de dormir e livros, tradio ainda hoje perceptvel

    Andrad e Pinhei ro (seu e ventua l ajuda nte) e Da miana An-drade Pinheiro.

    Aprendeu o ofcio de m aleiro em 1970, com o irmoJoo Pinheiro Fi lho, conhecido por Dand o, que por suavez o herdou do av materno, Quincas Noronha Lindolfo,tambm maleiro, construtor de malas de madeira revesti-das com couro bovino e adornadas com tachas metlicas.Desde ento, a feira do sbado serve de mostrurio para oseu trabalho.

    artefatos de couro, mveis, redes de dormir, utenslios deplstico e alumnio, sombrinhas, arreios para animais,dvds, cds e uma multiplicidade de produtos piratas, pistaspreciosas sobre os hbitos alimentares, as referncias estticase o comportamento cultural dos apodienses. A feira no serestringe s relaes de compra e venda; tambm ambientefestivo, cenrio interativo dos encontros entre parentes, ami-gos e demais moradores residentes na rea urbana e na zonarural, espao propcio atualizao das conversas semanaise do fortalecimento das parcerias.

    Numa das esquinas prximas ao mercado pblico,

    construo que dialoga e acolhe a estrutura da feira emsuas adjacncias, precisamenteno setor destinado ao co-mrcio de produtos artesanais, rapaduras e utilitrios emgeral, o olhar mais apressado su rpreendido pela exposiosingular de um grupo modesto de belos objetos coloridos,evidenciados especialmente por contrastar com a profusode roupas, brinquedos, celulares e toda sorte de aparelhoseletro-eletrnicos e industriais espalhados pelas ruas ecaladas. So malas artesanais, fruto do trabalho de JosPinheiro Neto, nascido em 02 de maio de 1956, apelidadoDed das malas, natural de Apodi, casado com MariaGorete de Andrade Pinheiro e pai de Francisco de Assis

    Nesses dias, chega por volta das 5h30, antes da mon-tagem definitiva das barracas, para no ter dificuldade depassar com sua bicicleta, veculo utilizado para o transportedas malas. A escolha do horrio propcia para permitiro acesso ao local demarcado como ponto de venda: umaesquina diante de uma loja de tecidos, nas imediaes domercado. Costuma expor seis malas por feira, e a produosemanal, de doze a quatorze exemplares, contempla igual-mente a venda aos poucos atravessadores. Alm disso, partedos objetos guardada em sua residncia, constituindo umpequeno estoque formado tambm pelo resultado das vendasno realizadas.

    nafeira

    de

    sbado

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    O aumento da produo industrial somado s facilita-es para a compra de mveis em lojas especializadas resultouna diminuio do consumo das malas, substitudas de modoprogressivo como componentes do mobilirio domstico dosquartos de dormir. Para alguns moradores, sobretudo aqueleshabitantes da rea urbana, a imagem das malas delimita umafronteira social, que simbolizada por um passado ru ral nomais desejvel e incompatvel com a modernidade, uma dasrazes pela quais se justifica sua presena nas casas das peri-ferias das cidades, ocupadas em sua maior parte por pessoasde procedncia camponesa.

    Apesa r de identificar mos junto f amlia de se u Ded os nomes de pelo menos dez maleiros com produo situadaentre 1950 e meados de 2000, outra situao curiosa o fatode no haver nenhum tipo de regist ro por parte dos escritorespotiguares, em especial os apodienses, sobre a existncia demaleiros atuando na regio; a referncia s malas artesanais inexistente nos relatos sobre a feira livre de Apodi e noscaptulos dedica dos arte popular do mun icpio como objetode estudo (Guerra, 1982, 2000. Pacheco; Baumann, 2006).

    A memria de seu Ded se reporta a os primeiros anosde aprendizado, nos quais costumava observar, duas vezesa cada ms, grupos de cerca de 30 emigrantes fugitivos da

    seca embarcando em caminhes pau de arara para a regioNorte, sobretudo para os estados do Par e A mazonas, embusca de sobrevivncia incerta. Apodi est situada na regiodo semirido nordestino e 1970 foi um ano marcado pelaextrema escassez de chuvas no nordeste brasileiro. Cadaemigrante, ao embarcar esperanoso rumo terra desco-nhecida, portava sua mala carregada de poucos pertences.Invariavelmente, eram malas de madeira umburana, pintadasde amarelo, adornadas com grafismos geomtricos na corpreta, forradas internamente com papel de presente.

    Por volta de 1976, as c ores das malas foram se diversi-

    ficando, entre amarelo, verde, azul, la ranja e vermelho, e osdesenhos geomtricos, igualmente variados, foram enrique-cidos pela adio dos bordados de cor branca combinadosao preto anterior. Hoje em dia, a aceitao popular restringiua pintura das malas apenas cor vermelha, segundo seuDed, porque as outras cores no so vendveis, s eventuaisencomendas solicitam mudanas de cor.

    Nos ltimos anos, observa-se uma modificao noemprego das malas, sobretudo entre visitantes ou turistasde passagem por Apodi. Antes privilegiadas como objetosmeramente funcionais, seu uso vem se modificando nota-damente pela nfase na funo decorativa.

    entre os moradores dos stios e em meio parcela mais carenteda populao. Nos perodos invernosos, quando as famliasde agricultores esto integralmente envolvidas no preparoda terra para o plantio ou nos cuidados com as primeiraslavouras, as vendas de malas declinam, bem como nos diasque se sucedem ao carnaval, festa com ampla participaopopular em Apodi. Nessa fase, os custos com divertimentos,roupas, bebidas e alimentos comprometem a renda familiare restringem o consumo de outros bens.

    Carvalho (2006), ao analisar os padres utilizados naspinturas de carrocerias de caminho, reconhece semelhanascom aqueles adotados na decorao das malas:

    Muitas vezes, para os mais velhos, pode ser associada

    pintura das a ntigas malas de ma deira e papelo, objetos

    venda nos mercados e feiras interioranas, estas tambm

    mveis, exibidas nos traslados daqueles que saam de seus

    rinces buscando melhores condies de vida nas grandes

    cidades.

    O vero a melhor poca para a comercializao;o inverno, equivalente, na regio, ao perodo chuvoso,dificulta a venda das malas por duas razes: a primeira dizrespeito dificuldade de locomoo dos moradores dosstios, potenciais consumidores, residentes em locais onde,nessas circunstncias, ocorrem frequentes alagamentos,reduzindo sensivelmente suas idas e vindas cidade e,consequentemente, seu consumo; a segunda, ausncia dosol, aliado fundamental no processo de produo, comoveremos adiante.

    Para a confeco das malas, so utilizados como ma-tria-prima refugos de tbuas de pinho ou umburana hoje

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    adquiridas em serrarias que fabricam portas, caibros e ripas1;esmalte sinttico vermelho, preto e branco; gasolina (comodiluente); papis de presente com estampas diversas; quatrotamanhos de pregos (2/14, 1,5x15, 1x16 e x17); papel desacos de cimento; grude ou cola de goma de mandiocacom farinha de trigo; laminado de madeira identificadopelo maleiro como duratex; dobradias porta-cadeado;e sucata de latas para as cantoneiras.

    Como ferramentas, seu Ded utiliza furadeira de banca,disco para serrar tbuas, martelo, plaina manual, torqus,rgua artesanal, serrote, e pincis improvisados, compostos

    por raio de roda de bicicleta amassado na ponta para o cabo,e pequenos pedaos de feltrooriginrios dos chapus demassa (ainda muito usadospelos homens mais velhos),com a funo de cerda.

    So produzidos basi-camente quatro tamanhosde mala, com as seguintesmedidas de comprimento,largura e altura: 80x40x30cm;60x35x25cm; 40x 25x16cm

    e 30x18x12cm. Outras dimenses so elaboradas por en-comenda. Os preos variam conforme as dimenses e aostamanhos citados anteriormente correspondem algumasdistines: as maiores so conhecidas como mala, e norecebem pintura externa na parte de baixo ou fundo; a detamanho intermedirio conhecida por meia-mala; e asde pequenas dimenses so a s malotas ou malotes, dis-tintas das malas e meias-malas pelo tamanho reduzido, porserem pintadas em todos os lados externos, e por receberemalas sempre que solicitado pelo comprador. As primeirasmalotas possuam alas de ferro chamadas guarda-mo ou

    pegadores; posteriormente, foram substitudas pelo mesmoacessrio em plstico.As ma las produ zidas a cada semana de 12 a 14 so

    expostas todos os sbados na feira livre de Apodi ou ad-quiridas por atravessadores que as d istribuem para outrascomunidades de cidades prximas (Umarizal, Serrinhados Pintos e Martins). Um deles revende tambm na feira,a poucos metros de distncia do ponto escolhido pelo artista/arteso termo aqui adotado por no reconhecer antago-nismos severos e hierrquicos entre os conceitos firmadosgenericamente para tais categorias (MASCELANI, 2002;LIMA, 2010). A venda semanal nem sempre acontece, fato

    que desestimula o maleiro e inibe a sua produo, pois aatividade representa um complemento da renda mensalprocedente de uma aposentadoria. Alm das malas, o hbitopopular de guardar moedas, aliado atual situao econmi-ca que permite amealh-las, estimulou seu Ded a produzir,a partir de 1975, pequenos cofres que at hoje so procurados.Os tamanhos variam entre 10, 15 e 20cm, reproduzindo empequenas dimenses as feies originais das malas.

    AS PARTICULARIDADES DO SABER-FAZER

    O processo de produo das malas ordenado conformeas necessidades de cad a fase de elaborao. Nesse sentido, onmero de objetos pensado como um pequeno conjunto edefinido desde a montagem. Nas fases segu intes, o mesmogrupo passa simultaneamente pelas diversas etapas de aca-bamento at a finalizao. A elaborao das malas solicita aomaleiro trabalhar sobre cada uma delas em mdia 20 vezes.

    Em Apodi, o espao de residncia dos maleiros costu-mava ser anexo s oficinas de trabalho, sendo estas cmodosadaptados para tal funo. Seu Ded, no entanto, preferiuseparar os dois ambientes de maneira bastante clara. Resi-dncia e oficina esto localizadas em bairros distintos: sua

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    moradia, no centro de Apodi, dista cerca de um quilmetrodo bairro conhecido como Baixa do CAIC2, antigo LagoaSeca, local onde estabeleceu sua oficina. O trajeto entre acasa e o local de trabalho percorrido com o auxlio deuma bicicleta.

    No espao da oficina, em sua aparente desorganizao,aos poucos percebemos que a disposio das ferramentas emateriais reordena-se em reas especficas, a fim de facilitaro acesso a cada u m deles conforme o estgio de construodos objetos. A criao das malas resulta do trabalho em-preendido de segunda sexta, das 6h s 18h, com breves

    intervalos para as refeies.O procedimento tem incio com os cortes da madeira.As tbuas so aparad as, e e m s eguida pre ciso bitolar,ou seja, definir as dimenses desejadas, armar a forma damala, fixar as dobradias, complement-la com compensado,forr-la com papel de saco de cimento colado com grude,uma cola artesanal que resulta da mistura de gua, gomarefinada de mandioca e farinha de trigo. Numa rea externa oficina, a mistura levada, em ca ldeiro de alumnio comgua, ao fogo feito com lenha numa trempe3, at adquirirconsistncia firme e semitransparente. usado frio, e novero pode durar at dois dias. A adio de farinha de trigo

    representou uma estratgia para dar maior firmeza ao pro-duto, pois a goma de mandioca pura, logo aps a aplicao,costuma liberar grande quantidade de lquido, dificultandoa aderncia do papel. H alguns anos os maleiros usavamuma goma grossa procedente das casas de farinha da cidadeserrana de Portalegre, no mais disponvel, que dispensavao uso da farinha de trigo.

    A quant idade d e grude utiliz ada proporcional s ne-cessidades para a produo de 14 malas. O papel recortadodas embalagens de cimento aberto sobre uma mesa oubancada, estirado e umedecido em toda a sua superfcie com

    uma camada generosa de grude at obter maleabilidade ebrilho. Em seguida, colocado rapidamente sobre a madeiraem sua estrutura externa. Para isso, so suficientes apenasduas camadas; as mos geis pressionam toda a superfciedo papel contra a madeira para evitar a formao de bolhasde ar, e na sequncia a mala colocada ao sol para seca r porcerca de duas horas. Durante esse tempo, o papel adquirecolorao levemente escurecida.

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    desenho. Os bordados, feitos invariavelmente aps adefinio dos riscos, so linhas sinuosas ou pontos nascidosde pinceladas espontneas de cor clara (cinza metlico oubranco), sobrepostas ou intercaladas a es ses. No momento emque esse trabalho iniciado, o maleiro diz que vai comeara bordar. A salamandra trata-se de uma rara decoraodesprovida de bordados, caracterizada pela policromia resul-tante da aplicao de cores variadas no interior das formasdelimitadas pelos riscos. Seu uso era muito restrito por exigirmaior tempo de execuo em relao aos bordados.

    Na oficina de seu Ded, observamos alguns artefatos

    utilizados especificamente para a pintura dos riscos e bor-dados: um tamborete forrado com papel serve de base paraapoiar a mala sem o risco de da nificar a superfcie pintada;um pincel criado com haste de roda de bicicleta e pedaosde feltro para os riscos e outro para os bordados; dois su-portes artesanais em madeira so usados para a fixao daslatas com as tradicionais tintas preta e branca d iludas emgasolina. Nos intervalos da pintura de cada risco, a rgua limpa com um trapo para evitar que o excesso de tintaescorra e comprometa a definio das linhas.

    Aps a completa secage m, a mala recebe a pintu ra debase que definir sua cor, aplicada com uma trincha. Atinta previamente diluda em gasolina para deix-la comuma consistncia mais lquida, e, aplicadas duas demos, amala volta ao sol. Sobre essa camada de pintura so feitosos desenhos decorativos. Incentivado a recuperar as c oresabandonadas na dcada de 1970 e diversificar o habitual ver-melho, seu Ded aceitou o desafio, expressando abertamentesuas predilees e propostas: gostou em especial das coresazul, verde e laranja, e, repetidas vezes, questionou o uso doamarelo, por ser, segundo ele, uma cor que no favorece o

    contraste com o branco usado na decorao. O branco noficou muito bonito, nem sentado.

    OS RISCOS E OS BORDADOS

    A decora o c om elementos geomtricos singul ariza afeitura das malas. Nela, o maleiro faz uma clara distinoentre riscos e bordados. Os riscos so linhas predominan-temente retas, feitas em preto com o auxlio de uma rgua,e configuram os limites da composio. Alguns deles sorelacionados a formas da natureza, como estrela e sa-lamandra, outros, so identificados simplesmente como

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    Os bordados so iniciados sempre com a realizaode uma linha sinuosa esquerda da composio, tambmpara orientar o maleiro sobre a quantidade correta de tintautilizada para a definio dos pontos. Tanto para os riscosquanto para os bordados, a organizao da composio emcada face do objeto mental, intuitiva e surpreendentementegil o maleiro no hesita em nenhum instante na expressode sua arte.

    Finalizado o processo,sobre a pintura aplicada novacamada de cola para obteno de brilho acetinado. Depoisso colocadas as cantoneiras, presas as tariscas4, para reforar

    a firmeza, e, na sequncia, fixadas as hastes laterais, feitascom laminado de madeira5para impedir a entrada de insetose a dobradia porta-cadeado. S ento o interior da mala forrado com papel de presente colado com grude, iniciandopelo interior da tampa, em seguida pelo fundo da mala, e,por ltimo, as laterais e bordas internas. Mais uma vez amala exposta ao sol por duas horas aproximadamente paraa secagem final, pois se fechadas com o forro interno aindamido o papel gruda e rasga nas bordas, sendo preciso refazera colagem. Por dia de sol, so produzidas duas malas, o que ex-plica o arrefecimento da confeco na estao chuvosa, dadoque o aumento da umidade atrasa sensivelmente o processo.

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    prpria e se tornou mestre de outros maleiros. Teve comoajudantes e aprendizes os irmos T e Joo de Mila, Car-linhos, Ded de Adlia, Elione Alves Diniz, o irmo Dede o seu filho Suetnio, representantes de geraes distintas.Em Apodi os apelidos esto incorporados definitivamente cultura local, muitas vezes identificando personagens difi-cilmente reconhecidos pelo nome de batismo, o que explicatais citaes.

    AS LIES DOS MESTRES

    Joo Pinhei ro Filho nasceu em 16 de abri l de 1944, filho natural de Apodi e comeou a fazer ma las e bas aosdez anos de idade, sob orientao de Milton de Alfredo, ma-rido de sua tia Isabel. O pai, Joo Pinheiro de Lima, nuncafoi maleiro, negociava acar, fumo, sabo, po e caf na sproximidades do mercado da cidade. O aprendizado duroude trs a seis meses, e da em diante Dando das Malas,apelido que o popularizou em Apodi, foi trabalhar por conta

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    Seu Joo se recorda de que no passado as malas eramproduzidas somente na cor laranja, com riscos pretos, eposteriormente apareceram os bordados primitivos, feitoscom tinta alumnio. Ele reivindica para si a autoria dessesprimeiros bordados na cor branca, que no existiam quandofoi iniciado na profisso. Conta que observava pacientementeos caminhes que passavam na estrada para ver os padresaplicados pintura das carrocerias; outras vezes frequenta-va a serraria de Antnio Cabral, marceneiro que produziacarrocerias de caminho, para observ-lo criar os delicadosdesenhos que as enfeitavam, conforme afirma: Olhava os

    desenhos, guardava na imaginao e fazia nas malas.Quando comeou a diversificar as cores das malas com

    vermelho, verde, amarelo e azul, por exemplo, os bordadose riscos do mesmo modo passaram a ser feitos coloridos.Construtor tambm de bas, distintos das malas pelo for-mato arredondado da tampa, revela que estes, mais austeros,no recebiam enfeites, somente quando o consumidor muitoraramente pedia.

    Dando das malas chegou a trabalhar sozinho pordez anos; aps esse perodo, alternou momentos nos quaiscontava com o auxlio de dois a trs ajudantes, produzindo

    de trinta a cinquenta malas por semana.Trabalhava em casa e distribua a pro-duo na feira de Apodi. Muitas vez esvoltava para casa mais c edo, resultadodas rpidas vendas, ocorridas antes das10 horas. Chegou a disseminar a artede suas malas pelas mos de atravessa-dores que encomendavam de cinquentaa sessenta unidades e promoviam suacirculao pelas cidades potiguares deUmarizal, Rodolfo Fernandes, Seve-

    riano Melo, Mossor e Carabas, ondetrabalhou por um breve perodo, naParaba, em Catol do Rocha e Souza;nesta ltima, chegou a atuar tambmcomo maleiro, alm dos municpioscearenses de Limoeiro do Norte e Po-tiretama. Nas residncias no existiamguarda-roupas, motivo que justifica,em sua opinio, o grande interesse popular pelas suas ma-las, testemunhas de pequenas modificaes nos materiaisutilizados anteriormente, como, por exemplo, a substituiogradual das fechaduras com chave e dos trincos laterais pe-

    las dobradias porta-cadeado, comotambm do tecido de algodozinhopelo papel de saco de cimento.

    Nos ltimos anos foi acometidopor problemas de sade que o foraramem definitivo a abandonar a profissoem 2008. Atualmente aposentado, emseu quarto, ao lado da cama, ma ntmuma de suas ltimas malas, usadapara guardar documentos pessoais.O prprio objeto transfigura-se em

    testemunho histrico e cultural de umlegado artstico praticado ao longo desua trajetria de vida, que hoje em diacontinua a ser renovado pelas mos doirmo Ded, reconhecido pelo maleirocomo perpetuador do antigo ofcio eseu real substituto.

    No existem registros indiscutveissobre o tempo de existncia da atividade dos ma leiros atu-ando na regio de Apodi; entretanto, possvel assegurar aconfeco das malas artesanais na dcada de 1950, conformedeclaraes cedidas pela famlia de seu Ded e confirmadas

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    por diversos moradores. Descries sobre a imagem dasmalas bordadas ta mbm aparecem de modo recorrente namemria dos mais velhos, alargando a probabilidade do usodesses objetos num passado ainda mais distante.

    Sabe-se, enfim, que essa produo singular no pa-norama do artesanato norte-riograndense e encontra-sefundamentada na cultura de seus habitantes. O trabalhoexercido por seu Ded talvez represente o saber-fazer deum dos ltimos maleiros em atividade no Brasil, fato que,simultaneamente, ressalta a importncia da sua arte comoexemplo de um bem cultural significativo e gera inquietaes

    sobre a futura permanncia do ofcio.O uso do objeto, antes destinado apenas ao transporte epreservao de bens, ratifica sua recente tendncia a se amol-dar a funes de interesse esttico: assim as malas chegarama ser utilizadas como elemento decorativo da festa de SoJoo Batista , um dos pad roeiros do municpio; met amorfo-seadas em objetos cnicos, enriqueceram a performance deuma quadrilha junina.

    O design massificado dos guarda-roupas industriais,reproduzidos aos milhares, at concorre com as malas, mi-nimizando sua aceitao, porm, no indicativo de lugaralgum, nem provoca o interesse do artista em singula riz-

    los com imagens impregnadas de saberes especiais; assim,esvaziado de outros sentidos que justifiquem a sua criao,jamais concorrer em igua ldade com a beleza das mala scaprichosamente adornadas pela vivncia e expresso dopovo apodiense.

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    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    CARVALHO, Vicente Vitoriano Marques. Filetagem: pintura decarroceria de caminho. In: Galante. Natal: Scriptorin CandinhaBezerra; Fundao Hlio Galvo, v. 3, n. 13, jun. 2006.

    GUERRA, Valter de Brito.Apodi no passado e no presente. 2. ed.[S.I.:s.n.], 1982 . 240 p. (Coleo Mossoroense, v. CII).

    GUERRA, Valter de Brito.Apodi, sua histria. [S.I.]: FundaoGuimares Duque; Fundao Vingt-un Rosado, 2000. 242 p. (ColeoMossoroense, v. 1145).

    LIMA, Lvia Ribeiro.A ferro e fogo: Arte na Paraba. Rio de Janeiro:IPHAN; CNFCP, 2010. 36 p. (Sala do Artista Popular, n. 166);(Catlogo da exposio realizada no perodo de 01/03 a 10/04 de 2010).

    LIMA, Ricardo Gomes. Objetos: percursos e escritas culturais. So Josdos Campos: Centro de Estudos da Cultura Popular; Fundao CassianoRicardo, 2010. 144 p. (Cadernos de Folclore, v. 20).

    MASCELANI, ngela. O Mundo da arte popular brasileira. Rio deJaneiro: Museu Casa do Pontal; Mauad, 2002.

    PACHECO, Cleudia Bezerra; BAUMANN, J. Carlos. Apodi: um olharem sua diversidade. Natal: [s.n.], 2006. 364 p.

    NOTAS

    1 Em anos anteriores para comprar madeira precisava se deslocar atMossor, cidade distante 73km de Apodi, numa caminhonete dealuguel dividida por sitiantes que iam vender animais domsticos eoutros produtos.

    2 Referncia constru o na rea de um Centro de Aprendizagem eIntegrao de Cursos, vinculado ao Programa de Ateno Integral Criana e ao Adolescente, projeto implantado pelo governo fede-ral na dcada de 1990.

    3 Estrutura feita com trs pedras para apoiar a panela no fogo.

    4 Hastes de madeira previamente tinturadas com anilina amarela emp diluda em lcool.

    5 No passado, os maleiros usavam fitas de flandres (lmina de ferrorecoberta de estanho) cortadas com tesoura; o material enferrujavae frequentemente provocava cortes indesejveis nas mos, motivode sua substituio pelo laminado identificado como duratex.

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