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Dalila Cabrita Mateus Álvaro Mateus NACIONALISTAS DE MOÇAMBIQUE

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Dalila Cabrita MateusÁlvaro Mateus

NACIONALISTASDE MOÇAMBIQUE

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TÍTULO Nacionalistas de Moçambique

AUTORES Dalila Cabrita Mateus, Álvaro Mateus

© 2010, Dalila Cabrita Mateus, Álvaro Mateus e Texto Editores

REVISÃO Eda Lyra

CAPA © Ideias com Peso

Desenho do pintor Malangatana Valente Ngwenya, concebido para a capa deste livro.

PAGINAÇÃO Júlio Matias

ISBN 9789724743493

Reservados todos os direitos.

TEXTO EDITORES, LDA.

Uma Editora do Grupo Leya

R. Cidade de Córdova, n.º 2

2610-138 Alfragide – Portugal

www.textoeditores.com

www.leya.com

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«[…] Escrevo…Na minha mesa, vultos familiares se vêm debruçar.Minha Mãe de mãos rudes e rosto cansadoe revoltas, dores e humilhações,tatuando de negro o virgem papel branco.E Paulo, que não conheçomas é do mesmo sangue e da mesma seiva amada de Moçambique, e misérias, janelas gradeadas, adeuses de magaíças, algodoais, e meu inesquecível companheiro branco,e Zé – meu irmão – e Saúl, e tu, Amigo de doce olhar azul,pegando na minha mão e me obrigando a escrevercom o fel que me vem da revolta.Todos se vêm debruçar sobre o meu ombro,enquanto escrevo, noite adiante,com Marian e Robeson vigiando pelo olho luminoso do rádio- let my people gooh let my people go!

E enquanto me vierem de Harlemvozes de lamentaçãoe meus vultos familiares me visitaremem longas noites de insónia,não poderei deixar-me embalar pela música fútildas valsas de Strauss.Escreverei, escreverei,com Robeson e Marian gritando comigo:Let my people go.OH DEIXA PASSAR O MEU POVO!

Noémia de Sousa

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ÍNDICE

NOTAS DE APRESENTAÇÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

NOÉMIA, a voz fraterna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13BUCUANE, o herói fundador . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31RANGEL, o fotógrafo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45BALAMANJA, o estrangeiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55M’BOA, o preso político . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67MALANGATANA, o pintor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75MULENZA, o combatente assassinado . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85NOGAR, o poeta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93MANGANHELA, o religioso mártir . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101MABOTE, o chefe guerrilheiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107

SIGLAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127

FONTES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129Arquivos da PIDE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129Arquivos dos SCCIM . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130Arquivo da PVDE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130Arquivo de Marcelo Caetano. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130Filmes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130Internet . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131

BIBLIOGRAFIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133Livros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133Jornais, revistas e publicações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 134

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NOTAS DE APRESENTAÇÃO

Nacionalistas de Moçambique aborda a vida política de dezpessoas, na sua maioria já falecidas. Uma mulher e nove homens.Uns desconhecidos ou quase desconhecidos. Outros conhecidosna sua vida literária ou artística, mas menos conhecidos comonacionalistas. E ainda outros, a justificar que se volte a sublinhar o seu contributo para a luta de libertação nacional.

Não tivemos o propósito de elaborar biografias minuciosas,até porque para tal nos faltavam os meios. Pretendemos sim retra-tar a face política nacionalista destas pessoas, cujas vidas ilustram a penosa marcha do povo moçambicano para a libertação nacionale, conquistada a independência, a sua afirmação nacional, africanae internacional.

Na segunda metade dos anos 40 e princípio dos anos 50 doséculo passado, alguns moçambicanos integram organizações polí-ticas de carácter unitário ou partidário, onde desenvolvem activi-dades sobretudo de carácter panfletário. Estas organizações aindaeram inspiradas por democratas portugueses, não raro comunistas.

Além da participação em acções clandestinas, alguns naciona-listas denunciam a opressão colonial ou esboçam o seu projectolibertador através da poesia, do desenho ou da pintura, mesmo dafotografia.

Nesta altura, certos poetas orientavam-se pelo destino donegro norte-americano, cujos combates e realizações influen -ciaram decisivamente o processo de descolonização da intelec -tua li dade africana. A afirmação do orgulho de ser negro inclui are ferência a nomes da música popular norte-americana, das letras,do atletismo e até do boxe. Os africanos sentem alegria por serouvidos através do trompete de um músico famoso ou por comun-garem dos êxitos alcançados nos estádios pelos atletas norte- -americanos.

Já no final dos anos 50 e princípio dos anos 60, influenciadospelo exemplo dos países em que trabalham, moçambicanos emi-grados vão criar partidos nacionalistas. E por pressão dos dirigen-tes dos países que os acolhem, esses partidos acabam, em regra,por se unir em organizações de tipo frentista, mais aptas a captarapoios internacionais.

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NACIONALISTAS DE MOÇAMBIQUE

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A luta armada inicia-se em meados dos anos 60. De início comumas escassas dezenas de guerrilheiros, acaba por mobilizarmilhares de homens e por se estender a diversas regiões do país,alcançando assinaláveis êxitos e utilizando métodos de guerra pró-prios das forças convencionais, prenúncio de uma vitória próxima.

Na acção clandestina ou na luta de guerrilhas, desde início queos nacionalistas moçambicanos estão sujeitos a uma brutal repres-são. Pagaram com a prisão, com bárbaras torturas e não raro coma morte o sonho de conquistar a liberdade. Estes apontamentosbiográficos mostram a que extremos pode chegar a brutalidadepolicial, como o comprova o assassínio aqui documentado de umchefe guerrilheiro.

Os nacionalistas moçambicanos obtiveram êxitos assinaláveisna luta armada de libertação nacional. Mas, alcançada a indepen-dência, tinham de governar um país moderno, num mundomoderno. E acumularam erros de gestão. A guerra civil, a agressãode vizinhos poderosos e as dificuldades económicas e políticasforam sérios obstáculos para a marcha do povo moçambicano.

Hoje, 45 anos decorridos sobre o início da luta armada, con-quistada a independência e ultrapassada a guerra civil assim comooutros obstáculos ao desenvolvimento, o povo moçambicano viveem paz, consolida a democracia e afirma a sua identidade na arenainternacional. Uma boa altura para recordar a vida de dez nacio-nalistas, que deixaram a sua marca na história de Moçambique,lutando para que o seu povo pudesse viver em paz, com liberdadee prosperidade.

25 de Setembro de 2009Os autores

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NOÉMIA, A VOZ FRATERNA

Carolina Noémia Abranches de Sousa nasceu a 20 de Setembrode 1926, na Catembe, mesmo em frente a Lourenço Marques, naoutra margem do Incomati. Era filha de António Paulo Abranchesda Gama e Sousa e de Clara Brüheim Abranches de Sousa.

[…] Quando eu nasci… – Eu sei que o ar estava calmo, repousado (disseram-me) e o sol brilhava sobre o mar. E no meio desta calma fui lançada ao mundo, já com meu estigma.E chorei e gritei – nem sei porquê.Ah, pela vida fora minhas lágrimas secaram ao lume da revolta1.

Conclui o 4.o ano comercial na Escola Técnica Sá da Bandeira.E emprega-se na firma Gulamhussen & Companhia, Lda., emLourenço Marques.

«Falava, escrevia e lia correctamente o francês e o inglês e fala-va o ronga.» E no plano cultural, «apreciava o melhor da arte eu ro peia do cinema, admirava Júlio Pomar e estava actualizadaquanto aos modernos poetas, contistas e romancistas»2.

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1 AAVV, Antologias de Poesia da Casa dos Estudantes do Império, ed. ACEI,s/l, 1994, p. 213.

2 Pires Laranjeira, A Negritude Africana de Língua Portuguesa, p. 112.

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Em busca de um modo de ser moçambicana, Noémia invoca omundo peculiar da sua infância distante:

Meus companheiros de pescarias por debaixo da ponte, com anzol de alfinete e linha de guita, meus amigos esfarrapados de ventres redondos como cabaças,companheiros nas brincadeiras e correrias pelos matos e praias da Catembe, unidos todos na maravilhosa descoberta dum ninho de tutas3, na construção duma armadilha com nembo4, na caça aos gala-galas5 e beija flores, nas perseguições aos xitambelas6 sob um sol quente de Verão… - Figuras inesquecíveis da minha infância arrapazada, solta efeliz: meninos negros e mulatos, brancos e indianos, filhos da mainata7, do padeiro do negro do bote, do carpinteiro, vindos da miséria doGua chene8

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Noémia de Sousa, fotografia do passaporte, in IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2756 CI(2).

NACIONALISTAS DE MOÇAMBIQUE

3 Aves.4 Seiva usada como cola para apanhar pássaros. 5 Réptil de cor verde-azulada.6 Insecto colorido que ao bater as asas produz um som característico.7 Empregada doméstica que lavava e passava a ferro.8 Localidade da área da Catembe.

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ou das casas de madeira dos pescadores. Meninos mimados do posto, meninos frescalhotes dos guarda-fiscais da Esquadrilha - irmanados todos na aventura sempre nova dos assaltos aos cajueiros das machambas9,no segredo das maçalas10 mais doces, companheiros na inquieta sensação de mistério da «Ilha dos navios perdidos».

Os seus companheiros de brincadeira ensinam-lhe o valor dafraternidade e levam-na a acreditar numa «nova infância raiandopara todos»:

Meus companheiros me são seguros guias na minha rota através da vida Eles me provaram que «fraternidade» não é mera palavrabonita escrita a negro no dicionário da estante: ensinaram-me que «fraternidade» é um sentimento belo e possível, mesmo quando as epidermes e a paisagem circundante são tão diferentes.

Por isso eu CREIO que um dia o sol voltará a brilhar, calmo, sobre o Índico. Gaivotas pairarão, brancas, doidas de azul e os pescadores voltarão cantando, navegando sobre a tarde ténue.E este veneno de lua que a dor me injectou nas veias em noites de tambor e batuque deixará para sempre de me inquietar.

Um dia, o sol inundará a vida.E será como que uma nova infância raiando para todos…11

NOÉMIA, A VOZ FRATERNA

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9 Campo lavrado. 10 Maçala ou massala, fruto comestível.11 AAVV, Antologias de Poesia da Casa dos Estudantes do Império, ed. ACEI,

s/l, 1994, pp. 214-215.

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12 AAVV, Antologias de Poesia da Casa dos Estudantes do Império, ed. ACEI,s/l, 1994, pp. 217-218.

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NACIONALISTAS DE MOÇAMBIQUE

Noémia de Sousa é a cantora dos esquecidos, a voz fraternaque dá voz aos párias de África.

Irmão negro de voz quente e olhar magoado diz-me: Que séculos de escravidão geraram tua voz dolente? Quem pôs o mistério e a dor em cada palavra tua? E a humilde resignação na tua triste canção? E o poço de melancolia No fundo do teu olhar?

Alimentando-se das suas raízes africanas, é «África da cabeçaaos pés»:

Se me quiseres conhecer,estuda com olhos bem de veresse pedaço de pau pretoque um desconhecido irmão macondede mãos inspiradastalhou e trabalhouem terras distantes lá do norte.

Ah, essa sou eu: órbitas vazias no desespero de possuir a vida,boca rasgada em feridas de angústia, mãos enormes espalmadas,erguendo-se em jeito de quem implora e ameaça,corpo tatuado de feridas visíveis e invisíveispelos chicotes da escravatura…Torturada e magnífica,altiva e mística,África da cabeça aos pés - ah, essa sou eu! […]12.

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13 AAVV, Antologias de Poesia da Casa dos Estudantes do Império, ed. ACEI,s/l, 1994, pp. 219-220.

14 Munhuana e Xipamanine eram bairros negros de Lourenço Marques, actualMaputo.

15 AAVV, Antologias de Poesia da Casa dos Estudantes do Império, ed. ACEI,s/l, 1994, pp. 90-92.

16 Fernando J. B. Martinho, «O Negro Americano e a América na Poesia deAgostinho Neto», in África, Literatura-Arte e Cultura, n.º 7, p. 164.

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NOÉMIA, A VOZ FRATERNA

Filha de mãe negra, Noémia transfere essa maternidade para aÁfrica como um todo:

[…] Ó África, minha mãe-terra, ao menos tu não abandones minha irmã heróica,perpetua-a no monumento glorioso dos teus braços13!

Se as suas raízes são africanas, as suas razões de ser são sobre-tudo moçambicanas. E identifica-se com as mulheres do seu país,falando das suas dores e sofrimentos:

Somos fugitivas de todos os bairros de zinco e caniço.Fugitivas das Munhuanas e dos Xipamanines14,vimos do outro lado da cidadecom nossos olhos espantados,nossas almas trancadas,nossos corpos submissos e escancarados.

[…] Agora, vida, só queremos que nos dês esperançapara aguardar o dia luminoso que se avizinhaquando mãos molhadas de ternura vieremerguer nossos corpos doridos submersos no pântano,quando nossas cabeças se puderem levantar novamentecom dignidadee formos novamente mulheres15.

Noémia de Sousa, tal como outros intelectuais africanos do seutempo, orienta-se pelo destino do negro norte-americano, cujoscombates e realizações influenciavam decisivamente o processo dedescolonização da intelectualidade africana16. Natural é, pois, areferência à música de Paul Robeson e Marian Anderson neste

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17 Trabalhador migrante nas minas do Rand (África do Sul). 18 AAVV, Antologias de Poesia da Casa dos Estudantes do Império, ed. ACEI,

s/l, 1994, pp. 221-222.

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NACIONALISTAS DE MOÇAMBIQUE

apelo à revolta e à libertação, com que a poetisa se insere na mar-cha geral do seu povo.

[…] Na minha mesa, vultos familiares se vêm debruçar. Minha Mãe de mãos rudes e rosto cansadoe revoltas, dores, humilhações,tatuando de negro o virgem papel branco.E Paulo, que não conheçomas é do mesmo sangue e da mesma seiva amada deMoçambique,e misérias, janelas gradeadas, adeuses de magaíças17,algodoais, e meu inesquecível companheiro branco,e Zé – meu irmão – e Saúl, e tu, Amigo de olhar doce azul,pegando na minha mão e me obrigando a escrevercom o fel que me vem da revolta.Todos se vêm debruçar sobre o meu ombro, enquanto escrevo, noite adiante,com Marian e Robeson vigiando pelo olho luminoso do rádio- Let my people go/ oh let my people go!

E enquanto me vierem de Harlem vozes de lamentaçãoe meus vultos familiares me visitaremem longas noites de insónia, não poderei deixar-me embalar pela música fútildas valsas de Strauss.Escreverei, escreverei, com Robeson e Marian gritando comigo:Let my people go, OH DEIXA PASSAR O MEU POVO18!

Mas a poetisa não se fica pela denúncia e pelo protesto anti-colonial. É uma activa participante na luta.

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19 Ilídio Rocha, A Imprensa em Moçambique (1854-1975), Livros do Brasil,Lisboa, 2000, p. 166.

20 Ilídio Rocha, idem, pp. 166 e 315. 21 Itinerário, n.o 96, Dezembro de 1949. 22 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2756 CI(2), Carolina Noémia

Abranches de Sousa, fls. 18-19.

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NOÉMIA, A VOZ FRATERNA

Já em 1949, quando Eduardo Mondlane, estudante na Uni ver -sidade de Witwatersrand, é expulso da África do Sul pelo regimedo apartheid, Noémia de Sousa denuncia o facto nas pá ginas dojornal Brado Africano. Neste jornal, «José Craveirinha, Noémia deSousa e Rui Nogar mantiveram aberta a única janela que ao BradoAfricano restava, a da poesia. E foi assim, porque os papéis estãoimpressos e têm datas, que o tão polemizado e, por vezes, tão poli-tizado começo da literatura moçambicana ocorreu e tão bons fru-tos deu…»19.

Noémia de Sousa colabora, também, no jornal Itinerário,«publicação mensal de letras, artes, ciência e cultura», cujo primei-ro número foi publicado em 1941 e o último em Outubro de 1955.De resto, o jornal congregou toda uma geração de poetas de Mo -çam bique: Noémia de Sousa, José Craveirinha, Rui Nogar, Mar -celino dos Santos («Kalungano»), Orlando Mendes e Rui Knopfli,entre outros20. Dos seus «colaboradores internos» referimos osnomes de João Mendes, Henrique Beirão, Sofia Pomba Guerra,Rui Guerra (o conhecido cineasta), Afonso Ribeiro, os Sobral deCampos (pai e filho) e Cassiano Caldas. E dos colaboradoresexternos destacamos Alexandre Cabral, Alves Redol, Joa quimNamorado, Mário Dionísio, Ramos da Costa, Rui Grá cio, SeabraDinis e Mário Soares.

As simpatias políticas do jornal são óbvias. Não por acasoassinala, na primeira página, o falecimento de Soeiro Pereira Go mes, afirmando que «os homens perderam um companheiro,um amigo de todos os homens, pronto para todos ao sacrifícios»21.Soei ro Pereira Gomes era, como se sabe, membro do ComitéCentral do Partido Comunista Português.

Nesse mesmo ano, Noémia de Sousa é presa pela Polícia In ter -nacional. Era acusada de pertencer ao Movimento dos Jovens De mocratas de Moçambique, agrupamento político de que faziamparte João Mendes, Ricardo Rangel e José Craveirinha22.

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O Movimento dos Jovens Democratas de Moçambique aparecereferido num relatório de António Fernandes Roquete23, inspectorda PVDE24 que, na sequência do assassinato do médico comunistaFerreira Soares25, fora destacado para Moçambique com a missãode organizar uma polícia de fronteira, que ficaria conhecida comoPolícia Internacional. Neste relatório, Roquete fala dos «panfletos

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NACIONALISTAS DE MOÇAMBIQUE

23 António Fernandes Roquete nasceu em 1906. Famoso futebolista do CasaPia Atlético Clube, no período de 1926 a 1933, integrou por 16 vezes a selecçãonacional. Era um homem bastante alto, considerado um sex symbol pela imprensada época. Antes de ingressar na PVDE como agente, teria sido informador daquelapolícia, tendo estado implicado na prisão de Cândido de Oliveira, que seria envia-do para o Tarrafal (mestre Cândido fora futebolista do Sport Lisboa e Benfica e doCasa Pia, de que foi fundador; foi, também, seleccionador nacional e, ainda, direc-tor dos jornais A Bola e Gazeta Desportiva). Levado a julgamento pelo assassíniodo médico comunista Ferreira Soares, Roquete foi absolvido, pois os juízes consi-deraram que agira em «legítima defesa». Mesmo assim, os responsáveis do regimeacham por bem fazê-lo «emigrar» para Moçambique, onde vai organizar a PolíciaInternacional. Transita mais tarde para a PIDE, assinalando-se o facto de, em 1958,por altura das eleições para a Presidência da República, ter sido sovado porapoian tes do general Humberto Delgado.

24 Assinalado na Ordem de Serviço NP-B2 da PVDE, n.º 135 de 15.05.1939,existente no IAN/TT.

25 Armando de Sousa e Silva, Vítimas de Salazar: Carlos Ferreira Soares,Anatomia de um Crime, pp. 131, 147 e 148.

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políticos de ataque ao governo da Nação», da «existência de acti-vidades, também clandestinas, dum organismo pró-comunistadenominado “Movimento dos Jovens Democratas de Moçam -bique”, por intermédio de cujos filiados se promove a distribuiçãodirecta de panfletos, que igualmente são expedidos pelo correiopara os principais centros populacionais da colónia». O Mo mentoseria organizado de «maneira a que os filiados só conheçam os ele-mentos dos respectivos grupos, constituídos por três ou quatromembros». O relatório conclui que, «entre a mocidade moçambi-cana (europeus, mistos e pretos) se estão a espalhar as sementesperigosas de ideias políticas dissolventes, de ódio e desrespeitopelo governo central e suas instituições», assim como de «indife-rença e alheamento propositados por tudo o que se passa na MãePátria»26.

O Movimento desenvolve intensa actividade, com reuniões edistribuição de propaganda. A polícia assinala várias reuniões, umadelas com três dezenas de jovens, dos 18 aos 27 anos, no gabinetedo dr. Henrique Beirão, no «prédio Pott», sito na Avenida Agui ar27.E refere uma circular da Comissão Executiva do Mo vi mento emque, depois de aludir à «onda de indignação» causada pela prisãode jovens democratas e destacados dirigentes do Movimento deUnidade Democrática, se afirma que «os partidários do EstadoNo vo e a polícia se enganaram», pois «os jovens democratas nãorenegaram nem renegarão as suas ideias democráticas, o seu amorà cultura livre, a sua dedicação à juventude»28.

Noémia de Sousa teria sido recrutada para o Movimento porRicardo Rangel, que a apresentou a João Mendes29. E teria comotarefa a impressão de panfletos de propaganda política30, panfletosestes que «apareciam constantemente espalhados» pela cidade31.

NOÉMIA, A VOZ FRATERNA

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26 IAN/TT, Arquivos da PIDE, 2156/49 SR, Maria Sofia Pomba Guerra, f. 91.27 IAN/TT, Arquivos da PIDE, 2156/49 SR, Maria Sofia Pomba Guerra,

f. 88.28 IAN/TT, Arquivos da PIDE, 1116/49, Maria Sofia Pomba Guerra, fls. 43-44. 29 IAN/TT, Arquivos da PIDE, 1116/49, Maria Sofia Pomba Guerra,

fls. 124-125.30 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2756 CI(2), Carolina Noémia

Abran ches de Sousa, f. 43.31 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2756 CI(2), Carolina Noémia

Abranches de Sousa, f. 19.

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32 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2756 CI(2), Carolina NoémiaAbran ches de Sousa, f. 43.

33 Entrevista de Cassiano Caldas, in Dalila Cabrita Mateus, Memórias doColonialismo e da Guerra, ASA, Lisboa, 2006, pp. 231e ss.

34 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2156/49, Maria Sofia Pomba Guer -ra, f. 99.

35 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2156/49, Maria Sofia Pomba Guer -ra, f. 93.

36 Abner Sansão Mutemba, cuja família teve papel destacado na luta de libertaçãonacional, seria na altura militante comunista, segundo refere João Madeira em «O PCPe a Questão Colonial», publicado na revista Estudos do século XX – Co lo nia lismo,Anticolonialismo e Identidades Nacionais, n.º 3, 2003, p. 221. Este autor cita como fonteuma «Biografia de Abner Sansão Mutemba», 1985, p. 14, que consta do Espólio deMário Pinto de Andrade existente da Fundação Mário Soares, Pt. 4329.002.

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NACIONALISTAS DE MOÇAMBIQUE

Além disso, Noémia de Sousa é acusada pela polícia de ter ligaçõesao PCP através do ferroviário Cassiano Caldas32, facto que este últimoconfirmaria, assinalando que Noémia estivera presa numa altura emque fora detido e que engolira um bilhete que lhe mandara33.

A polícia desencadeia uma acção repressiva contra o Movi mentodos Jovens Democratas de Moçambique. São presos: Hen riqueBeirão, de 27 anos, advogado; João Mendes, de 23 anos, funcionário;Carlos Pais, de 21 anos, enfermeiro; Norberto Sobral de Campos,de 35 anos, engenheiro; e Maria Sofia Pomba Guerra, de 43 anos,farmacêutica. Eram acusados de dirigir o Movimento, actuando soborientação da Organização Comunista de Mo çam bique (que seriauma ramificação do PCP), de aliciarem novos membros sem distin-ção de cor, raça ou nacionalidade, de cobrarem quotas e angariaremfundos através de subscrições, rifas e sorteios, de elaborarem e dis-tribuírem panfletos clandestinos de doutrinação política, de consti-tuírem núcleos artísticos e associações recreativas, desportivas eculturais e de se infiltrarem nos órgãos dirigentes ou representativosde sociedades e empresas legalmente constituídas34.

Assim, na madrugada de 17 de Outubro de 1949, sem avisoprévio (com excepção de Sofia Pomba Guerra, a quem foi per -guntado a quem queria que entregassem as filhas menores à suaguarda e encargo), os presos são levados, num cortejo de seis veí -culos motorizados e por ruas fortemente patrulhadas, para o car-gueiro Sofala, em que viajam até Lisboa35.

Abner Sansão Mutemba36, testemunha presencial, declara serperfeitamente audível uma voz feminina que gritava:

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37 Segundo depoimento de Malangatana Valente Ngwenya, que o ouviu aAbner Sansão Mutemba.

38 AAVV, Antologias de Poesia da Casa dos Estudantes do Império, ed. ACEI,s/l, 1994, pp. 216-217.

39 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2156/49, Maria Sofia PombaGuerra, f. 94.

40 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2156/49, Maria Sofia PombaGuerra, f. 95 e Processo 1116/49, Maria Sofia Pomba Guerra, f. 194.

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NOÉMIA, A VOZ FRATERNA

«Chamo-me Sofia Pomba Guerra e vou ser deportada. VivaMoçambique.»37

Noémia dedicará um poema a João Mendes, «companheirobranco, / desterrado no bojo negro dum navio / a caminho de por-tos desconhecidos e hostis», ao «companheiro branco, / de sorrisode abraço, / de olhos claros de esperança […] Aquele que nós amá-vamos, / aquele irmão branco, / que afinal não era branco nemnegro, / porque era simplesmente irmão!». E manifesta o desejo deque regresse para «espevitar com tua dura palavra de lutador / olume da fogueira que acendeste naquela noite fria, / quando nosestendeste tua mão aberta de jovem/ e nos trouxeste a luminosacerteza da nossa redenção»38.

Mas como poderiam os presos ser julgados em Lisboa, se, afi-nal, tinham desenvolvido as «actividades subversivas» de que eramacusados em Lourenço Marques?

A própria PIDE fica desorientada. Ao fim de dois meses, ogoverno resolve o problema publicando um decreto-lei que permite à Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, sobpropos ta do Procurador-Geral da República, mandar avocar o jul -gamento ao Tribunal Criminal39.

O Supremo lá acabou por avocar o processo, realizando-se ojulgamento em Lisboa. A justificação seria a ligação ao PartidoComunista Português e ao MUD Juvenil. No entanto, a própriaPIDE confessava que, «não obstante as diligências efectuadas e asbuscas feitas nos arquivos desta polícia, nada de positivo foi possí-vel apurar para a descoberta de possíveis ligações com as orga ni -zações ilegais existentes na Metrópole, nomeadamente com ochamado Partido Comunista Português e, ainda, com a organiza-ção denominada MUD Juvenil»40.

Em Lourenço Marques tinham testemunhado em favor dospresos 23 pessoas, entre as quais Noémia de Sousa, Ricardo Rangel

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41 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2156/49, Maria Sofia PombaGuerra, f. 102.

42 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2156/49, Maria Sofia PombaGuerra, f. 106.

43 O Século, 05.07.1950.44 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2156/49 SR, Maria Sofia Pomba

Guerra, f. 84.

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NACIONALISTAS DE MOÇAMBIQUE

e José Craveirinha41. E em Lisboa, 44 testemunhas prontificaram--se a abonar em favor dos réus, designadamente os professoresMário de Azevedo Gomes, Teixeira Ribeiro, Ferrer Correia eMaria Isabel Aboim Inglês, os escritores Maria Lamas, ManuelMendes e João de Barros, os advogados Gustavo Soromenho,Mayer Garção e Magalhães Godinho, os engenheiros Tito deMorais e Ferreira Mendes, o desportista Mário Wilson e os estu-dantes Mário Soares e Marcelino dos Santos (que viria a ser vice--presidente da FRELIMO)42.

O Ministério Público acabou por retirar a acusação de «activi-dades subversivas», afirmando não ter conseguido fazer prova. E quanto à acusação de terem subscrito folhetos susceptíveis decausar alarme público, a ter existido, levaria os presos a incorreremnum máximo de seis meses de prisão, tempo já ultrapassado.

O jornal O Século noticiou o termo do julgamento no Tri -bunal Plenário. E assinala que os réus «eram acusados de actospolíticos contra a actual situação e de terem entrado para a associa-ção, que sabiam ilícita e subversiva, de carácter político, JovensDemocratas de Moçambique, identificada com o Partido Co mu -nista Português. Recomeçados os trabalhos, foram inquiridas tes-temunhas de defesa, em número elevado, e dispensados diversos.Seguiram-se os debates e tomaram parte neles o dr. Arlindo Mar -tins, ajudante do procurador-geral da República, e os patronos dosincriminados, senhores doutores Jaime Azancot, Santos Ferro,Adão e Silva, Cruz Ferreira e Adriano Moreira [o futuro ministrodo Ultramar]. Ao fim da tarde foi proferida a sentença. Os réusforam absolvidos da parte subversiva e foi-lhes aplicada a amnistiana parte referente à conspiração contra a actual forma de governo.Saíram em liberdade»43.

Foram absolvidos. Mas tinham passado 10 meses na prisão, emLourenço Marques, nos calabouços comuns, e na então Me tró -pole, nas prisões do Aljube e de Caxias44. E foram proibidos